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  • temas portugueses

  • Título: História da Literatura PortuguesaVol. I — Idade Média

    Autor: Teófilo BragaEdição: Imprensa Nacional-Casa da Moeda

    Concepção gráfica: Departamento Editorial da INCMCapa:

    Tiragem: 800 exemplaresData de impressão: Novembro de 2005

    ISBN: 972-27-1445-7Depósito legal:

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  • HISTÓRIA DA LITERATURAPORTUGUESA(RECAPITULAÇÃO)

    IDADE MÉDIA

    Prefácio de João Palma-Ferreira

    Vol. I

    3.ª Edição

    Teófi lo Braga

    IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA

    LISBOA

    2005

  • ��

    ACTUALIZAÇÃO DO TEXTO

    por JORGE DE FIGUEIREDO

    Para esta actualização seguiu-se o estabelecido pelo Acordo OrtográficoLuso-Brasileiro. Em relação às transcrições de autores portugueses utilizadospor Teófilo Braga, quer no que diz respeito à poesia, quer no tocante à prosa,manteve-se o texto contido no original, respeitando-se o critério do próprioautor. Todavia, as passagens das obras dos autores estrangeiros citados sofre-ram correspondente actualização.

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  • Quando se faz um resumo sem a preparação prévia de tra-balhos especiais, fica sempre um apanhado concretamente mes-quinho; se provém da condensação necessária de monografiasexaustivas, constitui uma síntese, pondo em evidência o sistemaem que assenta a obra.

    Já por três vezes o vasto corpo da História da Literatura Portu-guesa tem sido submetido a este processo de condensação: em 1875no Manual de História da Literatura Portuguesa (in-8.º de VII-474 pp.),destinado às lições orais. Em breve ficou atrasado pela publicaçãodos cancioneiros trovadorescos e pelo aperfeiçoamento do mé-todo histórico e filosófico, dando lugar à remodelação do planoem 1885 no Curso da História da Literatura Portuguesa (in-8.º grande,de 412 pp.). Desde essa data até ao presente, o campo da litera-tura portuguesa da Idade Média tem sido desvendado por in-signes romanistas franceses, alemães, italianos, espanhóis e ame-ricanos, e foram publicados numerosos textos dos séculos XIII aXV. Urgia incorporar esses subsídios dispersos. Enquanto nãorealizamos esse empenho na reimpressão dos Trovadores Portugue-ses, Formação do «Amadis de Gaula», Poetas Palacianos e Os Historia-dores Portugueses, suprimos esta deficiência de tempo com a prome-tida Recapitulação da História da Literatura Portuguesa da Idade Média,como a súmula da primeira época, tratada nesses quatro livros.

    A vastidão do corpo da História da Literatura Portuguesa corres-ponde à importância desta viva manifestação do génio estético

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  • deste povo, tão notável como a sua energia activa na iniciativadas navegações e descobrimentos geográficos. A sua extensãoimpõe uma recapitulação clara para os estrangeiros que desejamconhecer esta ignorada literatura românica e para os nacionaisque procuram um guia para o seu estudo.

    Os títulos de nobreza de Portugal não consistem exclusi-vamente em ter iniciado os grandes Descobrimentos e ocupadoo primeiro plano na actividade dessa extraordinária era; embo-ra pequeno no seu número, a par da ocupação de vastíssimosdomínios, criou o povo português uma das mais belas línguasromânicas, e nela os seus escritores, poetas, historiadores, via-jantes e filósofos produziram uma opulenta literatura que seguiua par e com brilhantismo a evolução das literaturas meridionais.Essa língua ainda hoje se fala em novos Estados, autenticando aextensão que teve o domínio português; e essa literatura foi eainda é hoje uma das forças morais que sustentam a nacionali-dade e autonomia de Portugal.

    Se está para este país terminada a empresa dos Descobri-mentos, mantêm-se fecundas as suas faculdades artísticas, cien-tíficas e filosóficas, suscitadas pela comparticipação no concursomental europeu, em que acima de cada nação se afirma o idealda Humanidade.

    Porto, 1909.1.ª edição

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  • O pequeno povo que ocupa a faixa ocidental da Espanha,constituindo-se em nacionalidade autónoma entre os novos Es-tados peninsulares formados no século XII, que se foram unifican-do até à completa absorção castelhana, assinalou pela energia dasua raça, a acção mundial, realizada nos grandes descobrimen-tos marítimos, que deram início à era moderna da civilização daEuropa. A individualidade étnica, que o tornou inconfundívelcom o Ibero, e a acção histórica inolvidável pelo seu influxo sociallevam a considerar o génio característico deste povo, o ethos,expresso nas criações artísticas, nas formas literárias, reflectindoa sentimentalidade, o espírito de aventura e a resignada espe-rança nunca extinta na alma portuguesa.

    Tão importante é a história dos descobrimentos marítimosdos portugueses, como a da sua literatura; este poder de acçãoe de criação estética explica o fenómeno sociológico da sua au-tonomia política através das crises das nacionalidades peninsu-lares, das conflagrações europeias e do empirismo boçal dos seuspróprios governantes.

    O povo português, cuja raça foi caracterizada por FredericoEdwards e Deniker como das mais puras da Europa e cuja na-cionalidade Pi y Margall apontou como a de mais lógica forma-ção entre os vários Estados peninsulares, conserva as suas tra-dições poéticas com uma inteireza arcaica, destacando-se entreo folclore ocidental pela sua riqueza e vitalidade, como obser-

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  • vou Jeanroy. Com estes elementos fundamentais ou orgânicos,a elaboração da literatura portuguesa é o produto do ethos daraça, do sentimento da nacionalidade e da consciência histórica,acompanhando solidariamente a evolução estética das literaturasromânicas na Idade Média, na Renascença e na época do Roman-tismo, seguindo a acção hegemónica de cada uma delas, e porseu turno influindo também na criação da novela de cavalaria ena corrente do Humanismo. O estudo histórico deste produtosuperior do génio português, acompanhando-o nas suas relaçõescom as literaturas modernas, através dos movimentos sociais epolíticos da península hispânica, presta-se à aplicação de proces-sos críticos, que só podem realizar-se compreendendo a psicolo-gia colectiva e o ponto de vista sociológico.

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  • PROLEGÓMENOS

    Elaboração orgânica da literatura

    A palavra escrita, quando por ela se dá expressão às emo-ções e concepções subjectivas, ou se representam actos e aspec-tos da natureza objectivamente, torna-se pelos recursos estilís-ticos a mais elevada forma da Arte, a que na série estética sechama Literatura. Muitos povos que alcançaram adiantadasformas sociais e conseguiram poderosas condições de existên-cia política não chegaram a criar uma literatura; é por que estefenómeno, resultante da estabilidade social em que se fixam oscostumes que têm de ser idealizados, desenvolve-se pela com-preensão individual que lhe dá o relevo sintético. É extrema-mente complexa esta transformação. Para que uma literatura seforme é necessário que uma raça fixe os seus caracteres antro-pológicos pela prolongada hereditariedade, que funde a agre-gação ou consenso moral de nacionalidade, tendo o estímulo deresistência na sua tradição e na unidade da língua disciplinadapela escrita, universalizando a relação psicológica das emoçõespopulares com as manifestações concebidas pelos génios artís-ticos.

    Compreendida assim, a literatura é uma síntese completa, oquadro do estado moral de uma nacionalidade representando osaspectos da sua evolução secular e histórica. O valor de qual-quer literatura patenteia-se nas condições do seu desenvolvimen-

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  • to, definindo os factores sociais que a motivam e de que ela é aexpressão consciente. Na marcha histórica de qualquer povo existeum trabalho constante de síntese ou coordenação espontânea detodas as suas energias, conformando os actos com os sentimen-tos e ideias dominantes. No estado presente da civilização, apolítica geral tende a exercer-se como síntese activa: a Filosofia,ratificando as concepções subjectivas pelos dados objectivos eexperimentais das ciências, determinando a ordem física, a or-dem orgânica e a ordem social, constitui na sua integralidade asíntese especulativa: a literatura e arte cooperam para a urgentesíntese afectiva, em que a vida emotiva e a tradição, partindo dasmanifestações da autonomia nacional recebem o relevo da soli-dariedade humana, esboçando o ideal da concórdia a que seaspira.

    Subordinada ao meio social pela sua origem e destino, a li-teratura reflecte todas as sucessivas modificações desse meio,achando-se, como todos os outros fenómenos sociológicos, su-jeita a leis naturais de ordem estática ou de conservação, e deacção dinâmica ou de progresso. Desconhecendo os elementosestáticos das literaturas é impossível compreender a sua origeme modo de formação; sem a apreciação das condições dinâmicasmal se avaliará o que pertence à influência individual dos escri-tores de génio.

    As épocas literárias de esplendor ou decadência, de inven-ção ou de imitação só podem ser bem caracterizadas pela de-pendência mútua entre os factores estáticos e dinâmicos. Bacon,esboçando genialmente as bases da história literária (De Augmen-tis Scientiarum, liv. II, cap. 4), indica os factores estáticos e dinâ-micos: «Antes de tudo o historiador das Artes e das Letras devepreocupar-se […] da natureza do país e da raça, sua aptidão in-génita ou ao contrário sua incapacidade para as diversas ciên-cias, as circunstâncias históricas favoráveis ou desfavoráveis (fac-tores dinâmicos), as influências religiosas, aquelas que provêm dasleis políticas, enfim, o mérito eminente e a acção fecunda dosindivíduos para o progresso das letras.»

    E indicando do modo mais nítido o método a seguir, assentao ponto de vista francamente histórico, e como síntese — «evocarde entre os mortos, como por uma espécie de prestígio, o génioliterário dessa época». Todo o progresso realizado até hoje nahistória das literaturas comprova a suprema concepção de Bacon.

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  • Como órgãos subtraídos à vontade individual, mas pelosquais se exercem os processos da concepção artística, constituemos elementos estáticos das literaturas: a raça, a tradição, a línguae a nacionalidade.

    Quando uma sociedade não conseguiu dar a estes factoresestáticos uma feição individual, a literatura não passa de umdocumento etnográfico, que por vezes supre a deficiência demonumentos históricos; as literaturas orientais, importantíssimascomo documentos psicológicos e de reconstrução histórica, sócasualmente atingem a expressão consciente de uma emoção, quese transmite intencionalmente. A literatura grega, na evoluçãoorgânica do seu lirismo, da sua epopeia e do seu teatro, deriva darelação harmónica destes elementos com a elaboração indivi-dual, sendo por isso o modelo perfeito de todas as literaturas,a norma do gosto, servindo de tipo clássico de imitação pelo re-levo ideal que as tradições helénicas receberam na expressão uni-versalista das altas individualidades. A literatura latina, abando-nando os seus elementos estáticos ou generativos, caiu em umaimitação artificiosa e no mecanismo retórico, ficando inferior aocarácter social e à função histórica da nacionalidade que a pro-duziu.

    Com este critério apreciaremos o grupo das literaturas da IdadeMédia, ou românicas, em que a literatura portuguesa é a derra-deira representante; explica-nos o grau de originalidade de cadauma, a razão dos acidentes que as diferenciaram nas suas épo-cas diversas e a fecundidade correlativa do seu vigor nacional.

    Novas nacionalidades se constituíram na Idade Média depoisda ruína da unidade imperial romana; essas nacionalidades, dan-do lugar ao desenvolvimento dos dialectos vulgares em línguas,então, pela expressão das suas tradições orais fixadas na escrita,formaram literaturas, as quais cooperaram directamente nesta tran-sição afectiva do conflito das raças para a sociedade moderna.Conforme os escritores se aproximaram da cultura greco-romana,ou se inspiraram nas tradições da Idade Medieval, assim asmodernas literaturas tiveram um desenvolvimento artificial ouorgânico, resultando daqui as diferenças dos seus caracteres,embora pertencendo todas à mesma corrente da civilização. Deentre essas literaturas, umas foram elaboradas sobre elementostradicionais antes do conhecimento dos modelos greco-romanosou clássicos, como a provençal, que se extingue por falta do estí-

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  • mulo de uma nacionalidade, sendo por essa causa substituídapela francesa; outras foram dominadas pelo prestígio das obras--primas clássicas, como a italiana, que se vivifica exprimindo aaspiração à vindoura unidade nacional. Entre as literaturas his-pânicas, duas correspondem às duas raças, a ibérica e a lusitana,que subsistem diferenciadas desde as épocas remotas até às maisrecentes crises históricas, e basta esta correspondência para des-cobrir o seu carácter tradicional e popular, por vezes modifica-do pelo pedantismo erudito. Enquanto as literaturas castelhana eportuguesa avançam para a perfeição estética, outras, como a ara-gonesa, valenciana e catalã, que floresceram, extinguiram-se, por-que o apoio da nacionalidade reduziu-se a um regionalismo emrevolta contra uma incorporação política e administrativa, comose confirma pela galiciana. As literaturas modernas, como obser-vou Frederico Schlegel, oscilam neste dualismo, entre os elemen-tos orgânicos tradicionais e populares, e os modelos clássicos se-gundo a influência erudita dominante.

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  • § I

    FACTORES ESTÁTICOS

    O estudo da raça, reconhecido como revelador das condi-ções da vida nacional, é o preliminar para a compreensão daliteratura; com a sua grande autoridade escreveu Spencer: «aLiteratura e as Belas-Artes não podem existir senão em virtu-de das actividades, que fazem que a vida nacional exista; e émanifesto que a coisa tornada possível é consequência daquiloque a torna possível». É este influxo persistente da raça que sereconhece penetrando os seus caracteres antropológicos. Umadas grandes conclusões científicas em que assenta a Antropo-logia é a persistência das raças, nos seus tipos ainda os maisremotos, e a conservação dos seus costumes através dos maiscontinuados cruzamentos, dando a revivescência dos tipos maisnumerosos e mais fortes. Por estes resultados, a Antropologiatorna-se um preliminar verdadeiramente reconstrutivo da his-tória primitiva.

    As concepções mentais, a intensidade emotiva, as formas deactividade, e mesmo as instituições sociais e religiosas, diferen-ciam-se pelas capacidades de cada raça. Como deixar de consi-derar as literaturas como reflectindo estes ethos?

    1.º A RAÇA — Segundo Prichard, a designação de raça «com-preende todos os agrupamentos de indivíduos que apresentam

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  • mais ou menos caracteres comuns transmitidos pela heredi-tariedade, deixando de parte e de reserva a origem desses carac-teres».

    Precisando esses caracteres através das manifestações de umaliteratura e explicando o porquê das suas formas, não é isto umabuso do critério das ciências biológicas aplicado a um fenóme-no psíquico e social. As literaturas distinguem-se entre si pelastradições elaboradas em línguas escritas e pelo modo de sentir deuma nacionalidade; consequência destes factores de ordem moral,nem por isso estão independentes do determinismo biológico,que em antropologia são as persistências atávicas ou heredita-riedade dos caracteres.

    Em uma mesma nacionalidade, que unifica politicamentediversos elementos étnicos, as características especiais desseselementos transparecem na literatura, como tem confirmado acrítica: na Grécia, sob a unidade ateniense, distingue-se o géniodos Dórios e o dos Jónios em arte, em política e em poesia, comoo reconheceu Ottfried Müller. Sob a unidade romana, as tradi-ções lucerenses e ticienses identificam-se com a história, e pene-trando de um modo incompleto na literatura adstrita à imitaçãoda cultura helénica, tomam o seu maior desenvolvimento nasformas sacramentais e simbólicas da jurisprudência, essa severapoesia, como lhe chamara Vico. Na unidade nacional da França,os cantos épicos das gestas correspondem ao norte ocupado pelaraça franca, em que preponderava a instituição feudal e monár-quica; as novelas da Távola Redonda desenvolvem-se onde a raçabretã se confinou conservando os vestígios míticos do seu drui-dismo; ao sul, o elemento gaulês, com as instituições municipais,em que se expande, sobre um fundo popular, o lirismo trova-doresco, que irradia da Provença por todo o Ocidente europeu,pela contiguidade das populações aquitânicas com as duas pe-nínsulas da Itália e da Espanha. Este mesmo critério foi aplica-do por Taine à literatura inglesa, em que o elemento saxãoconserva o génio e as tradições germânicas, ao passo que o nor-mando submete-se à disciplina da imitação, como se manifesta nadupla influência de um Shakespeare e de um Pope. Na literatu-ra alemã, Heinsius determina-lhe os seus períodos pela prepon-derância sucessiva dos aspectos da raça: gótico até ao século VIII;franco até ao advento dos Hohenstaufen no século XII; suábio, oudos Minnesinger, renano ou saxónio, da erudição e das universi-

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  • dades do século XIV a XVI; o silésio e suíço, em que impera a in-fluência francesa, e, por fim, a integração alemã, em que a plêia-da dos grandes génios se inspira nas tradições germânicas. Naliteratura russa, o génio eslavo, sob a pressão da ideia asiáticarealizada na soberania autocrática, e das importações ocidentaisda administração, há um antagonismo em que o génio nacionalse revela na exaltação mística, no iluminismo religioso, políticoe humanitarista. Mesmo os velhos monumentos literários e ar-tísticos têm prestado dados etnológicos para se discriminaremraças que não era possível distinguir fisiologicamente.

    Sob este critério, há um outro importante fenómeno a con-siderar: o encontro e fusão de duas raças determina uma revi-vescência de tradições hierológicas ou poéticas, como se vê naGrécia, com os elementos semitas dos cultos orgiásticos e antro-popáticos nas epopeias; igual crise na Europa medieval com asinvasões germânicas, que determinam a elaboração das cantile-nas em gestas ao norte, e com as invasões árabes ao sul, que fa-vorecem com intuito social a propagação do lirismo trovadores-co meridional. É, pois, o estudo da raça na história de qualquerliteratura o meio de descobrir a base tradicional sobre que sedesenvolveu e dela deduzir o que tenha de originalidade e fei-ção nacional.

    Portugal, desde que se constituiu em nacionalidade noséculo XII, ocupa o território da faixa ocidental da península his-pânica do rio Minho até ao Algarve; este território é ainda oque foi ocupado pelas tribos lusitanas, tendo a menos a Galiza ea Andaluzia, que formavam, segundo Estrabão, no seu conjuntoa Lusitânia dos antigos.

    Tratando de Portugal, o problema da raça é do mais altointeresse. Existe de facto uma raça portuguesa?

    A esta pergunta, respondeu Alexandre Herculano negativa-mente, considerando a Lusitânia um território diferente do dePortugal, e os Lusos umas tribos bárbaras, com quem o povoportuguês nada tinha de comum, por ser um elemento adventí-cio, transplantado das Astúrias e do reino de Leão; que preten-der relacionar os dados de Estrabão sobre os Lusitanos com osPortugueses, era uma preocupação heráldica dos humanistas doséculo XVI. Como poderia o historiador compreender o indivi-dualismo étnico de Portugal? Pior do que Herculano, veio o fra-sista Oliveira Martins, considerando Portugal essa horda de ad-

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  • ventícios asturo-leoneses submetendo-se à agregação de uma na-cionalidade pelas ambições e esforços continuados dos políticosdirigentes. Assim, os dois historiógrafos, desnacionalizando Por-tugal, como favorecidos pela dinastia dos Braganças, considera-vam ainda um benefício providencial que ela explorasse isto nairresponsabilidade. Outra desnaturação do tipo português é fei-ta pelos eruditos que compilam factos, que identificam Portugalcom um país de Celtas, sem conhecerem nem a cronologia destaraça, nem os seus caracteres antropológicos em antítese com osdos Portugueses. E já é favor; porque, para os nossos vizinhoscastelhanos, não há diferença alguma entre Espanhóis e Portu-gueses, são um povo único!

    A eterna divortia, definida por Sílio Itálico, na sua Punica, entreIberos e Celtas, é ainda hoje implacavelmente mantida nas duasnacionalidades hispânicas. Não é obra da política, nem comple-tamente devida à acção mesológica, mas às diferenças antropoló-gicas de duas raças, a ibérica e a lusitana, evolucionando nas si-tuações primitivas. A península da Espanha está dividida pelosPirenéus em duas vertentes, a oriental, ocupada pelos Iberos, e aocidental pelos Lusitanos, mantendo através de todos os cataclis-mos sociais e históricos as suas individualidades étnicas, mani-festando-se ao fim de tantos séculos a nacionalidade castelhanae a nacionalidade portuguesa, sempre inconfundíveis. Há aquialguma coisa acima das vontades individuais e das ambições tran-sitórias.

    Pela situação destas duas raças deduz-se a sua diferenteproveniência. A epigrafia e a linguística põem em evidência odesenvolvimento de um povo emigrante, revelado pela toponí-mia e pelas inscrições votivas a deuses ainda hoje adorados en-tre tribos de raça mongolóide; os escritores antigos chamaram aesse povo que ocupou a vertente oriental da Península Iberos,empregados na exploração dos jazigos metalíferos, principalmenteo estanho (aber). Segundo Bergmann, pertencem a essa raça daAlta Ásia, que faz a transição entre a raça amarela e a ariana.Pertencem a este grupo étnico o Berbere, o africano branco, osEtíopes ou Líbios, espalhando-se pelo Mediterrâneo e ocupandoas suas ilhas; estendendo-se à Itália, França e Inglaterra, consti-tuindo um fundo étnico comum, que se revela nos monumentosarqueológicos, nos vestígios de mitos religiosos, superstições erecorrência dos costumes.

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  • Na vertente ocidental estabeleceu-se o Luso, ramo de umaraça navegadora que fazia o comércio do âmbar do mar doNorte, os Lígures. Distingue-se esta raça pela sua estatura me-diana e cabeça redonda; pela cor trigueira da pele, cabelos eolhos castanhos e leptorrinia. Pode-se considerar o encontro deIberos e Lusos na Espanha como a unificação daquela grande raçasociológica de que fala Éforo, seguindo a geografia hesiódica efenício-grega, conforme a qual a Europa era ocupada: na regiãodo norte pelos Hiperbóreos, Cimérios ou propriamente os Citas;na região ocidental, pelos Lígures, também denominados Skeltose Atlantes; e na região do sul, pelos Etíopes ou Líbios, os Ha-mitas que propagam ao Egipto e Caldeia a sua cultura. Estequadro, conservado por Éforo, compreende verdadeiramente agrande civilização ocidental ou bronzífera, que precedeu as civi-lizações arianas, e que se deve designar pelo nome de Turaniana,porque assim a denominou o mundo avéstico oriental. E estetítulo de Turan, de uma grande extensão geográfica, proveio doseu zodíaco, levado à América, à Índia e ao Egipto, em que ocurso do ano estival começava sob o aparecimento da constela-ção do Touro. Como factores desta civilização ocidental, Iberos eLusos não eram incompatíveis; as circunstâncias, porém, foramfortificando o elemento ibérico pelas migrações do Eusk, doNorte da Europa, do Líbio-Fenício, vindo da África, e mais tar-de pela sua fusão com os Celtas errantes no VI século antes danossa era. O Luso foi comprimido na região da vertente ociden-tal da Espanha mas não assimilado; o Ibero nunca perdeu a suatendência absorvente, como o mostra desde a época histórica ounitarismo castelhanista.

    Esta primitiva extensão do território mostra-nos como apopulação lusitana pôde contrabalançar-se com a população ibéri-ca, cujos caracteres são nitidamente diferenciados pelos geógra-fos gregos e romanos. Embora diminuído o território pelas di-visões administrativas romanas e pelas incorporações neogóticas,o pequeno Portugal de hoje nunca perdeu a população lusitanaque o ocupava, podendo afirmar-se, pelos recursos da compro-vação antropológica, que não há solução de continuidade do tipoluso para o português actual. Herculano errou quando afirmougratuitamente a descontinuidade. As diferenças do Ibero e do Lusoainda hoje se impõem à observação no antagonismo político, in-telectual e moral; não os separam fronteiras materiais, nem tão-

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  • -pouco instituições religiosas ou sociais, mas prevalece uma ima-nente antinomia. É na raça que ela se há-de encontrar.

    O Luso é um ramo da grande raça dos Lígures, ou pré--céltica; Hesíodo assim chamava aos povos do Ocidente, noveséculos antes da nossa era; este mesmo nome de Lígures era dadopor Ésquilo (VI século a. C.) à poderosa gente que ocupava o Oci-dente; os povos quer ocupavam a península hispânica e a GáliaMeridional eram chamados por Heródoto Lígures, nome queEstrabão diz que no IV século a. C. designava, segundo Eratós-tenes, os povos do Mediterrâneo. Plutarco acha Iberos em coe-xistência com os Lígures na bacia do Mediterrâneo. Das migra-ções ligúricas das bordas do Báltico, em frente da Escandinávia,como estabelece Martins Sarmento, chegaram à península hispâ-nica as tribos lusitanas, que ocuparam a orla marítima ocidental,encontrando já estabelecidas mais para leste as tribos ibéricas.Custou muito a destacar este substratum ligúrico confundido comos povos Célticos, aquele ainda na civilização bronzífera, estesjá possuidores do ferro. Belloguet demonstrou esta camada ét-nica para a França, Celesia e Molon para a Itália, e Martins Sar-mento para o pequeno estado fragmentário de Portugal. OsGalos, os Ômbrios (veteres Galli), os Callaici ou Gallaici da Espa-nha são anteriores aos Celtas e diferentes deles em tipo antro-pológico e caracteres étnicos. Foi Estrabão que consignou estesubstratum, com que se reconstitui a extensão da Lusitânia dosantigos; diz-nos (III, III, 6, 7) que os Lusitanos, os Galizianos, osAsturianos e os Cantabros tinham todos os mesmos usos e costumes, enão acha analogia alguma com os costumes e usos dos Celtas.Quando fixa analogias é com os Lígures e com os Gregos, nomedado a colónias do Norte 1. A esta Lusitânia pertencia pela raçaa Tartéssida, ou Turdetânia, Bética ou moderna Andaluzia. Comoera um povo aguerrido e de instinto de independência, os Ro-manos trataram de desmembrar o seu território, dividi-lo ad-ministrativamente; segundo Estrabão, a Lusitânia abrangia todaa faixa ocidental da Espanha, desde o Tejo até ao mar Cantábri-co; mas já no tempo de Plínio, estava fora a Galécia, começandoa Lusitânia no rio Douro e acabando no litoral do Algarve. Por

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    1 Sarmento, «Les Lusitaniens», p. 405, do Compte-rendu do CongrésAnthropologique de 1880.

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    este trato de território, em que veio a constituir-se um dia oEstado de Portugal, vê-se que essa nova nacionalidade apareceuno século XII como uma revivescência étnica. Sobre a importânciadas povoações ligúricas, escreve Lemière: «Enfim, era preciso queos indígenas da Ibéria marítima fossem muito realmente Lígures,para que um geógrafo tão instruído como Eratóstenes falandodas três grandes Penínsulas da Europa meridional, a que chamapromontórios, entendesse poder designar com o nome de Li-gústica a que formava a Ibéria.» 2

    Por esta importância se explica como a invasão dos Celtasna Espanha actuou diversamente sobre os Iberos e sobre osLusitanos. Martins Sarmento, ao par de todos os trabalhos dosantropologistas modernos, define o Celta: «raça puramente sep-temtrional e radicalmente distincta physica e moralmente daspopulações occidentaes e meridionaes da Europa; uma onda debarbaros que entre o VIII-VII seculo rebenta d’além do Baltico so-bre o continente, espraiando-se em bandos mais ou menos nu-merosos por differentes direcções e perdendo-se por fim, mes-mo como raça característica, salvo n’um ou noutro ponto, no seiodos povos com os quaes acabou por se fundir» 3. Desde que osgeógrafos e historiadores antigos, como diz Vivien de SaintMartin, designavam com o nome de célticas as nações indistin-tamente das regiões ao norte do Ister (Germânia) e ao oeste doReno compreendendo também a Hispânia, fácil foi fazer a con-fusão atribuindo aos Celtas usos, costumes e línguas de outrospovos; e lidos esses livros sem exame crítico, difundiu-se o enigmacéltico, que tanto tem perturbado a inteligência da história emesmo a filologia 4. Em que condições se operou a invasão dosceltas louros e corpulentos na Espanha? Sarmento escreve:«A turba […] que tomou o caminho do Rhodano tem-seempobrecido antes de entrar na Hespanha com os desfalquesexigidos pelas invasões da bacia do Pó e pela ocupação do lito-ral dos Pyreneus, onde deve ter ficado uma parte considera-vel» 5. Em presença dos Iberos tiveram de afrouxar na violência

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    2 Étude sur les Celtes et les Gaulois, p. 71.3 «Celtas na Lusitânia», Revista Científica, p. 80.4 Ib., p. 82.5 Ib., p. 132.

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    do ataque, e, como observa Sarmento, diante do facto históri-co: «As hostilidades acabam por uma transacção amigavel; Cel-tas e Iberos formam uma nação mixta os Celtiberos, uma verda-deira federação, onde não há dominadores nem dominados —facto que parece esquecerem os que nos fallam da dominaçãoceltica na Hespanha.» (Ib., p. 133.) Em frente dos Lusitanos ainvasão céltica foi mesquinha, pela inferioridade do seu núme-ro e da sua cultura; os celtas do Ana admitidos pelos Turdeta-nos, são-lhes intelectualmente inferiores, como observa Estra-bão; e esses mesmos, que se estabelecem no promontório Nério,quatro tribos «são os unicos que apparecem na Lusitania» (ib.).A obsessão dos Celtas levou certos eruditos a ver no onomás-tico da Lusitânia nomes célticos, e tiraram da sua hipótese ar-gumento decisivo; contra este argumento opõe Sarmento: «a Oramaritima menciona nas Ilhas Britanicas e no Occidente da Hes-panha nomes taes como Albiones, Hierni, Ana, que como se vênão pódem pertencer á onomastica celtica, tendo alias umaphysionomia celtica muito pronunciada. Existe pois uma línguapre-celtica que póde explicar alguns nomes pseudos-celticos.Porque não hade explicar todos os outros que forem da mes-ma natureza?» (ib., p. 300). Mas a celtomania do tempo de Bulletreapareceu com aparatos filológicos, submetendo a processosfonéticos, comparativos com os dialectos pré-célticos existentesna Escócia, Irlanda e Bretanha francesa, todas as palavras pre-tendidas célticas.

    Escreve Roisel, mostrando que as línguas impropriamentechamadas célticas, o irlandês, o gadélico, erse e o manx (ramogaélico) e o welche, o idioma de Cornnwald, o armoricano oubaixo bretão, pertenceram a esse povo primitivo bronzífero, quedesceu do norte da Europa, e que hoje se reconhece como Lígure,aponta um dialecto, o antigo moriniano, falado ainda em um re-canto do noroeste da França entre o Lis e o mar (Les Atlantes,p. 106). Quando nos poemas homéricos se fala nos Hiperbóreos,citam-se os Campos Elísios, no extremo da terra; e Virgílio colocaesse extremo no «país dos Morínios, e a dupla embocadura doReno». Para os escritores antigos, como Solino, o cabo do mundoera «a costa marítima das Gálias» (op. cit., p. 136).

    A invasão dos Celtas na Europa foi a ruína da civilizaçãoocidental ou bronzífera; esta raça corpulenta e nómada, de olhosazuis e comada (Gualt), possuindo armas de ferro, vinha à

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    depradação de um mundo rico pelo comércio marítimo e fluviale pelas produções da agricultura. Os Celtas iniciaram a luta ain-da hoje persistente dos homens corpulentos do Norte contra oshomens medianos do Sul. No século V da nossa era, os Germa-nos continuaram essa devastação, descendo para o Sul e des-truindo a civilização romana, pelas hordas de Lombardos, Fran-cos, Saxões, Godos e Suevos; ainda hoje mantêm o mesmo espíritode ocupação militar e de espoliação.

    Mas a ruína da civilização bronzífera ou atlântica duroudesde o século VIII para o VII antes da era moderna, até que osRomanos dirigindo a sua conquista militar para o Ocidente, naEspanha, nas Gálias e nas Bretanhas, influíram pela sua organi-zação administrativa, fundada no reconhecimento das garantiaslocais, que se operasse a revivescência dessa antiga civilizaçãoou o renascimento ligúrico. Historiadores modernos, ainda des-vairados pelo prestígio de Roma, consideram este fenómenoextraordinário para quem desconhecer os antecedentes, comoassimilação da cultura latina. Não era em dois séculos que po-vos bárbaros, como pintaram os Iberos, Lusitanos, Gauleses eBretões, podiam assimilar a alta civilização dando a Roma filó-sofos, jurisconsultos, retóricos, poetas líricos, épicos e trágicos,e até imperadores. Tudo isto é, na essência, um renascimentoligúrico.

    Nem a invasão já enfraquecida dos Celtas, na Espanha, nemos Romanos, pela sua falta de número entre os mercenários dassuas legiões, nem os Fenícios, pela sua incomunicabilidadesemita, se mestiçaram com os Lusitanos, conservando-se, comoobservaram Frederico Edwards e Deniker, a raça mais pura daEuropa.

    O estado de pureza das tribos Lusitanas é que as fez resistira outros invasores, conservando caracteres próprios cuidadosa-mente descritos por Estrabão; mesmo certas analogias com cos-tumes gregos são explicáveis pelo contacto com colónias mercantisdos jónios do sul da França e da Espanha; os Jónios tinham se-guido a exploração do Mediterrâneo para oeste, vindo encontrar--se na península hispânica com os Fenícios. A superioridade desteramo semita no comércio pacífico, não actuou na população lusi-tana, embora sejam fenícias muitas designações topológicas, nemnos dialectos pré-célticos peninsulares, embora a sua influênciafosse continuada por colónias líbio-fenícias, domínio cartaginês

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    e colonizações judaicas. O conflito das navegações e empórios dosJónios e dos Fenícios fez com que aqueles chamassem os Roma-nos para os substituírem na luta, dando em resultado a ruínada raça semita no Ocidente até ao aparecimento e invasão dosÁrabes. Na sua luta contra os Romanos, os Cartagineses, coló-nia fenícia do norte da África, exploraram as povoações celtibé-ricas acordando-lhes o espírito de autonomia para resistiremcontra as legiões romanas.

    Roma ia fixando o seu domínio em Espanha pela conces-são de garantias políticas, estendendo o direito itálico às novasprovíncias, vindo sob o Império a realizar-se a primeira unifi-cação hispânica. Todas as lutas foram sustentadas contra Romapelos Lusitanos, e Viriato, o guerrilheiro que derrotava os pro-cônsules, fortificava-se pelas alianças federativas, que torna-riam a Espanha livre. É esse vulto extraordinário que representaesplendidamente a raça; caiu pelo assassinato da traição roma-na, e com ele a independência. A cultura romana facilmenteassimilada, como se vê pela biografia de Sertório, em nadaactuou na raça lusa; os soldados com que Roma combatia e man-tinha a ocupação eram de ordinário mercenários germânicos,bem como o seu colonato. Dada a quase semelhança do tipocelta e do germânico, como observou Estrabão — dizendo quepodiam passar por irmãos, com costumes idênticos —, podedistinguir-se a sua influência na mestiçagem com as populaçõesceltibéricas determinando uma regressão ao tipo céltico, loiro,ao passo que na Lusitânia não se modificou o tipo trigueiro emeã estatura.

    Escreve J. J. Ampère, na sua Histoire litteraire de la Franceavant Charlemagne (II, 97): «O uso imprudente de recrutar osexércitos romanos entre os bárbaros fez progressos bastanterápidos. Probo deu o exemplo de uma reserva prudencial, quedeixou mais tarde de ser imitada; ele determinou o númerode bárbaros que poderia admitir-se numa legião; apesar dis-so houve legiões inteiras exclusivamente de bárbaros.» Desteerro político resultaram duas consequências: a facilidade daqueda do Império no século V, diante das invasões germâni-cas, e a fácil assimilação da cultura latina pelos Visigodosenquanto à unidade imperial e emprego da língua dos códi-gos e nos tribunais. A Igreja, adoptando para a sua liturgia alíngua latina, e espalhando a tradução da Vulgata, cooperava

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    também no desenvolvimento dos dialectos hispânicos com umvasto vocabulário latino. Daqui a ilusão de um latim rústicodando lugar à criação das línguas vulgares chamadas novo--latinas. Outra ilusão é a de chamar povos românicos ou raçalatina às modernas nacionalidades, que pela restauração datradição imperial nas monarquias germânicas, e pelo processocivil romano nos tribunais durante a Idade Média, chegaramno Ocidente da Europa a dar uma certa unidade à civilizaçãomoderna.

    A raça germânica, continuando a luta dos homens corpulen-tos do Norte contra os homens meãos do Sul, aparece igualmentena Itália com a invasão dos Ostrogodos e Lombardos; em Fran-ça, com a dos Francos e Borguinhões; na Inglaterra, com os An-glos e Saxões; na Espanha, com Visigodos, Suevos e Alanos.Dava-se esta calamidade no século V da nossa era. Esta similari-dade de elementos ia actuar sobre as instituições sociais, deter-minando os dois tipos do estatuto pessoal e do estatuto territorial,fundados na tribo e no cantão; mas enquanto à mestiçagem daraça, pouca transformação podia produzir, por isso que essasraças do Norte rapidamente se extinguiram nos países quentesem que estacionaram. Pela extensão da Lusitânia a dos antigos,espalharam-se as tribos germânicas, os Suevos e depois os Visi-godos na Galiza; os Vândalos ocuparam a Bética, e na partecentral lusitânica os Alanos, tribos que passaram para a Áfricado Norte, dando lugar à última e mais forte invasão dos Visi-godos, que se tinham fixado na Aquitânia. Se a história da Es-panha começa com o domínio dos Romanos, a formação dasociedade moderna começa com o império visigótico. É esta pro-priamente a importância do elemento germânico. A continuidadedas invasões fez que a banda guerreira e a banda agrícola iguaiscomo homens livres (werh-man) se diferenciassem, prevalecendoos homens de armas sobre a decadência da outra classe, que sefoi misturando com as populações vencidas, do colonato roma-no, os lidi, leude, lazzi ou lige. Nesta separação estabelece-se umantagonismo mais profundo, em que a nobreza militar (os du-ques, condes, marqueses e barões) adopta as leis imperiais ro-manas do Código Teodosiano, abandona o culto de Odin pelocatolicismo de Roma; a classe dos lites (os aldios, lazzi e vassus)alia as suas crenças de Herta com o cristianismo tradicional,conserva os seus costumes e símbolos jurídicos, e numerosas

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    tradições poéticas, que se transmitiam oralmente, e se confun-diam com as das preexistentes raças.

    O orgulho aristocrático cada vez separava mais a classe guer-reira ou senhorial; e a decadência das garantias do antigo homemlivre cada vez sincretisava mais os lites com as populações lusi-béricas, que nunca tinham sido destruídas, nem escravizadas. Eranesta população numerosa, que procurava a estabilidade territo-rial e a revivescência das suas garantias (a fara) que havia deorganizar-se a sociedade moderna da Espanha. Uma circunstân-cia determina esse grande fenómeno: a invasão dos Árabesem 711.

    Se uma só batalha, a de Guadelete, destruiu o império visi-gótico, é porque ele se achava sem apoio, e só sustentada poruma diminuta classe privilegiada. É essa a que constitui os refu-giados das Astúrias, e que fortificando-se na unificação católica,tentam, ao passo que avançam na reconquista, restabelecer osvelhos privilégios aristocráticos com leis apócrifas e romanasformando o Código Visigótico. Mas sob o poder dos Árabes,tolerantes enquanto à crença, garantias locais e actividade, aspopulações sedentárias deixaram-se ficar, e foram evolucionan-do em um progresso social que as levou a restabelecerem as suasprimitivas liberdades cantonais, elevando-se aos pactos federa-tivos das beetrias, para as quais mais tarde formulariam os pe-quenos estatutos territoriais, ou cartas pueblas e forais. Do século VIIIaté ao século XI é que se opera esta transformação de classesservas e decaídas de liberdade em povos livres que hão-de es-tabelecer novas nacionalidades. Designa-se esta população, nu-merosa e complexa nos seus elementos, pelo nome de Moçárabe,que significa aquele que estando em convivência com o Árabe oimita nas maneiras exteriores da existência (most’arabe), masconservava-se na religião cristã; e as populações agrícolas e fa-bris, que, para obterem uma diminuição dos impostos, adopta-vam o culto do Islão, por esta protecção eram chamados Mulla-dies (do árabe maulas, cliente). Tal era a vitalidade desteselementos sociais, que a nobreza dos Asturo-Leoneses debaldetentou na reconquista do solo hispânico restabelecer as institui-ções senhoriais; ao passo que a realeza teve de reconhecer nascartas pueblas e forais as garantias locais dos Moçárabes e Mulladies.Muñoz y Romero viu admiravelmente a organização destes fac-tores sociais, em que as formas civis e políticas apareciam nos

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    concelhos e nos processos como uma revivescência do germanis-mo, mas fortificando a cultura luso-ibérica 6.

    Quando se constituiu a nacionalidade portuguesa, noséculo XII, foi essa população dos Moçárabes a matéria-prima; eraela que estava no território da obliterada Lusitânia. EscreveHerculano: «Dos territórios da Espanha, nenhum talvez mudoumais vezes de senhores durante luta, do que os distritos de EntreDouro-e-Tejo, sobretudo nas proximidades do oceano, e porventura emnenhum ficaram mais vestígios da existência da sociedade moçarábi-ca, da sua civilização material, das suas paixões, dos seus inte-resses encontrados, e até dos seus crimes.» 7 Por um feliz lapsode pena, Herculano chega a chamar-lhe raça moçárabe. Era a in-tuição inconsciente da persistência do antigo tipo lusitano, quetinha muitas vezes mudado de dominadores, mas que conserva-va o seu modo de ser, paixões e interesses.

    Depois de dominada a invasão dos Árabes pelos Neogodos,a separação entre o Ibero e o Lusitano ficou ainda mais acentua-da. A ocupação dos Árabes fez-se principalmente com tribos deMouros e Berberes; e operando-se o cruzamento com os Hispano--Godos, estabelecia-se uma certa recorrência de caracteres étni-cos do Ibero: na reconquista, as colónias maurescas e berberespreferiram ficar no solo hispânico. Todas as lutas dos emiradosárabes, e todas as dissidências que embaraçaram a consolidaçãodo império árabe na Espanha, foram devidas às lutas permanen-tes desse elemento berbere e mauresco, cujo tipo físico e feiçãomoral de impetuosidade e sombrio fatalismo transparece no es-panhol moderno.

    O Lusitano, realizando o ideal de povo livre, entrou na his-tória pelo carácter da raça ligúrica, o génio das expedições ma-rítimas, que o fez iniciar a era das grandes descobertas; pela suatenacidade, resistiu a todos os desvarios dos que o governaramatraiçoando-o, desde o castelhanismo, dos casamentos reais até àsua desmembração territorial pela dinastia bragantina; e pelavitalidade das suas tradições e sensibilidade afectiva criou umabela literatura nacional.

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    6 Foi sobre esta tese que trabalhámos desde 1867 nos Forais e em 1871nas Epopeias da Raça Moçárabe, mas sempre incompreendido.

    7 Hist. de Portugal, § V.

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    2.º A TRADIÇÃO — Enquanto as nacionalidades peninsularesse separam em organismos autonómicos, pela acção mesológicacooperando com a independência política, os dialectos locais cor-respondem a essa diferenciação; não se apagam as primitivas uni-dades étnicas, que subsistem na tradição, transmitida inconscien-temente. Assim nos cantos populares, músicas e costumes daregião galécio-asturo-portuguesa e estremenho-bético-algarvia nassuas semelhanças reflecte-se aquele âmbito geográfico da Lusitâ-nia dos antigos descrita por Estrabão. Pode-se estabelecer a con-tinuidade entre essas tradições poéticas e consuetudinárias dospovos hispânicos e as populações actuais. Estrabão, citando otestemunho de Asclepiades de Mirleia, que vivera na Andalu-zia, diz que os Turdetanos possuíam poemas e leis rítmicas commais de 6000 anos. O P.e Sarmiento, propondo a leitura de eton,que significa ano, pelo quase homófono epon, verso, inteiramen-te plausível, nota: «sin error, entenderemos por Turdetanos a losPortuguezes e Andaluces, mas meridionales» 8. Na Irlanda, o vate(filès) era conjuntamente juiz; e como observa Summer Maine,eram também em verso as leis de Moelmud. As formas metrifi-cadas dos anexins populares, certas fórmulas tautológicas e ali-teradas praxes jurídicas são ainda vestígios desta fase emocional.

    As formas fundamentais da poesia, o lirismo, a epopeia e odrama, ainda aparecem vivificadas pelos actos quotidianos dopovo; são como que uma maneira da sua expressão, uma natu-ral relação da vida doméstica com a vida pública. O casamento,acompanhado de cerimónias imensamente dramáticas, como orapto, a coempcio, a coabitação simulada, restos de outros esta-dos sociais, era o tema de certos cantos líricos, que já no tempoda ocupação visigótica eram tão persistentes no povo, que aIgreja os condenava como pagãos no Concílio Ilerdense doVI século. Santo Isidoro hispalense, no livro das Etimologias, apon-ta os cantos epitalâmicos cantados pelos escolares em louvor dosnoivos, que foram regularizados pela legislação neogótica. Des-tes mesmos cantos de vodas e torna-vodas, explorados pelos esco-lares vagabundos, fala por experiência o arcipreste de Hita; e emuma disposição do Tombo do Aro de Lamego, de 1346, que vemcitado no Elucidário de Viterbo, estabelece-se que no tamo, ou

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    8 Memoria, V. 41.

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    festa nupcial, se não podia tanger adufe no mês de Fevereiro, eque a melhor fogaça pertencia ao mordomo. A disposição proi-bitiva referia-se aos ritos dos cultos atonianos, que se pratica-vam já inconscientemente. As regueifas da Galiza são ainda essescantos de vodas, comuns também a Portugal.

    As cerimónias fúnebres eram acompanhadas de cantos ou en-dechas dos mortos, a que os Romanos, referindo-se à penínsulahispânica, chamaram nenias, equiparando-as às suas laudes; essescantos eram acompanhados de danças lúgubres com um carác-ter local, e Tito Lívio (Liv. XXVII, 17) chamava-lhe tripudiis his-panorum. Sílio Itálico reconhece este carácter primitivo da ende-cha nacional, chamando-lhe barbara carmina; no funeral dosCipiões a cerimónia constava também dos funebres ludi. DiodoroSiculo (V, 34) alude aos hinos guerreiros dos Lusitanos, antes deentrarem em batalha, análogos ao barritum dos Germanos; e de-pois da batalha, no funeral dos guerreiros cantavam-se as nar-rativas dos seus feitos, como conta Apiano do funeral de Viriato.Estrabão refere que os Cantábricos repetiam os seus hinos deguerra, quando estavam pregados em cruzes pelos vencedores,onde morriam vociferando insultos. Esse género de cantos fúne-bres era comum a todo ocidente da Europa, e ainda hoje deno-tam o substratum étnico da raça ligúrica: conhecem-se em Nápolescom o nome de lamenti e triboli, na Sardenha com o nome deatilidos, na Córsega com o de voceros, no Bearn com o de aurust,na Vascongadas com o de arirrajo, e entre os tupis da Américacom o de areytos. A sua revivescência na península é atribuídapor D. Joaquin Costa (Poes. Pop., p. 280) à época visigótica; emPortugal foram estes cantos fúnebres conhecidos pelo título declamores, e um alvará de D. João I proibia o bradar sobre finados.Na literatura conservam-se documentos deste género na sua fasetradicional, tais são as seguidilhas cantadas por dançantes sobrea sepultura do condestável D. Nuno Álvares Pereira, e o romancetambém cantado sobre a morte do príncipe D. Afonso; a formaliterária chamava-se lamentação, que se encontra no Cancioneiro deResende, comum aos poetas cultos espanhóis e italianos. O Concí-lio III de Toledo, sob o nome de Fúnebre Carmen, proibia estescantos ou orações e ensalmos propiciatórios, de que o povo por-tuguês conserva um tipo já satírico, nas Maravilhas do Meu Velho.

    As crenças religiosas e suas formas cultuais foram temasessenciais ou orgânicos de manifestações poéticas, que ainda hoje

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    sobrevivem; Estrabão cita algumas danças dos Celtiberos, peloplenilúnio acompanhadas de cantares (Liv. II, 4, § 16). Este cos-tume passou para as vigílias dos santos, proibidas pelo concíliotoledano (XVI, can. 23), mas conservadas na Bretanha, e em Por-tugal, nas romarias a santuários distantes. As salvas, as chacotas,as alvoradas e serenadas são vestígios de uma herança de tradições,que explicando o processo de elaboração das literaturas, nos res-tabelece pelos dados comparativos esse fundo comum, ousubstratum étnico da civilização ocidental.

    As formas líricas das serranilhas, muinheiras e bailias galécio--portuguesas, as bailatas e ballets franceses, derivam «de um tipotradicional comum às diversas populações românicas» como ob-servaram Paul Mayer, Constantino Nigra, Gaston Paris, Jeanroy;a determinação desse tipo tem conduzido a hipóteses provisó-rias, como a origem céltica apontada por Nigra, ou a origemfrancesa proposta por Gaston Paris e Jeanroy. Mas no trama an-tropológico da Europa, a raça dos Lígures, trigueiros e braqui-céfalos, precedeu em ocupação e em civilização todas essasoutras, que foram destrutivas. Além do impulso da raça, os cos-tumes sociais é que impõem as formas artísticas, segundo ossentimentos e concepções dominantes. Um povo que teve a com-preensão do ano solar, e que usou essa divisão cronológica nasua vida social, relacionou os actos civis com estes dois perío-dos fundamentais: do começo do ano, ou solstício estival, e dofim, determinado pelo solstício hibernal. Da alegria da naturezaque se rejuvenesce na vegetação, resultaram as festas ao ar li-vre, da entrada da Primavera, a representação das maias, as dan-ças em roda da árvore reflorida, entre moços e raparigas, as can-tigas chamadas pelos franceses maierolles, e também umavariedade enorme de cantos líricos simultâneos com a dança eo canto, que em toda a tradição popular europeia conservam omesmo tipo morfológico. É imensamente interessante seguir es-tas formas populares nos seus reflexos literários nas canções jo-gralescas e trovadorescas, que abundam nos cancioneiros portu-gueses da Ajuda, Vaticana e Colocci-Brancuti; e, inversamente,reconhecer nos cantos populares orais da Galiza ou Trás-os--Montes, a vitalidade dessas formas medievais.

    Das festas do solstício hibernal, ou a entrada do Inverno, re-sultaram formas dos cultos orgiásticos primitivos da morte dojovem herói, caído prematuramente e chorado pela natureza in-

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    teira, que vem desde os mitos siro-fenícios e heleno-itálicos atéao cristianismo. As nacionalidades semitas, fenícias e cartagine-sas, comunicaram-nos cultos orgiásticos de que subsistem restosimportantes nas superstições e práticas cultuais das deusas-mães.Com estas explicações confundem-se mais ou menos as explora-ções e estabelecimentos dos Jónios, na península, espalhando-separa o extremo ocidente uma civilização helénica pela acção daconfederação mediterrânea cujo centro era Marselha. Daqui ailusão de os geógrafos gregos considerarem a civilização ligúri-ca, que encontravam, como sendo grega. Nesta época estavamem elaboração as rapsódias da Achilleida, a Pequena Ilíada, a Des-truição de Tróia, a Dolonia, as Peregrinações de Ulisses, a Telemaquia,o Regresso de Ulisses, que os aedos helenos levavam por todo odomínio dos Jónios, rapsódias que vieram a constituir os poe-mas homéricos. É por isso que Estrabão, referindo-se à vulgari-zação das tradições troianas e dos errores de Ulisses, diz: «Nãosó na Itália se conservam passagens dessas histórias, senão tam-bém na Ibéria existem vestígios de tais expedições, assim como daguerra de Tróia» (Liv. III, c. 2, § 13). Estrabão, notando o facto,deixava inconscientemente consignada uma outra — que os Tur-detanos, que é o mesmo que Lusitanos, possuíam poemas commais de seis mil versos, em que continham ritmicamente as suasleis. Não careciam de apoderar-se das tradições gregas; os mo-dernos estudos das lendas odisseicas, por Cailleux, desde 1878,chegaram à conclusão que as navegações mediterrâneas do poe-ma odisseico não condizem com as referências geográficas, nemcom as distâncias apontadas nem com os aspectos da natureza.Trata deste importante problema na obra: Poesias de Homero Fei-tas na Ibéria e Descrevendo Não o Mediterrâneo mas o Atlântico, sus-tentando a tese: «Os dois Poemas de Homero são inteiramenteestranhos ao Mediterrâneo: a Ilíada relata uma antiga guerra feitana Bretanha pelos povos do continente; a Odisseia é uma descri-ção do país e da religião dos antigos Celtas.» Nesta tese impor-ta reparar na ilusão céltica, a que ainda obedece Cailleux, porqueforam os Lígures o povo navegador que iniciou as exploraçõesdo oceano Atlântico. Cailleux, em outro livro, Países AtlânticosDescritos por Homero, conclui também «que esses países são a Bre-tanha, a Gália, a Ibéria, e todos os Arquipélagos do Atlântico(Açores, Madeira e Cabo Verde); a religião que referem os seuspoemas perpetuou-se nas nossas regiões e encontra-se nas nos-

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    sas crenças». Todos estes países indicados são aqueles em queos Lígures precederam os Celtas, que nada fundaram, sendo assi-milados pelos povos preexistentes. E como para reforçar a ver-dade da tese de Cailleux, o insigne arqueólogo português Mar-tins Sarmento publicou em 1887 a obra Os Argonautas, na qual,recompondo a lenda original primitiva pelos vestígios dos poe-mas órficos e do de Apolónio Rodio com a epopeia homérica,reconstitui o périplo de uma navegação atlântica, cuja tradiçãofoi plagiada pelos Gregos para uma situação mediterrânea sema realidade correspondente. Sarmento não conhecia a obra deCailleux, e chegando aos mesmos resultados, atribui esse péri-plo primitivo aos Fenícios, que são muito posteriores aos Lígu-res. Estavam ambos os críticos a uma linha da verdade, masinterceptada pela miragem céltica e pela fenícia, que não temmenos complicado a história antiga. Vê-se que a afirmativa deEstrabão fundava-se numa realidade, que ele invertia; os histo-riadores da Renascença obedeceram à miragem helénica, quan-do atribuíram a fundação dos estados modernos da Europa aoschefes gregos, depois que se dispersaram do cerco de Tróia;assim Ulisses fundava Lisboa; a França, como refere Warnefried,e a Escócia, como afirmava Eduardo III, provinham dos heróistroianos, ficções que foram depois propagadas pelo célebre fal-sificador Anio de Viterbo, dominicano, e que reproduziu comingenuidade o cronista Fr. Bernardo de Brito. Nos cantos popu-lares existem os vestígios ou rudimentos épicos dessas lendasodisseicas; segundo Ampère, o romance da Bela Infanta ou a vol-ta do cruzado tem essa origem do regresso de um herói ao seular, e para comprovar a sua antiguidade basta indicar a sua ex-tensa vulgarização, que o coloca em um fundo étnico comum aoOcidente da Europa; trazem versões castelhanas, D. AgustinDurán; catalãs, Milà y Fontanals e Pelay Briz; asturianas, Ama-dor de los Rios e Menéndez Pidal; francesas, Tarbé, De Puymai-gre e Beaurepaire; bretãs, Luzel; italianas, Ferraro, Wister e Wolf,Bernoni; e na Grécia moderna, Marcellus. A situação primordial,a vida errante nos mares, e a cena tremenda da antropofagia,que se descreve na Nau Catrineta, acentua mais o carácter desseciclo odisseico; e este romance popular português é também co-mum aos povos ocidentais, como se pode verificar pelas versõespopulares da Catalunha, publicadas por Fontanals, da Provençapor D. Arbaud, da Bretanha por De Puymaigre, de Bordéus por

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    Rathery, da França por Smith, e das Astúrias por Menéndez Pi-dal. Quando regressa repentinamente, o herói teve a fortuna dese apresentar a tempo para salvar do casamento a que obedeciaa sua namorada; tal é o tema da Noiva Arraiana, publicada porGarrett, que se encontra na versão catalã com o título La BodaInterrompida; na asturiana com o de La Esposa de D. Garcia, na fran-cesa Le Retour du Mari e na Grécia moderna, o Rapto. Perguntamos críticos — qual o país de onde difluíram estas tradições? Jul-gando assim explicar a sua similaridade assombrosa, uns diziamda Provença; outros do norte da França; outros da Alta Itália,ou da Sicília. Não é do território, mas da raça que aí estacionoué que derivam as tradições, e portanto, a resposta decisiva sóse atinge quando bem se define o substratum étnico comum aessas regiões e povos actuais. Vejamos como na Península as duasraças persistiram em contacto com os povos históricos.

    As lutas dos Romanos contra os Cartagineses no solo hispâ-nico, e a longa resistência das tribos celtibéricas e principalmen-te dos Lusitanos contra a incorporação romana, influíram napersistência dos cantos heróicos, que se foram adaptando comoacontece com as homoplasias às novas situações e acontecimen-tos. A vida histórica da península hispânica começa com odomínio romano, conformando o seu municipalismo com os cos-tumes das cidades livres e introduzindo uma administração cen-tralista, que em nada influía nas tradições, mais avivadas entreo povo pelo sistema do colonato, das tribos que antes das inva-sões germânicas se entregavam aos Romanos.

    Depois da invasão, na península, os Visigodos, pretendidoscontinuadores do Império, romanizaram-se, prevalecendo a ban-da guerreira sobre os homens livres, estes decaindo das suas garan-tias quase a uma servidão dos liti ou lazzi, e aqueles constituindouma aristocracia militar, imitando os costumes romanos etraduzindo-lhes os códigos. Esta duplicidade agrava-se no per-curso histórico, e da sua dissidência resulta a constituição damoderna sociedade hispânica. A sociedade aristocrática conver-tida ao catolicismo romano sob Recaredo, sofreu uma profundadesnaturação pela decadência da língua gótica e desprezo dassuas tradições nacionais, como observou Jacob Grimm. A classepopular, cada vez mais comprimida, só pode evolucionar social-mente no princípio do século VIII, quando a invasão dos Árabespela tolerância política e religiosa lhe permitiu a sua livre activi-

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    dade e expressão das suas crenças. É preciso distinguir esta duplainfluência, a aristocracia eclesiástica, ou erudita, a qual pela cir-cunstância da resistência contra os Árabes se chama Asturo--Leonesa, e a popular, desde o século XI conhecida pelo nome deMoçárabe.

    Os Visigodos, mantendo a unidade imperial romana, aceita-ram a unidade religiosa do catolicismo, que exerceu uma acçãoabsorvente, dominando nas cortes, impondo-se politicamente nosconcílios, dissolvendo a sociedade política pela jurisprudênciacanónica, pela imobilização da propriedade territorial, pratican-do o obscurantismo sistemático do povo, alimentando pela into-lerância religiosa sanguinários conflitos dinásticos, animando nareconquista contra os Árabes a devastação como meio de ata-que, e por fim estabelecendo a Inquisição com os autos-de-fé, asubserviência a todas as autoridades temporais e a negação doespírito científico.

    No longo período que vai do século VIII ao século XII, a so-ciedade popular visigótica, integrada por todos os elementos docolonato e das raças hispânicas nunca destruídas, foi converten-do os seus costumes em leis, que vieram a constituir as cartaspueblas e os forais, como lucidamente explica Muñoz y Romero,que estudou esses documentos: símbolos jurídicos, cantos líricose épicos, superstições que aparentemente nos aparecem comogermânicas, são-no como coexistindo com as revivescências pro-vocadas pelas incorporações étnicas ante as novas formas sociais.O canto popular e a língua, segundo Gregorovius, conservamesse carácter a que os latinos chamavam índoles; é pelos cantospopulares, simultâneos com a criação das línguas vulgares daEspanha, que se determina a índole, que através das transforma-ções políticas e históricas nos revela essa unidade Galécio-Asturo--Portuguesa e Estremenho-Bético-Algarvia, que constituíram a primi-tiva Lusitânia. É no período de formação da sociedade moçárabeque devem começar as investigações dos elementos tradicionaisque vieram a prestar materiais para a elaboração literária.

    A tradição popular não é propriamente literatura; mas aidealização individual que se não apoia no sentimento colectivo,fica uma aberração mental, incomunicável, sem sentido, e de meroartifício académico. A íntima relação entre a tradição nacional ea interpretação artística, é o que, sem abstracções metafísicas,constitui o Belo. O fenómeno da tradição adquire uma importân-

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    cia extraordinária, observando as analogias dos costumes, cren-ças, superstições, actos cultuais, cantos poéticos, recitações herói-cas, jogos dramatizados, que subsistem entre os povos que for-maram a grande civilização ocidental, e que se continua nasnacionalidades modernas. As formas líricas da Provença, asgestas francas de França, os temas novelescos da Bretanha, ostipos populares do teatro medieval derivam de bases tradicio-nais, elaboradas artisticamente desde que os novos dialectos setornaram línguas literárias. E da maior ou menor aproximaçãodo elemento tradicional se deduzem as características que des-tacam as diferentes épocas de qualquer literatura.

    3.º A LÍNGUA — As manifestações mais completas da lingua-gem, na sua forma escrita, constituem a Literatura, tornando-seassim um órgão de desenvolvimento social, um estímulo e apoioda independência nacional. Se a língua não recebe a fixação pelaescrita, há a incerteza dos sons e das formas da derivação, nun-ca se estabelece a disciplina gramatical e a sinonímia torna-se umaexcrescência embaraçosa, confundindo-se em um rude polissin-tetismo, consequência do estacionamento de um povo. Por estarelação da linguagem oral para a escrita, observa Egger: «A Li-teratura não se deve separar da Filologia e da História, ou melhor,a história das línguas, das instituições e dos costumes, forma averdadeira base sobre que assenta o juízo acerca das obras doespírito.» 9 Seguiremos este critério no seu duplo aspecto.

    A língua portuguesa pertence ao grupo das línguas chama-das por Schleicher romanizadas, por Diez românicas, ou geralmen-te novo-latinas; estudada na sua filiação e relações com estagrande criação da cultura meridional, compreende-se o espíritoda literatura, reflectindo o conflito permanente entre a autori-dade do latim clássico e o génio popular, que representa de ummodo vulgar, espontâneo, a tradição e a feição nacional. Con-forme essa corrente tradicional prevaleceu nos povos ocidentais,assim as línguas românicas se foram desenvolvendo pela cons-trução analítica, e dando ao sentimento nacional a originalidadede expressão, moderna e viva. No exame da língua começa pro-priamente a compreensão das transformações da literatura, como

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    9 Mem. de Litterature Ancienne, p. XI.

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    por estas se discriminam as fases da decadência ou épocas doprogresso da linguagem.

    A) FORMAÇÃO DAS LÍNGUAS ROMÂNICAS

    A criação das línguas românicas, em que se encontram ele-mentos dos vocabulários latino, britónico, grego, germânico eárabe, levou os críticos, sem a direcção do método comparati-vo, a considerá-las como um produto da mistura dos povos ro-manizados e germânicos, depois das invasões; ao que Diez, em1827, na sua obra Da Poesia dos Trovadores, contrapôs a seguintebase fundamental: «Protestamos contra a influência criadora atri-buída a essa confusão, considerando que nos países romaniza-dos, como o testificam esses novos dialectos, a sua formação operou--se conforme a princípios análogos, que nos conduzem a um tipocomum.» (Ib., p. 277.)

    Para definir este tipo comum devanearam os filólogos anti-gos da Renascença sobre a filiação imediata das línguas vulga-res do latim, explicando por este as suas gramáticas; a estahipótese sucedeu a de uma origem do celta, fundada em com-parações de vocábulos dos dialectos chamados neocélticos;seguiu-se a teoria do Raynouard, derivando-as de um dialectocomum popular chamado o romance de que o provençal era aforma literária. A teoria foi combatida por Schleicher; mas Fre-derico Diez, em 1827, aceitava como o tipo comum: «antigo ro-mance, muito bem caracterizado em si para ser produto do caos,acrescentando que nele existiam vestígios de uma gramática forte-mente constituída» (ib., p. 278). Esse organismo próprio, que Diezobserva nesses caracteres comuns, eram a dissolução das flexõesdo latim, língua sintética, e o desenvolvimento progressivo dasintaxe analítica. Tocava a essência do problema; depois, estu-dando no seu conjunto este grupo de línguas pelo exame dosseus processos de derivação e morfologia, e pelas construçõessintácticas, sistematizou todos esses materiais na Gramática dasLínguas Românicas, publicada de 1836 a 1844. Ficou consideradocomo o fundador da filologia românica, e domina no ensinooficial.

    Na sucessão das investigações a sua doutrina tem sofridograves objecções, deduzidas dos exclusivos pontos de vista. Es-

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    creve Diez: «Seis línguas românicas atraem a nossa atenção, querpela sua originalidade, quer pela sua importância literária: duasa leste, a italiana e a valáquia; duas ao sudoeste, a espanhola e aportuguesa; duas ao nordeste, a provençal e a francesa […] Todasestas línguas têm no Latim a sua primeira e natural origem.»

    Partindo deste ponto, afirmava Schleicher: «o Latim deu oser às línguas filhas, chamadas Línguas românicas» 10, e apontavacomo processo mais científico «deduzir as línguas ocidentais doLatim clássico, sem intermédio da língua chamada itálica, vul-gar ou rústica» (ib., p. 195). Isto se pratica por meio de proces-sos fonéticos explicando como os vocábulos do latim clássico semodificaram nas línguas românicas; assim o processo formativoera por Schleicher explicado como «o idioma latino aclimado aosdiversos órgãos fonético-acústicos das diversas nações para en-tre as quais foi transportado» (ib., p. 210).

    Depois destas afirmações exclusivas, há necessidade de re-correr à língua romana rústica, dos escritores da Idade Média, eDiez escreve: «Porém, não é do Latim clássico, empregado pe-los autores, que essas línguas derivam, mas sim da língua popu-lar dos Romanos, usada ao lado do Latim clássico.» E quando vianesse antigo romance vestígios de uma gramática fortemente consti-tuída, de onde por princípios análogos se elaboravam as línguasnovo-latinas, define essa língua popular, usada nas classes infe-riores com caracteres que consistiam «em uma pronúncia descurada,na tendência para libertar-se das regras gramaticais». E querendo ex-plicar o acordo de todos os dialectos românicos no emprego daspalavras, das formas e sentidos, diz que isso «é a mais seguraprova da sua unidade originária; esta unidade só a podemos su-por no idioma popular dos Romanos».

    Por seu lado, Schleicher também reconhece que, «na regiãofonética das línguas romanizadas, quando se trata de formarpalavras, todas elas seguem efectivamente um caminho diferente doseguido pelo Latim» (ib., p. 208). E atribui a essa língua rústica «to-das as palavras comuns às línguas romanizadas, que nunca per-tenceram ao Latim clássico» (ib., p. 211).

    Também o grande glotólogo Max Müller escrevia em voltadesta mesma ideia: «Nós sabemos, que o italiano, o francês, o

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    10 Les Langues de l’Europe Moderne, p. 168.

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    espanhol e o português devem ter uma mesma origem, porque elestêm em comum formas gramaticais que nenhum destes dialectospoderia ter criado com os seus próprios recursos, e que nelesnão têm mais significação, nem em certo modo vida.» 11 E, que-rendo indicar essa fonte comum, avança: «Ainda que seja possí-vel de uma maneira geral fazer remontar ao Latim estes seis idio-mas românicos, já fizemos observar que o Latim clássico não nospoderia dar a explicação completa da sua origem.» (Ib., p. 242.)Para determinar fora do latim o fenómeno diz que os dialectosromânicos são «o latim de província falado ou passado por bo-cas germânicas» (ib., p. 243).

    Todas estas vacilações e afirmações vagas dos grandes filó-logos resultaram de começarem a aplicação do método compa-rativo pela Fonologia, analisando as transformações dos sons nosvocábulos clássicos e pela reacção contra a celtomania fantasista.É por isso que escrevia Schleicher: «uma língua flexional, queabranja todas as modificações fonéticas e sintácticas das Línguas ro-mânicas em geral […] só existe na imaginação dos etimologistas»(ib., p. 197). Partindo do grande número de vocábulos latinos naslínguas românicas, concluíram que era o latim a fonte das lín-guas vulgares; e pelas palavras comuns a elas, que não vêm noléxico clássico, que um latim popular se substituíra ao urbano, quese deturpava na decadência das suas flexões. Eis o problema, queconstitui a ilusão românica.

    Considerado o problema sob o aspecto sintáxico, reconhece--se que o latim é uma língua sintética, em que pela importânciasignificativa das flexões, a ordem lógica prevalece sobre a ordemgramatical, conseguindo pelas relações casuais e verbais seguir umaconstrução indirecta, elíptica e de uma beleza literária; as línguasvulgares ou românicas, são analíticas, mantendo a ordem gramati-cal antes da ordem lógica, as relações são expressas por preposi-ções e pronomes, ficando o substantivo absolutamente independen-te de todas as relações da frase e o adjectivo verbaliza-sefacilmente pelos auxiliares. Posto isto, este processo analítico fun-damental é anterior à decadência do latim, na deturpação dassuas flexões casuais e verbais, e mesmo sem dependência da lín-gua sintética. Diez considerava esta transformação devida aos

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    11 Science du Langage, p. 214.

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    povos entre quem se implantou o latim; mas, em rigor, nuncauma língua sintética se transmuda em língua analítica, como se há--de verificar. A língua germânica, levada pelos bárbaros do Nortepara a França, Itália e Hispânia, não passou de sintética para ana-lítica e apenas actuou nas línguas preexistentes pelo vocabulárioem relação a elementos sociais. Os Árabes invadiram e ocupa-ram a península hispânica e a sua língua sintética não deu lugarà criação de um dialecto árabe analítico. O mesmo se deu como hebreu.

    E para mais comprovar esta impossibilidade temos o gregomoderno, que se chama helenista, bizantino e romaico, o qual,provindo do grego clássico, apresenta uma separação muito vagado antigo, sem atingir o carácter analítico: a declinação grega, aocontrário do que se vê nas línguas romanizadas, conservou-se;a conjugação, perdido o dual e o optativo, aproxima-se do gregoantigo, salvo certos tempos auxiliados, e conservou o verbo passi-vo. Nos processos de derivação nos neologismos volta-se às an-tigas formas das flexões; e na linguagem escrita a construção émais próxima do grego antigo do que a forma culta românicado latim 12. Diante de um princípio filológico tão capital, comose poderá considerar o latim como fonte das línguas românicas?Por meio de um latim popular, língua romana rústica? Dá-se amesma antinomia, porque em nenhuma das línguas sintéticas daEuropa actual há uma divergência popular criando e usando umalinguagem analítica.

    Nem mesmo o latim clássico, escrito, teve uma antiguidadetão grande de cultura, que o separasse da língua popular; escreveWitney, na Vida da Linguagem: «O Latim, nos seus mais velhosmonumentos, não data mais de três séculos antes da nossa era,mostrando-se neles sob uma forma estranha e pouco inteligívelpara aqueles que estudaram a língua cultivada no últimoséculo antes de Cristo» (p. 152). Três séculos é pouco para sedestacar e prevalecer sobre os dialectos itálicos como sintética, epouco os dois séculos da Igreja para dar lugar a línguas analíti-cas ou novo-latinas. Esta incongruência já tinha sido notada.Dominando Roma na Grécia conquistada mais tempo do que naEspanha, porque não implantou aí o latim? Fixando-se numero-

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    12 Schleicher, op. cit., p. 183.

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    sas colónias romanas na Ilíria, não se adopta o latim entre essespovos eslavos, ao passo que se dá o contrário, alastrando-se nosAlpes suíços por via de uma ocupação de Engadina que duroupoucos séculos. O filólogo italiano Gubernatis pergunta: não ten-do os Romanos ocupado certos vales alpinos distantes, apareceaí o latim substituído aos dialectos locais? E tendo os Romanosocupado a Bretanha francesa e inglesa, ainda aí se conservam osseus dialectos gaélico e kinrico. A teoria de Diez, exagerada pelosseus discípulos confinados em processos fonéticos sobre o léxico,tende a ser modificada 13.

    Eliminada a hipótese de Raynouard, a hipótese de Diez ca-duca por fundar-se exclusivamente no exame do vocabuláriodesconhecendo as condições das épocas da história. Como res-ponder então a este problema da origem das línguas romaniza-das? Escreve Edelestand du Méril: «Os estudos que só conside-rarem a forma das palavras não chegam a resultado algum; emlugar de procurarem a origem das línguas exclusivamente no seuvocabulário, é preciso investigá-la pela história, e na influência queexerce cada nação sobre o desenvolvimento e civilização das ou-tras.» Raynouard recorria à língua geral, o romance (a linguaromanitatis, título empregado por Lambertus Ardensis, ap. DuCange, t. V, col. 1488); mas não provou a sua realidade e acçãohistórica. Du Méril opõe-lhe as seguintes considerações, queabrangem perfeitamente a hipótese de Diez: «Esta universalida-de de um idioma teria necessariamente uma causa e não se podeligar a um facto que a explique: nenhuma conquista a impôs pelaforça das armas, nenhuma colonização a transportou por toda aEuropa: nenhuma preponderância política ou literária a tornoude um uso geral. Uma tal uniformidade não seria possível se-não que uma língua, alterada em cada país pela mistura de di-versos idiomas, sofresse por toda a parte as mesmas mudanças:se corrupções produzidas por causas cada dia mais diferentes,

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    13 Do processo fonético escreve Brunot: «a regularidade absoluta, que aescola contemporânea pretende introduzir nas alterações fonéticas, parece-mequimérica e desmentida pelos factos conhecidos e certos. É provável que seabandone brevemente esta concepção mecânica dos factos, por umainteligência mais exacta e mais histórica da realidade» (Histoire de la Langue et dela Litterature Française, p. VI, nota).

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    se elementos cada vez mais contrários formassem com o tempo novosidiomas que conservassem sempre a sua unidade primeira.» 14 Depoisdeste enunciado, conclui Edelestand du Méril: «Enunciar as con-dições de uma tal hipótese é tornar supérflua a sua discussão.»Com certeza a hipótese de Raynouard não satisfaz aos dadosdeste problema; mas a verificação de um grande facto históricoexplica o que foi essa lingua romanitatis.

    Existiu no Ocidente da Europa uma família de línguas analí-ticas, a que correspondeu uma civilização ligúrica ou pré-céltica,que actuou no desenvolvimento dessa gramática dando unidadeaos diferentes grupos dialectais desse povo. A civilização ligú-rica apagou-se sob as invasões bárbaras dos Celtas, mas sob aconquista romana pôde revivescer, assimilando facilmente a cul-tura latina, apropriando-se do seu vocabulário. Quando, por seuturno, a cultura latina foi abafada pelas invasões dos Germanos,a decadência do latim não a tornou língua analítica, mas sob estetipo linguístico preexistente constituíram-se as línguas nacionais,diferenciadas pelos seus elementos primitivos, dando-se a ilusãoulterior de que essa unidade gramatológica lhes proviera daorigem latina.

    Na obra póstuma de Darmesteter, Curso de Gramática Histó-rica, sustenta o insigne filólogo acerca do latim popular uma uni-dade quase completa nas Gálias, na Espanha e na África: «Essaunidade consistia na mesma gramática e na mesma sintaxe, semdúvida no mesmo léxico, que dominavam do Mar do Norte aoAtlântico, e das margens do Reno ao Atlas.»

    Uma tal unidade não provinha dos diversos processos de dis-solução do latim em tão variados meios: mas de uma línguaanalítica, que antecedeu a extensão do latim pela acção históricados que a falaram. Ora, nessa vastíssima região manifestou-se acultura dos Hiperbóreos (Citas), Lígures e Líbios (africanos bran-cos). Quando a denominaram romancium exprimindo a sua uni-dade linguística, foi como protesto contra as línguas bárbaras dosgermanos ou gothia; pois, como observa Mackel, até ao século VItodos os dialectos germânicos tinham uma fisionomia uniforme.

    Na Sociedade para o Estudo das Línguas Românicas, em sessãode 17 de Abril de 1869, Mr. Boucherie, combatendo a opinião

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    14 Histoire de la Poésie Scandinave, p. 204.

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    de ter sido substituída a língua dos Gauleses pela língua latina,fundamenta: «Antes de tudo, quase que se não compreende comoum povo inteligentíssimo (solertissima gens, César, Bell. Gall.), umpovo compacto de sete milhões de homens pudesse renunciar tãorepentina e completamente à sua língua. Está verificado que ogaulês subsistia ainda no século III (Lampridio, Vida d’AlexandreSevero, Ulp.), no século IV (Sulpício Severo), no começo do sé-culo V (S. Jerónimo). Se o gaulês cede o lugar ao latim, isso sópodia ser depois do século V; ora é precisamente nesta época quea Gália passa dos Romanos para os Germanos. Como supor quea Gália escolheu este momento para renunciar, de repente, à sualíngua e apropriar-se da língua dos seus antigos dominadores?Como supor também que os Gauleses do Ocidente puderamesquecer a sua língua em alguns anos, quando os seus irmãosdo Oriente conservavam ainda a sua na época em que nós fala-mos (séculos IV a V, S. Jerónimo), e isto na Ásia Menor, a setecen-tas léguas da mãe-pátria e após um intervalo de setecentos anos?»

    Mr. Boucherie faz notar que, onde quer que se encontra alíngua latina fora da Itália, mostra a história uma emigraçãogaulesa anterior: em Portugal, na Espanha, sobre as bordas doDanúbio. O facto torna-se claro desde que o nome de gaulês seidentifique com o possuidor da civilização bronzífera, que no seuapostolado espalhou o zodíaco e a linha extraordinária dosTumuli.

    Os dialectos de norte da Itália, principalmente o milanês, oveneziano e o genovês, reflectem os caracteres da língua de oc, sen-do chamados pelos filólogos italianos galo-itálicos.

    A diferença da língua torna-se explicável pela invasão e in-corporação dos Celtas; essas qualidades da língua occitânicarevelaram-se por um renascimento do génio meridional na épo-ca trovadoresca. Essa dualidade encontra-se não só no francês eprovençal, mas no espanhol e português, e nos dialectos da Itá-lia do Norte com os do Sul.

    As línguas romanizadas ou vulgares têm uma fonética dife-rente do latim, à qual submeteram os vocábulos latinos com quealargaram o seu léxico. No latim, o acento baritónico opõe-se àintonação da última sílaba; dá-se o rigor do acento por causa daflexão de consoantes ou a quantidade prosódica. Nas línguas ro-mânicas há o desconhecimento da quantidade e a preponderânciaexclusiva do acento, que pode ser agudo, grave ou esdrúxulo,

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    sendo esta colocação na frase a causa de uma nova forma depoesia e versificação. As línguas românicas tendem para a con-tracção dos sons e abreviação das palavras e, por isso, as pala-vras latinas, tanto como as germânicas ou árabes, sofreram amesma adaptação ao entrarem nos léxicos vulgares.

    É lei geral das línguas românicas a persistência da vogal acen-tuada, através de todas as obliterações flexionais sintéticas, emodificações consonantais; exemplo: quadragesima, no portuguêsquaresma, no francês carême; rotundus, no francês rond; canalicula,no português quelha.

    Outra lei de adaptação fonética: a supressão da vogal brevemostra-nos como as sílabas latinas sem acentuação desapareciam,convertendo os pronomes em artigos, fazendo dos advérbios umcircunlóquio com o sufixo mente, e dos superlativos uma redun-dância. Não era um processo de decadência, mas de vigor or-gânico. Se a supressão da vogal breve actuou na ruína da flexão latinaé porque os povos modernos não careciam desse meio de ex-pressão sintética quando empregavam o vocábulo na sua cons-trução analítica.

    Uma terceira lei, igualmente natural e resultante do carácterdas línguas românicas, essencialmente contraídas: é a queda daconsoante medial. Numa palavra se exemplifica: o advérbio metip-sissimus, que no italiano dá medesimo, no português antigo medes,e meesmo, mesmo, e no francês même. Quando estas línguas co-meçaram a ser escritas, os eruditos recorreram ao vocabuláriolatino, e esses neologismos, não tendo recebido as modificaçõespopulares, apresentam formas duplas e derivações de temas la-tinos que nunca existiram na linguagem do povo.

    Essas leis fonéticas comuns a povos afastados e sem acordo,e em antinomia com a fonética do latim, por certo que provie-ram de uma língua flexional analítica, de uma extensão territorialmais vasta do que o latim. Basta ver o domínio geográfico emque as línguas romanizadas subsistem para avançar pelos resul-tados da antropologia para a solução do problema. Terminandoo exame na morfologia, o caso da flexão nominal latina que apare-ce nas línguas românicas, o oblíquo, é um duplo sem designarrelação; na conjugação o particípio torna-se adjectivo, e a formapassiva desaparece como inexpressiva diante do auxiliar ser. Emquanto à semiologia, no latim as palavras conservam uma signi-ficação inalterável, daí a importância da língua na jurisprudên-

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    15 Dictionaire d’Anthropologie.

    cia e na Igreja, durante a Idade Média; nas línguas vulgares, apalavra toma sentidos figurados, e muitas tornam-se pejorativas.Diez tinha visto claro quando disse que as novas línguas não po-diam provir da confusão, porque revelavam uma fonte que pos-suía uma gramática fortemente constituída.

    A hipótese céltica foi apresentada antes de se conhecer bema raça dos Celtas, que os romanos confundiram com os Gaule-ses. Desta confusão, em que os antropologistas só tarde fizeramluz, resultou a deplorável ilusão céltica, que hoje se impõe comos foros de método filológico comparativo e que ainda perturbao problema das origens nacionais. A raça braquicéfala, de esta-tura mediana, trigueira e de olhos castanhos, precedeu na Euro-pa e excedeu em civilização essa outra raça dolicocéfala corpu-lenta, loira e errante. Broca foi um dos primeiros que conseguiufazer esta separação do tipo antropológico. Pela gradação dosíndices cefálicos chegou-se a determinar a marcha de uma po-pulação braquicéfala, partindo de leste para o centro da Gália,Ilhas Britânicas, Itália e Espanha, sofrendo invasões dos dolico-céfalos loiros. É esta raça braquicéfala, que hoje se reconhece pelonome de Lígure, pelos trabalhos de Belloguet, de Celesia, deMartins Sarmento, e geralmente denominada pré-céltica. Aondeestacionaram essas povoações ligúricas aí se formaram as línguaschamadas românicas, ou persistem as línguas erradamente cha-madas neocélticas. Diz Zaboronwski: «estas línguas [sc. célticas]parece com efeito terem sido faladas em uma região para alémda Gália Belga, aonde o tipo dos Celtas [dos antropologistas] nun-ca existiu.» 15 A raça braquicéfala, como observa Hovelacque,existe a leste dos Alpes e mesmo na România actual; os Líguresacham-se na Provença, ao sul do Garona; as populações centraisdesde o Alto Danúbio até à Armórica, passando pela Sabóia eAuvergne, pertencem também à raça braquicéfala, de estaturamediana e de olhos castanhos; e na população actual da Ingla-terra, como observa Deniker, o tipo dolicocéfalo pertence àsregiões ocupadas pelos conquistadores germanos e escandinavos,destacando-se os braquicéfalos de estatura pequena e olhos cas-tanhos em uma percentagem importante. É entre estes povos, quenão são Celtas (antropologicamente dolicocéfalos, corpulentos e

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    loiros), que se conservam as línguas a que se dá o nome deneocélticas, as quais se dividem em dois grupos: o hibérnico ougaélico, e o bretão ou kymrico, compreendendo o primeiro o irlan-dês, com inscrições do século V, o erse ou gaélico da Escócia, e omanx; o segundo grupo contém o gaullois e cornico e o bretão ouarmoricano. Pelo estudo sistemático feito por Edwards sobre e