tema: futuro do lixo

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TEMA FUTURO DO LIXO Economia, política e cidadania estão em jogo quando o assunto é sustentabilidade. Projeto SP+Limpa discute como tratar corretamente os resíduos sólidos em uma grande metrópole

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Page 1: Tema: Futuro do Lixo

TEMA

Futuro do lixoEconomia, política e cidadania estão em jogo quando o assunto é sustentabilidade. Projeto SP+Limpa discute como tratar corretamente os resíduos sólidos em uma grande metrópole

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Caderno Globo Universidade, v. 1, n. 1, dez. 2012 –Rio de Janeiro, Rede Globo, 2012 Trimestral. ISSN 2316-7432Tema: Futuro do Lixo

Disponível na webhttp://bit.ly/SBfCHn

Conselho Editorial

Alice-Maria Reiniger – Rede Globo

Beatriz Azeredo – UFRJ/Rede Globo

Galeno Amorim – Biblioteca Nacional

Heloisa Buarque de Hollanda – UFRJ

Lucia Araújo – Fundação Roberto Marinho

Luiz Eduardo Soares – Uerj/Universidade Estácio de Sá

Maria Adelaide Amaral – Rede Globo

Maria Immacolata Vassallo de Lopes – USP/Obitel

Marialva Barbosa – UFRJ/Intercom

Sérgio Besserman – PUC-RIO

Viviane Mosé – Usina Pensamento/Rádio CBN

realização

Central Globo de Comunicação

Luis Erlanger, diretor

diretoria de responsabilidade SocialBeatriz Azeredo, diretora; Viridiana Bertolini, gerente; Viviane Tanner, supervisora

EquipeAlvaro Marques, Fatima Gonçalves, Gisele Gomes, Julia Fernandes, Luisa Café, Mariana Israel e Renata Minami

diretoria de Produção EditorialAndrea Doti, diretora; Ariadne Guimarães, supervisora

redação, pesquisa e edição finalGraziella Beting

revisãoRicardo Jensen de Oliveira

Projeto gráfico e editoraçãoRefinaria Design

Fotografia (evento SP+limpa)Studio S3X

As opiniões expressas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Todo material incluído nesta revista tem a autorização dos autores ou de seus representantes legais.Nenhuma parte dos artigos da revista pode ser reproduzida sem a autorização prévia do Globo Universidade, dos autores ou seus representantes legais.

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Page 5: Tema: Futuro do Lixo

Apresentação ....................................................................................................................................................................................................................................6

Nesta edição .....................................................................................................................................................................................................................................8

Artigos.....................................................................................................................................................................................................................................................10

Legislação Patrícia Iglecias, da Faculdade de Direito (USP)

aRTIGO Política nacional e resPonsabilidade Pós-consumo ............................................................................12ENTREVISTa ......................................................................................................................................................................................................................................18

Economia Sabetai Calderoni, do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Sustentável (Ibrades)

aRTIGO um novo modelo Para a gestão econômica dos resíduos sólidos ...................................22ENTREVISTa ....................................................................................................................................................................................................................................30

Ciência Jorge Alberto Soares Tenório, da Escola Politécnica (Poli-USP)

aRTIGO lixo, saúde, reciclagem e a escassez de materiais ......................................................................................34ENTREVISTa ................................................................................................................................................................................................................................... 40

Inclusão Social Maria Cecília Loschiavo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP)

aRTIGO resíduos e sustentabilidade: caminhos de transformação .....................................................44Depoimento de Maria Dulcinéia da Silva Santos, da Coopamare ..................................................................................49 ENTREVISTa .....................................................................................................................................................................................................................................52

Tecnologia Carlo Ratti, do Massachusetts Institute of Technology (MIT)

aRTIGO cadeia de suPrimento versus cadeia de remoção .........................................................................................56ENTREVISTa ....................................................................................................................................................................................................................................64

Debate .................................................................................................................................................................................................................................................. 68

Reportagens ...................................................................................................................................................................................................................................80

Política nacional quer acabar com os lixões até 2014 .....................................................................................................................................82Capital paulista é a maior geradora de lixo do país ..........................................................................................................................................84Exemplos que vêm de fora .................................................................................................................................................................................................... 86Caxias do Sul troca resíduos por comida ..................................................................................................................................................................90Em Guarulhos, entulho volta à construção civil ....................................................................................................................................................92Em São José do Rio Preto, um modelo a ser seguido ......................................................................................................................................94Empresa de Sorocaba cria solução para logística reversa ....................................................................................................................... 96Brasil recicla 98% das latas de alumínio fabricadas .........................................................................................................................................97 Pesquisadores transformam lixo em blocos de concreto ........................................................................................................................... 98Pneus são reaproveitados e viram asfalto ............................................................................................................................................................... 99Quanto tempo o lixo leva para se decompor? ...................................................................................................................................................100

Glossário ...........................................................................................................................................................................................................................................102

sumário

Page 6: Tema: Futuro do Lixo

apresentação

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7

Criado em 1999, o Globo Universidade tem como missão compartilhar experiências para somar conhecimento. Para isso, estabelece parcerias com universidades do Brasil e do exterior, promove debates e seminários, edita publicações e dá apoio a pesquisas, contribuindo para a produção e divulgação científica, além da formação de futuros profissionais.Periodicamente, o Globo Universidade promove seminários a partir de projetos elaborados pela Central Globo de Jornalismo. Foi o caso do Rios de São Paulo, em 2009, e do Respirar, em 2011. Este ano, o jornalismo da Rede Globo realizou o projeto SP+Limpa, abordando uma questão central hoje nas grandes cidades: o tratamento dos resíduos sólidos. É esse o tema da primeira edição do Caderno Globo Universidade.Sabemos que essa é uma agenda urgente e ao mesmo tempo permanente, pois exige processos complexos e de longo prazo. O compromisso da Rede Globo e seus parceiros é dar continuidade ao acompanhamento desse tema por meio das nossas diferentes frentes de trabalho. Esta é a proposta do Caderno Globo Universidade: disseminar informação e conhecimento para contribuir para o debate, o encaminhamento de questões e a reflexão sobre temas importantes para a agenda do país.

Boa leitura

Você tem em mãos o primeiro número do Caderno Globo Universidade. Esta publicação é mais uma iniciativa do Globo Universidade, a área da Rede Globo dedicada ao relacionamento com o meio acadêmico.

Apresentação // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

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O debate sobre o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável se tornou central na agenda de 2012, ano da realização, no Brasil, da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20). Entre os temas mais relevantes na discussão atual sobre cidades sustentáveis está o tratamento de resíduos sólidos.

São Paulo é a cidade que mais gera lixo no Brasil: uma média diária de 18 mil toneladas de resíduos, dos quais somente 214 toneladas são recicladas. A coleta seletiva é efetuada por apenas 21 cooperativas, e a prefeitura gasta quase R$ 1 bilhão por ano com o lixo. Mas esse panorama deve mudar em breve, pois toda a cadeia produtiva do país tem até 2014 para se adequar à Política Nacional de Resíduos Sólidos. A administração pública, os fabricantes e os consumidores precisarão mudar suas práticas para assumir responsabilidades em relação ao lixo que produzem e atender às exigências da lei.

No primeiro semestre de 2012, a Rede Globo realizou o projeto SP+Limpa, um conjunto de reportagens para mostrar a situação do lixo na capital paulista. Elas foram exibidas nos principais telejornais da metrópole – Bom Dia São Paulo, Radar e SPTV 1ª e 2ª edições –, e nos programas Globo Cidadania e Globo Ecologia, além do site G1.

Ao final de dois meses, em que foram produzidas mais de 150 reportagens, o Globo Universidade promoveu, em parceria com a Escola Politécnica, o Centro Multidisciplinar de Estudos em Resíduos Sólidos (Cersol) e o Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), o seminário SP+Limpa. O encontro reuniu especialistas e professores de diversas faculdades e abriu espaço para o debate e a reflexão acerca da produção de resíduos sólidos nos grandes centros.

nesta edição

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O seminário ocorrido em São Paulo, no dia 5 de junho de 2012, Dia Mundial do Meio Ambiente, ganha agora uma versão mais perene, com a publicação de seus resultados nesta edição do Caderno Globo Universidade. O objetivo desta revista é ampliar o alcance do encontro, sistematizando e difundindo o conhecimento gerado para atingir mais leitores e transformar-se em um documento de consulta em bibliotecas, universidades e centros de pesquisa.

Nas páginas a seguir, você encontrará artigos de especialistas de diversas áreas do conhecimento que mostram suas pesquisas sobre o tema. Em seguida, acompanhará como foi o debate suscitado por suas apresentações durante o seminário SP+Limpa. Para complementar, apresentamos uma série de entrevistas exclusivas feitas pelo Globo Universidade com os autores.

A revista traz também uma seleção das reportagens feitas pela Rede Globo dentro da série SP+Limpa, mostrando como está a situação do lixo hoje, com relatos de casos e experiências, além de exemplos de outros países, revelando não apenas os problemas como as soluções encontradas para tratar a questão dos resíduos. Uma questão que envolve não apenas as gerações atuais como também as futuras.

lixão na região

metropolitana de são

Paulo: um problema com

data para acabar

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Nesta edição // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

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Page 11: Tema: Futuro do Lixo

logotipo do sP+Limpa, feito de sucata e madeira reciclada de caixotes de feira,

pelo artista dimitri Kuriki Yoshinaga

artigos

Page 12: Tema: Futuro do Lixo

artigo

A GEStão doS rESíduoS AGorA é lEi

O Brasil aprovou em 2010 a lei que cria uma política pública para a gestão de resíduos sólidos. Patrícia Iglecias, professora de Direito Ambiental, comenta a lei e revela o que falta para ela ser implementada

Em 2010, o Brasil instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos. A lei, de nº 12.305, envolve a responsabilidade da administração pública, das empresas, dos consumidores e dos catadores de resíduos sólidos na gestão do lixo produzido nas cidades. Ela estabelece metas, direitos e deveres e sugere uma mudança de comportamento da sociedade em nome da sustentabilidade do meio ambiente. O artigo a seguir discute essa regulamentação e o contexto de sua criação e mostra o que ainda deve ser feito para que ela tenha efetividade.

lei no 12.305: http://bit.ly/vq7sPe

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LEgisLAção

PolítiCA NACioNAl E rESPoNSABilidAdE PóS-CoNSumoPatrícia Iglecias, da Faculdade de Direito (USP)

O tema dos resíduos sólidos é bem recente no Brasil – a lei que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos data de agosto de 2010. A previsão legal, entretanto, não muda por si só o comportamento de uma sociedade. É com base no comportamento atual que devemos buscar as soluções para a temática dos resíduos sólidos.

O principal ponto é contextualizar essa questão. Por que o tema “resíduos sólidos” está sendo discutido atualmente? Porque vivemos hoje na chamada sociedade de consumo. Todos querem consumir, ter acesso aos bens. Isso cria um problema: o resíduo gerado por esses bens ou os próprios bens depois de sua utilização. Esse contexto nos impõe uma mudança de postura e uma reflexão, que é exatamente o que traz essa nova política pública.

Vivemos também no chamado meio técnico-científico-informacional. Hoje temos muito conhecimento científico e, necessariamente, devemos dar informação ao consumidor. Qual é o problema prático? Nem sempre essa informação se transforma em conhecimento e mudança de postura, portanto é preciso trabalhar também nesse sentido.

Do ponto de vista legal, temos uma previsão de “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, trazida pela Constituição Federal de 1988. A grande base da questão do direito ao meio ambiente equilibrado está relacionada a princípios constitucionais, como o da cidadania e o da dignidade da pessoa humana, previstos no artigo 1º da Constituição Federal (art. 1º, II e III, CF/1988).

A partir dessa noção é preciso trabalhar com o que é uma política pública de gestão de resíduos. A política pública lida com noções como destinação final ambientalmente adequada e também com disposição final ambientalmente adequada .1 Essa informação trazida na norma tem de gerar a participação da sociedade. Hoje estamos neste plano: a lei está em vigor desde 2010, mas ainda carece de implementação em diversos aspectos.

O dispositivo constitucional trata também da questão da informação ambiental (art. 225): o poder público deve promover essa informação e a conscientização sobre a importância da preservação ambiental. A nossa Política Nacional de Resíduos Sólidos não

1 ao identificar este símbolo ver glossário na página 102.

Patrícia iglecias é

professora associada da

faculdade de direito da

usP, diretora cultural

do instituto o direito

por um Planeta verde,

membro da associação

dos Professores de

direito ambiental do

brasil e pesquisadora de

questões relacionadas

à responsabilidade

civil por danos ao meio

ambiente

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Patrícia Iglecias // Artigo // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 14: Tema: Futuro do Lixo

é PrECiSo umA mudANÇA dE PoSturA

dA SoCiEdAdE QuE ENVolVA

A iNFormAÇão E A PuBliCidAdE SoBrE

oS PlANoS dE GEStão dE rESíduoS

trabalha apenas com a noção de reciclagem, mas com a de redução da geração de resíduos e a de reutilização. Tudo isso fica às vezes um pouco esquecido. Pensa-se em um só aspecto, o da reciclagem, mas isso não é tudo. É preciso, portanto, uma mudança de postura da sociedade que envolva a informação e também a publicidade sobre os planos de gestão

de resíduos. Tanto nos planos nacional, estadual e municipal como nos planos de gestão das próprias empresas. Essa divulgação não pode ser apenas formal. De que adianta publicar apenas no Diário Oficial? Quantas pessoas vão ler? Um bom exemplo de como deve ser feita essa publicidade são as reportagens da mídia que trazem essa noção para a sociedade.

A lei trata também das questões da produção e do consumo sustentáveis. O conceito, segundo a lei, é que a produção e o consumo sustentáveis são aqueles realizados de forma a atender às necessidades das gerações atuais, permitir melhores condições de vida, sem comprometer a qualidade ambiental e o atendimento das necessidades das gerações futuras. Essa é a base constitucional. O artigo 225 da Constituição cita, expressamente, o direito das gerações futuras. Do ponto de vista legal, é uma quebra de paradigma, até porque nosso direito trabalha muito com a noção de que cada patrimônio deve ter o seu titular. Mas, ao tratar do direito ao meio ambiente equilibrado, fala-se do direito de uma geração que não nasceu ainda. Mas isso está tanto na lei como na própria Constituição de 1988. A sustentabilidade associada a esses processos envolve uma questão de grau e de perspectiva. Qual é a perspectiva para esse plano ou para essa noção do gerenciamento de resíduos no futuro?

O professor mexicano Enrique Leff tem um texto no qual afirma que: “Os bens e serviços ambientais devem ser entendidos como um potencial produtivo que depende tanto dos limites físicos e da escassez de recursos como também das estratégias sociais que possam administrar os potenciais ecológicos da natureza”.2 Então, ao falarmos em Política Nacional de Resíduos Sólidos, precisamos pensar em quais estratégias temos para o futuro, o que pretendemos.

A lei traz um conceito amplo de resíduo e é autoexplicativa nesse sentido: “Resíduos sólidos: material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas, a cuja destinação final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos, cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou corpos d’água, ou exijam, para tanto, soluções técnica ou economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível”.3 Resíduo sólido é, portanto, visto amplamente pela lei, o que pode gerar outra questão: o que é resíduo? Por exemplo: algo que seja posteriormente reempregado em outro processo produtivo pode ser considerado resíduo ou não?

2 leff, enrique. racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. rio de Janeiro: civilização brasileira, 2006, p. 186.

3 art. 3o, xvi, da lei no 12.305/2010.

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CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Artigo // Patrícia Iglecias

Page 15: Tema: Futuro do Lixo

o rESíduo PASSA A SEr um BEm

ECoNÔmiCo E dE VAlor SoCiAl

QuE GErA trABAlHo E rENdA Com

A AtuAÇão dAS CooPErAtiVAS

O Brasil geralmente seguiu o modelo europeu quanto ao tema em comento, por isso é interessante citar exemplos de lá. Esse tipo de questionamento já ocorreu na Itália, em um caso específico em que houve a coleta, transporte e armazenagem de resíduos de outros Estados comunitários. Quando questionados, os importadores disseram: “Não, isso aqui não é resíduo, é uma matéria-prima secundária que vai ser aplicada novamente”. É uma questão difícil. Ela foi submetida ao Tribunal de Justiça em 28 de julho de 1988 e o acórdão foi proferido em 28 de março de 1990, concluindo que o conceito de resíduos, nos termos da Diretiva 75/442 do Conselho e do art. 1º da Diretiva 78/319, não deve ser entendido como excludente de substâncias ou objetos capazes de reutilização econômica. No mesmo sentido, o resíduo, para a lei brasileira, é visto objetivamente: não importa o que o titular pretende ou vai fazer com ele, é obrigado a seguir uma legislação específica. Em se tratando de resíduo sólido, aplica-se a sistemática da legislação protetiva.4

Aí entram algumas questões que, mesmo estritamente jurídicas, são interessantíssimas para todos. Por exemplo: o que é esse resíduo hoje, qual é sua natureza? No Direito brasileiro temos um sistema elaborado com base no sistema romano, no qual já havia uma previsão da chamada res derelictae, ou “coisa abandonada”. Assim, até recentemente, apenas abandonávamos os nossos resíduos, seguindo a lógica de que, a partir do momento em que o cidadão os abandona, está livre do problema. Eles passam a ser responsabilidade de quem vai coletar o lixo, e cada membro da sociedade não precisava saber como será esse processo. É isso o que a lei tenta mudar.

Aquilo que antes era resolvido simplesmente colocando-se o lixo na porta passou a ter outra configuração jurídica, passou a ser um bem socioambiental. É um contrassenso, porque bem normalmente é algo pelo qual se tem algum apreço – e no caso do resíduo não se tem isso. Mas, sendo o resíduo um bem socioambiental, é preciso mudar a postura em relação a ele. Haverá obviamente uma consequência prática – que eu chamaria de dupla titularidade. Ou seja, o resíduo não pertence só ao titular. O titular não pode mais abandoná-lo do jeito que quiser. Isso porque o resíduo não lhe pertence exclusivamente, pertence também à sociedade, ou seja, todos temos interesse no que será feito com ele. Esse é o conceito jurídico que se aplica à lei de resíduos.

O resíduo passa a ser também um bem econômico e de valor social que gera trabalho e renda. Há a inserção dos catadores e das cooperativas em uma nova sistemática, fundamental dentro da ideia de resíduos. Aí cabe questionar: quem são os geradores de resíduo? Será que estamos incluídos? A lei considera entre os geradores de resíduos o consumidor. Ou seja, são geradores de resíduos as pessoas físicas – ou pessoas naturais, de acordo com a nomenclatura do Código Civil de 2002 –, as pessoas jurídicas de direito público e as pessoas jurídicas de direito privado.

4 Para uma análise do tema, ver: lemos, Patrícia faga iglecias. resíduos sólidos e responsabilidade civil pós-consumo. 2. ed. são Paulo: rt, 2012, p. 97 e seguintes.

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Patrícia Iglecias // Artigo // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 16: Tema: Futuro do Lixo

O que a lei propõe é um sistema de gestão, a responsabilidade compartilhada . A ideia dessa noção é trabalhar com o ciclo de vida do produto. Hoje, quem desenvolve um novo produto não pode pensar só em desenvolvê-lo, colocá-lo no mercado e passá-lo para as mãos do consumidor. Há uma lógica diferente, de pensar no produto desde o desenvolvimento até a disposição final.

responsabilidade compartilhada

CiClo dE VidA do Produto

desenvolvimento

obtenção de matérias-primas e insumos

Processo produtivo

Consumo

destinação final

disposição final

Essa lei é muito boa porque estabelece o que cada um deve fazer dentro do sistema e dá uma função para cada gerador de resíduo ou para quem faz parte desse contexto dos resíduos. A lei considera fabricantes e importadores, distribuidores e comerciantes, consumidores e titulares dos serviços de limpeza. Os fabricantes têm algumas opções dentro da lei, por exemplo, de criar procedimentos de compra: compra de embalagem, compra de produtos pós-utilizados. Nesse contexto surge a questão do incentivo econômico. Por exemplo: o consumidor devolve uma impressora e tem um desconto na aquisição da próxima. Para isso, é preciso criar postos de entrega de resíduos e estabelecer parcerias com cooperativas ou associações de catadores. Esse é um dos exemplos de possibilidades trazidas pela lei que terão de ser desenvolvidas agora, no momento de sua implementação.

Os comerciantes e fabricantes são responsáveis pela devolução dos resíduos aos fabricantes. E os consumidores, qual nosso papel? Nosso papel é fundamental, porque o sistema só vai funcionar se o consumidor estiver integrado a ele. Então o consumidor teria de fazer a devolução do produto após o uso, no caso de produtos inseridos na logística reversa , e a separação dos resíduos para a coleta seletiva, quando implementada – nesse caso, o problema também é do poder público, pois ainda não houve essa implementação de forma ampla.

São interessantes as possibilidades de incentivos econômicos para o consumidor. Em trabalhos realizados com institutos como o Procon e o antigo DPDC, Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, notou-se a preocupação de que o consumidor entenda todo esse sistema, porque existe previsão de infração. O consumidor que não realizar o processo corretamente, de acordo com a lei, terá de pagar multa no caso de reincidência. O titular do serviço de manejo de resíduos até pode desempenhar o papel dos fabricantes, mas desde que haja um acordo setorial prevendo isso, um termo de compromisso, ou, principalmente, que ele tenha uma remuneração para isso.

fonte: Patrícia iglecias

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CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Artigo // Patrícia Iglecias

Page 17: Tema: Futuro do Lixo

Então, o que muda na sistemática? Antes, o município era o responsável pela gestão de todos os resíduos. A partir dos acordos setoriais e dos termos de compromisso, os fabricantes vão entrar nessa sistemática e o volume da gestão de resíduos será diminuído. O município terá de fazer a coleta seletiva, e deve-se lembrar que o sistema proposto pela lei dá prioridade para a inserção das cooperativas.

A cadeia produtiva tem uma série de responsabilidades. Os produtos, por exemplo, já deverão ser pensados para sua reutilização, reciclagem, para gerar menor quantidade de resíduos. Isso faz parte também do desenvolvimento de novas tecnologias. Os fabricantes precisam fazer o recolhimento e a destinação dos produtos sujeitos à logística reversa, além de informar corretamente o consumidor. Há uma discussão hoje sobre a rotulagem – as embalagens dos produtos devem conter informações para o consumidor a respeito da destinação daquele resíduo. Tudo isso já está em discussão no sistema de proteção do consumidor.

Muitos perguntam se a lei não entrou em vigor ou se ela não funciona. Mas a implementação do sistema deve ocorrer, basicamente, via acordos setoriais, regulamentos e termos de compromisso. A logística reversa, por exemplo, depende de acordos setoriais, regulamentos ou termos de compromisso, então não é algo automático. Não se pode mandar o fabricante, de um dia para outro, resolver todo o problema do resíduo. Também é um erro imaginar que o fabricante vai resolver a questão dos resíduos em sua totalidade. Por quê? Porque existem metas. A lei trabalhou com metas que virão nesses acordos setoriais, termos de compromisso ou regulamentos. A partir da meta é que se podem exigir dos fabricantes a destinação final e a logística reversa.

Esses são, em resumo, os principais pontos da lei. Para finalizar, é preciso destacar também que existem ações em relação aos resíduos anteriores à lei de política nacional, porque alguns estados já tinham políticas estaduais. Não é tudo novidade. Um exemplo interessante é uma ação relacionada ao descarte de lâmpadas fluorescentes no Rio Grande do Sul. Outro exemplo interessantíssimo vem do Acre, onde o próprio estado foi responsabilizado por estar licenciando atividades que envolviam o uso de garrafas pet sem pensar no direcionamento dos resíduos. Houve termo de ajustamento e de compromisso, e o resultado foi positivo. Essas ações mostram que o sistema da lei é recente, mas a noção de um sistema de pós-consumo já estava, em certo sentido, encaminhada, em razão até de atuações anteriores.

É importante lembrar que o Direito é um sistema de segunda ordem, ou seja, o Direito existe para atender aos anseios da sociedade, ainda que a sociedade não tenha consciência disso. É o caso em relação aos resíduos. Nós temos de trabalhar muito na educação para o consumo, porque isso será importante para que haja, sim, padrões sustentáveis de produção e consumo. E trabalhar na informação ao consumidor, para que essa informação se transforme em conhecimento, participação. Só dessa forma poderemos ter uma gestão participativa em relação aos resíduos e uma apropriação que eu chamaria de coletiva da natureza, ou seja, sem que individualmente sejam esgotados os recursos naturais.

Nós já passamos do tempo das grandes revoluções, estamos no tempo das microrrevoluções; então cada um pode fazer a sua revolução contribuindo para a implementação dessa lei e dessas sistemáticas do pós-consumo porque, com certeza, teremos resultados muito positivos, não só para a nossa sociedade atual, mas também para as futuras gerações.

Para saber mais:

GORE, Al. Uma verdade inconveniente: o que devemos saber (e fazer) sobre o aquecimento global. São Paulo: Manole, 2007

LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003

Resíduos sólidos e responsabilidade civil pós-consumo. 2. ed. São Paulo: RT, 2012

Meio ambiente e responsabilidade civil do proprietário: análise do nexo causal. 2. ed. São Paulo: RT, 2012

OST, François. A natureza à margem da lei. A ecologia à prova do Direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995

Uma verdade inconveniente (An inconvenient truth, EUA , 2006, 100 min). Documentário. Direção: Davis Guggenheim

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Patrícia Iglecias // Artigo // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 18: Tema: Futuro do Lixo

A preocupação com o meio ambiente vem sendo tema de destaque para diversas profissões. Para o Direito, esse assunto é relativamente recente, visto que só com a Constituição brasileira de 1988 o meio ambiente passou a ser tratado como direito fundamental. Em entrevista exclusiva ao Globo Universidade, a professora Patrícia Iglecias discute esta e outras questões referentes ao Direito Ambiental, contribuindo para divulgar as formas de conscientização e fomentar reflexões sobre o tema.

PAtríCiA iGlECiAS diSCutE QuEStõES SoBrE o dirEito AmBiENtAl

“a conscientização dePende de educação ambiental e temos falhado nesse asPecto”

18

entrevista

Page 19: Tema: Futuro do Lixo

Globo universidade – Por que o interesse

pelo direito Ambiental?

Patrícia iglecias – comecei a estudar a te-

mática em 1996, por ocasião do curso de

mestrado. de forma despretensiosa decidi

estudar responsabilidade civil por danos ao

meio ambiente. a escolha se deu muito em

função de se tratar de tema pouco explo-

rado no direito brasileiro. a partir do pri-

meiro contato com a temática da proteção

ao meio ambiente, nunca mais consegui

abandonar o assunto. toda a minha pes-

quisa, desde 1996, tem sido para resolver

questões que considero fundamentais des-

se universo multidisciplinar.

Gu – No artigo “responsabilidade civil e

dano ao meio ambiente: novos rumos”,1

você diz que há diversas posturas em re-

lação às questões ambientais, sendo duas

delas o antropocentrismo e o biocentris-

mo, que diz serem visões exageradas. Por

quê? Em sua opinião, qual seria o melhor

posicionamento quanto ao meio ambiente?

Pi – o antropocentrismo tem por foco a

proteção ao meio ambiente somente em

função dos interesses humanos. nada se

faz em função simplesmente da proteção

ao meio ambiente em si e aos seus compo-

nentes. discordo desse posicionamento, pois

os bens ambientais têm valores intrínsecos,

próprios.

Por outro lado, o biocentrismo considera

tais valores intrínsecos dos bens ambientais,

mas, se sua aplicação se der sem equilíbrio,

1 lemos, Patrícia faga iglecias. responsabilidade civil e dano ao meio ambiente: novos rumos. Acta Científica – Ciências Humanas, vol. 11, n. 2, p. 24-31, 2o semestre 2006.

é possível chegar a extremos. Penso que a

solução está no tratamento equilibrado. os

interesses humanos são relevantes e quere-

mos preservar a vida humana na terra, assim

como os bens ambientais, a fauna e a flora.

os recursos naturais bióticos e abióticos têm

seu próprio valor e merecem respeito.

Gu – um dos termos jurídicos bastante

usados diante dessa temática é respon-

sabilidade civil. Como ela pode ser defi-

nida e qual o papel desse conceito em re-

lação à preservação do meio ambiente?

Pi – a responsabilidade civil é um institu-

to jurídico utilizado para gerar obrigações

tanto nas relações contratuais quanto nas

extracontratuais. no caso de danos ao meio

ambiente, a responsabilidade civil decorre

do descumprimento do dever de não cau-

sar esses danos ao meio ambiente. se houve

dano, o seu causador fica obrigado a repará-

-lo. a noção de reparação traz em si a ideia de

que o bem volte a ser como era antes. exem-

plo: abalroou o veículo, é preciso consertá-lo

e deixá-lo como era antes. o problema, em

relação ao meio ambiente, é a dificuldade

de retornar às condições anteriores. uma

área desmatada, por exemplo, dificilmente

volta a ser como antes simplesmente com o

reflorestamento. Perde-se muito da micro-

fauna e da microflora da região. Por isso,

hoje a responsabilidade civil por dano ao

meio ambiente tem também um importante

papel preventivo e ocupa-se da ideia de que

é preciso evitar a ocorrência do dano, e não

simplesmente aguardar que ele ocorra para

depois buscar a reparação.

Gu – Em seu modo de ver, o que levou o

Brasil a incluir a questão ambiental na

Constituição apenas em 1988?

19

Patrícia Iglecias // Entrevista // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 20: Tema: Futuro do Lixo

Pi – alguns aspectos ligados ao meio am-

biente foram tratados em constituições an-

teriores, como, por exemplo, o patrimônio

cultural. a constituição de 1988 foi a pri-

meira a tratar a questão ambiental de for-

ma ampla, incluindo o meio ambiente como

direito fundamental. À época da consti-

tuinte houve um incansável trabalho de

juristas ligados à temática na formação do

que seria o texto final do artigo 225.

o processo legislativo toma por base os

anseios da sociedade, e penso que demora-

mos muito, no brasil, a reconhecer a impor-

tância da proteção ao meio ambiente, até

mesmo em função da abundância de bens

ambientais. talvez essa seja a maior razão

para que o assunto não tivesse sido tratado

amplamente antes.

Gu – Quais são as formas de tutela do

meio ambiente? Alguma delas se mostra

mais efetiva? Por quê?

Pi – abordamos três espécies de tutela am-

biental, que são: a reparatória, que busca a

reparação, o retorno do bem às condições

anteriores – é importante, pois as situações

não corrigidas podem implicar danos ainda

maiores; a repressiva, que está mais pre-

sente nas tutelas penal e administrativa do

meio ambiente, procura, via fiscalização,

coibir práticas lesivas; por último, há a tutela

preventiva, que visa evitar os danos. como

já mencionei, penso que essa é a tutela mais

importante. dadas a importância dos bens

ambientais e a dificuldade de retorno às

condições iniciais, é importante não permi-

tir que os danos ocorram. de acordo com o

sábio ditado popular, é melhor prevenir do

que remediar. isso se aplica integralmente à

proteção ao meio ambiente.

Gu – Existem projetos de lei vigentes ou

em votação que contribuam para uma

maior conscientização tanto do cidadão

comum quanto do setor privado em re-

lação ao meio ambiente? Em sua opinião,

que outras medidas legais poderiam ser

tomadas em prol dessa conscientização?

Pi – Penso que não se trata simplesmen-

te de um problema do paulistano, e sim

da sociedade como um todo. Para nós,

o problema do lixo sempre foi entendi-

do como algo simples, basta colocar na

porta de casa para a coleta e o problema

desaparece como num passe de mágica.

a lei da Política nacional de resíduos sóli-

dos, a lei estadual e a municipal estabelecem

responsabilidades em relação aos resíduos e

impõem uma mudança de postura da socie-

dade. Primeiro, o reconhecimento de que o

problema é de todos nós e, depois, a busca

de soluções, que não se fixam somente na

reciclagem, como é o pensamento de muitos.

É preciso pensar antes de consumir. escolher

produtos criados a partir de processos eco-

eficientes de produção, geradores de me-

nor volume de resíduos e, portanto, menos

impactantes ao meio ambiente. como? não

somente as leis mencionadas, mas também

o próprio código de defesa do consumidor

prevê que o consumidor tem direito a ser

informado corretamente sobre os produtos

que consome. essa informação, no contexto

atual, deve incluir aspectos ligados ao des-

carte de produtos e resíduos. É preciso exigir

dos fabricantes que a informação seja dis-

ponibilizada. além disso, a conscientização

depende de educação ambiental, e penso

que temos falhado nesse aspecto. a edu-

cação ambiental não tem sido prioridade, e

precisamos corrigir isso urgentemente.

20

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Entrevista // Patrícia Iglecias

Page 21: Tema: Futuro do Lixo

Gu – Como a universidade, em especial

a Faculdade de direito, pode contribuir

para o direito Ambiental? Que reflexões

são propostas sobre o meio ambiente em

âmbito acadêmico?

Pi – as faculdades de direito hoje têm o di-

reito ambiental como disciplina curricular.

mas essa não era a realidade dez anos atrás.

Por isso, os novos profissionais do direito

contam com essa formação importantíssi-

ma, que, sem dúvida, influenciará as novas

gerações. no meio acadêmico, hoje, estuda-

-se a temática ambiental de forma ampla,

considerando seus diversos componentes,

os aspectos naturais, artificiais, culturais e

laborais. entretanto, exige-se de quem vai

atuar nessa área uma formação cada vez

mais multidisciplinar. os conceitos jurídicos

não resolvem todos os problemas ambien-

tais. Quem atua na área de direito ambiental

atua juntamente com profissionais de outras

áreas, como biólogos, geólogos, geógrafos

etc. além disso, ao se tratar de temas ligados

ao meio ambiente, cuida-se do próprio direi-

to à vida. não é possível falar em vida dig-

na sem um meio ambiente ecologicamente

equilibrado. Por isso, exige-se que o profis-

sional esteja preparado tecnicamente e atue

eticamente.

Gu – Poderia falar um pouco sobre as

possibilidades de trabalho na área do di-

reito Ambiental?

Pi – hoje são muitas as possibilidades de

atuação que envolvem a questão ambien-

tal. aliás, as pesquisas indicam que nos

próximos anos faltarão profissionais em

todas as áreas que trabalham com temas

ligados ao meio ambiente. o campo de

atuação é vasto e inclui a magistratura, o

ministério Público, a advocacia, os órgãos

ambientais e as respectivas áreas técnicas,

entre outras. todos os mais tradicionais

concursos para as carreiras jurídicas

hoje exigem conhecimento em direito

ambiental. assim, eu diria que o direito

ambiental é uma área árdua, que exige

comprometimento e dedicação, mas ainda

bastante promissora na atualidade.

21

Patrícia Iglecias // Entrevista // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 22: Tema: Futuro do Lixo

artigo

BilHõES joGAdoS ForA

O que chamamos equivocadamente de lixo é, na verdade, um conjunto de matérias-primas preciosas que podem gerar empregos e renda. Para isso, é preciso adotar um modelo adequado de gestão econômica de resíduos sólidos

A adoção de um amplo programa de reciclagem de lixo em uma grande cidade é economicamente viável? Quais são os custos envolvidos? No artigo a seguir, o economista Sabetai Calderoni mostra como, em um município como São Paulo, a adoção de um novo modelo de gestão de resíduos sólidos não apenas não acarretaria novos custos como geraria uma economia importante de recursos para a cidade. Ele descreve todas as fases do processo, calculando as receitas e os gastos relacionados a cada etapa.

22

Page 23: Tema: Futuro do Lixo

um NoVo modElo PArA A GEStão ECoNÔmiCA doS rESíduoS SólidoSSabetai Calderoni, economista e presidente do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Sustentável (Ibrades)

Há bilhões perdidos no lixo. Sim, bilhões. Este artigo vai tratar da questão econômica associada à gestão dos resíduos sólidos. Vamos apresentar um novo modelo de gestão, mostrando como é perfeitamente possível integrar a questão do lixo a outras, ligadas à educação, emprego, renda, moradia, saúde e saneamento.

O modelo de apropriação econômica dos benefícios trazidos pela reciclagem prevê um conjunto integrado de atividades. No centro de tudo está a central de reciclagem. Ela processa não apenas resíduos domiciliares, mas também o entulho de construções e demolições, e também é capaz de fabricar produtos como tijolos, entre outros, como veremos a seguir. Ela é uma verdadeira indústria sustentável de resíduos. Tudo isso a partir do lixo que ela recebe, como o aterro sanitário, mas não o enterra. Pelo contrário, o utiliza como matéria-prima.

Quando recebe resíduos do serviço de saúde, por exemplo, a central de reciclagem os processa, produzindo etanol e energia elétrica. Ela pode realizar uma série de serviços e, ao mesmo tempo, fazer aquilo que sonhamos e parece até impossível, mas já é realidade em países como a Holanda: aproveitar 97% de tudo o que é descartado e chamamos equivocadamente de lixo. Esse “lixo”, na verdade, representa um conjunto de matérias- -primas muito preciosas, que geram empregos e renda para muita gente.

Para entender quais são os ganhos econômicos oferecidos pela reciclagem, basta comparar o custo da produção industrial feita com sucata ou lixo reciclado com o custo usando matérias-primas virgens. O que é melhor? Aproveitar como insumo, por exemplo, uma latinha de cerveja já utilizada ou percorrer o longo, custoso e poluidor caminho de começar pela mineração da bauxita e a cada cinco toneladas de bauxita produzir uma tonelada de alumínio para só então transformá-la em uma nova latinha? É muito melhor, muito mais econômico e mais interessante usar a latinha de sucata na qual todas as reações químicas necessárias já foram processadas e a energia gasta já está aproveitada. A economia é brutal.

ECoNoMiA

Sabetai Calderoni édoutor em ciências

pela usP, fez cursos

de pós-graduação

e especialização na

grã-bretanha, estados

unidos e Portugal.

bacharel em economia

e em direito pela usP,

é autor do livro Osbilhões perdidos nolixo, que está na quarta

edição. Presidente do

instituto brasileiro

de desenvolvimento

sustentável (ibrades),

do instituto de

ciência e tecnologia

em resíduos e

desenvolvimento

sustentável (ictr)

e do instituto brasil

ambiente

23

Sabetai Calderoni // Artigo // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 24: Tema: Futuro do Lixo

Usei o exemplo da latinha de alumínio, pois o uso desse material reciclado representa 95% de redução no consumo de energia. Ou seja, gastam-se R$ 5 reciclando a lata, em vez dos R$ 100 que se gastariam para usar a matéria-prima virgem. No caso de outros materiais, apenas em relação aos gastos com energia, chega-se a uma economia de 13% para o vidro; 71% para o papel; 79% para o plástico; e 74% para o aço. A redução da poluição do ar também é imensa: 95% para o alumínio, 20% para o vidro, 74% para o papel; e 85% para o aço. Em alguns casos, como o do vidro, a utilização de materiais reciclados em vez da matéria-prima virgem significa também uma redução de 50% no consumo de água.

Quando se analisam os ganhos proporcionados pela reciclagem de lixo domiciliar, há dois pontos a considerar: a economia obtida e a perdida – ou seja, tudo aquilo que se gasta ao enterrar o lixo. No âmbito nacional, a economia obtida com a reciclagem pode ser de US$ 1,192 bilhão e a perdida, de US$ 4,645 bilhão, com uma economia possível de US$ 5,836 bilhão, somente no que se refere à chamada “fração seca” do lixo domiciliar (papel, plástico, lata de alumínio, lata de aço, vidro). Se incluirmos a reciclagem do

material orgânico (restos de comida, principalmente), poderemos chegar a US$ 10 bilhões de economia possível, e a economia obtida hoje com a reciclagem desses materiais é praticamente nula frente a seu potencial. No município de São Paulo, a economia obtida é de US$ 0,326 bilhão, e a perdida, US$ 0,791 bilhão, com uma economia possível de US$ 1,117 bilhão. Considerando-se o material orgânico, pode-se chegar a US$ 1,5 bilhão.

Ou seja, o Brasil poderia obter uma economia da ordem de US$ 10 bilhões (ou aproximadamente R$ 20 bilhões) todos os anos. Isso é suficiente para conseguir uma cesta básica para todas as famílias pobres do Brasil e ainda habitação para todos. Estamos jogando muita coisa fora.

E como é constituído esse lixo? Embora muitos pensem que o grande vilão do meio ambiente em termos de geração de resíduos é o lixo domiciliar, na verdade, não é. O entulho (resíduos da construção civil) representa 52% do total, enquanto o domiciliar atinge 34%. O material resultante da poda de árvores também tem uma participação importante (14%).

Um programa completo de aproveitamento de resíduos urbanos, com o uso de uma central de reciclagem integral, é constituído pelos seguintes elementos: programa de coleta seletiva, estação de triagem , estação de tratamento de resíduos orgânicos, unidade de reciclagem de resíduos da construção civil, unidade de beneficiamento de materiais (fração seca), unidade de processamento de material de podas e unidade de tratamento de rejeitos.

Um dos grandes problemas enfrentados quando se quer implantar centrais de reciclagem em municípios é a relutância dos prefeitos. Muitos questionam sobre os custos de implantação e a suposta dificuldade de usar tecnologias sofisticadas e revelam o medo de que o projeto não resista a mudanças de prefeitos após o fim de cada mandato.

um doS GrANdES ProBlEmAS

ENFrENtAdoS QuANdo SE QuEr

imPlANtAr CENtrAiS dE rECiClAGEm

é A rElutÂNCiA doS PrEFEitoS

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CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Artigo // Sabetai Calderoni

Page 25: Tema: Futuro do Lixo

Mas esses temores não têm razão de existir, pois está em vigor no Brasil a legislação que abre a possibilidade de se estabelecer parcerias público-privadas (PPPs).1 Por meio de uma PPP, os empresários podem fazer os investimentos necessários para implantar o novo modelo e então as prefeituras não têm mais desculpas para continuar com o modelo de coletar e enterrar o lixo todo dia. O resíduo, que para a prefeitura é um problema, torna- -se fonte de matéria-prima para os empresários, que farão seu aproveitamento econômico. No entanto, os prefeitos costumam dizer: “Mas ainda vamos ter de pagar para a central de reciclagem? Então não adianta”. Não é bem assim. As prefeituras, em vez de pagarem para os aterros sanitários enterrarem o lixo, podem passar a empregar esses mesmos recursos na reciclagem dos resíduos. Paga-se, no final, a mesma coisa.

Uma das propostas que temos feito na Câmara dos Deputados e no Senado é a de que as concorrências públicas referentes a aterros tenham de ter, ao mesmo tempo, uma concorrência semelhante, paralela, para a reciclagem, de forma que a central de reciclagem possa receber, pelo menos, o mesmo valor destinado aos aterros sanitários. Isso incrementaria muito sua implantação. E os prefeitos poderiam diminuir seus custos.

Um modelo para São PauloUma proposta de modelo de gestão de resíduos para São Paulo seria a de implantar

soluções descentralizadas. Ou seja, fazer com que São Paulo tivesse um número muito grande de centrais de reciclagem. Pode-se dividir o município em cidades de 200 mil habitantes, por exemplo. Teríamos assim 50 cidades de 200 mil a 220 mil habitantes. Isso geraria uma economia brutal na área dos transportes.

Se tivéssemos 50 centrais de reciclagem, cada uma atendendo de 200 mil a 220 mil habitantes, teríamos ganhos muito significativos. O território de São Paulo é de 1.500 km2. Se fosse exatamente quadrado, teria 38 km de cada lado. Dividido em 50 áreas, também esquematicamente quadradas, teríamos 50 territórios de 6 km x 6 km cada um.

Hoje, são percorridas distâncias gigantescas para tratar o lixo. Gasta-se atualmente em São Paulo R$ 1,5 bilhão por ano com lixo, e dois terços desse custo são direcionados apenas ao transporte. Percorrem-se 60 km para levar o lixo para Caieiras, onde fica um dos aterros sanitários que atendem a capital, e outros 60 km para voltar. Se essa distância for reduzida para apenas 6 km, a quilometragem baixa para 12 km. Ou seja, redução de 90% do percurso. O gasto de R$ 1 bilhão passa a significar apenas R$ 100 milhões. Economia de R$ 900 milhões por ano apenas com a redução no custo de transporte, tendo-se, ainda, de deduzir dessa economia o custo da coleta local, casa a casa, a qual deverá se manter constante.

Além disso, reduz-se também o número de veículos. De acordo com dados fornecidos pela prefeitura de São Paulo, em 30 de maio de 2012, hoje há 500 veículos em operação para levar os resíduos até o aterro de Caieiras. Para levar esses resíduos até a central de reciclagem mais próxima, com a adoção do novo modelo, seriam necessários 300 veículos.

1 no brasil, a legislação que regula as parcerias público-privadas (PPPs) é a lei no 11.079, sancionada em 30 de dezembro de 2004. disponível no link: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l11079.htm.

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Sabetai Calderoni // Artigo // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 26: Tema: Futuro do Lixo

Ou seja: 200 a menos. Ao evitar tantos veículos trafegando, diminui-se muito a poluição, gera-se menos ruído e menor número de acidentes, além de melhoras na saúde pública e no tráfego. Ou seja, ganhos de natureza ambiental e econômica, envolvendo apenas a questão logística.

Muitas vezes se diz que a coleta seletiva não é viável economicamente, pois é muito mais cara do que a coleta tradicional. Isso é tido como verdade; no entanto, é preciso refletir. Essa conta retoma aquela pergunta jocosa que se faz para as crianças: “O que pesa mais: uma tonelada de chumbo ou uma tonelada de penas?”. Elas, de fato, pesam a mesma coisa, assim como o lixo. Uma tonelada de lixo misturado pesa o mesmo que uma tonelada de lixo separado.

Então não há por que aumentar o custo. Se usar um caminhão especial para coleta seletiva, é preciso fazer uma única passagem para coleta, separando resíduos orgânicos de um lado e secos de outro, com taxas de compactação diferentes.

Na central de reciclagem, a triagem pode ser feita de forma extremamente simples, utilizando-se uma mesa em vez de esteira. Apesar do ganho em velocidade, há uma perda de eficiência no processo de separação do lixo com a esteira, pois a pessoa encarregada de fazer a separação vai ficando confusa com todo aquele material passando de forma monótona. O processo se torna cansativo. Com uma mesa, a eficiência é maior, e isso compensa a diminuição da velocidade.

Em uma cidade como São Paulo, com a multiplicidade de sucateiros, cooperativas e indústrias, pode-se ter a certeza de aproveitamento de todo o lixo reciclável. Assim, a receita anual obtida com a reciclagem de papel, plástico, metal, vidro e alumínio no município de São Paulo, com seus 11 milhões de habitantes, chega a mais de R$ 325 milhões. Com papel e papelão são obtidos R$ 177,8 milhões; com plástico, R$ 81,3 milhões; metal, R$ 27,3 milhões; vidro, R$ 7 milhões; e alumínio, R$ 32,5 milhões.

Tratando ainda da economia relacionada à separação do lixo, um exemplo interessante de como valorizar os resíduos é a forma de selecioná-lo. É possível agregar valor aos recicláveis fazendo uma triagem mais bem-feita. Se a separação de plásticos for manual, consegue-se chegar a uma eficiência de 80%. No entanto, tecnologias recentes chegam a fazer a separação de plásticos com mais de 99,5% de precisão, agrupando-os por cor. A separação mais precisa permite ao vendedor obter um preço duas a três vezes maior pelo plástico. Por isso, o investimento no aperfeiçoamento da triagem é vantajoso.

A compostagem é uma alternativa interessante e muito simples para reciclar o resíduo orgânico – que representa 60% do total de todos os resíduos domiciliares. Quando o lixo urbano chega à estação de compostagem, ele passa por um processo de triagem para retirada da fração “inorgânica” remanescente da coleta seletiva, restando apenas a orgânica. A parte “inorgânica” (papel, plástico, vidro e metais) é encaminhada para a central de triagem de materiais de interesse econômico.

A parte orgânica é destinada ao pátio de compostagem, onde é submetida a um processo natural, aeróbio, controlado, de conversão biológica. O resíduo é organizado em pequenos

A PArtE orGÂNiCA é dEStiNAdA

Ao PÁtio dE ComPoStAGEm, oNdE

é SuBmEtidA A um ProCESSo

NAturAldE CoNVErSão BiolóGiCA

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CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Artigo // Sabetai Calderoni

Page 27: Tema: Futuro do Lixo

montes, em um plano levemente inclinado. Assim, a água que está presente nesse resíduo – e geralmente corresponde à metade dele – escorre por uma canaleta e segue para tratamento.

Se o lixo orgânico representa 60% do total e metade dele (30%) é água, ao reaproveitar a água resolve-se quase um terço de todo o problema do lixo. O que fazemos hoje é irracional. Transportamos água para muito longe, pagando caro por isso. Além disso, nos aterros essa água vira chorume , um material contaminado.

Depois de 60 ou 90 dias, o material sólido que ficou nos pátios de compostagem encontra-se devidamente estabilizado, podendo ser usado como fertilizante. Ou seja, pode virar adubo para parques, jardins, alamedas e viveiros, nos 246 km2 de áreas verdes de São Paulo. Além disso, pode-se obter crédito de carbono – mesmo que o preço esteja um tanto deprimido atualmente.

Claro que é preciso avaliar o grau de contaminação, pois já houve uma estação de compostagem na Vila Leopoldina onde o processo não era feito corretamente: ali entrava lixo e saía veneno, ninguém queria comprar. É preciso executar o processo com cuidado e avaliar a qualidade do produto da compostagem.

Há mais alternativas para tratamento de resíduos, como a biodigestão e outras, sobre as quais vamos falar em seguida.

O biodigestor recebe o resíduo, assim como a compostagem, mas, ao contrário dela, funciona em um ambiente fechado, sem ar. O processo que ocorre no biodigestor é, portanto, anaeróbio e, assim, gera o gás metano. O metano é usado para a produção de energia elétrica. Ao lado do biodigestor, geralmente fica um gasômetro inflável. O gás produzido fica armazenado ali, mas a energia é gerada apenas na hora do pico – no momento em que pode ser vendida por um preço maior. A secagem do lodo de esgoto também viabiliza o aproveitamento para a geração de energia.

Na central de gaseificação há o aproveitamento de um amplo espectro de materiais com geração de energia elétrica. A gaseificação é adotada para processar os rejeitos, principalmente os contaminados, inclusive os de serviços de saúde, permitindo seu aproveitamento econômico pela produção de energia elétrica, evitando aterros e contaminações.

E qual é a diferença entre gaseificação e incineração? Ambos os processos ocorrem em um recipiente de ferro, chamado reator, no qual os resíduos são queimados a temperaturas que variam entre 800 e 1.200 graus. O que muda, então? A diferença é a quantidade de ar. No incinerador temos ar na proporção estequiométrica para haver a queima. No gaseificador não há essa quantidade de ar, então forma-se o gás, permitindo seu aproveitamento. É um processo muito menos poluente, a máquina é mais barata e hoje é um método mais adequado, sendo, portanto, recomendado.

Outro exemplo de aproveitamento de resíduos é o processamento de podas de árvores. Os resíduos oriundos das podas são picados por uma máquina e prensados, sendo transformados em briquetes, que têm mais aproveitamento econômico que a lenha. Mas não basta apenas prensar a madeira picada para transformá-la em briquete, pois 70% dela é composta por água. Para tirar essa umidade, é preciso energia, que pode ser obtida com

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Sabetai Calderoni // Artigo // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 28: Tema: Futuro do Lixo

a energia do gaseificador, pois esse equipamento, além de produzir energia elétrica, produz energia térmica.

Entre os ganhos econômicos associados a esse processo, calcula-se uma receita anual de R$ 63,360 milhões em um município como São Paulo, com a produção de 264 mil briquetes por ano. Os briquetes têm seu mercado consumidor na indústria têxtil e de cerâmica, padarias, olarias e pizzarias, por exemplo.

Talvez o maior vilão do meio ambiente seja o entulho proveniente da construção civil. O entulho consiste em uma montanha diária de resíduos formada por argamassa, areia, cerâmicas, concretos, madeira, metais, papéis, plásticos, pedras, tijolos, tintas etc. Esse grave

problema para as cidades representa de 40% a 60% do resíduo sólido urbano.

As prefeituras não podem receber os resíduos de construção e demolição nos aterros sanitários.2 Assim, não é da prefeitura, mas sim do gerador desse entulho a obrigação de fazer sua destinação correta e a reciclagem desses materiais.

Para reciclar esses resíduos não é preciso uma tecnologia sofisticada. Bastam um equipamento que funciona como um martelo que bate e quebra as pedras e, depois, uma peneira, que simplesmente separa os pedaços segundo seu tamanho. Isso porque a composição média dos resíduos da construção civil se divide em: 60% de alvenaria, argamassa e concreto; 20% de solo, ou terra; 10% de madeira e 10% restantes formados por outros materiais, como sofás, colchões etc.

Muita coisa pode ser produzida com esses materiais, como areia, brita, tijolos etc. Adotando a reciclagem de entulho, é possível realizar quatro programas: habitacional, de pavimentação, mobiliário urbano e drenagem urbana, com a produção de manilhas, guias, sarjetas e bocas de lobo.

A produção de entulho em São Paulo é calculada em 5,5 milhões de toneladas por ano (média nacional = 0,5 t/habitante ano). Aproximadamente 60% desse resíduo é hoje jogado em terrenos baldios, o que representa 3,3 milhões t/ano. O custo da prefeitura para recolher esse resíduo descartado de forma clandestina é de cerca de R$ 18/t. O custo evitado com a adoção de um programa de reciclagem seria, portanto, da ordem de R$ 59,400 milhões por ano.

Resumindo, uma central de reciclagem, ao receber resíduos recicláveis, podas de árvores e entulho, pode gerar: créditos de carbono, energia elétrica e térmica, fertilizantes, briquetes, areia, brita, tijolos, papel, plástico, além de evitar custos com transportes e coleta, entre outras receitas e serviços ambientais. Na ponta do lápis, no final, chega-se a uma receita e economia de R$ 1,43 bilhão por ano.

Esse valor a que chegamos, de R$ 1,43 bilhão, é o tamanho da economia que poderia ser obtida, apenas calculando-se o valor econômico dos materiais, de sua venda, sem considerar a economia de energia para a indústria e outros ganhos econômicos.

2 ver, por exemplo, o capítulo iii, seção i, da Política nacional de resíduos sólidos (lei no 12.305, de 2 de agosto de 2010).

o ENtulHo ProVENiENtE

dA CoNStruÇão CiVil rEPrESENtA

dE 40% A 60% do rESíduo

Sólido urBANo

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CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Artigo // Sabetai Calderoni

Page 29: Tema: Futuro do Lixo

receita e economia obtidas com adoção de centrais de reciclagem em São Paulo

receita/economia r$ milhÕes/ano

1 recicláveis 325,96

2 composto 139,00

3 gaseificação 3,28

4 brita* 45,00

5 custo evitado com transporte 450,00

6 créditos de carbono 20,73

7 briquetes 63,36

8 custo evitado com coleta de entulho clandestino 27,50

9 custo evitado com aterro sanitário com recicláveis 104,03

10 custo evitado com aterro sanitário com composto 249,66

11 custo evitado com aterro sanitário com gaseificação 62,42

12 totAl 1.428,52

* sem considerar artefatos produzidos

Haveria ainda muitas alternativas a serem adotadas para que se fizesse reciclagem, como a política de depósito/retorno para o lixo especial (pilhas, eletrônicos etc.), na qual o consumidor que não levasse uma pilha velha no momento de comprar uma nova pagaria mais caro, por exemplo. Existem inúmeras outras formas de indução à reciclagem por meio de instrumentos econômicos para que se possa promover a recepção desses materiais que devem e podem ser efetivamente reciclados.

As alternativas são muitas. E o mais importante é sabermos que sustentabilidade não encarece. Sustentabilidade valoriza.

fonte: sabetai calderoni

29

Sabetai Calderoni // Artigo // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 30: Tema: Futuro do Lixo

SABEtAi CAldEroNi FAlA dA imPlANtAÇão dE CidAdES SuStENtÁVEiS

entrevista

A construção de estações de tratamento de esgoto ou a criação de aterros para alocação de resíduos sólidos são medidas que exigem não apenas planejamento como investimento. No entanto, deixar de fazer obras como essas pode custar caro. Em entrevista concedida ao Globo Universidade, Sabetai Calderoni mostra como preservar o meio ambiente garantindo um bom custo-benefício. Entre outras opções, aborda a reciclagem e a reutilização, a educação ambiental e a economia. O consultor da ONU e do Banco Mundial declara que é possível colocar em prática a sustentabilidade.

“economia verde É aQuela ligada À sustentabilidade como dimensão social, ambiental e econômica”

30

Page 31: Tema: Futuro do Lixo

Globo universidade – o que o levou a es-

crever o livro Os bilhões perdidos no lixo?

Poderia nos falar um pouco sobre as pes-

quisas realizadas para produzi-lo?

Sabetai Calderoni – meu pai era um cida-

dão grego preso no campo de concentra-

ção italiano e, no pós-guerra, ele trabalhou

na itália. lá, havia carência de matérias-

-primas, tornando a reciclagem algo ne-

cessário. mais tarde, ele veio para o brasil,

formou família e trouxe isso para minha in-

fância. acabei me formando em economia

e direito, estudei urbanismo na inglaterra

e sempre tive um olhar voltado para essas

questões. as pesquisas realizadas para pro-

duzir o livro se basearam em contatos com

cooperativas, sucateiros, prefeituras, pes-

soas ligadas à tecnologia, professores, ór-

gãos e empresas ligados ao assunto.

Gu – o conceito de “economia verde” vem

sendo bastante discutido recentemente

e foi um dos assuntos centrais da última

Conferência das Nações unidas, a rio+20.

Você concorda com a formulação dessa

nova definição? Como a economia pode

ser aplicada em prol do meio ambiente?

SC – É complicado falar em economia verde

sem ter seu conceito definido. os conceitos

divergem entre os economistas. Para mim,

economia verde é aquela ligada à sustenta-

bilidade como dimensão social, ambiental e

econômica. É difícil pensar no verde fora do

contexto econômico. a economia pode ser

aplicada em prol do meio ambiente quan-

do se estabelece uma relação convergente

entre políticas econômicas e os interes-

ses relacionados ao meio ambiente. um

exemplo é a Política nacional de resíduos

sólidos, que trata da logística reversa –

princípio segundo o qual as fábricas devem

se responsabilizar pelos resíduos gerados

por seus produtos e embalagens, que de-

vem voltar para a fábrica e ser revertidos

para a produção de novos produtos. Por

meio de mecanismos econômicos isso é

possível, fazendo, por exemplo, um sistema

de depósito no entorno das fábricas. Para

complementar a atividade, o consumo pode

ser estimulado da seguinte forma: se o indi-

víduo comprar um computador, leva o mais

velho, e o novo sai por um preço mais baixo.

Quem não levar o velho em troca paga mais

caro. assim, a indústria acaba conseguindo

matéria-prima sem custos adicionais.

Gu – A reciclagem permite utilizar o lixo

como matéria-prima para outros produ-

tos. Nesse sentido, que mudanças deve-

riam ocorrer em relação à gestão de re-

síduos sólidos?

SC – Primeiro, a eliminação de lixões. o lixão

é um buraco que não possui nenhuma cober-

tura nem tratamento do solo, provocando a

contaminação de rios, córregos etc., o que

leva a muitas doenças, também, por causa

de roedores e insetos. Já o aterro, ao contrá-

rio, é coberto com camadas de terra, o solo é

tratado; há todo um trabalho de engenharia.

outra opção é pular o aterro e ir direto para a

reciclagem, que gera emprego e renda para

as pessoas. um bom exemplo de sucesso da

reciclagem é a holanda, em que 97% dos

resíduos sólidos são reciclados. nosso único

problema ainda é a questão dos resíduos nu-

cleares, mas já estão sendo feitas pesquisas

voltadas para formas de reutilização desses

elementos.

Gu – Como o instituto Brasil Ambiente,

que você preside, visa contribuir para a

31

Sabetai Calderoni // Entrevista // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 32: Tema: Futuro do Lixo

sustentabilidade do país? Poderia nos fa-

lar um pouco sobre seus projetos?

SC – Por meio da tentativa de implantação

de cidades sustentáveis, com centrais de

reciclagem de resíduos, energia sustentá-

vel, edificação, nutrição, processamento

de resíduos, saúde e saneamento susten-

táveis. nas edificações, por exemplo, é

gerado muito mais entulho do que resí-

duos domiciliares, e 20% desse material é

terra. ela pode ser reciclada ao ser mistu-

rada com baba de cupim para fazer tijolos

sustentáveis. outro exemplo é a coleta da

água de chuva para abastecer a casa, com

tratamento para que a água já chegue des-

tilada para o consumo. Quanto à saúde, o

ideal é que se pratique a saúde preventiva,

com visitadores domiciliares para verificar

se os indivíduos têm diabetes, catarata ou

surdez; para analisar a nutrição, ver se está

adequada ou não. nas cidades, podem-se

cultivar hortas e pomares sustentáveis, que

geram alimentos baratos e nutritivos. Pode

ser feita, também, a compostagem de resí-

duos sólidos, sem precisar gastar dinheiro

com a compra de fertilizantes.

Gu – Em sua opinião, quais seriam as téc-

nicas mais indicadas para o tratamento

de resíduos sólidos no Brasil, em termos

de custo-benefício?

SC – Para mim, as técnicas mais indicadas

seriam a energia sustentável – eólica, solar

e nuclear –, o saneamento sustentável, o es-

goto comunitário e a reciclagem.

Gu – Que medidas podem ser tomadas

por cidadãos comuns, em suas casas,

por exemplo, para que consigam reduzir

seus gastos com o descarte de seus resí-

duos sólidos?

SC – compostagem nos jardins. É só pe-

gar os resíduos e colocar em uma compos-

teira, deixando-os lá por 30 dias. depois,

basta utilizá-los como fertilizante, sem

precisar, assim, comprar adubo. outra

atitude é a coleta seletiva, separando

papel, plástico ou vidro, que serão poste-

riormente reciclados. Pode-se, também,

levar determinados elementos, como as

latinhas de alumínio, por exemplo, para

o sucateiro e, no caso de pilhas, remédios

ou inseticidas, levá-los de volta para o fa-

bricante ou comerciante. outra alternati-

va é a população fazer reivindicações por

centrais de reciclagem.

Gu – Em relação às crianças, quais me-

didas devem ser tomadas em casa e nas

escolas para que elas se conscientizem

cada vez mais sobre a importância de

preservação do meio ambiente e incor-

porem atitudes conscientes no dia a dia?

o que lhes é ensinado nas escolas atual-

mente já é o suficiente?

SC – as crianças aprendem com os exem-

plos. em casa, se não houver desperdício

de comida, se a luz for apagada toda vez

que um cômodo for esvaziado, ou se a

torneira for fechada toda vez que não for

necessário estar aberta, elas irão repetir

essas atitudes. na escola, deve haver disci-

plinas que tratem da preservação ambien-

tal, talvez com competições saudáveis,

como gincanas ou jogos cooperativos que

envolvam a ludopedagogia.

Gu – Hoje há poucas cooperativas de co-

leta seletiva nas grandes cidades, pro-

porcionalmente à quantidade de lixo pro-

duzida nesses locais, gerando altos cus-

tos para os governos com o tratamento

32

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Entrevista // Sabetai Calderoni

Page 33: Tema: Futuro do Lixo

do lixo. já existem políticas públicas ou,

pelo menos, projetos direcionados para

a coleta seletiva em grande escala nos

grandes centros urbanos?

SC – atualmente, existe a Política nacio-

nal de resíduos sólidos. com essa política,

não se pode ter mais lixão, por exemplo.

Porém, as leis não estão sendo praticadas

suficientemente para dar conta dos lixos

em grande escala.

Gu – Em sua opinião, no âmbito acadêmi-

co, como os alunos de graduação em Eco-

nomia, especificamente, podem ser esti-

mulados a pensar a questão ambiental?

SC – eles já estão sendo bastante estimu-

lados. hoje, há muitas disciplinas nessa

área falando sobre reciclagem do lixo, por

exemplo. as universidades têm apostado

nas aplicações ambientais e nas novas

tecnologias, colocando em prática mui-

tas teorias referentes aos cuidados com o

meio ambiente.

Gu – Para os graduandos em Economia

que se interessam pelo tema, quais são

as oportunidades existentes no merca-

do de trabalho?

SC – as oportunidades são gigantescas.

eles podem trabalhar com gestão ambien-

tal, elaboração de políticas ambientais,

investimentos econômicos, políticas públi-

cas, desenvolvendo projetos com melhor

relação custo-beneficio para os setores

público ou privado.

Gu – Que livros ou filmes o senhor indica-

ria para os que se interessam pelo tema?

SC – Quanto aos filmes, indico O fazedor de

montanhas [brasil/espanha, 2008. direção:

Juan figueroa], estamira [brasil, 2004. dire-

ção: marcos Prado] e Ilha das Flores [brasil,

1989. direção: Jorge furtado]. em relação aos

livros, indico os manuais da onu, que são bem

informativos, possuem ilustrações e dados de

cada região do mundo, mostrando como está

a situação ambiental desses locais.

33

Sabetai Calderoni // Entrevista // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 34: Tema: Futuro do Lixo

34

artigo

o loNGo PErCurSo dA CoNSCiENtizAÇão

Embora se saiba, desde a Grécia antiga, da relação entre lixo e doenças, a pesquisa científica voltada para o tratamento de resíduos sólidos só tomou força na segunda metade do século XX

Foram precisos séculos e mais séculos para que o homem se conscientizasse dos efeitos ambientais relacionados à questão dos dejetos. Se o destino do lixo já preocupava civilizações antigas há mais de 2.500 anos, a ciência dedicada a esse assunto é relativamente recente. Neste artigo, o professor e engenheiro Jorge Alberto Tenório traça um histórico de como a pesquisa científica voltada para os resíduos sólidos, a partir da reutilização e da transformação de materiais, evoluiu ao longo das civilizações. E mostra quais são os desafios para os próximos tempos.

Page 35: Tema: Futuro do Lixo

35

Jorge Alberto Tenório // Artigo // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

CiÊNCiA

jorge Alberto tenório é professor da

escola Politécnica da

universidade de são

Paulo (Poli-usP), chefe

do departamento de

engenharia metalúrgica

e de materiais da Poli e

coordenador do centro

multidisciplinar de

estudos em resíduos

sólidos (cersol),

especialista em

reciclagem, tratamento

de resíduos sólidos e

metalurgia extrativa

lixo, SAúdE, rECiClAGEm E A ESCASSEz dE mAtEriAiSJorge Alberto Tenório, da Escola Politécnica (Poli-USP)

Há algumas décadas, dentro das faculdades de engenharia, pesquisadores dedicavam-se a estudar materiais que iriam substituir outros, então em risco de extinção. Em meu mestrado, por exemplo, estudei o nióbio, um metal que, misturado ao aço, aumenta sua resistência – uma inovação importante para a indústria automobilística, por exemplo, que permitiu a produção de carrocerias mais leves. O nióbio era estudado por dois motivos: porque o Brasil tem muito desse material e porque ele substituía o vanádio. O vanádio é outro metal que, naquela época, se dizia estar em extinção.

Quando passei a ser professor da Escola Politécnica, em 1988, comecei a dar aula de extração de metais e víamos que o zinco estava em extinção. A previsão era que, até 2010, terminaria todo o zinco do mundo – e hoje ele está presente nos bolsos da maioria das pessoas, nos equipamentos eletrônicos, cujas pilhas têm base de zinco.

Essas previsões não se concretizaram, mas a preocupação com a extinção dos materiais me levou a estudar outro tema: a reciclagem.

Qualquer ser vivo gera resíduo, isso não é inerente ao ser humano. A diferença básica é que o ser humano tem a capacidade de transformar as coisas. Assim, o homem coloca no meio ambiente produtos materiais que o meio não conhece e com os quais não sabe lidar. O que precisamos hoje é usar essa capacidade de transformar para resolver esse problema, para reciclar, para usar as coisas que hoje estão por aí, dispersas, e colocá-las de novo no ciclo.

Há 2.500 anos, na Grécia antiga, Hipócrates, o pai da medicina, já tinha percebido a correlação entre higiene e doenças, a saúde pública. Os gregos antigos já tinham percebido que era preciso colocar o lixo para fora da cidade para evitar doenças. Começaram então a varrer as cidades, limpá-las. No entanto, essa cultura se perdeu, e civilizações sucessoras criaram cidades fechadas, nas quais ocorreram muitos surtos de pragas e pestes. A mais famosa foi aquela que dizimou quase metade da população da Europa, quase no fim da Idade Média.

Essas mortes foram causadas por um problema: resíduo. A doença foi transmitida por pulgões, ratos e outros animais, mas eles só apareceram porque as pessoas não

Page 36: Tema: Futuro do Lixo

Com o CrESCimENto dAS CidAdES

NA VirAdA do SéCulo xix PArA o xx,

AlGuNS ProBlEmAS AmBiENtAiS

ComEÇArAm A FiCAr AGudoS

36

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Artigo // Jorge Alberto Tenório

utilizavam mais o que aprenderam com os gregos. Isso fez com que a Europa perdesse metade de sua população.

Em 1850, o francês Louis Pasteur (1822-1895) e o alemão Heinrich Hermann Robert Koch (1843-1910) começaram a descobrir cientificamente aquilo que os gregos já sabiam: a relação entre vírus, bactérias e higiene. A partir dessas descobertas, começou a haver o incentivo ao desenvolvimento da engenharia, para construção de estações de tratamento de água, aterros projetados, técnicas de conservação de alimentos e surgiram os primeiros incineradores na Europa – tecnologia hoje bastante discutida, mas que, se usada da maneira correta, funciona.

Na última década do século XIX, os norte-americanos começaram a usar a reciclagem em alta escala. Embora pareça recente, a reciclagem já está presente nos livros de metalurgia de centenas de anos atrás.

Com o crescimento das cidades na virada do século XIX para o XX, alguns problemas ambientais começaram a ficar agudos. Quando se veem os filmes de gângster, por exemplo, retratando aquela época, cidades como Chicago são mostradas sempre cinza. Isso porque o problema das cidades, nas décadas de 1920, 30 e 40, era a poluição atmosférica. Depois foram enfrentados os problemas de poluição dos rios, das águas – nas décadas de 1950 e 1960 foram despoluídos os rios Tâmisa, na Inglaterra, e Sena, na França.

A questão dos resíduos sólidos começou a ser discutida com mais profundidade a partir do caso do Love Canal, como ficou conhecido. Um sujeito chamado William Love, no final do século XIX, teve uma ideia: juntar dois lagos para construir um canal. Esse canal permitiria fazer a ligação entre os Grandes Lagos, uma região bastante desenvolvida do norte dos Estados Unidos e sul do Canadá. O canal permitiria fazer a navegação nessa região,

atravessando o local onde fica as cataratas do Niágara. O empreendimento começou, mas logo as obras pararam. Depois veio a crise econômica, em 1927, e aquele buraco, de 800 metros, ficou ali, aberto, ao lado de uma cidade. Rapidamente virou um depósito. Uma empresa da região colocou 20 mil toneladas de resíduos tóxicos químicos no buraco entre 1942 e 1953.

Em 1953 fecharam o buraco, enchendo-o. A cidade foi crescendo, até chegar perto dele. A população começou, então, a morar ao lado desse local, com a presença de 20 mil toneladas de resíduos químicos perigosos, de alta toxicidade. E em um terreno que, por estar perto dos Grandes Lagos, é tecnicamente chamado de região saturada. Ou seja, por ter bastante água, a difusão é bem mais rápida.

Até que, um dia, uma criança da vizinhança foi tomar banho em um córrego, ficou contaminada e morreu no mesmo dia. Isso ocorreu no final da década de 1970, quando o presidente dos EUA era Jimmy Carter, que foi até lá pessoalmente e fechou o local.

Essa é uma história clássica porque foi a partir dela que se começou a estudar resíduo sólido de verdade. O canal foi fechado em 1953 e o problema só apareceu 25 anos depois. Mas era uma bomba que estava pronta para explodir e as pessoas viveram mais de uma

Page 37: Tema: Futuro do Lixo

geração ali e não aconteceu nada. Este é um dos grandes problemas dos resíduos sólidos: temos muita coisa enterrada que pode estourar a qualquer hora. Por isso, é preciso usar o princípio da precaução para tratar esses resíduos.

O tema dos resíduos sólidos é, portanto, sistematicamente estudado no mundo todo há apenas pouco mais de 30 anos. Assim, sabemos resolver um problema de poluição de chaminé, de poluição de água, mas ainda não se conhece, até hoje, a melhor forma de lidar com todas as questões relacionadas aos resíduos sólidos, porque essa é uma ciência relativamente nova. Em 1987, surgiu a primeira norma brasileira sobre resíduos sólidos (a NBR 10004/87), que tem quase força de lei.

No final da década de 1980, começou-se a pensar no critério de sustentabilidade. Era a conscientização de que o mundo, que até então era visto como enorme – e tinha nióbio, vanádio e zinco para todo lado –, começou a ficar muito pequeno.

Produção de petróleo em bilhões de barris

O gráfico acima mostra como cresceu o consumo de petróleo no mundo ao longo do século XX. Se analisarmos a variação do consumo de qualquer outro produto, teremos essa mesma curva, pois ela representa o crescimento da população.

Então, em 1987, a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas estabeleceu como marco o conceito de desenvolvimento sustentável – definido como o “desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”, conforme texto publicado no Relatório Brundtland, elaborado pela comissão. Difundiu-se então a ideia de que o mundo não era mais tão rico quanto se pensava, não há água para todo mundo, e assim por diante.

A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, a Eco-92, revelou que, ainda hoje, “não menos de 5,2 milhões de pessoas, entre elas 4 milhões de crianças menores de cinco anos, morrem a cada ano devido a enfermidades relacionadas com os resíduos”.1

1 segundo a agenda 21, documento elaborado ao final do encontro.

fonte: Jorge alberto tenório

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Jorge Alberto Tenório // Artigo // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

30

25

20

15

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5

0

1900 1910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000

Page 38: Tema: Futuro do Lixo

fonte: Jorge alberto tenório

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Em 2010, depois de 18 anos tramitando no Congresso, conseguimos aprovar, no Brasil, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010), tema de nossas discussões atuais. Essa política prevê uma série de dispositivos para sua implementação, como a responsabilidade compartilhada, os 3Rs , os acordos setoriais, os planos de gestão e gerenciamento, as cooperativas, a logística reversa e a coleta seletiva, os instrumentos econômicos, o lixão zero e outros. Muito dessa discussão, que se iniciou em 2010, tem prazo para implantação: 2014.

No entanto, a realidade mostra que hoje, no Brasil, 50% dos resíduos – não em volume, mas em termos de pontos de destinação oficiais – ainda vão para os chamados lixões, os vazadouros a céu aberto. É com isso que não apenas a lei, o governo ou o ministério, mas a sociedade como um todo, quer acabar.

destino final dos resíduos sólidos por unidades de destino (%)

Fazendo uma estimativa a partir desse gráfico, e extrapolando-o, chegamos a outro. Ele mostra que, se continuarmos nessa velocidade, só extinguiremos os lixões em 2035. Daqui a mais de 20 anos.

destino final dos resíduos sólidos por unidades de destino (%)

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Artigo // Jorge Alberto Tenório

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0

1989 1991 1993 1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009

vazadouro a céu aberto

aterro controlado

aterro sanitário

100

90

80

70

60

50

40

30

20

10

0

1989 1994 1999 2004 2009 2014 2019 2024 2029 2034 2039

vazadouro a céu aberto

aterro controlado

aterro sanitário

fonte: Jorge alberto tenório

Page 39: Tema: Futuro do Lixo

fonte: ibge 2008

dEStiNAÇão FiNAl doS rESíduoS SólidoS domiCiliArES E/ou PúBliCoS

aterro controlado e aterro sanitário

aterro sanitário

aterro controlado

vazadouro a céu aberto (lixão) e aterro sanitário

vazadouro a céu aberto (lixão) e aterro controlado

vazadouro a céu aberto (lixão), aterro sanitário e aterro controlado

vazadouro a céu aberto (lixão)

Uma última figura mostra a situação em todo o Brasil. As regiões em azul, relacionadas ao aterro controlado e ao aterro sanitário , mostram onde a situação está em grande parte resolvida.

Segundo o governador Geraldo Alckmin declarou no seminário SP+Limpa, o estado de São Paulo praticamente erradicou seus lixões, eles ainda existem em pouco mais de 20 municípios de um universo de mais de 600. Mas toda a região sinalizada em marrom no mapa acima mostra onde ainda falta muito a ser feito no Brasil. Ou seja: falta muito ainda para a gente chegar lá.

39

Jorge Alberto Tenório // Artigo // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 40: Tema: Futuro do Lixo

“É imPortante Que as Pessoas saibam o Que estão fazendo com o lixo”

jorGE AlBErto tENório ANAliSA oS dESAFioS dA rECiClAGEm

entrevista

“A primeira coisa a fazer é separar os materiais que são recicláveis daqueles que não são”, aconselha o professor da Escola Politécnica da USP Jorge Alberto Tenório às pessoas interessadas em reciclar o lixo no seu dia a dia. Mestre e doutor em Engenharia Metalúrgica pela USP, onde leciona atualmente, Tenório tem como tema de pesquisa o tratamento e o reaproveitamento de resíduos sólidos. Em entrevista exclusiva ao Globo Universidade, o professor revela curiosidades sobre a reciclagem de materiais, de pneus a resíduos mais complexos, como pilhas e baterias usadas.

40

Page 41: Tema: Futuro do Lixo

41

Jorge Alberto Tenório // Entrevista // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Globo universidade – Como pequenas atitu-

des no dia a dia da população podem ajudar

na reciclagem de resíduos sólidos? de que

forma as pessoas podem se conscientizar

da necessidade de reaproveitar o lixo?

jorge Alberto tenório – a primeira coisa a

fazer é separar os materiais que são reciclá-

veis daqueles que não são. É preciso separar

o lixo orgânico do restante. se a população

conseguir fazer o básico, já é uma grande

coisa. além disso, é preciso que as pessoas

utilizem materiais que tenham maior dura-

bilidade. então, por exemplo, em vez de usar

uma pilha normal, que dura apenas alguns

dias, é melhor usar pilha recarregável, que

terá durabilidade maior. em segundo lugar,

a população precisa se conscientizar de que

não deve deixar de usar algo só porque ficou

“velho”. mas isso é um problema, pois atu-

almente temos o costume de comprar algo

mais novo e jogar fora. o que precisa ser

feito neste sentido é dar educação às pes-

soas; a saída é educação. as pessoas só se

preocupam com o meio ambiente se forem

cidadãos, se alcançarem esse estágio de ci-

dadão na plenitude. É importante que as

pessoas saibam o que estão fazendo com o

lixo, porque, caso contrário, não terão moti-

vação para realizar algum tipo de reciclagem

ou evitar desperdícios.

Gu – Entre suas áreas de pesquisa estão

a reciclagem de alumínio e a de pneu.

Que produtos podem derivar dos proces-

sos de reciclagem desses materiais?

jAt – o alumínio, por exemplo, volta a ser

alumínio. É muito simples. Já os pneus so-

frem um processo de vulcanização e o siste-

ma reverso não é muito eficaz. normalmen-

te, o procedimento mais utilizado para os

pneus é o aproveitamento energético, por-

que a queima correta do seu material, em

um local adequado, fornece mais energia

do que a queima de carvão, por exemplo.

chamamos esse procedimento de recicla-

gem quaternária, que, em termos técnicos,

significa reaproveitamento energético. o

pneu, ao contrário do alumínio e das latas

de refrigerante, por exemplo, não volta a

ser borracha para fabricar outros pneus.

as latinhas têm um ciclo: depois de 30 dias,

elas voltam a ser latinhas. mas a maior par-

te dos materiais não volta para o ciclo, tor-

na-se matéria-prima para outros objetos.

Gu – Como é feito o reaproveitamento de

pilhas e baterias?

jAt – uma pilha de rádio, por exemplo, é

composta por um sistema com muitos mate-

riais, complexo. uma pilha normal tem zinco,

aço, papel, cobre e diversos outros materiais.

uma carcaça de aço pode ser separada e tor-

nar-se qualquer material de aço. no entanto,

alguns materiais das pilhas, como o plástico

que as envolve, não são recicláveis. no caso

de uma placa de circuito impresso, há uma

resina na qual são colocados os componen-

tes eletrônicos, como capacitores e resisto-

res, que não é reciclável, mas tem o cobre,

que se recicla. É a mesma ideia da pilha: os

componentes do material são separados

para reaproveitamento, para tornarem-se,

ou não, um outro objeto.

Gu – Você pode nos contar um pouco

sobre as atividades do Centro multidis-

ciplinar de Estudos em resíduos Sólidos

urbanos (Cersol)?

jAt – somos um grupo de professores, téc-

nicos e alunos de várias unidades da usP

que atuam na área de resíduos sólidos. lá

Page 42: Tema: Futuro do Lixo

42

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Entrevista // Jorge Alberto Tenório

realizamos fóruns, debates, pesquisas e

reuniões para discutir nossos resultados.

estudamos, por exemplo, as iniciativas dos

catadores de são Paulo. nesse núcleo, te-

mos estudos sobre medicina ocupacional; eu

pesquiso a tecnologia que pode ajudá-los.

e, nesse sentido, pensamos desde a forma

como eles devem separar o lixo até como

compactá-lo; orientamos sobre os tipos de

dispositivos que eles devem utilizar para se-

parar e cortar os materiais, sobre para onde

devem enviar os materiais separados e sobre

o grau de pureza que eles têm.

Gu – Que países podem ser citados como

referência em processos de reciclagem

de resíduos sólidos?

jAt – eu destacaria os processos de reci-

clagem existentes na europa, estados uni-

dos, canadá, austrália, Japão e coreia. em

relação a modelos ambientais, ressalto que

suécia e países da península escandinava,

além de inglaterra e alemanha, estão bas-

tante desenvolvidos.

Gu – Quais são os principais impactos

causados pelo acúmulo do lixo e descarte

irregular em São Paulo? o que está sendo

feito para tentar solucionar essa questão?

jAt – o principal impacto do lixo está rela-

cionado às doenças que ele traz. no brasil

inteiro, não só em são Paulo, existem mi-

lhares de pontos com lixo acumulado a céu

aberto. o problema começa com um animal

que se aproxima, como um rato, que leva-

rá a doença ao ser humano. Para melhorar

essa questão, temos agora a Política nacio-

nal de resíduos sólidos, que é um marco na

história do brasil. e isso está causando uma

verdadeira revolução, que será visível à po-

pulação.

Gu – Que dica você daria para os estu-

dantes que pretendem seguir seus estu-

dos na área da reciclagem?

jAt – a primeira coisa a fazer é estar sem-

pre bem informado, a mídia tem muitas in-

formações. então, leia jornais e veja infor-

mações na internet. o principal é ler bas-

tante e estar sempre muito atualizado, por-

que a tecnologia e o conhecimento de hoje

vão servir sempre para os próximos anos. a

ciência em resíduos sólidos é muito nova, os

problemas de resíduos sólidos passaram a

ser conhecidos e estudados somente a par-

tir do final da década de 1970. então, é im-

portante estar sempre estudando.

Page 43: Tema: Futuro do Lixo

43

Page 44: Tema: Futuro do Lixo

4444

artigo

oS CAtAdorES E A mudANÇA dE VidA NAS CidAdES

A reciclagem tornou-se uma alternativa concreta para a promoção da inclusão social, da geração de trabalho e da renda para segmentos expressivos da população em situação vulnerável

Eles são personagens conhecidos há séculos, tendo sido representados na poesia, no teatro, na literatura e no cinema. Os catadores de materias recicláveis – antes chamados de garrafeiros ou sucateiros – desenvolvem hoje um papel essencial nos grandes centros urbanos. Ao coletarem, triarem e redirecionarem os resíduos, eles assumiram setores aparentemente não lucrativos da economia. E mostraram como há muito valor escondido no meio do lixo jogado nas cidades.

Page 45: Tema: Futuro do Lixo

45

Maria Cecília Loschiavo // Artigo // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

iNCLUsão soCiAL

maria Cecília loschiavo

é professora

titular da faculdade

de arquitetura e

urbanismo da usP,

codiretora do Programa

de Pós-graduação

em ciência ambiental

(Procam) do instituto de

eletrotécnica e energia

da usP (iee) e do centro

multidisciplinar de

estudos em resíduos

sólidos (cersol).

integra o laboratório

de sustentabilidade

em tecnologia

de informação e

comunicação da

escola Politécnica

rESíduoS E SuStENtABilidAdE: CAmiNHoS dE trANSFormAÇãoMaria Cecília Loschiavo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP)

As mudanças climáticas, o rápido crescimento das cidades e as crises dos recursos naturais impuseram desafios extraordinários para a gestão dos resíduos sólidos. Mais do que nunca é preciso articular áreas de conhecimento e metodologias para enfrentar a complexidade crescente dessas questões.

Que caminhos poderão nos propiciar a transição da descartabilidade para uma economia baseada na sustentabilidade? Ou será que caminhamos inexoravelmente para uma situação de insustentabilidade, que ameaça o futuro e aponta para o “desfuturo”.

É nesse contexto que se coloca a problemática do resíduo. Uma coisa é certa: a relação entre desenvolvimento econômico e geração de resíduo é direta. Quanto mais próspero o país, mais resíduo é gerado. Lixo-resíduo e abundância-excesso são duas faces da mesma moeda. O resíduo depende fundamentalmente da riqueza econômica, mas em algumas partes do mundo há abundância e, em outras, escassez e pobreza. O lixo é um elemento onipresente na história da humanidade. Três mil anos antes de Cristo, o palácio de Knossos, em Creta, na Grécia, tinha seu próprio aterro, com camadas de terra.

No século XIX, em Paris, o chiffonnier (catador) fascinava escritores e artistas. Para Charles Baudelaire, o chiffonnier era um arquivista que selecionava o que a cidade grande descartava. Já no século XX, também a literatura brasileira e a dramaturgia documentaram a presença dos catadores, como o poema “O bicho”, de Manuel Bandeira (1947), ou a peça de teatro Homens de papel, de Plínio Marcos (1967), que retrata a realidade de trabalho de um grupo de catadores na cidade de São Paulo e a relação conflituosa com um atravessador.

Há 52 anos, o livro The waste makers, de Vance Packard, já nos alertava sobre as consequências do consumo hedonista e falava da “Idade do Desperdício”.1 Com uma visão apocalíptica, o autor antevia a cidade do futuro como a cidade do desperdício.

1 PacKard, vance. estratégia do desperdício. são Paulo: ibrasa, 1965.

Page 46: Tema: Futuro do Lixo

46

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Artigo // Maria Cecília Loschiavo

Aliás, desde a Revolução Industrial, os padrões interativos do ser humano com o meio ambiente estão orientados prioritariamente pela busca de ganhos socioeconômicos em detrimento da preservação da natureza.

O apetite do mundo contemporâneo pelo consumo gerou expressivo crescimento na busca por matéria e energia e, também, a vertiginosa produção do descarte, em todas as escalas: individual, local, nacional e global. Os impactos socioambientais do sistema de produção, consumo e descarte hoje se constituem em um desafio de grandes proporções a um custo financeiro extremamente elevado. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que de 20% a 30% dos orçamentos das cidades são despendidos na coleta e disposição dos resíduos.2

Na cultura brasileira, o reúso dos materiais e produtos é prática corrente em vários âmbitos, seja na produção da habitação informal – veja-se, por exemplo, a montagem de barracos em favelas –, seja no design de objetos vernaculares – sobretudo no Nordeste e nos últimos 30 anos. E tudo isso se acentuou com a atividade dos catadores.

Nos últimos 30 anos, a catação se tornou uma forma de trabalho relevante em nosso país e os catadores estabeleceram as bases de uma economia em que o lixo de alguns se tornou o capital de muitos. Trata-se de um tipo de economia que cresceu aproveitando os vazios deixados pelo capitalismo – setores aparentemente não lucrativos da economia, que não haviam sido explorados pelo capitalismo. Dessa forma, foi estabelecida uma atividade econômica com forte viés ambiental.

2 The road from landfilling to recycling: common destination, different routes. luxemburgo: european environment agency/office for official Publications of the european communities, 2007.

Page 47: Tema: Futuro do Lixo

47

A reciclagem tornou-se alternativa concreta para promoção da inclusão social ao criar oportunidades de geração de trabalho e renda para segmentos da população em situação de vulnerabilidade social, particularmente os catadores de materiais recicláveis, que, em grande número, atuam informalmente, como agentes autônomos e dispersos, ou de forma organizada através de associações e cooperativas.

Nos anos 1980 surgiram as primeiras cooperativas e um número expressivo de pessoas passou a sobreviver da coleta de recicláveis, bem como o mercado da reciclagem começou a se consolidar no país. Hoje, o Movimento Nacional de Catadores de Recicláveis estima a existência de 1 milhão de catadores trabalhando em todo o Brasil.

O município de São Paulo ocupa posição pioneira na história da organização social dos catadores, uma vez que foi aqui, na Baixada do Glicério, que nos anos 1980, entre um pequeno grupo de moradores em situação de rua, surgiu a ideia de catar e vender materiais para conseguir recursos para celebrar a Páscoa. Isso levou à criação, em 1989, da primeira cooperativa brasileira de catadores, a Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Papelão, Aparas e Materiais Reaproveitáveis (Coopamare), que serviu de modelo e forneceu parâmetros para muitas outras que surgiram posteriormente, no país e na América Latina. Veja depoimento na página 49. Hoje existem diversos modelos de organização e operação de cooperativas no município, das consolidadas até aquelas que ainda estão em fase de estruturação.

Os catadores enfrentam sérios desafios: • flutuação do mercado de recicláveis;• atividade instável e sazonal;• colaboração com a prefeitura sempre sujeita à vontade política da administração;• ameaças às atividades dos catadores com a efetivação de políticas de expulsão,

sempre com a possibilidade de execução judicial de reintegração de posse das áreas ocupadas por eles.

Como professora da USP, ministro curso de graduação e oriento pesquisas de mestrado, doutorado e pós-doutorado sobre as atividades dos catadores e sou grata à Coopamare por receber meus alunos e também os estudantes estrangeiros que desenvolvem projetos para aprimorar as condições de vida e trabalho dos catadores, como, por exemplo, o projeto-piloto desenvolvido pelos alunos do professor Carlo Ratti, do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Leia mais sobre o projeto na pág. 63.

Entretanto, o conhecimento científico e tecnológico nessa área é bastante recente, existindo ainda um longo caminho a ser percorrido. Na verdade, a grande solução para os resíduos sólidos é aquela que prevê a máxima redução da quantidade de resíduos na fonte geradora.3 Afinal, o melhor lixo continua sendo aquele não produzido.4

3 manzini, ezio; carlo vezzoli. O desenvolvimento de produtos sustentáveis: os requisitos ambientais dos produtos industriais. são Paulo: universidade de são Paulo, 2002.

4 Pengue, Walter. La apropriación y el saqueo de la natureza: conflictos ecológicos distributivos en la Argentina del bicentenario. buenos aires: lugar editorial, 2008.

Para saber mais:

BOSI, Antônio de Pádua. A organização capitalista do trabalho “informal”: o caso dos catadores de recicláveis. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, no 67, p. 101-116, junho 2008

Lixo extraordinário (Brasil, 2009, 99 min) Direção: Lucy Walker

The road from landfilling to recycling: common destination, different routes. Luxemburgo: European Environment Agency/Office for Official Publications of the European Communities, 2007. Disponível em: http://bit.ly/SJzzfe

Maria Cecília Loschiavo // Artigo // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 48: Tema: Futuro do Lixo

48

Catadores escavam a cidade para estabelecer suas estratégias de sobrevivência.Catar é sinônimo de coligir, em latim colligere, que significa “pôr junto, juntar”.Os camponeses colhem a produção agrícola, como o trigo, e extraem seu alimento da terra.O catador de reciclável também colhe, mas num contexto completamente diferente.O camponês colhe o que ele planta, o catador colhe o resto, o descarte da sociedade de

consumo, produtos que originalmente ele próprio talvez jamais poderá consumir, expondo assim aquelas relações de abundância e escassez referidas anteriormente.

Quando descartamos alguns produtos e materiais, raramente sabemos qual o destino e quais rotas ele percorrerá.

Mãos anônimas dos catadores recolhem, selecionam, comprimem e acrescentam um valor reciclável a esses itens, abrindo assim novas possibilidades de transformação da matéria.

Pensar e repensar os caminhos de transformação dos resíduos, levando em conta as questões que emergem da experiência do tempo presente, é um projeto que requer uma indagação de fundo: o que é a transformação? De qual transformação estamos falando?

É forçoso admitir que se trata da transformação dos materiais, nas suas diversas cadeias: papel, plástico, alumínio, vidro etc.

Trata-se da transformação da cidade e de suas condições sanitárias.Trata-se da transformação das políticas públicas que, seguindo a letra da Política

Nacional de Resíduos Sólidos, reconhecem a legitimidade da participação do catador em todos os níveis, nos trazendo a rica oportunidade de repensar o modelo de inclusão dos catadores na gestão dos resíduos sólidos das metrópoles brasileiras.

Trata-se da transformação da história e das particularidades da cultura local.Trata-se da transformação de nós mesmos, de nossos rituais cotidianos de deposição-

-descarte, coleta-recuperação e reciclagem.Trata-se da transformação e reavaliação de alguns pontos estruturais do estilo de vida,

sobretudo no atual contexto de pós-industrialização e hiperconsumo, no qual todos os produtos parecem já ter sido criados e produzidos.

Mas trata-se, também, da transformação de vidas humanas, de biografias recheadas de luta, de histórias específicas, de diferentes ecologias, que trazem legados que ressoam em nossos corações.

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Artigo // Maria Cecília Loschiavo

Page 49: Tema: Futuro do Lixo

49

DEPoiMENTo

Por dENtro dAS CooPErAtiVASRepresentante da primeira organização de catadores de recicláveis de São Paulo conta como o trabalho mudou sua vida e abriu novas perspectivas para o futuroMaria Dulcinéia da Silva Santos, da Coopamare

“meu nome é maria dulcinéia, vim da cidade de imperatriz, do maranhão, para são Paulo

há 15 anos e desde então comecei a trabalhar na coopamare [cooperativa de catadores

autônomos de Papel, Papelão, aparas e materiais reaproveitáveis]. no começo havia mui-

tas pessoas, pois a coopamare recebia os carroceiros do entorno, da região toda, do centro

da cidade. eles vinham para vender o material coletado, porque a coopamare já era uma

cooperativa formada e pagava o melhor preço do mercado – comprava pelo mesmo valor

pelo qual depois vendia, tirando uma pequena porcentagem para manter as contas da coo-

perativa, já que a coopamare não tem convênio nenhum com a prefeitura, é totalmente au-

tônoma. nós mesmos bancamos nossas despesas e de lá também tiramos nosso sustento.

no início, foram tempos difíceis. foi muito complicado porque a gente atendia 250 carro-

ceiros por dia, morador de rua, em situação de albergue e aqueles que só queriam bader-

nar, fazer bagunça. era muita briga, muita cachaça, muita droga. foi muito complicado. eu

Maria Dulcinéia da Silva Santos // Depoimento // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 50: Tema: Futuro do Lixo

50

também participei dessa época de muita cachaça, me perdi um pouco, porque no ano em que

vim para cá perdi minha mãe – uma semana depois de eu ter chegado, minha mãe morreu.

acho que fiquei meio perdida, fiquei na rua durante seis meses. rua não é lugar para nin-

guém ficar, porque é realmente horrível. então comecei a beber. não usei droga, nunca usei

droga na minha vida, mas a bebida também é uma droga.

comecei a beber e a frequentar a coopamare. catava latinha e vendia na cooperativa para

consumir. eles tinham uma assistente social na época que se chamava glória. ela chamava

esse pessoal, que era muito bagunceiro e beberrão, uma vez por semana para participar de

umas conversas, frequentar reuniões dos alcoólicos anônimos [aa], explicar o que era uma

cooperativa, mostrar quais eram as facilidades de trabalhar nela e viver do ferro-velho... co-

mecei a frequentar essas reuniões às quintas-feiras.

agradeço muito essas reuniões e à glória, com quem perdi o contato, pelas conversas que

teve comigo e que acabaram me tirando da rua.

aluguei um quartinho de pensão, onde passei a morar, e a trabalhar direto dentro da coo-

perativa, catando material, tudo que era reciclável. comecei apenas com latinhas, e naquela

época havia latinha em abundância, a gente chutava latinha na rua, tinha muita. hoje você

procura e quase não acha. comecei a trabalhar diretamente, trazendo mais material além

das latinhas: vidro, papelão, ferro, tudo que era reciclável e eu encontrava na rua, trazia.

o tempo foi mudando, fomos lutando. cada prefeito que entrava na cidade queria tirar a

gente de debaixo do viaduto. era uma briga muito feia. chegava o mandado judicial, tínha-

mos 24 horas para sair de lá. levávamos cachorro, gato, crianças, para ver se a polícia não

tirava a gente de lá. na gestão do prefeito gilberto Kassab [iniciada em 2006], fizemos um

ato, abraçamos o viaduto com pessoas, tivemos o apoio da sociedade do entorno, da uni-

versidade de são Paulo, do movimento nacional de catadores. então

veio gente de todo o mundo, entupiram os e-mails da prefeitura. fi-

zemos esse abraço e ganhamos a cessão definitiva do local. graças a

deus isso parece estar resolvido – a não ser que entre outro prefeito

que queira mexer novamente. Pois vocês sabem que eles procuram

isso para fazer!

mas então ficamos lá e fomos limpando a cooperativa, tirando esse povo que era arruaceiro e

organizamos tudo. hoje estamos em um grupo pequeno de pessoas, mas a porta está aberta

para receber mais gente. somos 22 catadores hoje e nós mesmos nos mantemos. a única

renda que o pessoal tem vem do material reciclado.

a gente não tem noção de quanto material tiramos da rua e trazemos para dentro da coope-

rativa. mas sabemos o que sai: depois de separarmos e prensarmos, conseguimos vender de

80 a 100 toneladas de material reciclável por mês, com o trabalho dessas 22 pessoas.

dessas 100 toneladas vendidas, tiramos o valor da despesa da cooperativa, que gira em torno

de r$ 8 mil mensais, e o restante é dividido por hora trabalhada de cada um. com o que ganho

lá consigo pagar meu aluguel e criar uma filha que ganhei aqui em são Paulo naquela época

de arruaça. ela tem 10 anos, consigo mantê-la na escola e ainda estou tentando pagar um

cursinho particular para ela.

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Depoimento // Maria Dulcinéia da Silva Santos

dEPoiS dE SEPArArmoS E

PrENSArmoS, CoNSEGuimoS VENdEr

dE 80 A 100 toNElAdAS dE mAtEriAl

rECiClÁVEl Por mêS

Page 51: Tema: Futuro do Lixo

Além dE Eu tirAr A miNHA rENdA,

o mEu SuStENto, tAmBém EStou

tirANdo um PouCo do lixo QuE VAi

PArA oS AtErroS, PArA oS ESGotoS

51

a maioria das pessoas lá de dentro vive tendo como única renda a do material reciclado que a

gente retira na cidade de são Paulo. acho pouco, a gente deveria tirar mais, deveriam existir

mais cooperativas em cada bairro, porque tem muito material, tem trabalho para todo mun-

do que está desempregado na rua, jogado no esgoto, nas sarjetas. eu passei por essa vida de

sarjeta, fiquei seis meses na rua, é complicado.

a prioridade da coopamare hoje é tirar essas pessoas da rua e da situação de albergue também,

porque é uma droga, desculpa aí. Passei por alguns pernoites na minha época, infelizmente é

uma coisa assim: você tem hora para sair, hora para entrar, sai de manhã e só volta à noite, en-

tão de qualquer forma continua na rua. o albergue joga a pessoa de volta na rua, e se a pessoa

não tem um trabalho fica perambulando por aí.

o motivo da coopamare hoje pegar só pessoas de rua e em situação de

albergue é porque ela começou com a população de rua, lá na baixada

do glicério. a gente coloca a pessoa lá dentro para trabalhar, não te-

mos preconceito se a pessoa é drogada ou se é beberrão, se a pessoa já

passou pela polícia, se está em liberdade condicional. não, não temos preconceito nenhum, se a

pessoa é homossexual, não temos nada a ver com isso. a gente dá oportunidade para a pessoa

trabalhar, incentiva essa pessoa a sair da rua ou do albergue. com dois ou três meses, ela ganha

o suficiente para pagar um quartinho de pensão, perto da coopamare ou num bairro afastado,

que é bem mais barato. sempre conversamos com o pessoal que entra lá é assim.

a coopamare hoje é o meu local de trabalho, não troco por nenhum outro. Já trabalhei de

tudo: na roça, como doméstica, faxineira, um pouco de tudo, mas hoje trabalho na coopa-

mare com reciclagem, com muito orgulho porque, além de eu tirar a minha renda, o meu

sustento, também estou tirando um pouco do lixo que vai para os aterros, para os esgotos,

para os rios. estou ajudando um pouco com a minha contribuição, que acho que não é muito,

mas para o planeta já é um alívio. o que a gente retira das ruas não vai para os aterros e nem

para os rios. a gente está vendo os rios de são Paulo todos estragados.

minha história é esta. Quinze anos de coopamare, 15 anos de são Paulo também. É lá onde

vou me aposentar e passar o resto da minha vida. vou conseguir uma moradia digna para

deixar para a minha filha, para que ela possa fazer a faculdade que ela quer – de veterinária,

porque adora animais. aliás, por ela já tinha um monte de bichos em casa, mas como moro em

quarto de pensão não dá para criar nada.

o meu desejo, meu sonho, é que a sociedade tome mais consciência do que compra no mer-

cado para poder descartar, que compre realmente somente aquilo que a gente possa reci-

clar, porque tem muita embalagem que não é reciclável, não tem comprador e nem o próprio

fabricante se interessa em tirar do mercado. É um problema sério que as cooperativas têm.

a gente acaba jogando no rejeito, a empresa de coleta da prefeitura retira e a gente sabe

para onde aquilo vai. mas não é culpa da gente, que tenta ao máximo. o que eu peço a vo-

cês é que, futuramente, seus filhos e seus netos consumam menos coisas que a gente sabe

que não são recicláveis. Que possam pegar mais coisas recicláveis para dar renda para os

catadores e também salvar o planeta, porque a gente vê como está a situação do brasil, do

mundo, hoje.”

Maria Dulcinéia da Silva Santos // Depoimento // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Coopamare: Rua Galeno de Almeida, 659. Pinheiros, São Paulo. Tel. (11) 3064-3976

Page 52: Tema: Futuro do Lixo

5252

mAriA CECíliA loSCHiAVo AliA dESiGN A SuStENtABilidAdE

entrevista

A professora Maria Cecília Loschiavo defende a necessidade de mobilizar o design para as questões de gênero, desigualdade, precariedade, informalidade e pobreza urbana. Com um percurso acadêmico que partiu da filosofia para chegar ao design para a sustentabilidade, a pesquisadora concentra seus estudos nas relações entre o reúso dos materiais, os produtos e a inclusão social dos catadores de recicláveis. Em entrevista ao Globo Universidade, Maria Cecília Loschiavo conta como as pesquisas em suas áreas de atuação convergem para enfrentar os desafios trazidos pela disposição dos resíduos sólidos para a sociedade atual e as futuras gerações.

“É fundamental Pensar o humanismo e suas relaçÕes com o design”

Page 53: Tema: Futuro do Lixo

53

Maria Cecília Loschiavo // Entrevista // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Globo universidade – Como sua formação

em Filosofia está relacionada ao design?

Por que você decidiu se especializar

nessa área?

maria Cecília loschiavo – a filosofia é uma

ciência humana caracterizada basicamente

pela atitude interrogativa diante do mundo.

nesse contexto, passei a estudar aspectos

da cultura material no âmbito da estética e

concentrei minha atenção particularmente

no design.

em um mundo conturbado e ameaçado pe-

las mudanças climáticas e pela escassez de

recursos e com padrões insustentáveis de

consumo, é fundamental pensar o huma-

nismo e suas relações com o design. a pers-

pectiva humanista apresenta significativos

desdobramentos no âmbito da educação,

sobretudo no que diz respeito à formação

dos valores.

mais do que nunca há a necessidade de in-

tegrar os princípios da educação humanista

na formação do designer. nesse sentido,

trata-se de definir qual o papel das discipli-

nas teórico-críticas. essas disciplinas não

são auxiliares, mas aumentam o grau de

compreensão da realidade na qual o desig-

ner vai atuar e de sua própria atuação.

em nosso país, considerando os vários bra-

sis, ou, como quer o autor aloísio maga-

lhães,1 as distâncias “entre a pedra lascada

e o computador”, existe a necessidade de

mobilizar o design para as questões de gê-

nero, a desigualdade, a precariedade, a in-

formalidade, a pobreza urbana.

Gu – A seu ver, de que forma o design

atua a favor da sustentabilidade?

mcl – eu me especializei na área de esté-

tica e, dentro dela, no design, em um mo-

mento em que não havia programas de

pós-graduação na área de design no brasil.

graças aos mestres da faculdade de filo-

sofia, letras e ciências humanas da usP

pude realizar meus estudos pós-graduados

na área do design.

o design para sustentabilidade é uma fer-

ramenta que traz uma visão sistêmica e

complexa segundo a qual, a partir do mo-

mento em que conhecemos os problemas

ambientais e suas causas, passamos a influir

na concepção, na escolha dos materiais, na

fabricação, no uso, no reúso, na reciclagem e

na disposição final dos produtos industriais.

Gu – de que maneira essa visão multi-

disciplinar pode ajudar a resolver os

problemas causados pelo acúmulo de

lixo e descarte irregular?

mcl – as perspectivas filosóficas, socioló-

gicas, antropológicas e arqueológicas são

fundamentais no debate sobre resíduos.

apenas como exemplo vale lembrar que

coube ao sociólogo vance Packard,2 em

seu clássico livro The waste makers [1960],

apontar as consequências ambientais do

consumo excessivo no meio urbano. con-

temporaneamente, a obra do sociólogo po-

lonês zygmunt bauman constitui-se como

referência básica para a compreensão da

lógica das relações entre consumo, produ-

ção de resíduos e exclusão social das popu-

lações que sobrevivem do lixo. no âmbito

da antropologia, não há como não citar a

contribuição decisiva de mary douglas,3 em

Purity and danger [1966]. finalmente, o ar-

queólogo William rathje4 é outro referen-

cial consolidado, com o livro rubbish!: the

archaeology of garbage.

considero também altamente relevante a

relação entre resíduos e energia. a busca

1 MAGALHÃES, Aloísio. E Triunfo? A questão dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Fundação Roberto Marinho, 1997

2 PACKARD, Vance. Estratégia do desperdício. São Paulo: Ibrasa, 1965

3 DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 2012

4 RATHJE, William; MURPHY, Cullen. Rubbish!: the archaeology of garbage. Tucson: University of Arizona Press, 2001.

Page 54: Tema: Futuro do Lixo

54

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Entrevista // Maria Cecília Loschiavo

de economias baseadas na sustentabilida-

de transformou o resíduo e todas as tec-

nologias para seu tratamento em elemento

crucial no processo de globalização. assim,

a possibilidade do aproveitamento energé-

tico coloca-se como uma das alternativas

para o problema da disposição e valoriza-

ção econômica do resíduo.

no passado, os resíduos eram percebidos

como o ponto final das etapas de produção

e consumo e, portanto, a questão era ape-

nas a da sua disposição. nos dias de hoje,

com o movimento dos resíduos e dos mer-

cados globais que envolvem sua disposição

e reutilização, há desafios extraordinários a

enfrentar.

Gu – Que aspectos você destacaria no

trabalho dos catadores de recicláveis?

mcl – os catadores prestam um serviço

ambiental altamente importante no mane-

jo do resíduo no meio urbano. estão orga-

nizados com base em um tipo de economia

cooperativista, onde não há patrão nem

empregados. todos trabalham e todos par-

ticipam das decisões.

os catadores viram no resíduo uma pos-

sibilidade de recurso econômico, em um

momento em que o capitalismo ainda não

explorava esse nicho econômico. esse setor

não era considerado lucrativo, mas os cata-

dores, por força da necessidade de sobrevi-

ver, se organizaram para explorar o descar-

te e os resíduos urbanos.

Gu – de que forma a mídia pode chamar a

atenção da população para os problemas

causados pelo lixo?

mCl – os resíduos sólidos deveriam ser vis-

tos como um dos mais sérios problemas am-

bientais e de saúde pública da vida contem-

porânea, e as consequências de seu manejo

e disposição inadequados se refletem tanto

direta ou indiretamente na saúde da popu-

lação quanto na sobrevivência dos ecossis-

temas. esses custos ambientais e sociais

decorrentes de produção, manejo e dispo-

sição inadequada de resíduos são signifi-

cativos e crescentes. a lei no 12.305/2010

introduz no sistema legal brasileiro um es-

quema de responsabilidade compartilhada

e considera resíduo como resultado não de-

sejado da produção e consumo. nesse con-

texto, o papel da mídia é muito expressivo

para informar sobre a Política nacional de

resíduos sólidos, para difundir informação

e educação sobre resíduos a todos os seg-

mentos da população brasileira.

Page 55: Tema: Futuro do Lixo

55

Page 56: Tema: Futuro do Lixo

5656

artigo

PESQuiSA dE PoNtA rEVElA oS CAmiNHoS do lixo

Moderno sistema de rastreamento por meio de chip, criado por laboratório do MIT, mostra o que acontece com os resíduos sólidos depois que são jogados fora. As informações levantadas estão sendo usadas para otimizar os processos de remoção, da coleta à disposição final

O consumidor tem hoje condições de conhecer a origem de muitos produtos que adquire e identificar as etapas de sua cadeia de produção e o local de onde vieram seus componentes. No entanto, pouco se sabe sobre o processo inverso, sobre os caminhos exatos tomados pelo lixo depois que ele sai da porta de casa. O laboratório SENSEable City, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), se dedica a desenvolver sistemas capazes de rastrear os resíduos sólidos e identificar todos os passos em sua cadeia de remoção. A ideia é levantar o maior número de dados possível para tornar o processo mais sustentável e contribuir para mudar as atitudes do consumidor. O artigo a seguir mostra alguns desses projetos desenvolvidos pelo laboratório.

Page 57: Tema: Futuro do Lixo

57

Carlo Ratti // Artigo // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

TECNoLogiA

CAdEiA dE SuPrimENto versus CAdEiA dE rEmoÇãoCarlo Ratti, do Massachusetts Institute of Technology (MIT)

Neste artigo, nos dedicaremos a apresentar alguns dos trabalhos realizados no Laboratório SENSEable City, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), especialmente o nosso projeto de rastreamento de lixo, o Trash Track.

Nos últimos 10 a 15 anos, ocorreu um fenômeno interessante em diversas áreas. Antigamente, para ganhar uma corrida de Fórmula 1, por exemplo, era preciso um bom carro e um bom motorista, coisas físicas. Mas hoje, para vencer uma corrida dessas, é preciso uma série de aparelhos eletrônicos, sistemas de coletas de informação em tempo real da corrida e do carro que enviem dados para um computador, que os processa, analisa e toma decisões na mesma hora. Em engenharia, isso se chama sistema de controle de tempo real. Esse sistema é feito basicamente por dois componentes: um sensor e um atuador. Ou seja, coleta de informação e reação.

Esse sistema de sensores e atuadores está presente em todos os dispositivos eletrônicos e repete o que os seres humanos fazem: primeiro sentem (com os diversos sentidos, como o tato), depois reagem a essa informação.

Nosso trabalho concentra-se nas cidades. Por quê? Porque as cidades são cruciais. Elas cobrem 2% da crosta terrestre, abrigam cerca de 50% da população mundial, são responsáveis por 75% do consumo de energia e emitem 80% do CO2 do mundo. Se pudermos trabalhar com elas, certamente poderemos melhorar esses índices.

Atualmente acontece algo incrível: nossas cidades estão começando a se comportar como um carro de Fórmula 1. Estamos vivendo uma proliferação de dispositivos portáteis e de conectividade sem fio. Telefones celulares, laptops e outros transmissores miniaturizados estão se tornando cada vez mais comuns, criando novas dimensões de conexões entre as pessoas, lugares e infraestruturas urbanas.

Assim, as cidades têm hoje uma verdadeira cobertura digital, com diversas camadas. Por causa disso, a forma como entendemos e reagimos às informações está mudando. É quase como se todos os átomos no mundo físico se tornassem um sensor e um atuador.

Um dos primeiros projetos de nosso laboratório foi apresentado durante a Bienal de Veneza de 2006, o Real Time Rome. Com ele, pela primeira vez foi possível captar a dinâmica de uma cidade inteira em tempo real, monitorando telefones celulares. O objetivo desse

Carlo ratti, engenheiro

e arquiteto italiano, é

diretor do laboratório

senseable city, do mit.

coautor de mais de

200 artigos científicos,

ratti coordena diversos

programas, entre eles

o trash track. dirige

também um programa

em parceria com a

universidade de são

Paulo (usP) para

desenvolver dispositivos

para contribuir para o

trabalho dos catadores

de materiais recicláveis

da cooperativa

paulistana coopamare

Page 58: Tema: Futuro do Lixo

com imagens geradas

a partir de uso de

telefones celulares,

projeto revela

movimentação, em

roma, durante jogo da

final da copa de 2006

imagem 2

imagem 3

imagem 1

mit

sen

seab

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lab

mit

sen

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58

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Artigo // Carlo Ratti

mapeamento foi nos ajudar a entender de maneira mais profunda como as cidades modernas funcionam.

O estudo foi realizado durante a final da Copa do Mundo, em 2006, na noite de 9 de julho, quando a Itália conquistou o título. Enquanto as equipes da Itália e da França jogavam na Alemanha, observamos o que acontecia em Roma, analisando os dados de todas as redes de celulares na cidade.

Na Imagem 1, podemos ver como estava a cidade antes do início da partida, às 16h30. Há um uso de celulares de maneira praticamente homogênea em toda a cidade.

Quando começa o jogo, Roma é tomada por um silêncio geral, e praticamente somem as movimentações indicadas pelo uso de celular.

Tudo muda por volta das 22h30, minutos depois de o jogador francês Zinedine Zidane dar uma violenta cabeçada no zagueiro italiano Marco Materazzi. A intensidade das reações dos italianos foi captada pelo Real Time Rome, que mostrou grandes focos de movimentação entre os romanos.

Logo depois do término da partida, por volta das 23h daquela noite, o projeto registrou um novo pico: era a comemoração da vitória. Imagem 2

A grande celebração, no entanto, ocorreu no dia seguinte. No final da tarde, os romanos começaram a se dirigir principalmente para um local chamado Circo Máximo, onde, desde a época do Império Romano, as pessoas se reúnem, celebram, fazem festa. A imagem obtida por satélite registra o momento em que a seleção italiana chega a Roma – a movimentação maior, ao fundo, indica o local onde fica o Circo Máximo. Imagem 3

Page 59: Tema: Futuro do Lixo

dispositivo criado na

dinamarca transforma

bicicletas convencionais

em híbridas elétricas

mit

sen

seab

le c

ity

lab/

fot

os: m

ax t

omas

inel

li

59

Carlo Ratti // Artigo // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Fizemos outro projeto desse tipo em Copenhague, na Dinamarca. A ideia era ver como esse tipo de rastreamento pode servir para ajudar no trânsito. O mais fantástico em Copenhague é que lá o trânsito, que há algumas décadas era repleto de carros, hoje é formado por bicicletas. De 30% a 50% de todas as pessoas usam a bicicleta como meio de locomoção diário. Nossa ideia era, portanto, ver como a experiência dos ciclistas poderia melhorar.

Com o dispositivo desenvolvido pelo programa Copenhagen Wheel, bicicletas simples podem se transformar em elétricas híbridas, sem baterias adicionais ou fios, apenas com a instalação de uma unidade de sensor móvel. O sistema permite que o ciclista capte a energia dissipada enquanto pedala ou freia. Assim, ele pode economizar para quando precisar de um fôlego extra.

Controlado a partir de um smartphone, o sistema atua também como um personal trainer. Ele mede o nível de esforço realizado pelo ciclista e dá informações sobre sua capacidade física e seus objetivos com o exercício. Além disso, o sensor instalado nas rodas é capaz de fornecer informações sobre níveis de poluição, situação do trânsito, condições das ruas, tudo em tempo real. Assim, o ciclista pode fazer uso desses dados para planejar uma rota mais saudável.

Essas informações podem ser compartilhadas – de forma anônima, se o usuário quiser, ou em redes sociais como o Facebook –, alimentando um banco de dados geral de informações ambientais. O sistema, que já está em implantação – com a produção dessa roda –, é um novo meio de transporte para um mundo em transformação.

Esses foram exemplos de uma mudança na forma como entendemos a cidade, como coletamos informações e reagimos ou respondemos a elas. O nosso projeto Trash Track, de rastreamento do lixo, segue os mesmos moldes.

Quando pegamos um computador, com tudo o que há nele, todos os chips e componentes, podemos mapear onde ele foi produzido, como foi transportado e como se transformou em um computador. Mas daqui a alguns anos, quando esse computador virar lixo, o que vai acontecer com ele? Não sabemos. Às vezes ele acaba em lugares onde não deveria estar; em outros casos, segue para outros países, viaja para a Ásia, Europa, África etc. Será que há alguma coisa que podemos fazer para entender melhor como funciona esse fluxo?

Sabemos de onde vêm nossos objetos, sua cadeia de suprimentos, mas não sabemos para onde eles vão – a chamada cadeia de remoção, ou logística reversa, termo adotado pela Política Nacional de Resíduos Sólidos no Brasil. Se olharmos para essa cadeia de remoção, para ver o que acontece com o lixo quando o jogamos fora, no início do século passado, nos Estados Unidos, e hoje, veremos que o processo básico não mudou muito.

Outro problema dessa cadeia de remoção é que ela é, de certa forma, frágil. E o que acontece quando ela se quebra? Vimos o que pode ocorrer, há alguns anos, quando o sistema de coleta parou de funcionar em Nápoles e o lixo se acumulou pelas ruas.

Page 60: Tema: Futuro do Lixo

A justiça ambiental é outro ponto importante. Quando olhamos um mapa da disposição de lixo tóxico nos Estados Unidos,1 vemos a probabilidade de haver lixo tóxico em um bairro em relação a suas estatísticas socioeconômicas.

Outro tipo de mapeamento, elaborado pela agência ambiental americana, a United States Environmental Protection Agency (EPA), revela onde estão todas as instalações de disposição de resíduos no país, como centros de reciclagem, aterros etc. O que se pode ver nesses casos é que as pessoas reciclam mais quando há mais pressão e mais centros de reciclagem perto de suas casas – como é o caso da cidade de Nova York, por exemplo. Entretanto, há menos reciclagem em áreas com mais aterros, onde tudo o que for jogado será enterrado.

A nossa ideia então era a seguinte: será que havia uma forma de desenvolver uma etiqueta, um chip, e colocá-la no lixo para segui-lo ao longo do sistema sanitário de coleta? Faríamos algo como ocorre em exames médicos, nos quais se coloca um rastreador, um marcador

no sangue do paciente, para visualizar seu percurso. Será que podíamos fazer isso no sistema sanitário da cidade?

Desenvolvemos então um chip, uma espécie de etiqueta. Imagem 4 Ela funciona como um pequeno celular, um sensor que informa a localização dos objetos. Precisávamos garantir que fosse algo inquebrável e fizemos testes com tipos diferentes de equipamentos para garantir que esses sensores não quebrassem. Procuramos voluntários, usamos tipos de lixos diferentes, colocamos os sensores neles de diversas formas.

A hipótese era que, se pudéssemos usar essas “etiquetas inteligentes” para seguir nosso lixo, poderíamos revelar a destinação final de nossos objetos cotidianos e incentivar práticas sustentáveis. Em agosto de 2009, em Seattle, convidamos 500 pessoas para etiquetar seus lixos e seguimos um total de 3 mil objetos jogados fora.

Cada sensor dizia o caminho tomado por cada objeto e íamos acompanhando em tempo real. O percurso realizado por esses 3 mil sensores deu origem a um mapa. Imagem 5

1 united church of christ, commission for racial Justice. toxic wastes and race in the united states: a national report on the racial and socio-economic characteristics of communities with hazardous waste sites. new York: Public data access, 1987.

imagem 4

imagem 5

Programa inseriu chips

em etiquetas no lixo

e rastreou caminho

percorrido por resíduos

nos estados unidos

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CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Artigo // Carlo Ratti

Page 61: Tema: Futuro do Lixo

Para saber mais:

JACOBS, Jane. The death and life of great American cities. New York: Random House, 1961

NEGROPONTE, Nicholas. Being digital. New York: Vintage Books, 1996

RATTI, Carlo. The digital city. Grid unlocked. Wired, November 2009. Disponível em: http://bit.ly/YSARIu

RATTI, Carlo; CALABRESE, Francesco; KLOECKL, Kristian. Wikicity: real-time location-sensitive tools for the city. 2007. Disponível em: http://bit.ly/RFawvC

61

Carlo Ratti // Artigo // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

O que podíamos aprender com esses dados? Começamos a classificá-los segundo categorias diferentes, de acordo com o material. Assim, foi possível analisar, por exemplo, o percurso de dois cartuchos de impressora que seguiram para o mesmo lugar, na Califórnia. Enquanto um tomou uma rota mais direta, o outro fez o maior percurso identificado no programa: de Seattle foi até Chicago, para depois seguir para a Califórnia. Uma viagem de 6.152 km. Nesse caso, as emissões de carbono produzidas para levar esse cartucho até o destino final certamente zeraram os benefícios esperados com sua reciclagem. Isso porque o ponto final, na Califórnia, era de fato o local certo para a destinação do produto – uma empresa de recondicionamento de cartuchos que fornece para todo o país.

Por outro lado, o Trash Track revelou também destinações incorretas. Houve um ponto, por exemplo, que se destacou no mapa por estar recebendo muitos sensores. Mas ali ficava uma pedreira, um local de extração de pedras para uso na construção civil, que não deveria servir de aterro. Mas pudemos ver que, na prática, muito lixo estava sendo levado para lá.

Analisamos também uma lista elaborada pela EPA, que classifica todas as instalações de tratamento de lixo dos Estados Unidos. De acordo com as estatísticas levantadas pela agência ambiental, pudemos observar a distância dos deslocamentos feitos pelo lixo. Em resumo, vemos que os resíduos orgânicos e o lixo normal acabam indo para locais próximos. Mas resíduos mais sofisticados, de processamento mais complicado – como o lixo eletrônico, que precisa de tratamento especial –, podem acabar se deslocando milhares de quilômetros até sua destinação final.

A pergunta que se faz então é: qual é o ponto em que o custo de transporte de um resíduo se torna maior do que aquilo que se recebe de volta no processo de reciclagem? Em nosso estudo, coletamos as informações para que elas possam ser usadas em um projeto de engenharia, para ver como esse sistema de remoção pode ser melhorado.

Quando temos essas informações, podemos inclusive mudar atitudes. Se fico sabendo que, quando jogo uma garrafa plástica no lixo, ela não será reciclada, mas sim jogada em um aterro para ficar lá para sempre, posso tomar a decisão de não tomar mais água em garrafa plástica.

Por isso, nosso projeto se baseia em dois pontos: um lado é o da engenharia, estudar como podemos otimizar o sistema; o outro é o da mudança comportamental que pode surgir com essas informações.

Mas há um terceiro ponto, que foi descoberto por acaso. Temos outro projeto no laboratório do MIT, o Back Talk, que rastreia aparelhos eletrônicos. A cada ano, um grande número de computadores antigos sai dos Estados Unidos e é enviado para outros países para serem reutilizados. Sabemos muito pouco sobre o que acontece com esses dispositivos depois que chegam a seu destino. Com o consentimento dos novos proprietários, decidimos investigar como era essa segunda vida dos computadores – como ela era captada pelos próprios aparelhos. Quarenta laptops, munidos de sensores de localização e câmeras integradas, foram então enviados para diversos pontos do planeta, de Gana ao Nepal. A cada 20 minutos, esses computadores nos enviavam, automaticamente, informações sobre sua localização e uma foto. Assim, obtivemos cenas de bibliotecas, salas de aula, escritórios, casas etc.

Page 62: Tema: Futuro do Lixo

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Mas, recentemente, nosso laboratório no MIT foi assaltado. Um ladrão entrou e levou vários objetos, inclusive alguns desses computadores, que acabaram nos mostrando para onde foram levados. Além das informações de localização por GPS, recebemos também muitas imagens dos novos usuários dos computadores, revelando os suspeitos do furto. A polícia do MIT se encarregou da investigação criminal, mas o que aprendemos com esse incidente foi que, quando os objetos falam conosco, conseguimos ouvir histórias inesperadas. E, claro, também ficou a lição de que assaltar o MIT não é uma boa ideia!

Para finalizar, vamos apresentar um projeto que ainda está em andamento, por isso ainda não temos seus resultados finais. É o nosso trabalho realizado em parceria com a professora Maria Cecília Loschiavo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), que investiga como essas tecnologias de rastreamento podem ajudar os catadores de materiais recicláveis de São Paulo na Coopamare (Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Papelão, Aparas e Materiais Reaproveitáveis). Leia mais sobre esse projeto na página ao lado.

Hoje existe um conhecimento implícito no sistema sobre onde coletar esses materiais, como transportá-los etc. Tudo isso está registrado em tabelas e listas, em cadernos guardados pelos profissionais da Coopamare. A pergunta é: será que podemos fazer com que as pessoas, com um pequeno aplicativo, possam compartilhar, dentro da cooperativa, os locais onde vão coletar, indicar para onde vai o que é coletado, para tornar o sistema mais eficiente?

Para isso, estamos fazendo alguns rastreamentos, indicando as ruas e as rotas percorridas pela coleta, seja ela feita a pé ou por caminhão, mostrando como os catadores se movimentam pela cidade. Caso a pessoa esteja andando a pé, a questão topográfica também ganha importância no levantamento, já que São Paulo tem muitas ladeiras, trânsito etc.

Dois pesquisadores do laboratório SENSEable City, Dietmar Offenhuber e David Lee, participaram do levantamento de dados, trabalhando ao lado da professora Maria Cecília Loschiavo. Nosso objetivo final é aprender um pouco mais sobre esse processo, para torná-lo mais eficiente para as pessoas que de fato colocam a mão na massa – os catadores.

Para saber mais (cont.):

RATTI, Carlo; TOWNSEND, Anthony.

Social nexus. Scientific American,

September 2011. Disponível em: http://

bit.ly/VKMwF1

YAN, Lu; ZHANG, Yan;

YANG, Laurence T.; NING, Huansheng

(ed.). The internet of things: from RFID to the next-generation

pervasive networked systems. New York:

Auerbach Publications, 2009

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Artigo // Carlo Ratti

Page 63: Tema: Futuro do Lixo

Mais informações sobre o projeto

Forage Tracking: http://bit.ly/SJAr3m

cooperativa paulista teve rotas mapeadas por

pesquisadores do mit e da usP

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Projeto // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

tECNoloGiA A SErViÇo doS CAtAdorESVeja como funciona o Forage Tracking, projeto-piloto desenvolvido por pesquisadores da USP e do MIT para otimizar o trabalho das cooperativas de recicláveis

ProjETo

Poucas pessoas conhecem tão profundamente os caminhos e descaminhos dos materiais recicláveis em São Paulo como os catadores. Atuando há anos informalmente como os principais agentes da coleta seletiva na cidade, eles se estruturaram em cooperativas e retiram, diariamente, material reciclável de residências e empresas, o separam, preparam e revendem para a indústria, que o utiliza como matéria-prima.

Foi esse conhecimento adquirido por anos de prática que inspirou os pesquisadores Dietmar Offenhuber e David Lee, do laboratório SENSEable City, do Departamento de Planejamento e Estudos Urbanos do MIT, a se unirem a colegas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) para desenvolver um projeto para auxiliar esses trabalhadores. O projeto-piloto Forage Tracking está sendo realizado na Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Aparas e Materiais Reaproveitáveis (Coopamare).

O objetivo é desenvolver uma ferramenta de gestão participativa para melhorar a produtividade, a eficiência e o planejamento logístico das cooperativas.

O primeiro passo foi, a partir de sistemas de localização (como GPS), mapear as rotas percorridas pelos catadores e analisar o tipo de material recolhido nessas viagens. Com os dados reunidos, os pesquisadores pretendem desenvolver ferramentas colaborativas para informar, em tempo real, sobre as melhores rotas, o momento e o caminho certo a ser tomado para recolher os materiais. Atualmente, os catadores perdem muito tempo e dinheiro passando em locais onde estão habituados a fazer a coleta, sem ter a certeza do que vão encontrar.

O segundo passo do projeto será criar um website no qual moradores e empresas possam preencher um formulário indicando o tipo de reciclável disponível para descarte, o dia, o horário e o local. Assim, os catadores da cooperativa poderão se organizar para recolher o material com menos viagens e mais rendimento.

Page 64: Tema: Futuro do Lixo

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entrevistaCArlo rAtti PrEVê Como SErÁ A CidAdE do Futuro

A tecnologia pode ser o caminho para influenciar comportamentos e levar a mudanças de hábitos nas cidades do futuro. Essa é a aposta do professor Carlo Ratti, do MIT. Nesta entrevista exclusiva concedida ao Globo Universidade, Ratti fala sobre sua carreira e dá mais detalhes sobre o projeto Trash Track. Ele conta como surgiu a ideia de usar um chip eletrônico para rastrear o lixo e analisar o caminho percorrido pelos resíduos sólidos até chegarem a seu destino final. E como tudo isso pode ajudar na criação de cidades sustentáveis.

“o lixo não será mais algo fora de nossas PreocuPaçÕes”

Page 65: Tema: Futuro do Lixo

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Carlo Ratti // Entrevista // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Globo universidade – Você pode nos

contar um pouco sobre sua trajetória

acadêmica?

Carlo ratti – eu comecei a fazer engenha-

ria na École nationale des Ponts et chaus-

sées, na frança, e, depois, no Politecnico

di torino, na itália. em seguida, fui para

a cambridge university, no reino unido,

para estudar arquitetura. fiz isso porque

gostava de arquitetura. mas, no fim, tudo

funcionou em conjunto e passei a estudar

as cidades. É como steve Jobs disse: “se

você seguir sua curiosidade e interesses,

esses pontos vão se alinhar”. a única ques-

tão é que você só descobre isso mais tarde.

Gu – Como foi a evolução de suas pesqui-

sas no mit?

Cr – fomos influenciados pela abordagem

do mit media lab e pelo ambiente comple-

tamente interdisciplinar do mit.

Gu – Como surgiu o projeto trash track?

Cr – começou com uma ideia. imaginamos

um futuro no qual grandes quantidades de

lixo não se acumulassem nas periferias das

nossas cidades. um futuro no qual pudésse-

mos usar nosso conhecimento não só para

construir infraestruturas mais eficientes e

sustentáveis, mas também para promover

uma mudança de comportamento. nessa ci-

dade do futuro, nosso lixo não será mais vis-

to como algo fora das nossas preocupações.

Gu – Quais resultados o projeto trash

track mostrou até agora? Algum dado o

surpreendeu?

Cr – resultados mostraram quão surpreen-

dentemente longe o lixo viajou, espalhan-

do-se por todos os estados unidos. a aná-

lise dos caminhos percorridos, aliada aos

dados de uma base de conhecidas insta-

lações de tratamento de resíduos, revelou

três grupos distintos de trajetória: aqueles

que ficaram no limite da cidade – materiais

primariamente recicláveis; aqueles que

percorreram de 100 a 300 quilômetros de

distância; e outros que viajaram mais de 1,5

mil quilômetros. em grande parte, esse úl-

timo grupo era composto por lixo eletrônico

e perigoso, enviado para reciclagem espe-

cializada em outros estados.

Gu – Como são classificadas as catego-

rias do lixo no projeto?

Cr – nós nos perguntamos: o lixo está indo

para onde deveria ir? a partir disso, classi-

ficamos as trajetórias percorridas pelos re-

síduos sólidos em 11 categorias e o destino

final, em cinco tipos. com isso, descobrimos

que mais de 95% dos caminhos percorridos

pelo lixo alcançaram um destino final com-

patível com o que deveriam ter. no entan-

to, ficamos preocupados com as categorias

especiais de resíduos, como celulares, lixo

eletrônico e resíduos domésticos perigosos,

e suas respectivas localizações geográficas

originais. em geral, os itens dispostos em

zonas rurais e periferias foram os mais pro-

pensos a acabar em um aterro sanitário em

vez de ir para um centro de reciclagem ou

uma empresa de processamento especial

de lixo.

Gu – Quais são os benefícios trazidos

pelo projeto?

Cr – constatamos que itens como vidro,

metal, papel e plástico são significativa-

mente mais prováveis de acabar em uma

instalação de reciclagem do que em um

aterro, confirmando que materiais cole-

Page 66: Tema: Futuro do Lixo

66

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Entrevista // Carlo Ratti

tados por meio das lixeiras especiais para

reciclagem são tratados diferentemente

quando comparados ao lixo comum.

observando quão longe alguns itens via-

javam, reavaliamos os benefícios da reci-

clagem de uma perspectiva da quantida-

de de carbono gasta no percurso. Quando

comparamos a economia de carbono feita

entre o transporte dos itens e o processo

final de tratamento, temos uma estimativa

completa da energia final utilizada em cada

item. itens como vidro, metal e plástico ge-

ram emissões relativamente insignifican-

tes durante o seu transporte devido a sua

distância média de viagem, que é pequena.

contudo, o impacto das emissões de carbo-

no no transporte de materiais que percor-

rem distâncias mais longas até chegar a seu

destino final deve ser levado em considera-

ção. Por exemplo, em nosso estudo, alguns

tipos de lixos domésticos avaliados como

perigosos e os eletrônicos percorrem uma

trajetória tão longa de viagem até che-

gar às instalações finais de reciclagem

que a emissão de carbono para seu trans-

porte não compensa os benefícios tra-

zidos pela reciclagem desses materiais.

novos desdobramentos são necessários

para se chegar a resultados mais gerais

sobre a pesquisa, mas enquanto isso

acreditamos que estudos similares pos-

sam aumentar o conhecimento e a atu-

ação dos sistemas de manejo do lixo – e,

em um nível pessoal, reduzir as atitudes

despreocupadas em relação ao descarte

dos resíduos sólidos.

Page 67: Tema: Futuro do Lixo

67

Page 68: Tema: Futuro do Lixo

debate

Page 69: Tema: Futuro do Lixo

debate

Page 70: Tema: Futuro do Lixo

debate

idEiAS Em diSCuSSão

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Durante o seminário SP+Limpa, realizado na

Universidade de São Paulo, no dia 5 de junho de 2012,

houve uma sessão de perguntas após a apresentação

das palestras. O público fez perguntas aos

palestrantes, ampliando e enriquecendo a discussão

trazida em suas exposições

Page 71: Tema: Futuro do Lixo

71

Debate // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Pergunta para sabetai calderoni: gostaria que o senhor explicasse quais são os custos para

implantação de centrais de reciclagem e desenvolvimento de tecnologias para reciclagem

e reutilização, visto que esse investimento parece alto.

sc: as tecnologias envolvidas são muito simples. existem alternati-

vas mais complexas, mais caras, e é preciso avaliar a viabilidade eco-

nômica, social e logística de cada uma delas. a tecnologia de tria-

gem de resíduos, por exemplo, envolve tecnologias extremamente

simples: uma esteira ou uma mesa. outra tecnologia muito interes-

sante é a da compostagem. ela também é muito simples, econômi-

ca, e resulta em grande economia para a prefeitura, gerando água

que pode ser reaproveitada. outro exemplo é em relação ao entulho

de construção civil. bastam um martelo e uma peneira. Já os biodi-

gestores exigem tecnologia mais sofisticada, pois são equipamentos

mais complexos e muito caros, mas não são necessariamente aplicá-

veis no nosso contexto econômico, embora tenham uma vantagem

sobre a compostagem: a obtenção de energia elétrica. a grande no-

vidade nessa área é o gaseificador. ele aceita qualquer tipo de ma-

terial e não é um equipamento poluidor, pois não é um incinerador.

consegue produzir energia elétrica a partir do lixo de banheiro, por

exemplo. hoje esses materiais vão para aterros – e poderiam deixar

de ir – e são de difícil aproveitamento. o gaseificador é um equipa-

mento muito barato e hoje é possível fazê-lo no brasil. antigamente

não existia essa possibilidade. ele evita que tenha de se levar para o

aterro aquilo que ainda pode ter algum aproveitamento econômico.

e, lógico, é sempre muito melhor aproveitar os materiais para rein-

troduzir no processo produtivo.

os custos para implantar uma central de reciclagem podem, portan-

to, ser bem baixos, se usar tecnologias simples como compostagem,

triagem numa mesa para lixo domiciliar e alguma coisa para entu-

lho. Para atingir uma população de 200 mil habitantes, pode-se criar

algo na ordem de r$ 500 mil ou até alguma coisa mais sofisticada

Page 72: Tema: Futuro do Lixo

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CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Debate

custando r$ 5 milhões. os investimentos necessários variam muito.

a questão logística é sempre muito importante, como demonstram

as pesquisas do professor ratti. Pode-se ter um custo muito eleva-

do em transportes e altamente consumidor de energia para tratar o

lixo. atualmente o tratamento de resíduos envolve uma gigantesca

operação de transporte. reduzindo esse custo, conseguimos dar um

gigantesco ganho para o processo como um todo. É preciso, tam-

bém, remunerar aqueles que atuam nas cooperativas e em centrais

de reciclagem, porque, a cada tonelada que eles reciclam, estão

evitando que essa tonelada seja transportada a um custo gigantes-

co e também evitam que ela acabe sendo aterrada a altos custos,

que são ainda crescentes no futuro, tanto em termos de transpor-

te como de área disponível, porque ela fica cada vez mais cara. Por

evitar esse custo gigantesco, devem ter direito a compartilhar esses

ganhos com a prefeitura e com a sociedade como um todo.

Pergunta para sabetai calderoni: as autoridades citam aterros sanitários como cenário

ideal, mas sabemos que essa é uma solução cara para o meio ambiente e para a sociedade.

nos dias de hoje, não deveríamos optar por soluções mais avançadas? Por que motivos isso

não acontece como deveria?

sc: É tão bom reciclar, por que não fazem? essa é uma boa pergun-

ta. acontece que fazem numa certa medida. Quem passa pela ave-

nida Paulista, em são Paulo, vê caminhões recolhendo papel todos

os dias. o setor privado se organiza, cria uma vasta rede de catação

na cidade, paralela às cooperativas. chega-se a 20% de reciclagem,

enquanto a prefeitura só consegue reciclar 1,5%. também não é

verdade que não existe, que não se faça. a reciclagem acontece no

brasil, por exemplo, no caso do papel, o material mais abundante.

ela acontecia desde antes da indústria do papel, é uma coisa mui-

to antiga. da época em que “sucateiro” se chamava “garrafeiro”

e ia passando pela rua gritando “garrafeiro!”, para coletar vidro

etc. mas pode-se fazer muito mais, chegando aos us$ 10 bilhões

de economia todos os anos no brasil. o que está impedindo isso?

em primeiro lugar, ainda existem contratos de longa duração com

aterros, de 15, 20 anos. a ruptura dos contratos é um processo gra-

dativo, paulatino. segundo: as prefeituras ficam assustadas com a

perspectiva de novos custos. houve também um processo de lobby

muito grande no brasil, de empresas estrangeiras oferecendo equi-

pamentos que nem sempre davam certo, eram vendidos para as

prefeituras e depois acabavam dando problemas, não conseguiam

Page 73: Tema: Futuro do Lixo

73

operar adequadamente. houve maus exemplos também, experiên-

cias negativas como a da central de reciclagem do caju, no rio de

Janeiro, que foi implantada e depois virou uma sucata. as opções

atuais são muito recentes. a Política nacional de resíduos sólidos

tem apenas dois anos, e a legislação que permite as parcerias públi-

co-privadas (PPPs) foi implantada no começo de 2005. só agora as

prefeituras começam a perceber que podem se desonerar desses

custos e acoplar esse mecanismos de PPP com o trabalho das coo-

perativas. esse binômio seria um modelo sensacional para o brasil.

não aconteceu antes porque não havia a legistação das PPPs, os

contratos são muito longos, havia a pressão internacional por esses

lobbys de tecnologias muito complicadas, além da falta de hábito e

resistência cultural. isso está mudando, há uma revolução em curso

no brasil.

Pergunta para maria cecília loschiavo: a partir de sua experiência, com a inclusão de as-

sociações e cooperativas na Política nacional de resíduos sólidos, qual é a perspectiva de

melhoria das condições de trabalho e garantia de saúde desses trabalhadores?

mcl: essa questão é extremamente relevante e a universidade de

são Paulo está atenta a ela. o nosso centro multidisciplinar de es-

tudos em resíduos sólidos [cersol] conta com a participação da fa-

culdade de medicina da usP e estamos com um projeto na funda-

ção de apoio à Pesquisa no estado de são Paulo [fapesp] tratando

especificamente das condições sanitárias que envolvem o trabalho

dos catadores. É claro que há um elemento de fundo que é a cons-

cientização dos catadores. o movimento nacional de catadores de

materiais recicláveis está atento a essa questão e está atuando em

parceria com a faculdade de medicina para tratar especificamente

das questões sanitárias envolvendo a mão de obra dos catadores.

É uma questão complexa. nós, na universidade, estamos nos orga-

nizando para responder a essas novas demandas, desenvolvendo

novos currículos acadêmicos voltados para as questões de susten-

tabilidade. É muito importante sensibilizarmos a sociedade e esta-

belecermos uma maior consciência e percepção da comunidade em

relação a essa problemática, porque todos nós estamos envolvidos.

os catadores, como pudemos ver no depoimento de maria dulcinéia

da silva santos, da coopamare, enfrentram uma situação de fragili-

dade não só sanitária, mas também educacional e psicológica, e pre-

cisamos ficar atentos a isso.

Debate // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 74: Tema: Futuro do Lixo

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Pergunta para maria cecília loschiavo: sendo os catadores atores essenciais na cadeia de

resíduos sólidos, eles não deveriam ser remunerados pelos serviços prestados à sociedade?

Qual seria a luta para avançarmos nesse sentido?

mcl: É importante ressaltar que a aprovação da Política nacional

de resíduos sólidos contou com uma participação ativa dos cata-

dores – o movimento nacional dos catadores participou de todas as

reuniões dos comitês interministeriais que levaram à aprovação da

lei. então, os catadores estão participando ativamente da decisão

desses aspectos da política nacional.

sobre a remuneração, o instituto de Pesquisa econômica aplicada

[ipea] está realizando uma pesquisa ampla para estudar a possibi-

lidade de pagamento aos catadores por serviços ambientais pres-

tados – serviços que são, de fato, de grande relevância no manejo

das questões de resíduos no âmbito urbano para as cidades bra-

sileiras. no município de são Paulo, temos apenas 1% de coleta

seletiva realizada, algo praticamente irrelevante. a participação

dos catadores é fundamental e eles prestam esse serviço público

para todos nós, cidadãos, e esse serviço precisa necessariamente

ser balanceado num custo que está sendo discutido. acredito que

o estabelecimento desse valor não é só uma decisão de gabinete a

ser tomada, mas é uma decisão da qual toda a sociedade precisa-

rá necessariamente participar.

Pergunta para maria dulcinéia da silva santos: o que você acha que a prefeitura de são

Paulo devia fazer para os catadores e não faz? o que está faltando?

mdss: está faltando tudo. uma infraestrutura adequada para

o pessoal trabalhar, com equipamentos adequados, como pren-

sa, balança, caminhões para fazer as coletas, empilhadeiras para

a gente evitar carregar peso. graças a deus temos empilhadeiras

hoje na coopamare, mas não às custas da prefeitura, foi um projeto

feito por nós. o que falta da prefeitura, mesmo, é estender o braço

para as cooperativas e ajudar. eles dizem ajudar algumas centrais

de reciclagem, mas eu conheço algumas delas e vejo que a parceira

deixa muito a desejar. Por isso a coopamare ainda não estabele-

ceu convênios com ela. estamos instalados em uma área nobre da

cidade e não temos como estabelecer o convênio porque a prefei-

tura não quer tirar do pacote o caminhão compactador. esse tipo

de caminhão não só inclui, no meio do material coletado, resíduos

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Debate

Page 75: Tema: Futuro do Lixo

75

não recicláveis, misturam todos os resíduos e moem tudo, aí fica

difícil de trabalhar. estamos em uma área rica da cidade, com mui-

tas residências bonitas, prédios. não queremos atrapalhar a vida

da sociedade do entorno.

se a prefeitura oferecesse mais incentivos, se colocasse um órgão

definitivo para cuidar das cooperativas, desse infraestrutura ade-

quada para os catadores trabalharem e melhorarem suas condi-

ções, tenho certeza de que ela conseguiria resolver o problema do

lixo que está sendo jogado no aterro e faria uma economia muito

grande. a prefeitura gastaria pouco estruturando essas cooperati-

vas, não gastaria nem um terço do que gasta com os aterros e com

os contratos com as empresas de caminhões que retiram os ma-

teriais. bastava instalar uma cooperativa em cada bairro, colocan-

do pessoas para trabalhar, fazendo a coleta seletiva corretamen-

te, com a participação do catador. o que eles fazem atualmente é

manter apenas um caminhão e um funcionário da empresa, que re-

colhem de tudo, porque ganham por tonelada. eles colocam dentro

do caminhão o que querem, apenas para encher o carro, não estão

preocupados em saber para onde vai aquele material, não estão

preocupados com a saúde do pessoal que lida com aquele material.

eu participei um pouco da fundação da coopere, cooperativa criada

em 2003 pela prefeitura em parceria com outras três, a coorpel, a

coopamare e a recifran. no começo havia tanto material jogado lá

pela prefeitura que as três cooperativas parceiras paravam o seu tra-

balho normal às 17h e iam prestar ajuda à coopere das 17h às 22h. ló-

gico que a gente ganhava um extra por isso, mas até cachorro morto

a gente encontrou no meio do material. isso é um absurdo. esses ca-

minhões que eles contratam por aí não fazem coleta seletiva com o

catador. se eles contassem com a participação do próprio catador,

tenho certeza de que não iria nenhum lixo para as cooperativas.

Pergunta para carlo ratti: como podemos mudar o caminho que o lixo percorre para che-

gar ao destino? Podemos ter atalhos no sistema de reciclagem?

cr: a minha resposta é sim. o nosso parceiro no primeiro projeto,

realizado em seattle, era uma empresa de gerenciamento de de-

jetos. eles nos disseram que o problema é que todo mundo fazia

apenas um pedaço da cadeia, e por causa disso ninguém olhava

para a cadeia de forma ampla, geral. o primeiro passo é coletar a

Debate // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 76: Tema: Futuro do Lixo

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informação, entender o que acontece com o sistema como um todo.

depois podemos usar essa informação para deixar o sistema mais

enxuto, mais otimizado. do ponto de vista dessas empresas de ge-

renciamento de resíduos, eles sabem que há grandes economias a

serem feitas com esse processo. o primeiro passo é, de fato, enten-

der o que está acontecendo. É difícil, pois cada pessoa está envol-

vida com apenas um segmento dessa cadeia, não vê o quadro todo.

Pergunta para carlo ratti: a segunda pergunta tem a ver com o esforço que os estados

unidos e outros países estão fazendo para elaborar programas de reciclagem. você acha

que para cuidar do lixo é preciso cuidar da educação antes?

cr: sim, claro. a educação é crucial, pois conhecimento é o que leva

à mudança de comportamento. e receber informação do sistema

ajuda a mudar o comportamento. a educação é uma outra parte

dessa cadeia: dados, conhecimento, educação e, aí sim, mudança

de comportamento. temos o exemplo holandês, em que 65% a 70%

do material é reciclado. na alemanha o nível é parecido, ou seja, a

reciclagem pode chegar a níveis altos, pode ser um grande negócio.

isso depende de legislação, mas mais do que isso depende de edu-

cação e do nosso comportamento.

Pergunta para Patrícia iglecias: a sustentabilidade é baseada em três pilares, o ambiental,

o social e o econômico. entretanto, a hierarquia entre eles é totalmente subjetiva. se pe-

garmos como exemplo o caso recente da discussão sobre a proibição ou não da distribuição

gratuita de sacolas plásticas pelos supermercados,1 vemos que só haverá uma solução a

partir de uma definição de escala hierárquica entre o ambiental, o social e o econômico. a

quem compete o estabelecimento dessa hierarquia? ao estado?

Pi: esse é um ponto muito importante: o não estabelecimento da

hierarquia. afinal de contas, quem está voltado para o setor econô-

mico enxerga mais esse lado, assim como o ambiental só vê o lado

ambiental, e assim vai. essa é a dificuldade, uma falta de equilíbrio

com relação a esse tema. essa polêmica recente em torno da proibi-

ção do fornecimento de sacolas de plástico nos supermercados tem

um importante papel educativo, mas também outros fatores eco-

1 Em janeiro de 2012, começou a vigorar um acordo efetivado entre o governo de São Paulo e associações de supermercados para banir a distribuição gratuita de sacolas plásticas nos estabelecimentos. Meses depois, o Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) decidiu não validar o termo, entendendo que ele feria os direitos do consumidor. A proibição foi, então, suspensa.

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Debate

Page 77: Tema: Futuro do Lixo

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nômicos por trás. em um primeiro momento, por exemplo, exigiu-

-se que as sacolas plásticas fossem retiradas dos supermercados, e

só deles. então fica a pergunta: por que só esse setor? além disso,

a exigência de que fossem substituídas por sacolas biodegradáveis

também envolve outras questões, pois seu uso correto também

depende de uma série de condições. então, vários fatores incidem

sobre esse tema.

mas eu não gostaria de falar contra esse programa, porque pen-

so que, do ponto de vista educativo, ele é bastante interessante.

ambientalmente falando, é interessante. Quem vai decidir a força

maior? na própria legislação temos uma sistemática que coloca um

certo parâmetro, mas o poder público tem um papel fundamen-

tal; nesse caso, de dizer exatamente aquilo que se pretende. mas

muitos discursos são demagógicos e, dependendo do público ou da

situação, são encaminhados para esse ou para aquele lado. nesse

caso, também cabe uma certa pressão da sociedade para que se

defina qual é essa agenda. e, se a sociedade não pressionar, vai ser

o parâmetro de quem tem mais força.

Pergunta para Jorge alberto tenório: como realizar um trabalho de sustentabilidade a

longo prazo em um mundo voltado para o prazo curto, em países tão consumistas? como

resolver isso?

Jat: não sei se somos tão consumistas assim. vamos começar

a quebrar esse paradigma. se eu oferecer, por exemplo, um dis-

quete. alguém quer? eu tenho um novinho, pouco uso, formatado.

alguém quer? ou uma fita cassete, um walkman? alguém quer?

não, mas todos hoje querem um aparelho celular – e não estou fa-

lando de consumismo – com despertador para me acordar de ma-

nhã, que grave o que estou falando, que faça filmes e que tire fotos

com mais de 5 megapixels, que tenha pelo menos uma memória

de 8, 10 mega, que consiga entrar nas redes sociais, que navegue

na internet, que tenha gPs e que seja um telefone, fora algumas

coisas que esquecemos de falar. a gente quer isso, precisa disso.

Qualquer computador hoje provavelmente tem mais capacidade de

processamento do que a nasa tinha quando colocou o homem na

lua. então, algumas coisas são consumismo e outras não, são abso-

lutamente necessárias. a tecnologia, principalmente voltada para

a metalurgia e para a eletrônica, é a área que mais registra avanço

na ciência nos últimos anos. se eu apresentasse, há dez anos, um

Debate // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

Page 78: Tema: Futuro do Lixo

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celular com gPs, ninguém saberia do que estou falando. daqui a

cinco anos, provavelmente, esse celular com gPs não serve mais

para nada. assim como esse computador.

alguém hoje quer uma tv de tela plana? ninguém quer. assim

como a tv que temos hoje daqui a alguns anos não vai servir para

nada. não somos consumistas. a tv de hoje consome muito menos

energia do que a antiga. o aço que a gente usa numa chapa de carro

hoje em dia é muito mais fino do que há 30 anos, e isso permite que

se gaste menos combustível, se emita menos gás de efeito estufa,

se preservem os recursos naturais. então, os paradigmas são muito

complexos.

a sociedade, os materiais e as coisas mudam muito rápido. então,

dizer que a sociedade é consumista talvez seja um paradigma que

está mudando. não sei se hoje em dia a sociedade é tão consu-

mista. está todo mundo preocupado onde vai jogar seus resíduos.

sabemos que não iremos longe consumindo plástico, consumindo

inconscientemente.

algumas coisas complicadas podem ser muito simples. mas coisas

simples também podem ser muito complicadas. eu não fiz a conta

se vale a pena ou não continuar usando sacola plástica. Parece que

estou cometendo um pecado, mas a gente precisa fazer as contas

de algumas coisas que a gente começa a condenar e, às vezes, não

são tão graves. reciclar é preciso, mas não é algo que se deva fazer

de qualquer jeito.

Pergunta para Jorge alberto tenório: sabemos que a reciclagem e o descarte de pilhas e

baterias ainda envolvem uma questão difícil para a população. o senhor poderia nos expli-

car como funciona o reaproveitamento desses materiais?

Jat: a questão sobre a reciclagem e o descarte de pilhas e baterias

está presente na resolução no 257 do conselho nacional do meio

ambiente [conama].2 ela estabelece a obrigatoriedade de procedi-

mentos de reutilização, reciclagem, tratamento ou disposição final

ambientalmente adequada para pilhas e baterias que contenham

em suas composições chumbo, cádmio, mercúrio e seus compostos

– ou seja, componentes tóxicos. essa resolução tem um grave de-

feito: não estimula nem cria metas para que esses procedimentos

sejam adotados. dias depois de sua publicação, foi criada outra, a

2 resolução do conselho nacional do meio ambiente (conama) no 257, de 30 de junho de 1999. Publicada no DOU no 139, de 22 de julho de 1999, seção 1, páginas 28-29.

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Dez. 2012 // Debate

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de número 258,3 que obriga as empresas fabricantes e importado-

ras de pneus a coletar e dar destinação final ambientalmente ade-

quada aos pneus inservíveis. há 15 anos, ninguém sabia o que fazer

com um pneu velho, hoje a maioria das pessoas sabe onde deve

devolvê-lo quando compra um novo. Quando começaram a dragar

o rio tietê, encontraram toneladas de pneus inservíveis, mostrando

como eles eram jogados fora antes.

voltando às pilhas e baterias, a falha da resolução 257 é que ela não

criou metas. a Política nacional de resíduos sólidos, por exemplo,

diz que em 2014 vamos ter aterro zero. analisando a situação atual,

eu não acho que vamos conseguir nesse prazo, mas a meta existe, en-

tão; caso não seja cumprida, o ministério Público fará com que seja.

no brasil temos hoje poucas empresas licenciadas para fazer o tra-

tamento correto dos resíduos de pilhas e baterias. Por que tem pou-

cas empresas licenciadas, enquanto na europa há várias? Por falta

de política que obrigue, assim não há mercado para novas empresas.

o processo de tratamento existente hoje no brasil, feito por uma

dessas empresas, em são Paulo, consiste no seguinte: a pilha ou a

bateria passam por um forno de calcinação, depois de calcinadas,

seguem para a lixiviação e depois é feita a precipitação seletiva.

esse é um dos processos possíveis, mas é questionável do ponto de

vista ambiental – é muito pior que procedimentos adotados em paí-

ses europeus ou nos estados unidos.

a população hoje, no brasil, não sabe como direcionar suas pilhas,

até porque não sabe o que é uma pilha de níquel cádmio ou de íons

de lítio, lítio polímero... não sabemos de que são feitas as pilhas nem

para onde devem ir. É uma questão menos técnica e mais política.

comentário de Patrícia iglecias: gostaria de comentar que a ideia

da lei trazida pela Política nacional de resíduos sólidos é suprir

essa falha da falta de metas da resolução. será a partir dos acordos

setoriais traçados que teremos metas também para essa questão

das pilhas e baterias.

3 resolução do conselho nacional do meio ambiente (conama) no 258, de 26 de agosto de 1999. Publicada no DOU no 230, de 2 de dezembro de 1999, seção 1, página 39.

Debate // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

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reportagens

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reportagens

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LEgisLAção

Política nacional quer acabar com os lixões até 2014

Lei sancionada em 2010 responsabiliza empresas e cidadãos comuns pelo gerenciamento e reciclagem de seu lixo

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Uma revolução em termos ambientais, o projeto de lei nº 12.305, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, foi sancionado em 2010, durante o mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, depois de mais de duas décadas tramitando no Congresso Nacional e, desde então, vem mudando toda a logística do lixo no Brasil. O gerenciamento de resíduos, incluindo aí os perigosos, a responsabilidade dos geradores e do poder público e os instrumentos econômicos aplicáveis ganharam regras e metas que devem ser cumpridas por toda a sociedade.

“A Política Nacional de Resíduos Sólidos demorou mais de duas décadas para ser aprovada porque ficou tramitando no Congresso. Agora, do ponto de vista mundial, temos algo bastante moderno. A lei deixa o Brasil em patamar de igualdade com países da Europa desenvolvidos”, comenta Silvano Costa, diretor do Departamento de Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente.

A Política Nacional de Resíduos Sólidos tem um conjunto de instrumentos que a distingue como política pública. Com a sanção da lei, que diferencia resíduo de rejeito, o Brasil passou a ter um marco regulatório nessa área. Resíduo é o lixo que pode ser reaproveitado ou reciclado, e rejeito é o que não é passível de aproveitamento. A lei trata de todo tipo de resíduo: doméstico, industrial, da construção civil, eletroeletrônico, da área de saúde etc.

“A lei trabalha com a finalidade de reciclar o máximo possível. Ela cria hierarquia para a gestão e o gerenciamento de resíduos e sugere prevenção, reutilização, tratamento e disposição em aterros somente dos rejeitos. Ela também coloca o gerador de resíduos como responsável por sua destinação, não tirando da prefeitura a sua responsabilidade”, diz Silvano Costa.

Antes da sanção da lei, o único responsável pelos resíduos era o município. Agora, não só a prefeitura como também empresas e cidadãos comuns têm como dever cívico cuidar do seu lixo. O documento entende por geradores de resíduos sólidos pessoas físicas

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Reportagem // Dez. 2012

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matéria realizada pelo Globo ecologia:http://glo.bo/sfgmKa

rep

rodu

ção

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Reportagem // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

ou jurídicas, de direito público ou privado, que geram resíduos sólidos por meio de suas atividades, nelas incluído o consumo. A Política Nacional de Resíduos Sólidos inaugura na legislação ambiental o princípio do protetor-recebedor, que se diferencia do poluidor-pagador, termo já consagrado no direito ambiental mantido na lei (aquele que tem obrigação de arcar com os custos da reparação de danos causados ao meio ambiente), por ser a figura remunerada por ter deixado de explorar um recurso natural em benefício do meio ambiente e da coletividade ou ter promovido alguma ação com o mesmo propósito.

“Ela considera a questão do poluidor-pagador como princípio importante para a responsabilidade compartilhada. Fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes agora são obrigados a fazer o caminho de volta, e essa responsabilidade acabou criando a logística reversa, que é o caminho de volta dos resíduos. Ela responsabiliza as empresas pelo recolhimento de produtos descartáveis”, explica Silvano.

Um dos princípios e objetivos da Política Nacional de Resíduos Sólidos, previsto no artigo 6o do capítulo 2o, é “a integração dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis nas ações que envolvam a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos”. Na época da sanção, o então presidente Lula ressaltou como “maior mérito da lei a inclusão social de trabalhadores e trabalhadoras esquecidos e maltratados pelo poder público”.

O artigo 54 da Política Nacional de Resíduos Sólidos impõe a exposição de resíduos de forma adequada em aterros até 2014, o que significa que até a Copa do Mundo os lixões devem ser eliminados das cidades brasileiras. “O esforço pela reciclagem é simultâneo. A obrigação de todas as partes é lutar para eliminar os lixões, reciclar o que for passível de reciclagem e enviar os restos a aterros.

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Se geração de lixo fosse uma meta, o estado de São Paulo seria um exemplo de eficiência difícil de desbancar. No território paulista é gerado cerca de um terço dos resíduos de todo o país. A capital é a campeã: 13 mil toneladas de lixo por dia. Só a cidade de São Paulo gasta R$ 1,4 bilhão por ano para administrar a limpeza de ruas, a coleta e a destinação final do lixo, como mostrou o Bom Dia São Paulo.

O lixo coletado na capital é levado para dois aterros. O Centro de Tratamento, no extremo da Zona Leste, recebe 7 mil toneladas por dia. Como já falta espaço na cidade, o restante é levado para um aterro na cidade de Caieiras, na Grande São Paulo. A operação no aterro funciona 24 horas por dia, de domingo a domingo. Setecentos caminhões chegam ao local diariamente e, com eles, 6 mil toneladas de lixo.

“Nós estamos acostumados a dizer que lixo é um conjunto de materiais a serem descartados. Isso não é verdade. Eles têm valor econômico e é o maior contrassenso gastar dinheiro para transportar para longe matérias-primas preciosas e ainda mais pagar para enterrá-las”, diz o presidente do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Sustentável (Ibrades), Sabetai Calderoni.

Volume crescenteEstudo realizado pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) mostrou que, em 2011, o cidadão paulistano gerou 18 quilos de lixo a mais que em 2010, cerca de 1,5 quilo por mês. Ou 50 gramas a mais de lixo por dia. Em todo o estado, a geração de lixo no último ano cresceu proporcionalmente quatro vezes mais que a população.

O estudo mostrou também que 23,5% do lixo do estado de São Paulo ainda vai para locais inadequados. Na capital, todo resíduo domiciliar tem um destino adequado. O desafio é aumentar a taxa de reciclagem, de apenas 1,5%, que, segundo a associação, não evolui há pelo menos cinco anos.

são PAULo

Capital paulista é a maior geradora de lixo do país

Território paulista é responsável por cerca de um terço dos resíduos. A capital é a campeã: 13 mil toneladas por dia

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Reportagem // Dez. 2012

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reportagem exibida pelo Bom Dia são Paulo em 9/4/2012: http://glo.bo/txsWWh

reportagem exibida no sPTv 2ª edição em 8/5/2012: http://glo.bo/uytjna

reportagem exibida no sPTv 1ª edição em 8/5/2012: http://glo.bo/Q06zkr

“Precisamos efetivamente de uma priorização nessa temática em que haja a coleta seletiva à disposição da população e um efetivo encaminhamento do resíduo reciclável para as indústrias recicladoras para se tornar um novo produto”, afirma Carlos Silva Filho, diretor--executivo da Abrelpe.

Para recolher toda essa quantidade de resíduos, a prefeitura de São Paulo gasta R$ 56 milhões por mês. O dinheiro necessário para coletar e destinar os resíduos domésticos é arrecadado com a cobrança de impostos como IPTU, ISS, ITBI, além de outras fontes de receita. Mas, diferentemente de outras contas de consumo, como luz ou água, o cidadão não paga proporcionalmente à quantidade de lixo que produz. E a montanha de lixo só aumenta. Atualmente, são gerados 55% mais resíduos do que há dez anos.

“É preciso ser um pouco provocado para mudar de rotina. Por exemplo, com alguma regulação ou alguma política pública que exija. Por exemplo, se eu for cobrado pelo resíduo que eu gero, como uma taxa do lixo”, diz Sylmara Dias, professora de Gestão Ambiental da Universidade de São Paulo (USP).

Em 2003, a prefeitura da capital paulista começou a cobrar cerca de R$ 6 para quem descartasse até 10 litros de lixo por dia. Quem produzisse quantidade maior ou menor deveria procurar a prefeitura para ajustar o valor da cobrança. Na época, a dificuldade foi saber se cada um estava falando a verdade. A polêmica em torno da questão causou a extinção da taxa três anos após sua criação.

Para os especialistas, é compreensível que a população reaja mal a mais uma cobrança, mas pagar pela geração de lixo é uma forma de fazer com que as pessoas pensem no assunto. “Você pode cobrar por volume gerado, por tipo de destinação dada, ou por aqueles que realmente não cumprem com as práticas municipais”, diz Carlos Silva Filho, diretor-executivo da Abrelpe. Em muitos países paga-se pelo lixo.

Mas a cobrança não precisa ser a única maneira de estimular a redução de lixo. “A pessoa poderia receber um crédito, como a Nota Fiscal Paulista. Muita gente acaba se utilizando disso para receber o crédito, seja qual for, para abater impostos mesmo ou até em espécie”, diz o financista Marco Tuli.

Para Kazuo Nakano, especialista em urbanismo, a taxa do lixo pode ter uma função pedagógica. “Toda taxa de lixo deve estar ligada a um tipo de incentivo ou prêmio para quem faz coleta seletiva, quem separa ou leva para pontos de coleta”, diz. Ele sugere também a isenção tributária para produtos reciclados.

Reportagem // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

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Holanda

Enquanto quase tudo o que se descarta em São Paulo vai para aterros, na Holanda apenas 3% do lixo tem esse destino. Quase metade do descarte doméstico é incinerado. A energia gerada pela combustão aquece as casas e ilumina parte da capital, Amsterdã.

A maior parte dos resíduos das casas é separada pela própria população para a reciclagem – e há estímulos para isso. Em um supermercado na Holanda, uma máquina é usada para receber garrafas pet. A pessoa insere a garrafa de plástico, a máquina pesa e devolve um cupom que vale dinheiro. Em Amsterdã, três garrafas pet devolvidas valem o equivalente a R$ 3.

Ganha quem colabora, perde quem gera mais resíduo. Cada holandês paga em média R$ 270 por ano de taxa de lixo. Quanto maior o volume dos sacos, mais alta a taxa. Ideias que podem servir de inspiração para o poder público, para os empresários e para população de São Paulo.

“Eles aprenderam a desenvolver tecnologias para isso, a fazer gestão de resíduos e, principalmente, a fazer uma educação ambiental, sem a qual nada disso seria possível”, comentou Eduardo San Martin, diretor de Meio Ambiente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), durante encontro de empresários, representantes de ONGs e órgãos da prefeitura com uma comissão do Ministério do Meio Ambiente da Holanda, realizado em São Paulo.

iNTErNACioNAL

Exemplos que vêm de foraVeja como três países lidam com a questão da

coleta e tratamento de resíduos sólidos

reportagem exibida no sPTv 2ª edição em 10/4/2012: http://bit.ly/txt6nw

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Reportagem // Dez. 2012

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Alemanha

A cidade de Munique, na Alemanha, foi totalmente destruída durante a Segunda Guerra Mundial. Para reconstruir suas vidas, as pessoas iam para as ruas em busca de materiais como pedaços de pano, papel, madeira, metal. Essa dura lição de reciclagem e reaproveitamento de resíduos acabou fazendo com que a cidade desenvolvesse uma nova mentalidade. Hoje Munique possui um dos sistemas de tratamento de resíduos mais avançados do planeta.

A região metropolitana recicla 65% dos seus “materiais de valor”, como é chamado o que se joga fora. A Grande Munique tem 3 milhões de habitantes, e quem gera mais de 25 litros de lixo por semana tem de pagar um excedente de R$ 15 por saco.

Os 35% de resíduos não aproveitados vão para um incinerador criado e administrado pelo governo local. Os caminhões despejam, por dia, 1.800 toneladas de entulho. O local produz também energia elétrica e vapor quente para o aquecimento de uma pequena parte da cidade. As cinzas do lixo queimado servem para a construção de asfalto.

A temperatura de 1.000 °C é capaz de destruir grande parte das substâncias tóxicas que o lixo produz. Os filtros da chaminé, que pode ser controlada pelo governo, retêm outra parte das toxinas. O método é aprovado pelo Partido Verde.

O incinerador de lixo de Munique foi construído em 1964, mas a sua tecnologia vem sendo atualizada, recebendo equipamentos de última geração. O governo da Baviera exibe a usina como exemplo de eficiência e do alto nível de pesquisa da região.

Se São Paulo fosse adotar o modelo alemão para o tratamento de lixo, iria precisar de sete incineradores como os existentes em Munique. Eles precisariam ser instalados próximos a indústrias, para alimentá-las de energia, e custariam o equivalente a R$ 450 milhões cada um. Em 20 anos, o valor seria amortizado, segundo o presidente do órgão que cuida do tratamento do lixo térmico da Baviera, Gerhard Meier. Na Munique pós-guerra, Meier endireitava pregos para que fossem reutilizados.

reportagem exibida no sPTv 1ª edição em 23/5/2012:http://glo.bo/Phhuy3

reportagem sobre o incinerador: http://glo.bo/uytvdh

Reportagem // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

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Suécia

A cidade de Borás, na região sul da Suécia, reaproveita 99% do lixo produzido. Apenas 1% não tem serventia alguma e vai para o aterro. Por causa do lixo que é transformado em energia, os moradores pagam até 50% a menos na conta de luz e o transporte público sai 20% mais barato.

O rio Viskan já foi um esgoto a céu aberto. Ele era tão poluído que no verão ninguém ousava passar por perto. Uma década depois, o rio é símbolo da determinação do poder público e dos 104 mil moradores. Conscientização que começa em casa, onde o lixo é separado. Os resíduos são separados em orgânicos, nos sacos pretos, e inflamáveis, em sacos brancos.

Os sacos de lixo são cedidos pela companhia que recolhe os resíduos na cidade, de graça. Isso ajuda as pessoas na hora de fazer a separação em casa. No porão do condomínio, os próprios moradores fazem a triagem dos resíduos recicláveis (vidros, latas, pilhas e baterias).

Em Borás, nada se perde, tudo se transforma. Quem anda de táxi ou de ônibus e quem utiliza energia elétrica sabe muito bem disso. As 200 toneladas de lixo domiciliar coletado todos os dias na cidade são levadas para o centro de triagem. O lixo orgânico vira biogás e o lixo inflamável alimenta as caldeiras de termoelétricas, que produzem eletricidade.

O trabalho de separação das sacolinhas pretas e brancas é automatizado. A máquina reconhece a cor dos sacos e faz a separação. Nas fornalhas das termoelétricas e nos biodigestores das usinas de gás, o lixo se transforma em economia. Ônibus e táxis são 100% movidos a gás, produzido com o lixo.

A prefeita, Annete Carlson, diz que a grande vantagem do reaproveitamento é o fim dos grandes aterros sanitários. Eles recebem apenas 1% dos resíduos, aquilo que não pode mesmo ser reutilizado.

reportagem exibida no sPTv 1ª edição em 19/4/2012:http://glo.bo/sfipaW

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Reportagem // Dez. 2012

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Graças ao lixo, a cada 15 dias o caminho da dona de casa Terezinha Aparecida Duarte se cruza com o do agricultor Luiz Carlos Pigatto. Dos 4.500 kg de caqui que Pigatto colhe por semana no pomar, ele vende 1.300 kg a preço de mercado para a prefeitura de Caxias do Sul.

O agricultor recebe em dinheiro, mas a fruta só chega ao consumidor depois de ser trocada por materiais recicláveis, levados por pessoas como Terezinha. Na cidade gaúcha, 4 kg de resíduos podem ser trocados por 1 kg de frutas e hortaliças.

A ideia do programa, que começou em 2009, é incentivar a separação de materiais recicláveis na periferia da cidade, onde a geografia atrapalha a coleta de porta em porta.

“Nossos caminhões tinham dificuldade de chegar aos pontos, por causa do relevo, que é bastante acidentado em Caxias do Sul. Desta forma, as comunidades foram chamadas e incentivadas a coletar o lixo e se transformar em um verdadeiro exemplo de agentes ambientais que, em contrapartida, seriam “beneficiados com alimentos”, diz José Luiz Zechin, diretor da Companhia de Desenvolvimento de Caxias do Sul (Codeca).

O efeito está nas ruas da cidade. É difícil, agora, encontrar lixo pelo chão. “O nosso bairro tinha lugar que servia de lixão. Depois dessa troca solidária, mudou muito”, afirma o aposentado Izidro Amadeu Freitas.

Para Terezinha Fátima Santos, que está desempregada, o lixo ajuda no sustento da casa. “Vou juntando a semana inteira. Troco por alimento, verdura, fruta no sábado”, diz.

No sábado, os caminhões cheios de alimentos vão para os 16 bairros que participam do projeto. O material reciclável recolhido é levado para associações de catadores de Caxias do Sul. Somando os recicladores com os agricultores, o programa emprega cerca de 450 pessoas.

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Caxias do Sul troca resíduos por comida

Programa de troca solidária incentiva separação de recicláveis e emprega 450 pessoas. Cidade recicla 25% de seu lixo

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Reportagem // Dez. 2012

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reportagem do sPTv 1ª edição, exibida em 28/5/2012: http://glo.bo/Yspe9p

reportagem do sPTv 2ª edição, exibida em 28/5/2012: http://glo.bo/sxo07l

“Com R$ 40 mil por mês, o município está fazendo todo esse projeto, que atende basicamente 1.500 famílias por mês. Acho que são números expressivos que dão grandiosidade e que justificam plenamente esse projeto”, explica Zechin.

Desde 2009, a prefeitura de Caxias do Sul já distribuiu mais de 220 toneladas de alimentos em troca de quase 900 toneladas de recicláveis.

Coleta mecanizadaOutro programa de sucesso em Caxias do Sul é o de coleta seletiva mecanizada. Com ele, o índice de reciclagem de materiais na cidade gaúcha chega a 25%. O programa divide o lixo do município em dois tipos de caixas: verde para os resíduos orgânicos, amarelo para os recicláveis. A coleta mecanizada atende 35% da cidade.

A coleta seletiva em Caxias do Sul não é uma novidade. Já existe desde 1991, mas o grande salto aconteceu em 2007, quando os contêineres foram colocados nas ruas. De lá para cá, a quantidade de lixo reciclável coletada na cidade triplicou.

O modelo dos contêineres também reduziu o problema com insetos, roedores e o entupimento de bueiros, já que o lixo fica fechado nas caixas.

Outra novidade em Caxias do Sul é o Ecoponto . O espaço é diferente dos espaços de coleta de mesmo nome de São Paulo. A população leva para lá o que quer descartar, e tudo fica disponível para quem quiser levar. Um dos moradores, o frentista André Vidmann, já é freguês. Em casa, está o resultado das visitas: colchão, tanque, furadeira, serra elétrica, balcão, sofá e até o cadeirão para o filho pequeno. Tudo veio do Ecoponto.

Reportagem // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

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Uma das maiores fontes de geração de resíduos é a construção civil. Se hoje, aos poucos, as pessoas estão se habituando a colocar embalagens de plástico na lixeira vermelha, vidro na verde, papel na azul e metal na amarela, muitos ainda não sabem o que fazer com o que sobra de obras, como materiais de construção. Em Guarulhos, município da Grande São Paulo, o entulho tem destino certo.

Guarulhos criou seu Plano Diretor de Resíduos Sólidos com a participação de vários segmentos da sociedade. O ponto de partida foi elaborar um diagnóstico do lixo gerado.

“Guarulhos, no tocante a resíduos da construção civil, está com uma geração na ordem de 1.800 a 2.000 toneladas por dia, um material que tem uma presença muito forte na cidade, até porque Guarulhos é uma das regiões de maior desenvolvimento imobiliário na região metropolitana de São Paulo”, diz Tarcísio de Paula Pinto, urbanista e especialista em resíduos sólidos.

Segundo o Sindicato da Indústria da Construção Civil, o entulho das obras constitui a maior parte dos resíduos sólidos urbanos. Para reduzir esse impacto ambiental, foram criados em Guarulhos os chamados Pontos de Entrega Voluntária (PEV), onde o material é colocado em caçambas diferenciadas e parte dele é reaproveitada em outras obras.

“O número de deposições irregulares na cidade caiu bastante. Em todos os bairros onde há PEVs, a deposição irregular não acontece mais, ela é feita no endereço indicado”, diz Tarcísio de Paula Pinto.

Para Jonathas Duráes Junior, gerente técnico de um desses pontos, o ideal seria que o munícipe já levasse para os PEVs o material triado, ou seja, o entulho separado da madeira, do solo, das embalagens etc. “Mas nem sempre isso é possível”, diz ele. Por isso, há funcionários, nos PEVs, encarregados de fazer essa separação.

soLUçÕEs

Em Guarulhos, entulho volta à construção civil

Materiais são reciclados e já rendem ao município economia em obras públicas

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Reportagem // Dez. 2012

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reportagem exibida no Globo Cidadania em 18/8/2012: http://glo.bo/vilfbr

Dos pontos de entrega, os resíduos seguem para locais onde o material é triturado e, depois de beneficiado, usado como material agregador da construção civil, como areia e pedra, que podem ser utilizados como argamassa, concreto com função não estrutural, ou assentamento de pisos, entre outros serviços, como explica Victor Tadeu Vlasich, engenheiro civil da prefeitura.

“Há uma série de usos para os diversos materiais gerados pela reciclagem e não há qualquer restrição quanto ao percentual de uso”, afirma Tarcísio de Paula Pinto.

O material obtido com o processamento é utilizado para a fabricação de blocos de concreto e brita para a pavimentação de ruas em Guarulhos. O bairro Jardim Nova Ponte Alta é um dos exemplos dessa sustentabilidade aplicada à construção civil. No local, vias, calçadas e obras de drenagem estão sendo executadas com itens reciclados.

“Todo o resíduo proveniente da própria obra, de demolições, retorna para a recicladora para ser reprocessado. Então produzimos e tudo volta para ser reutilizado”, diz Adailton Saraiva de Barros, engenheiro de infraestrutura viária da cidade. “É a cadeia reversa do material.”

Em termos de pavimentação, a redução de custos esperada para a prefeitura é da ordem de 30% em relação ao uso de materiais convencionais. O cidadão comum que vai fazer uma reforma ou construção em casa também pode se beneficiar do programa, comprando areia ou brita reciclada, que têm custos menores e mesma capacidade, como explica Tarcísio de Paula Pinto.

Reportagem // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

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Em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, só vai para o aterro o que não pode ser aproveitado de jeito nenhum. O resto segue para o processo de compostagem, onde, por exemplo, o lixo orgânico vira adubo.

A cidade é uma das poucas, no Brasil, que já cumprem o plano da Política Nacional de Resíduos Sólidos. “A usina da cidade é um modelo”, avalia José Mário Ferreira, engenheiro da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). “O sistema implantado em Rio Preto já atende os preceitos da política nacional, previstos para 2014: reciclagem, compostagem, reúso e a destinação adequada.”

Na cidade, 400 toneladas de lixo são coletadas todos os dias. A primeira etapa começa em uma esteira, na qual funcionários separam tudo o que pode ser reaproveitado. Esse material é vendido para empresas de reciclagem. Já os resíduos orgânicos, como restos de alimentos, ficam armazenados por 90 dias em um galpão. Nesse período, o material se decompõe e vira um pó escuro, que é vendido para produtores rurais.

Durante os três meses que os resíduos ficam no galpão, uma máquina é usada para revolver o lixo e ajudar a decomposição. Quando o equipamento revira o lixo, sai uma fumaça. Isso porque, durante o processo químico, há um aquecimento dos resíduos – resultado da ação das bactérias. A temperatura pode chegar a 70 °C.

Restos de plástico e embalagens também se encontram no meio do lixo orgânico – por não terem sido separados corretamente ainda na casa dos moradores. Por isso, ao final da decomposição, tudo é peneirado. No final, só fica o adubo. São produzidas 60 toneladas por mês.

São José do Rio Preto é a única cidade com nota 10 em compostagem, segundo a avaliação da Cetesb. Além dela, apenas outros sete municípios paulistas fazem a transformação de lixo orgânico em adubo.

soLUçÕEs

Em São josé do rio Preto, um modelo a ser seguido

Na cidade, lixo tem destino correto há mais de 20 anos.Aterro só recebe o que não pode ser reaproveitado

reportagem exibida no Bom Dia são Paulo em 9/4/2012:http://glo.bo/sxnsia

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Reportagem // Dez. 2012

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De acordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, a partir de 2014 os fabricantes serão responsáveis pelo lixo que produzem. Antecipando-se a essa exigência da lei, uma empresa do interior de São Paulo, fabricante de alimentos, desenvolveu uma maneira de estimular a reciclagem de suas embalagens: criar um novo mercado para esses resíduos.

Da fábrica de Sorocaba saem 200 pacotes de salgadinhos por minuto. Apesar de ser reciclável, o material dessas embalagens acabava em aterros sanitários. Agora ele tem uma utilidade. A empresa resolveu transformar os pacotes que viravam lixo em matéria-prima para fabricar prateleiras que expõem os salgadinhos nos supermercados. Assim, criou uma cadeia.

O primeiro passo para implantar esse ciclo foi comunicar ao consumidor que esse material podia ser reciclado. Em seguida, dizer às cooperativas que tinha interesse em comprar esse material. Assim, as embalagens começaram a ser separadas pelos catadores. “A gente quis educar a cadeia inteira. A ideia é poder dar um serviço tanto para o consumidor, informando onde jogar a embalagem, como para o catador, orientando como separá-lo”, diz Cláudia da Silva Pires, coordenadora de sustentabilidade da fábrica de salgadinhos.

Hoje esse tipo de solução é criativa. Mas, a partir de 2014, ela será obrigatória para as indústrias de todos os setores. As embalagens deverão ser fabricadas com materiais reutilizáveis ou recicláveis. As empresas terão de apoiar as cooperativas. As prefeituras vão ter de aumentar a oferta de coleta seletiva. E o cidadão vai ter de fazer a separação em casa. Todos os atores do ciclo vão compartilhar a responsabilidade pelo lixo.

soLUçÕEs

Empresa de Sorocaba cria solução para logística reversa

Fabricantes se antecipam ao prazo previsto por lei e reutilizam materiais para fabricar novos produtos

reportagem exibida no Bom Dia são Paulo em 2/5/2012: http://glo.bo/txsQ1a

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Reportagem // Dez. 2012

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Em um cenário ideal, todos os materiais recicláveis repetiriam o desempenho do setor de embalagens de alumínio, empregadas na fabricação de latas de refrigerante e cerveja. De cada cem latas fabricadas no país, 98 são reaproveitadas e viram novas embalagens. Tudo isso faz com que o setor movimente R$ 1,8 bilhão por ano no país.

Para alcançar esse índice, que torna o Brasil um exemplo no caso de reciclagem do material, existe um mercado que não funciona sem a atuação de personagens essenciais. O principal deles é o catador de recicláveis, que recolhe as latinhas pela cidade. Graças a ele, calcula-se que o tempo médio de uma lata nas ruas de São Paulo seja de apenas dez segundos. Nas cooperativas e no ferro-velho, as latas são reunidas e prensadas. Em seguida, são vendidas de volta para a indústria do alumínio.

Em Pindamonhangaba, interior de São Paulo, fica a maior recicladora de latinhas da América do Sul. Todos os anos, essa indústria recicla 13 bilhões de embalagens. As latas são trituradas, passam por um processo de limpeza e saem do forno em estado líquido. Depois, viram placas de alumínio. Seguem então para a indústria, onde a matéria-prima ganha forma e vira latinha novamente. Esse ciclo pode ser repetido infinitas vezes, sem perda de capacidade do material.

Atualmente, do momento em que é comprada pelo consumidor, uma latinha volta para as prateleiras dos supermercados, já reciclada, em apenas um mês. Um ciclo rápido e eficiente que representa o que a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) quer que aconteça com todos os materiais recicláveis que hoje vão parar no lixo e em aterros sanitários.

As indústrias já estão assinando termos de compromisso com o poder público para se adaptar à lei. O prazo para o cumprimento do que foi combinado varia de acordo com cada setor. Até 2014, as cidades devem aumentar a oferta de coletas seletivas e instalar novas cooperativas, para que o exemplo do alumínio possa ser repetido em outras cadeias.

MATEriAis

Brasil recicla 98% das latas de alumínio fabricadasCom ciclo rápido e eficiente, uma latinha volta para as prateleiras do supermercado em apenas um mês

reportagem exibida pelo sPTv 1ª edição em 23/4/2012:

http://glo.bo/uowocw

Reportagem // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

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A cidade de Araraquara, com 208 mil habitantes, no interior de São Paulo, produz 160 toneladas de lixo orgânico por dia. Todo esse material vai para um aterro sanitário. Foi ali que o químico Marcelo Souza Santos buscou sua fórmula. “Esse material pode substituir a areia e o cimento na fabricação de artefatos de concreto”, diz ele.

Em um barracão improvisado nos fundos de uma empresa metalúrgica começa a transformação. O que antes era um problema se tornou solução e passou a ter muito valor. Ali, o lixo orgânico entra por uma máquina para se transformar em matéria-prima da construção civil.

Cascas de laranja e restos de comida são triturados e seguem para o misturador. As bactérias são eliminadas por um processo químico e a massa de lixo é transformada em grãos. No forno, a uma temperatura de 300 °C, o material perde a umidade e os grãos estão prontos para virar pó. Aí a matéria-prima está pronta para seguir para a fábrica.

“Não tem mau cheiro devido ao tratamento químico, então o que era lixo fica totalmente inodoro”, explica o sociólogo José Antonio Masotti, que foi metalúrgico na juventude e é o responsável pelo desenvolvimento dos equipamentos. Até agora foram dois anos de trabalho para a criação dos protótipos, com um investimento de R$ 100 mil, vindos de economias pessoais.

O material está sendo testado por uma fábrica de blocos de concreto, que apostou na ideia da transformação. “É uma tecnologia inovadora. A gente pode estar diante da nova areia e do novo cimento do futuro”, avalia Luís Felipe Moreira César, gerente da fábrica. Utilizando o material produzido a partir do lixo, o custo de produção do bloco de concreto usado na construção civil tem um valor 40% menor.

MATEriAis

Pesquisadores transformam lixo em blocos de concreto

Equipamento levou dois anos para ser desenvolvido e é capaz de fabricar peças para a construção civil com custo 40% menor

reportagem exibida no Bom Dia são Paulo em 17/5/2012: http://glo.bo/z7Kmb6

CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Reportagem // Dez. 2012

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Cedo ou tarde, a vida útil do pneu acaba e é necessário fazer a troca. Por lei, a responsabilidade pela coleta do pneu usado é dos fabricantes e dos importadores. Os resíduos não podem ir para o aterro sanitário nem voltar a ser pneus, mas o reaproveitamento é possível.

Na recicladora, o pneu é triturado e um ímã ajuda a separar o aço. “Nada se perde. Tudo que é triturado tem um destino ambientalmente adequado”, diz Amauri Marques Junior, diretor da empresa de reciclagem de pneu.

O aço é vendido para siderúrgicas. Já a borracha pode servir como combustível para fábricas de cimento ou ser transformada em produtos como tapete de carro e sola de sapato. O material também pode ser usado na pavimentação. A borracha é misturada ao piche e o asfalto é preparado.

No sistema Anchieta-Imigrantes, 88 km já estão cobertos com o asfalto borracha. Isso significa que 360 mil pneus velhos foram reaproveitados desse jeito. O asfalto de borracha é 30% mais caro que o comum, mas as vantagens compensam.

“Provoca menos ruído e menos spray, que é aquela aguinha que sai dos pneus quando chove atrás. As intervenções na pista podem ser mais espaçadas. Uma vez que o asfalto dura mais, a gente incomoda menos o usuário”, afirma Paulo Machado Filho, assessor de projetos da Ecovias.

Dezessete rodovias do estado de São Paulo cumprem a lei e fazem o recapeamento com pneu reciclado.

MATEriAis

Pneus são reaproveitados e viram asfalto Borracha de pneus velhos vira asfalto em rodovias de São Paulo. Material é 30% mais caro, mas vantagens compensam

reportagem exibida pelo sPTv 2ª edição em 11/5/2012:

http://glo.bo/rm73hQ

Reportagem // Dez. 2012 // CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE

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CAdErNo GloBo uNiVErSidAdE // Reportagem // Dez. 2012

Saiba o impacto que cada produto que você consome

traz ao ambiente. Veja abaixo quantos anos

demora para cada tipo de material se decompor

na naturezaFonte: Instituto Akatu

Plástico

Copo de plástico

Nylon

Tampa de garrafa

Fralda descartável

Embalagens longa vida

Pneus

Vidro

Papel

Lata de aço

Isopor

Fralda biodegradável

0 50 100 150 200 250 300 350 400 450 500 550 600

0 50ANOS:

ANOS:

100 150 200 250 300 350 400 450 500 550 600

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

100

100

50

150

450

600

Indeterminado

3 a 6 meses

10 anos

8 anos

1 ano

30, pelo menos

De 0 a 600 anos

De 0 a 10 anos

fonte: ilustração

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fontes: associação brasileira de normas técnicas (abnt), Política nacional de resíduos sólidos (Pnrs)

3Rs: Resumem as três metas da Política Nacional de Resíduos Sólidos: redução, reutilização e reciclagem.

Aterro controlado: Instalação que utiliza princípios da engenharia para receber os resíduos sólidos urbanos na menor área possível e reduzi-los ao menor volume permissível. Os resíduos são confinados em camadas, cobertas com material inerte, segundo normas operacionais específicas, de modo a evitar danos ou riscos à saúde pública e à segurança, minimizando impactos ambientais. Diferentemente do aterro sanitário, não tem sistema de impermeabilização, o chorume não é coletado e o biogás liberado não é tratado.

Aterro sanitário: Assim como o aterro controlado, é um local que recebe os resíduos sólidos urbanos que são dispostos em camadas e cobertos com material inerte. Sua vantagem é que tem um sistema de impermeabilização que permite a coleta e o tratamento do chorume, diminuindo o impacto ambiental e a contaminação do solo; faz o tratamento do biogás liberado.

Chorume: Líquido de cor preta, malcheiroso e de elevado potencial poluidor. Resulta principalmente da água da chuva que se infiltra no aterro e da decomposição biológica da matéria orgânica contida no lixo.

Compostagem: Processo de decomposição de lixo orgânico no qual são liberados gás carbônico, água e substâncias minerais, resultando em matéria orgânica (composto), que pode ser usada como fertilizante agrícola.

Destinação final ambientalmente adequada: De acordo com o art. 3º, VII, da Lei nº 12.305/2010, entende-se por destinação ambientalmente adequada a “destinação de resíduos que inclui a reutilização, a reciclagem, a compostagem, a recuperação e o aproveitamento energético ou outras destinações admitidas pelos órgãos competentes do SISNAMA, do SNSV e do Suasa, entre elas a disposição final, observando normas operacionais específicas de modo a evitar danos ou riscos à saúde pública e à segurança e a minimizar os impactos ambientais diversos”.

Disposição final ambientalmente adequada: Dentro do ciclo de vida de um objeto, a disposição final é o ponto onde o objeto teria seu último descarte,

glossárioVeja aqui a definição dos principais termos utilizados quando o assunto é tratamento de resíduos sólidos

depois de esgotadas as possibilidades de reutilização, reciclagem, compostagem e aproveitamento energético. Esse descarte deve ser feito em local (geralmente aterro) construído de acordo com normas operacionais específicas, de modo a evitar danos ou riscos à saúde pública e à segurança e a minimizar os impactos ambientais adversos. Previsto no art. 3º, VIII, da Lei nº 12.305/2010.

Ecoponto: São locais geralmente organizados pelas prefeituras nos quais a população faz a entrega de pequenos volumes de entulho, grandes objetos (como móveis), podas de árvore e materiais recicláveis.

Estação de triagem: É o ponto de partida para o processo de reciclagem de resíduos sólidos. É o lugar onde plásticos, papéis, vidros e latas são separados. Esse serviço geralmente é feito pelas cooperativas de catadores de recicláveis. Pode ser feito de forma mecanizada ou manual.

Lixão: Forma ambientalmente inadequada de disposição de resíduos sólidos no solo, a céu aberto, acarretando problemas à saúde pública e amplo impacto ambiental. É chamado também de vazadouro.

Logística reversa: De acordo com o art. 3º, XII, da Lei nº 12.305/2012, entende-se a logística reversa como “instrumento de desenvolvimento de desenvolvimento econômico e social caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada”. A ideia é que, depois de usado, o produto deve voltar para o fabricante para que ele possa reaproveitá-lo ou fazer sua disposição correta.

Responsabilidade compartilhada: Todos os que participam da cadeia são responsáveis pelo lixo produzido. Assim, o consumidor tem de saber o que descartar, o que separar para a reciclagem e o que devolver para o comércio. O comércio tem de estar preparado para receber esse produto e retorná-lo para a indústria; o fabricante tem de se responsabilizar pela reutilização ou destinação final do produto.

Sustentabilidade: É o conceito segundo o qual o uso de recursos naturais para atender às necessidades presentes não pode comprometer seu fornecimento para gerações futuras.

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