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1 ENERGIA HIDRELÉTRICAS HIDRELÉTRICAS As Hidrelétricas do Madeira: as lições não aprendidas que se repetem em Belo Monte ESTUDO 2

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ENERGIA HIDRELÉTRICASHIDRELÉTRICASAs Hidrelétricas do Madeira: as lições não

aprendidas que se repetem em Belo Monte

ESTUDO 2

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As Hidrelétricas do Madeira: as lições não aprendidas que se repetem em Belo Monte

Dezembro , 2011

Telma Monteiro (Consultora do Inesc)

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APRESENTAÇÃO

Para dar continuidade ao desenvolvimento do Observatório dos Investimentos na Amazônia, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) optou por incluir nele mais um tema: energia hi-drelétrica. Foram selecionados para ilustrar esta primeira fase os empreendimentos do “Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira”: as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, as linhas de transmissão associadas às duas barragens e o sistema de transmissão de 2.375 km, além de uma introdução ao caso da hidrelétrica de Belo Monte, que está sendo construída no rio Xingu.

O Complexo Madeira tem sido tratado no setor de geração e transmissão de energia como a “pon-ta de lança” do “avanço da fronteira elétrica” no Brasil e pelo governo como uma obra fundamental para equilibrar a demanda e a oferta de energia elétrica entre 2010 e 2012. O incremento de 6.450 MW de potência instalada (Santo Antônio, com 3.150 MW, e Jirau, com 3.300 MW) será em grande parte transmitido pelo sistema de transmissão de 2.375 km para o Sistema Interligado Nacional (SIN) até a Região Sudeste.

Os investimentos para o conjunto de projetos do Complexo Madeira foram estimados em R$ 36 bilhões e contam com fi nanciamentos já aprovados, até agora, de R$ 15,66 bilhões, dos quais R$ 14,52 bilhões foram fi nanciados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), entre operações diretas e indiretas. Outros R$ 1,14 bilhão foram fi nanciados pelo Banco da Amazônia (Basa), com recursos do Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO) e do Fundo de Desenvolvimento da Amazônia (FDA).

Este texto, que deve complementar o banco de dados de informações sobre os empreendimen-tos, tem o objetivo de ampliar e aprofundar o conhecimento sobre os projetos, situando-os no contexto social, político e econômico que os viabilizou.

Para isso, foi necessário fazer uma síntese do processo de licenciamento e de seus eventos de maior relevância, bem como uma análise das principais lacunas político-institucionais. Na parte fi nal, procurou-se traçar uma comparação entre a construção política do Complexo Madeira e da

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hidrelétrica de Belo Monte, em construção no rio Xingu.

Não se pretendeu, aqui, esgotar o assunto. O processo do Madeira, que venceu as barreiras da legalidade e culminou com a construção dos empreendimentos, tem tantas lacunas, fatos não esclarecidos e bastidores que merecem ser analisados, que seria necessário muito mais do que as páginas constantes deste trabalho.

1. O PROCESSO DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL DE HIDRELÉTRICAS

O resgate de conceitos e normas sobre o processo de licenciamento é imprescindível para se ter uma ideia do quanto os procedimentos podem ser complexos, burocráticos e alvo de interesses setoriais e pressões políticas.

Há um verdadeiro emaranhado de conceitos, leis e resoluções, instituições governamentais, agên-cias e autarquias no intrincado processo de licenciamento de projetos hidrelétricos. Trata-se, de fato, de um processo altamente técnico e hermético que, se não inviabiliza, difi culta muito o acom-panhamento pela sociedade do passo a passo dos procedimentos dos diferentes órgãos gover-namentais. O processo começa desde a autorização para a elaboração do Estudo de Inventário de uma bacia hidrográfi ca até os programas de mitigação e compensação dos impactos ambien-tais e sociais decorrentes dos empreendimentos, antes, durante e depois das licenças ambientais. Para facilitar a compreensão do processo de licenciamento ambiental de hidrelétricas é necessária uma breve contextualização dos principais conceitos pertinentes ao referido processo.

O primeiro passo é o Estudo de Inventário (EI) da bacia hidrográfi ca, no qual são identifi cados os eixos dos aproveitamentos hidrelétricos. Depois de escolhidos e aprovados os eixos, se dá a elabo-ração do Estudo de Viabilidade Técnica e Econômica (EVTE).

Identifi cado o potencial de aproveitamento hidrelétrico de determinado rio ou bacia hidrográfi ca, por meio de EI e posterior elaboração do EVTE, que são custeados por empreendedores privados, inicia-se o processo de licenciamento ambiental, sob a responsabilidade do órgão ambiental com-petente.

O EVTE é aprovado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e enviado para análise do Tribunal de Contas da União (TCU). No caso de obras com signifi cativo impacto ambiental que afetem mais de um estado, por exemplo, compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) conduzir o processo de licenciamento.

Em seguida, o órgão ambiental recebe dos interessados o pedido de Licença Prévia (LP) e elabora o Termo de Referência (TR) do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental (Rima). Seguindo-se um rito processual longo e de alto custo – que envolve a realização de inúmeros levantamentos, pesquisas científi cas, estudos e vistorias –, o EIA e o Rima

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precisam ter o aceite do órgão licenciador para que sejam analisados por uma equipe técnica. O órgão licenciador, então, após a análise e o pedido de complementações, quando necessário, disponibiliza os estudos ambientais para a sociedade e abre um prazo de 45 dias, a contar da pub-licação no Diário Ofi cial, para o pedido de audiência(s) pública(s).

A equipe técnica deve analisar o EIA e o Rima e suas complementações, incorporar as contribuições da(s) audiência(s) pública(s) e produzir um parecer técnico conclusivo, atestando ou não a viabili-dade ambiental do empreendimento. Esse processo legal fi ca, na prática, como tem nos mostrado a história dos grandes empreendimentos hidrelétricos, subordinado à política do governo e é al-tamente moldado por interesses econômicos privados e públicos. Vale lembrar que, nesta articu-lação, a Aneel exerce papel preponderante na facilitação e intermediação das políticas setoriais e dos consensos públicos e privados.

No caso de licenciamento pelo Ibama, depois do Parecer Técnico, qualquer que seja a conclusão sobre a viabilidade do empreendimento, a decisão de deferir a Licença Prévia (LP) é da Diretoria de Licenciamento (Dilic). Se concedida a LP – geralmente com condicionantes, como tem sido praxe –, o Ibama estabelece o valor da compensação ambiental (teto de 0,5% do custo total do empreendimento) e defi ne sua aplicação. A LP é, também, uma licença de localização do projeto.

Com a LP concedida para o projeto hidrelétrico, se procede à próxima etapa, que é a licitação, por leilão público, para a compra de energia no ambiente cativo ou regulado – residencial, comercial e indústrias em geral. A defesa das hidrelétricas, pelo governo, como fontes de energia “limpa, barata e renovável”, é um discurso recorrente devido ao fato de que o Brasil tem um grande po-tencial hídrico. Os recursos hídricos pertencem ao Estado e ele pode outorgar seus usos para as empresas públicas e privadas, usando a licitação pública.

A Aneel estabelece um preço de referência, preço-teto, e quem propuser o maior deságio ganhará a concessão do bem público pelo prazo estabelecido de 30 anos e será responsável pela implan-tação e operação do empreendimento. No leilão, no mínimo 70% da energia a ser gerada deve ser vendida às distribuidoras. Só depois do certame, o consórcio vencedor elaborará o Projeto Básico Ambiental (PBA), que vai propor e detalhar os programas de mitigação para os impactos sociais e ambientais diagnosticados no EIA/Rima.

A Licença de Instalação (LI) só deverá ser concedida depois que o Ibama aprovar o PBA e se o con-sórcio tiver cumprido as condicionantes da LP.

O PBA é, portanto, a síntese do compromisso do empreendedor com a execução de ações e me-didas mitigadoras e compensatórias. Os programas que, em tese, devem mitigar e compensar os múltiplos impactos ambientais e sociais previstos com a implantação e operação do empreendi-mento são apresentados no PBA com detalhamento: a especifi cação, por programas e subprogra-mas, de objetivos, metas, indicadores e público-alvo, que devem orientar todas as ações.

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A proposta de todas as ações e medidas mitigatórias do PBA e o cumprimento de condicionantes da LP devem ser monitorados e avaliados pelo Ibama até a concessão da LI – com condicionantes, também –, que vai autorizar o início das obras. Muitos dos programas propostos podem ser de médio e longo prazos e transcorrerão – com a necessária fi scalização e o acompanhamento – du-rante e depois da construção.

A próxima etapa deste processo de licenciamento ambiental é a Licença de Operação (LO), que só pode ser emitida depois de cumpridos todos os requisitos, programas e cronogramas aprovados e que subsidiaram a LI. Concluída a obra e autorizada sua entrada em operação, as atividades pre-vistas no PBA, que exigem manutenção ou investimentos posteriores (em equipamentos públi-cos), passam a ser geridas pelo governo local.

A concessão da LO está condicionada, teoricamente, ao total cumprimento dos cronogramas do PBA pelos consórcios responsáveis pelos empreendimentos.

Conhecer esses programas e acompanhar os cronogramas de execução é, portanto, um desafi o central dentro de uma agenda de controle social e de defesa de direitos sociais e ambientais.

2. UM HISTÓRICO DA CONSTRUÇÃO POLÍTICA, DA ACEITAÇÃO E DA VIABILIDADE AMBIEN-

TAL DAS HIDRELÉTRICAS DO RIO MADEIRA

Sob a justifi cativa de desenvolvimento do País e da maior integração da Região Amazônica e con-tinental, nasceu o projeto do Complexo Madeira de aproveitamento econômico do rio Madeira, um dos maiores rios da Bacia Amazônica, que detém a maior e mais densa rede fl uvial do mundo, drenando cerca de 6,4 milhões de km² da América do Sul e contribuindo com 18% a 20% da descarga mundial das águas nos oceanos. O rio Amazonas é o depositário fi nal de todo esse sis-tema complexo de igarapés e tributários de todos os tamanhos.

Assim, a ideia de um consórcio formado por empresas públicas e privadas teria, sob a ótica do setor de energia no governo, condições econômicas e institucionais para erigir o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, formado pelas usinas hidrelétricas (UHEs) Santo Antônio e Jirau e eclusas. Desse pacote constava, também, a usina Binacional Brasil–Bolívia e outra, internacional – conjunto que possibilitaria a navegação do rio Madeira.

Seria um conjunto de empreendimentos para gerar energia, a princípio, para a região e o País, onde se viabilizariam 4.000 quilômetros de hidrovia, com o objetivo de transformar a Amazônia em um grande e lucrativo negócio (Leme Engenharia, 2006). Como bem expresso em texto de um parecer técnico (Ibama, 2007), os empreendimentos foram “inseridos num sítio de superlativos” pelos proponentes e, para os técnicos do Ibama, deveriam ter sido objeto de uma análise holística.

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Uma hidrovia no alto rio Madeira, do interior da Bolívia até o rio Amazonas, conectaria os rios Ma-deira, Guaporé e Beni. Esse projeto seria parte de um complexo defi nido pelo governo brasileiro como uma das obras complementares às UHEs Santo Antônio e Jirau, em Rondônia, e parte inte-grante do projeto de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) (Leme Engenha-ria Ltda. , 2003 A 2005)1.

Durante todo o processo de licenciamento, foram apresentados novos estudos e informações que possibilitaram uma ampliação das áreas de abrangência dos impactos sociais e ambientais defi ni-dos nos estudos iniciais.

SANTO ANTÔNIO E JIRAU

Em 1999, as Furnas Centrais Elétricas S.A. e a Construtora Norberto Odebrecht S.A. (CNO) formar-am uma parceria para implantar o Aproveitamento Múltiplo de Manso, no estado de Mato Grosso. Dois anos depois, a usina de Manso entrava em operação comercial com antecipação dos crono-gramas originais, estabelecendo aquilo que as empresas consideraram um amplo sucesso no de-senvolvimento da parceria público-privada.

Foi justamente este “sucesso” que acabou levando as duas empresas a buscar novos empreendi-mentos sob o pretexto de garantir a oferta de energia necessária à sustentação do crescimento econômico do País. Um novo negócio milionário passou a ser então o grande objetivo da parceria. A bem-sucedida experiência levou Furnas e Odebrecht a elaborar os estudos de inventário de rios considerados, por elas, como de relevante interesse. Formou-se aí o embrião do Complexo Ma-deira, que uniu duas empresas – uma pública e outra privada – para gestar no governo federal o planejamento de uma sucessão de empreendimentos hidrelétricos na Amazônia.

Furnas e Odebrecht miraram suas baterias em direção ao rio Madeira, que até aquele momento não tinha sido alvo, ainda, de estudos de inventário. Esse propósito acabou por facilitar a identifi -cação futura de outros potenciais hidrelétricos naquela região. As “boas” opções estavam, então, disponíveis na Amazônia, onde se concentravam 51% de todo o potencial hidrelétrico brasileiro, mas que, naquela época, apenas 5% eram explorados (Furnas Centrais Elétricas S.A. e a Constru-tora Norberto Odebrecht S.A, 2007)2. (Ibama, 2007)

Outro fato, no entanto, foi determinante para o avanço no propósito de barrar o rio Madeira. Na década de 1990, foi extinto o domínio territorial das empresas estatais, com a edição da Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995, que reestruturou o setor e autorizou a constituição de consórcios formados por estatais e empresas privadas com o objetivo de geração de energia elétrica. Com isso, a empresa Furnas pôde consolidar seu interesse pela Amazônia, pois a divisão territorial das estatais – segundo a qual cada uma dominava determinada região do País, o que a condicionava a atuar apenas no Sudeste – deixou de ser um empecilho.

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O rio Madeira apresenta signifi cativas variações de nível d’água entre as épocas de seca e de cheia, condição que o tornava extremamente atrativo e com condições de gerar energia. As empresas acabaram por usar as características especiais de vazão do rio Madeira como um fator positivo nas soluções de engenharia. Criaram a propaganda enganosa dos reservatórios reduzidos – usinas a fi o d’água – e da baixa concentração da ocupação nas margens. Com isso, minimizaram os impac-tos ambientais no aspecto socioambiental.

Além disso, as empresas venderam ao governo federal e às autoridades, na época, a imagem de que os projetos do Madeira seriam indispensáveis à integração sul-americana, graças à proximi-dade com os vizinhos Bolívia e Peru. O Complexo Madeira daria início, assim, à implantação do principal e mais ambicioso plano de integração regional de infraestrutura energética e de trans-portes na região.

Essa lógica justifi cou o investimento nos estudos do rio Madeira. Furnas e Odebrecht iniciaram, então, em 2001, o desenvolvimento dos estudos de inventário no trecho de 260 km entre a Vila de Abunã, na divisa com a Bolívia, e a cachoeira de Santo Antônio, nas proximidades da cidade de Porto Velho, no estado de Rondônia. Posteriormente, com a aprovação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), deram seguimento ao processo com os Estudos de Viabilidade Técnico-Econômica (EVTE).

Mais um ingrediente foi acrescentado aos motivos da imprescindibilidade do Complexo Madeira: a vocação do rio para a navegação, apontada nos estudos. Para viabilizar a navegação, foram indi-cados dois aproveitamentos hidrelétricos, um na cachoeira de Jirau, localizada a 130 km de Porto Velho, e outro na cachoeira de Santo Antônio, distante 10 km de Porto Velho. O respeito aos aspec-tos ambientais foi ignorado para dar lugar ao que as empresas chamaram de “desenvolvimento sustentável e de integração regional”.

Finalmente, aparadas todas as arestas, Furnas e Odebrecht apresentaram os Estudos de Inventário do rio Madeira para a Aneel, em 20 de novembro de 2002, nos quais apontaram os Aproveita-mentos Hidrelétricos de Santo Antônio e Jirau, que acabaram aprovados em 17 de dezembro do mesmo ano, em tempo recorde. A urgência se justifi caria, pois em 1º de janeiro de 2003 o novo governo, eleito em novembro de 2002, assumiria o poder.

Em 16 de janeiro de 2003, Furnas e Odebrecht receberam da Aneel o registro ativo para a re-alização dos Estudos de Viabilidade do mesmo trecho do rio Madeira e iniciaram os trabalhos de campo.

A Aneel autorizou a empresa Furnas Centrais Elétricas S.A. e a Construtora Norberto Odebrecht S.A. a desenvolver os estudos de viabilidade técnico-econômica e ambiental dos aproveitamentos hidrelétricos de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira. Segundo a legislação sobre concessões de

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serviços públicos (Lei nº 8.987/95), cada empreendimento vai para licitação pública depois da ob-tenção de Licença Ambiental Prévia. A licitação indica o grupo de empresas vencedor do certame, que será responsável pela construção e exploração do empreendimento hidrelétrico.

Em 2003, fi cou defi nido que o Ibama teria a competência do licenciamento dos empreendimen-tos e Furnas se encarregou de fazer a apresentação do Memorial Descritivo dos aproveitamentos.

O processo de licenciamento no Ibama começou a tramitar em 2004, com a primeira vistoria feita pelos técnicos na área de infl uência dos empreendimentos, para subsidiar a preparação do Termo de Referência. A minuta do Termo de Referência foi objeto de uma reunião pública em Porto Vel-ho, que contou com a participação do então governador Ivo Cassol, de senadores, deputados es-taduais e federais, vereadores e as demais autoridades estaduais e municipais do Poder Executivo.

Naquela mesma época, a empresa Furnas enviou o Memorial Descritivo da Linha de Transmissão, associada ao empreendimento, e nele considerou um corredor de 10 km de largura. Ainda em 2004, a empresa Furnas mandou ofícios ao Ibama, contestando alguns itens do Termo de Referên-cia e defendendo a impossibilidade de, nos estudos, fazer o diagnóstico dos impactos ambientais de toda a bacia do rio Madeira, sob a justifi cativa de que isso inviabilizaria o projeto. Requisitou, também, a retirada da exigência de investigar os impactos ambientais que afetariam o estado do Amazonas e que o estudo sobre as eclusas fosse postergado para o momento de sua concessão.

Outra curiosidade histórica e que teria repercussões futuras foi que, nesse mesmo ofício, a em-presa Furnas pediu para que o EIA específi co do sistema de transmissão fosse retirado do Termo de Referência. Segundo a empresa, o Novo Modelo Institucional do Setor Elétrico, estabelecido pela Lei nº 10.847/2004, teria criado regras diferenciadas para o licenciamento de linhas de trans-missão e, por isso, a licitação deveria ser feita tendo-se como base o traçado preliminar, que seria posteriormente desenvolvido pelo vencedor, antes da concessão da LP.

O então coordenador-geral de Licenciamento, Luiz Felippe Kunz Júnior, em ofício, aceitou todas as restrições impostas por Furnas. Em setembro de 2004, a versão fi nal do Termo de Referência foi aprovada e encaminhada a Furnas, estabelecendo que os empreendimentos devessem ser tratados como um complexo e seus estudos ambientais desenvolvidos de forma conjunta. Foi a primeira menção ofi cial ao Complexo Madeira.

Ficou então determinado por “decreto” fi rmado entre Furnas e Ibama que o estado do Amazonas não iria sofrer as interferências dos projetos, que a bacia hidrográfi ca do rio Madeira era muito grande para ser estudada quanto aos impactos decorrentes dos empreendimentos (portanto, melhor desconhecê-los) e que as linhas de transmissão não precisavam de EIA/Rima antes da licitação. Começaram aí as ilegalidades no pro-cesso de licenciamento das UHEs de Santo Antônio e Jirau.

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Esse procedimento de aprovação do Termo de Referência selou defi nitivamente o destino do rio Madeira, onde seriam implantados dois dos mais polêmicos projetos em construção na Amazônia.

3. UMA SÍNTESE DO PROCESSO DE LICENCIAMENTO E DE SEUS EVENTOS DE MAIOR REL-

EVÂNCIA

3.1 O EIA/RIMA DAS UHES DE JIRAU E SANTO ANTÔNIO

As hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau estão sendo construídas no rio Madeira e têm capaci-dade instalada de 3.150 MW e 3.300 MW, respectivamente. O projeto licenciado pelo Ibama prevê a utilização de turbinas do tipo bulbo e áreas inundadas de 271 km² e 258 km².

A partir de maio de 2005, se deu o início, propriamente dito, do processo de licenciamento ambi-ental das UHEs de Santo Antônio e Jirau pelo Ibama. A empresa Furnas Centrais Elétricas proto-colizou o requerimento da Licença Prévia, juntamente com os três volumes do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental (Rima). No mesmo dia, a empre-sa Furnas deu entrada no estudo “Complexo do Rio Madeira – Avaliação Ambiental Estratégica” e, sem justifi cativa prévia ou que se tenha conhecimento, este estudo foi retirado do processo, após um mês, pela própria empresa. Somente em agosto daquele mesmo ano o estudo voltou a ser encaminhado, mas desta vez para a Secretaria Executiva do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e para as Secretarias de Coordenação da Amazônia e de Biodiversidade e Florestas.

O Ibama considerou o EIA/Rima apto a ser analisado, apesar de ter apontado falhas no cumpri-mento do Termo de Referência, mas que no momento apropriado seriam sanadas mediante pedi-dos de complementação no processo de avaliação da viabilidade ambiental. Outro estudo3 iden-tifi cando as unidades de conservação afetadas pelos reservatórios foi apresentado por Furnas ao Ibama ainda em 2005.

Em 2005, sem justifi cativas, o Ibama contratou o consultor Marcelo Gonçalves de Lima, do Pro-grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), para elaborar Relatórios de Análise Técnica, em especial sobre o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira (uma cópia do extrato do contrato é apresentada a seguir):

Pg. 92. Seção 3. Diário Ofi cial da União (DOU) de 14/10/2005

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais RenováveisExtratos de Contratos

EXTRATO DE CONTRATO DE TRABALHO nº 2005/002195-00. Projeto BRA/02/011 – Licenciamento Ambiental Federal.OBJETO: Elaborar Relatórios de Análise Técnica relativos aos aspectos pertinentes a

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sua formação, de estudos e programas ambientais (EIA, EA, PBA), elaboração de ter-mos de referência e checagem de estudos para Pequenas Centrais Hidrelétricas, Usinas Hidrelétricas e Linhas de Transmissão. Particularmente o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira [grifo meu] e regularização das usinas hidroelétricas de Furnas, entre outros.VALOR DO CONTRATO: R$ 18.000,00 (dezoito mil reais)VIGÊNCIA: 08/09/05 a 30/12/05MODALIDADE: ProdutoSIGNATÁRIO: Carlos Lopes, Representante Residente do PNUD no Brasil.CONTRATADO: Marcelo Gonçalves de Lima, residente em Brasília/DF - Brasil, portador do CPF: 397.966.121-00.

A despeito das diretrizes traçadas pelo Termo de Referência, em 30 de novembro de 2005, o con-sultor do PNUD emitiu o Parecer Técnico nº 141/2005-Colic/Cglic/Diliq/Ibama (fl s. 339/343 dos au-tos do processo de licenciamento), por meio do qual fez severas críticas ao licenciamento (trecho reproduzido a seguir):

O trabalho, como um todo, não deve ser descartado, pois o mesmo levantou uma série de dados econômicos e sociais para a região de inserção do Complexo do Rio Madeira, caracterizando-o de forma socioeconômica. Entretanto, como descritor das variáveis ambientais que serão modifi cadas e para propor alternativas para o desenvolvimento sustentável, ele é bastante falho. Além do mais, a parte ambiental não foi considerada de forma apropriada no estágio inicial da tomada de decisão. Desta forma, perde o seu valor como avaliação estratégica. Vale a pena salientar, entretanto, que uma Avaliação Ambiental Estratégica é sem dúvida uma forte ferramenta para o planejamento de políticas, programas e projetos. Portanto, deveria ser adotada como prática comum pelos defi nidores destes [grifo meu].

Foi no fi nal ainda de 2005 que um fato inusitado selou o início, efetivamente, de um processo de licenciamento conturbado e marcado por pressões políticas. Em 20 de dezembro, a então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, recebeu o Aviso n° 295/GM/MME, assinado pelo então ministro de Minas e Energia, Silas Rondeau Cavalcante Silva, contendo 14 parágrafos numerados. O 13° tem o seguinte teor:

13. Assim, tendo em vista a importância dos aproveitamentos hidrelétricos Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, e Belo Monte, no rio Xingu, considerados prioridades estratégicas de governo para suprir a demanda de energia elétrica no País já em 2011 – que se não forem viabilizados com a celeridade requerida poderá ser absolutamente danoso à expansão da oferta e impor riscos para o atendimento à sociedade e à base de sustentação do crescimento e desenvolvimento do País –, mostra-se importante e indispensável recorrer uma vez mais a Vossa Excelência, solicitando a vossa diligência decisiva para que essa questão seja considerada como prioritária no acompanhamen-

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to dos estudos pelo Ibama e na viabilização do processo de licenciamento no menor prazo possível.

Esse “aviso” claro é prova da urgência que o governo tinha em licenciar o Complexo Madeira em atenção às “prioridades estratégicas” para “suprir a demanda” de energia do País.

Em apenas três dias e meio de fevereiro de 2006, os técnicos do Ibama fi zeram a primeira vistoria nas áreas de infl uência das UHEs de Santo Antônio e Jirau. A descrição sucinta dessa vistoria im-pressiona pela falta de informações e pelo pouco tempo empregado para se ter uma fotografi a confi ável e obter subsídios da imensa área de abrangência das hidrelétricas. O trecho do rio Ma-deira a ser ocupado pelas estruturas e pelos reservatórios das UHEs de Santo Antônio e Jirau vai de Porto Velho até Abunã, na divisa com a Bolívia, o que representa uma extensão de aproximada-mente 450 quilômetros. A expedição era formada por representantes de Furnas, da Odebrecht, da Secretaria do Meio Ambiente de Rondônia e do Ibama.

Uma primeira análise preliminar do EIA/Rima levou o Ibama a emitir um parecer em 24 de fever-eiro de 2006, comprovando a necessidade de complementação de determinados estudos para ser possível se chegar a uma conclusão sobre a viabilidade ambiental dos empreendimentos.

A equipe técnica considerou que adequações de alguns itens do estudo seriam imprescindíveis para poder submetê-lo às audiências públicas. Quatro meses depois, em junho, um novo parecer dos técnicos do Ibama concluiu que as complementações ao EIA/Rima dos Aproveitamentos Hi-drelétricos (AHE) de Santo Antônio e Jirau não eram “sufi cientes e/ou satisfatórias tecnicamente para o aceite dos estudos e análise da viabilidade ambiental dos empreendimentos, fazendo-se necessária a reapresentação dos itens considerados como não atendidos”.

Os problemas com o EIA/Rima eram gritantes, mesmo com as complementações. Te-mas que na época não foram explorados e diagnosticados com a necessária adequação se perpetuariam sem solução. Nesse início do processo doloroso do licenciamento das duas hidrelétricas, além dos questionamentos veementes por parte da equipe técnica do Ibama, a sociedade se mobilizava para fazer resistência aos planos de barramento do rio Madeira. Até então, movimentos sociais, ONGs e povos indígenas desconhe-ciam o teor do EIA sob análise.

Questões importantes estavam sendo mal estudadas, tais como: (1) a dinâmica de utilização das várzeas nas áreas compreendidas entre o remanso de Jirau e a jusante de Santo Antônio; (2) as perdas de áreas de lazer naturais; (3) a área tombada da estrada de ferro Madeira-Mamoré, sem uma proposta de solução que obedecesse às regulamentações de uso e manejo de proteção dos bens culturais; (4) programas ambientais que não foram readequados conforme foi solicitado; (5) os importantes estudos sedimentológicos, cuja requisição, feita pelo Ibama, não foi atendida pelas empresas; (6) a remobilização do mercúrio, questão que não havia sido explorada de forma

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a atender à cautela que a gravidade do problema exige e que difi cilmente poderá ser mitigada.

Até hoje, a situação de contaminação por mercúrio permanece nebulosa na região das usinas do Madeira. O EIA deveria ter se aprofundado, como exigiam as recomendações do Ibama, sobre os níveis de concentração de mercúrio, além do prognóstico de qualidade da água. A conclusão do Parecer Técnico nº 14/2007 do Ibama considerou estudos que estimam que 40t de mercúrio este-jam depositadas na sub-bacia do rio Madeira, localizadas principalmente nas áreas de cachoeiras ou remansos. A remobilização desse mercúrio se daria na fase de construção das usinas e durante e após a fase de enchimento dos reservatórios.

Em setembro de 2006, novo parecer do Ibama concluiu que – apesar de ainda se manter a in-defi nição do problema relacionado à área tombada da estrada de ferro Madeira-Mamoré e da continuidade das investigações e dos monitoramentos dos fenômenos ligados aos sedimentos – o EIA/Rima estaria disponível para a sociedade e para a convocação das audiências públicas. A equipe técnica considerou, então, aptos os estudos e as complementações para que sejam anali-sados quanto à viabilidade ambiental dos empreendimentos.

A questão dos sedimentos viria a ser uma das maiores controvérsias no processo de licenciamen-to. Inúmeros estudos de especialistas e pesquisadores de universidades demonstraram que o rio Madeira, o terceiro maior rio do mundo em transporte de sedimentos, não poderia ser barrado. As usinas teriam uma vida útil muito inferior à média mundial, dado que foi comprovado nos estudos de viabilidade.

O processo de licenciamento ambiental continuou sendo alvo de questionamentos pela socie-dade e pelo Ministério Público. Em junho de 2006, numa atitude inusitada, o Ministério Público Estadual de Rondônia celebrou um Termo de Compromisso Ambiental (TCA), sem transparência, em que se propôs a acompanhar o processo de licenciamento do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, mediante o oferecimento de dois relatórios técnicos de avaliação dos estudos ambien-tais, em análise no Ibama. Os relatórios, que causaram uma verdadeira surpresa, foram elaborados pela empresa de consultoria indicada pelo MP no próprio TCA.

Segundo os termos do TCA4, que foi assinado por representantes do Ministério Público Estadual de Rondônia e pela Construtora Norberto Odebrecht, os relatórios deveriam conter “medidas, pro-gramas e atividades previstas para controle, mitigação e compensação de cunho socioecológico”. Mais intrigante ainda foi o fato de que o MP, sem pesquisa, consulta ou licitação, tenha indicado uma empresa de consultoria, a Companhia Brasileira de Projetos e Empreendimentos (Cobrape), com sede em São Paulo (SP), para reunir e coordenar os trabalhos do grupo de consultores e para fazer uma avaliação “independente” dos estudos ambientais do Complexo Madeira.

Outro dado igualmente curioso foi o fato de que o MP tenha determinado que o próprio consórcio formado por Furnas e Odebrecht arcasse com as despesas de contratação da Cobrape:

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3. O Consórcio se compromete a arcar com as despesas de contratação da Cobrape, segundo os termos da proposta anexa ao presente TCA, devendo encaminhar à Aneel os documentos referentes à contratação de serviços e comprovar os valores relativos às despesas para fi ns de ressarcimento dos custos assumidos na fase de licenciamento ambiental.

4. O Ibama poderá acompanhar, solicitar e prestar esclarecimentos, de maneira ampla, durante toda a condução dos estudos de avaliação e a elaboração dos relatórios a ser-em preparados para o MP, que deverão preencher todas as exigências legais aplicáveis.

A primeira parte do trabalho de análise dos estudos ambientais para a construção das UHEs de Santo Antônio e Jirau levou três meses e reuniu 35 consultores nacionais e internacionais. Na época, fi cou claro que o Ministério Público do Estado de Rondônia foi precipitado e se antecipou ao atender às reivindicações do consórcio, que clamavam por mais celeridade no processo de licenciamento. Os técnicos do Ibama cumpriam o seu papel na análise criteriosa dos estudos am-bientais, que necessitavam de muitas complementações, dada a complexidade dos empreendi-mentos e tendo-se em vista sua relação socioambiental com a região. Numa análise mais acurada do relatório coordenado pela Cobrape, percebe-se uma disfarçada síntese do EIA/Rima, além de certa concordância com o diagnóstico nele apresentado.

O “famoso” relatório da Cobrape foi objeto, inclusive, de um requerimento apresentado ao Con-selho Nacional de Meio Ambiente (Conama), em cujo texto ONGs questionaram a legitimidade do relatório e a falta de transparência do Ministério Público do Estado de Rondônia na decisão e indicação de uma empresa privada. Qual foi a provocação que motivou o MP a se manifestar?

2 Por ocasião da discussão, durante a 85a Reunião Planária, sobre o processo no. 020

00.0045752006-21, que trata de requerimento de informações sobre Termo de Compromisso

Ambiental – TCA fi rmado entre o MPE de Rondônia e o consórcio FRNAS/ODEBRECHT para

produzir pareceres de especialistas independentes sobre o EIA/RIMA das hidrelétricas Santo

Antônio e Jirau, foi aprovado o encaminhamento, a pedido da Conselheira da entidade ambi-

entalista APROMAC, Zuleica Nyez, das seguintes perguntas para o Ministério Público Estadual

de Rondônia.

1. Quais os critérios que foram utilizados para a indicação da empresa COBRAPE, que exec-

utou as contratações dos especialistas para o cumprimento do TCA fi rmado com o Consórcio?

2. Quais os valores combinados com essa empresa para pagamento de seus serviços?

3. Quais os valores pagos para os especialistas contratados?

4. Considerando que o órgão ambiental responsável pelo licenciamento (IBAMA), na época

da elaboração da conclusão dos estudos contratados pela COBRAPE, ainda não havia deter-

minado a viabilidade do empreendimento em questão (Complexo do Rio Madeira), porque o

documento fi nal busca produzir uma “Agenda de Viabilização Sócia-Econômica e Ambiental”

para o empreendimento, ainda mais considerando a existência na região de uma mobilização

social contrária à obra, formada por diversos movimentos sociais e associações de ...

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Finalmente, em setembro de 2006, depois de incansáveis reuniões entre os técnicos do Ibama e os responsáveis pelos estudos ambientais, foi publicado o edital que disponibilizou o EIA/Rima para consulta e abriu o prazo de 45 dias para o pedido de audiências públicas. Foram marcadas quatro audiências públicas (APs) para apresentação do EIA/Rima das UHEs de Santo Antônio e Jirau. Até então, a Funai ainda não havia se manifestado com relação às terras indígenas que seriam afeta-das pelos empreendimentos, o que só ocorreu em outubro de 2006 (portanto, um mês depois de terem sido marcadas as audiências públicas).

Naquela época, o Ministério Público ajuizou a primeira Ação Civil Pública (ACP) contra o Complexo do Madeira, com pedido liminar de cancelamento das APs, provocado pelos movimentos sociais e por ONGs. As audiências marcadas – todas para o município de Porto Velho – não haviam sido sufi cientemente divulgadas em veículos de grande circulação. Além disso, os exemplares do EIA/Rima não estavam disponíveis em tempo hábil para a consulta da sociedade.

A primeira AP – marcada para o dia 8 de novembro, para o distrito de Abunã – foi suspensa por ordem do juiz federal Élcio Arruda, da 3ª Vara Federal, que atendeu ao pedido liminar do Ministé-rio Público Federal (MPF) e do Ministério Público do Estado de Rondônia (MPE-RO). A AP marcada para 9 de novembro, para o distrito de Mutum-Paraná, também foi suspensa pela mesma decisão judicial.

A liminar concedida pelo juiz Élcio Arruda foi cassada no dia seguinte, 10 de novembro de 2006, por decisão judicial da desembargadora Maria Isabel Diniz Gallotti Rodrigues, do Tribunal Regional Federal (TRF), que autorizou a realização da 3ª AP, no distrito de Jaci Paraná. Em 11 de novembro, foi realizada a AP em Porto Velho, com um público aproximado de 1.100 pessoas. Um novo edital convocou a sociedade para as audiências que haviam sido suspensas em Abunã e Mutum-Paraná, para os dias 29 e 30 do mesmo mês.

Finalmente, em dezembro, uma vez concluídas as audiências públicas de praxe, o Ministério Públi-co do Estado de Rondônia protocolou, no Ibama, o Relatório da Cobrape que analisou prematura-mente o conteúdo dos EIA/Rima das UHEs de Santo Antônio e Jirau, tornando-o parte do processo de licenciamento.

Um dos maiores imbróglios do início conturbado do processo de licenciamento das UHEs de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, foi o já citado Relatório dos Serviços de Consultoria Especializada para “Análise do Conteúdo dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e do Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente (Rima) dos Aproveitamentos Hidrelétricos de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, Estado de Rondônia” 5, contratado pelo Ministério Público do Estado de Rondônia.

O documento, que acabou integrando o processo de licenciamento ambiental dos empreendi-mentos, foi apresentado como uma forma de análise crítica do conteúdo do EIA/Rima e para “amparar” (justifi cativa dos empreendedores) o Ministério Público, na qualidade de defensor dos

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interesses da sociedade. O custo desse relatório, que foi divulgado depois que um requerimento que o questionava foi protocolado por ONGs ambientalistas no Conama, chegou a R$ 500 mil.

Na introdução do relatório da Cobrape6, que tem 816 páginas, consta que o objetivo de sua elabo-ração seria a necessidade de “garantir o rigoroso cumprimento da legislação ambiental aplicável e o adequado tratamento dos impactos potenciais sociais e ecológicos; e assegurar a devida apli-cação do conjunto de benefícios previstos com a implantação e operação do referido Complexo”.

Numa clara crítica à considerada demora na análise criteriosa dos empreendimentos que alterarão para sempre a face da Amazônia e ao papel do órgão licenciador e aos seus técnicos, a pretensão foi criar outra equipe (evidentemente mais ágil) de especialistas7, de reconhecido conhecimento técnico e experiência nacional e internacional, para “pautar” o processo em curso.

Outro fato pouco esclarecido, ocorrido no início de 2007, já antecipava os problemas institucion-ais e políticos no processo de licenciamento das UHEs do rio Madeira. Por intermédio de um ofício, o Ibama cobrou da Aneel a aprovação do projeto das usinas, condição indispensável para que se prosseguisse nas análises do EIA/Rima. Em resposta, a Aneel informou que o Parecer Técnico dos projetos de Santo Antônio e Jirau ainda não estava fi nalizado.

Ainda em fevereiro de 2007, o mesmo consultor do PNUD contratado pelo Ibama em 2005, Mar-celo Gonçalves de Lima, apresentou um novo Parecer Técnico (nº 06/2007 – Cohid/Cgene/Dilic/Ibama) com a análise dos estudos e dos impactos ambientais das UHEs de Santo Antônio e Jirau referentes à fauna terrestre e às unidades de conservação. O consultor, que desta vez foi contrata-do para analisar os estudos sobre o conjunto das espécies animais da região e as áreas protegidas no processo de licenciamento das usinas, criticou as lacunas no EIA/Rima.

Em 21 de março de 2007, a Coordenadoria de Licenciamento do Ibama emitiu o Parecer Técnico nº 014/2007 – Cohid/Cgene/Dilic/Ibama, que analisou o EIA/Rima e os documentos referentes às UHEs de Santo Antônio e Jirau, objetivando a emissão de parecer quanto à viabilidade ambiental dos empreendimentos. O documento, com 221 páginas, seria uma peça crucial e controversa no desenrolar do processo de licenciamento do Complexo Madeira.

Na análise mais uma vez criteriosa dos técnicos que assinaram o parecer, foram mencionadas didaticamente todas as inconsistências detectadas no EIA/Rima. O tópico que causaria maior polêmica era o que se referia ao conhecimento das questões sedimentológicas e de transporte e deposição de sedimentos, tema de suma importância para qualquer atividade a ser realizada no rio Madeira.

Os técnicos apontaram, diante do dado referente à magnitude da carga de sedimentos, uma das características mais marcantes do rio Madeira, a ausência de estudos e de prognósticos, questão que abria uma lacuna e apresentava a falta de conhecimento dos riscos potenciais aos próprios empreendimentos.

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Não ter considerado nos estudos a bacia hidrográfi ca do Madeira, na sua totalidade, é o grande erro apontado por especialistas e pela própria equipe do Ibama. Essa seria a maior e mais grave falha nos estudos técnicos das UHEs e que até hoje persiste.

Então, a vida útil das usinas do Madeira passou a ser objeto de ampla discussão. Uma das princi-pais dúvidas ainda é o assoreamento dos reservatórios das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau. E foi assim que, ainda em 2007, o governo contratou Sultan Alam, especialista internacional em sedimentos, para dar seu parecer sobre a usina de Santo Antônio.

O consultor internacional, na verdade, foi contratado pelo Ministério de Minas e Energia (MME), com recursos do Banco Mundial, para “confi rmar” a tese contida nos estudos de Furnas e da Ode-brecht, ou seja, de que não haveria assoreamento dos reservatórios e perda da vida útil dos em-preendimentos. Especialistas e ambientalistas estavam bombardeando o governo com estudos que comprovam a inviabilidade de barrar o rio Madeira, o terceiro maior rio do mundo em trans-porte de sedimentos.

Sultan Alam elaborou seu parecer sobre a usina de Santo Antônio com base na revisão dos relatóri-os dos estudos de viabilidade, mediante visita ao rio e análises das características de transporte de sedimentos com o reservatório a fi o d’água. O reservatório a fi o d’água, pilar mestre das justifi ca-tivas do governo, reduziria os impactos ambientais.

O relatório original, em inglês, do consultor Sultan Alam foi traduzido na íntegra pelo MME em janeiro de 2007. Inexplicavelmente, a minuta – ainda em inglês – só foi encaminhada ao Ibama três meses depois. A versão da minuta em português, feita pelo Ibama, foi juntada ao processo de licenciamento com diferenças de conteúdo e de número de páginas. Na versão incompleta fal-tava um estudo comparativo entre o arranjo original aprovado pela Aneel e outro, mais efi ciente, proposto por Sultan Alam e que estava na versão original em inglês e na tradução do MME.

A ironia maior foi que o especialista em hidrossedimentologia, contratado pelo próprio governo, havia concluído que o projeto da usina de Santo Antônio teria que ser alterado. Com as mod-ifi cações propostas nos arranjos das estruturas, haveria uma economia no custo das obras, di-minuição do depósito de sedimentos junto à barragem, maior efi ciência no funcionamento das turbinas e redução da área alagada, entre outros benefícios. Com a alteração do projeto, proposta por Sultan Alam, seria possível diminuir consideravelmente o volume total de escavações e o ta-manho da barragem em mil metros, o que iria reduzir os custos da construção. Todas as conclusões do especialista foram omitidas pelo governo federal nas divulgações feitas pela mídia.

Sultan Alam chegou até a indicar a necessidade de melhorar o processo de saída de areia e cas-calhos para evitar o assoreamento do reservatório. Ele, um dos maiores especialistas do mundo, assumiu que haveria, sim, o assoreamento e a redução da vida útil dos empreendimentos, que estão custando aos cofres públicos bilhões de reais. Sultan Alam foi muito claro ao apontar as fragilidades do projeto.

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As conclusões, no entanto, não foram assimiladas na interpretação que o MME e a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff , fi zeram do parecer de Sultan Alam. Eles distorceram as con-clusões do parecer, divulgando que não haveria assoreamento no reservatório e nem risco à vida útil das hidrelétricas. Além disso, de quebra, descartaram a evidência das consequências que as alterações do volume dos reservatórios causariam em terras bolivianas.

Finalmente, o especialista mencionou a necessidade de constar do projeto formas adicionais de escoar a água em caso de cheias do rio além do normal (ele apontou que isso não estava pre-visto no projeto aprovado), para – no caso de uma emergência – evitar uma catástrofe em Porto Velho. A capital de Rondônia fi ca a cerca de cinco quilômetros, na próxima curva do rio Madeira, na jusante (rio abaixo) da UHE de Santo Antônio. Por isso, no caso de rompimento da barragem, motivado por algum evento climático extremo, a cidade poderia ser arrasada. Essas informações, conclusões e o layout de um novo arranjo das estruturas, proposto por Sultan Alam, nunca foram divulgados pelo MME ou pela Diretoria de Licenciamento do Ibama. As sugestões de segurança signifi cariam uma mudança no projeto, o que traria até redução dos custos das obras e dos impac-tos. Consequentemente, custos menores para a construção representariam um preço menor para o megawatt-hora (MWh) leiloado.

O relatório de Sultan Alam contratado pelo governo já estava pronto em janeiro de 2007, antes, portanto, do Parecer Técnico nº 14, de 21 de março de 2007, emitido pelo Ibama, que compro-vou que não havia viabilidade ambiental para a concessão da licença prévia das UHEs de Santo Antônio e Jirau. Apesar dos riscos, que prevalecem até hoje, a Licença Prévia (LP) foi concedida em 9 de julho de 2007. Em 2008, Sultan Alam foi contratado novamente; desta vez, para dar um parecer sobre Jirau. A história se repetiu.

Documentos disponíveis:

Parecer completo de Sultan Alam, em inglês, http://dl.dropbox.com/u/11462043/

Rel%20consultor%20MME%20Sultan%20Alam%20ing%2011%2005%2007.pdf

Minuta da versão em português, http://dl.dropbox.com/u/11462043/11603%20Sul-

tan%20Alam%20MME%20Portugu%C3%AAs.pdf

Versão completa em português, http://dl.dropbox.com/u/11462043/Relatorio%20Sul-

tan%20Alam%20traducao%20MME1.pdf

Ofício do Ibama ao MME, http://dl.dropbox.com/u/11462043/

Confi rma%C3%A7%C3%A3o%20of%C3%ADcio%20MME%20relat%C3%B3rio%20

sultan_ofi cio.pdf

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3.2 A LICENÇA PRÉVIA DAS UHES DE SANTO ANTÔNIO E JIRAU

Diante dos graves indícios que acarretaram a inviabilidade ambiental dos empreendimentos e a insufi ciência do EIA/Rima, apontados no Parecer Técnico nº 14/2007 – COHID/CGENE/DILIC, elabo-rado em 21 de março de 2007, a equipe técnica do Ibama recomendou a não concessão da Li-cença Prévia e a elaboração de novos estudos de maior alcance.

Entre os principais questionamentos – que seriam alvos de muitas ações civis públicas ajuizadas por ONGs, pelo Ministério Público Federal e por análises de especialistas –, constavam do parecer os seguintes:

(i) há notória insufi ciência dos estudos e complementações apresentados, fato at-estado pelas contribuições de demais órgãos e entidades ao processo, notadamente o Relatório de Análise do Conteúdo dos Estudos de Impacto Ambiental proporcionado pelo Ministério Público do Estado de Rondônia; (ii) as áreas diretamente afetadas e as áreas de infl uência direta e indireta são maiores do que as diagnosticadas; (iii) as vis-torias, audiências públicas e reuniões realizadas trouxeram maiores subsídios à análise do EIA, demonstrando que os estudos subdimensionam, ou negam, impactos poten-ciais. Mesmo para assumir um impacto, é preciso conhecê-lo, e à sua magnitude; (iv) as análises dos impactos identifi cados demonstraram a fragilidade dos mecanismos e propostas de mitigações; (v) a extensão dos impactos (diretos e indiretos) abrange outras regiões brasileiras e países vizinhos, comprometendo ambiental e economica-mente territórios não contemplados no EIA, sendo, desta forma, impossível mensurá-los; (vi) a nova confi guração da área de infl uência dos empreendimentos demanda do licenciamento, segundo a determinação presente na Resolução nº 237/1997, o estudo dos signifi cativos impactos ambientais de âmbitos regionais. Neste sentido, consid-erando a real área de abrangência dos projetos e o envolvimento do Peru e da Bolívia, a magnitude desses novos estudos remete à reelaboração do Estudo de Impacto Am-biental e instrumento apropriado a ser defi nido conjuntamente com esses países im-pactados. De qualquer forma, é necessária consulta à Procuradoria-Geral do Ibama para o adequado procedimento.

A conclusão do parecer técnico da equipe do Ibama foi o seguinte:

Dado o elevado grau de incerteza envolvido no processo; a identifi cação de áreas afetadas não contempladas no Estudo; o não dimensionamento de vários impactos com ausência de medidas mitigadoras e de controle ambiental necessárias à garantia do bem-estar das populações e uso sustentável dos recursos naturais; e a necessária observância do Princípio da Precaução, a equipe técnica concluiu não ser possível at-estar a viabilidade ambiental dos aproveitamentos hidrelétricos Santo Antônio e Jirau,

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sendo imperiosa a realização de novo Estudo de Impacto Ambiental, mais abrangente, tanto em território nacional como em territórios transfronteiriços, incluindo a reali-zação de novas audiências públicas. Portanto, recomenda-se a não emissão da Licença Prévia [grifo meu].

Em 30 de março de 2007, o então diretor de licenciamento, Luiz Felippe Kunz Júnior, ao apreciar a possibilidade de concessão da LP, decidiu que aquele momento seria apropriado para pedir as complementações previstas no parágrafo 2º do artigo 10 da Resolução Conama nº 237/97. De igual forma, salientou que essas complementações, mesmo depois que a sua equipe técnica con-fi rmou textualmente que não havia viabilidade ambiental para os empreendimentos, poderiam ser objeto de discussão com o próprio empreendedor.

Ao contrário do que se esperava, como indicaria o procedimento adequado, quando a equipe técnica não atesta a viabilidade de um empreendimento, o EIA/Rima deve ser descartado e deve ter início um novo processo de licenciamento ambiental, com um novo EIA/Rima. Porém, não foi isso o que aconteceu. O diretor de licenciamento optou por decidir contratar novos especialistas de notório saber e defi nir os próximos passos processuais, encaminhando consulta à Procuradoria Federal Especializada do Ibama sobre a possibilidade de realização de estudos em outros países, especifi camente no Peru e na Bolívia.

Com esses acontecimentos sendo alvo de críticas de especialistas, Luiz Felippe Kunz Júnior, em seu despacho, concordou com a impossibilidade de emitir a LP, naquele momento. Deixou aberta, então, a possibilidade de assinar a LP sem considerar sequer um novo processo de licenciamento, com a anulação do EIA/Rima, como indicava sua equipe. Essa foi, sem dúvida, uma saída estratégica e inédita para o imbróglio que hav-ia se estabelecido entre a conclusão da equipe técnica, com relação ao licenciamento do Complexo Madeira, e a Diretoria de Licenciamento do Ibama.

Paralelamente, em 28 de maio de 2007, foi publicada a Moção Conama nº 083/07, a respeito do aproveitamento hidrelétrico do rio Madeira, que solicitou ao presidente do Ibama a complemen-tação das lacunas apontadas na análise dos técnicos. Além disso, o documento solicitava que fossem demonstrados, de forma ofi cial para a população, os verdadeiros objetivos do empreendi-mento e as conclusões sobre a falta de viabilidade ambiental.

Depois do despacho do diretor de licenciamento, o Ibama contratou os “consultores independ-entes” que foram duramente questionados pela sociedade quanto à sua “independência”. Eles foram contratados pelo Ministério de Minas e Energia (MME), ou seja, pelo próprio órgão pro-ponente dos empreendimentos e com recursos oriundos de instituição fi nanceira que também estava interessada nos trâmites dos processos de licenciamento de hidrelétricas no Brasil, o Banco Mundial8.

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Para a surpresa geral da sociedade, em curtíssimo espaço de tempo depois da emissão do parecer técnico, a LP foi assinada em 9 de julho de 2007 pelo então presidente do Ibama, Basileu Alves Margarido Neto, considerado braço direito da então ministra de Meio Ambiente, Marina Silva. A LP apresentava 33 condicionantes, que acompanhariam o processo até a concessão da Licença de Instalação (LI) da UHE de Santo Antônio e depois até a LI da UHE de Jirau.

Fica evidente que a LP foi concedida de forma ilegal e em desrespeito não só ao parecer da equi-pe técnica, que concluiu não ser possível atestar a viabilidade ambiental dos empreendimentos, como também em desrespeito à decisão do Conama, expressa em sua Moção nº 083/2007. A LP foi concedida sem condicionantes para as eclusas, que também não estavam contempladas no Termo de Referência (TOR), no qual, entretanto, constava a necessidade de estudos ambientais sobre a hidrovia do rio Madeira (fl s. 136 e 141 dos autos do processo de licenciamento).

A hidrovia do Madeira constava do TOR, que solicitava a apresentação dos levantamentos e os potenciais impactos que considerassem a sinergia dos empreendimentos já implantados e os que estivessem em fase de implantação, bem como os inventariados na bacia do rio Madeira. O TOR pedia, principalmente, dados sobre a manutenção da vazão ecológica, a qualidade da água, os impactos na ictiofauna e nos remanescentes fl orestais, bem como os impactos socioeconômicos, além de assegurar a manutenção dos usos existentes. Toda essa análise deveria ser considerada, especialmente, no projeto da hidrovia do rio Madeira.

Mais ainda: deveriam ser feitos estudos no sentido de identifi car os principais usos da água e destacar as demandas futuras e os confl itos nos usos múltiplos da água – abastecimento, lazer e navegabilidade –, sempre com ênfase especial no projeto da hidrovia Madeira-Mamoré-Guaporé na Área de Infl uência Indireta (AII) e na Área de Abrangência Regional (AAR). Mais uma vez, nada disso foi realizado.

Com a concessão da LP sem a observância das recomendações retratadas no Parecer Técnico nº 14/2007, corroboradas pelo Despacho de 30/03/2007, e sem os novos es-tudos exigidos pela equipe técnica, confi gurou-se o absoluto desrespeito às normas legais aplicáveis e o total atropelo aos princípios da legalidade e da moralidade institu-cional.

Naquela época, alguns efeitos negativos já se faziam sentir na região, prevista para a implantação das usinas do Madeira, conforme noticiado pelo Jornal “O Estado de São Paulo”. A partir de julho de 2007, quando a LP foi concedida, o desmatamento na área de infl uência dos empreendimentos já aumentara 600%, em comparação com o verifi cado no ano de 2006, considerando-se que, até o mês anterior, o desmatamento tinha sido inferior ao de 2006. A LP teve o efeito prático de estimu-lar uma corrida de especulação sobre as terras da região, uma vez que sinalizou à sociedade que as obras iriam realmente acontecer.

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Em razão da ilegalidade que afetou o ato administrativo de concessão da LP, o Ministério Público Federal (MPF) de Rondônia ajuizou, em 13 de março de 2007, uma Ação Civil Pública (ACP) contra Furnas Centrais Elétricas, contra a Construtora Norberto Odebrecht e o Ibama, para interromper todo e qualquer ato em relação ao licenciamento ambiental do Complexo Hidrelétrico do Rio Ma-deira. Na mesma época, a ONG Amigos da Terra – Amazônia Brasileira também ajuizou outra ACP, por meio da qual pedia a anulação da LP, contra a União Federal, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o Ibama e Furnas Centrais Elétricas S.A.

Antes que a LP fosse concedida, o então diretor de licenciamento, Luiz Felippe Kunz Júnior, pediu afastamento do cargo. Para substituí-lo, foi nomeado Roberto Messias Franco, que acabou assu-mindo, mais tarde, a presidência do Ibama. Messias Franco também ignorou todas as conclusões e inconsistências do EIA/Rima apontadas pela equipe técnica e assinou um parecer favorável à concessão da LP em 4 de julho de 2007. Assim, num prazo recorde, em se tratando de processo de licenciamento ambiental no Brasil, a LP para as duas hidrelétricas – UHE de Santo Antônio e UHE de Jirau – foi emitida em 9 de julho de 2007.

O governo, então, partiu para formatar o leilão da UHE de Santo Antônio. As ACPs ajuizadas pelo MPF e por ONGs tiveram, em comum, fundamentos que apontavam a violação de princípios fun-damentais na condução do processo – inequivocamente sob pressão política – de licenciamento ambiental que culminou com a LP das usinas do Madeira: (i) o Princípio da Legalidade, quando se deixou de cumprir a norma legal para a emissão de Licença Prévia; e (ii) o Princípio da Probidade Administrativa, que impõe à Administração – no caso, a do Ibama – a obrigatoriedade de fazer prevalecer como único interesse o público (como o de garantir e preservar o meio ambiente eco-logicamente equilibrado, de acordo com o art. 225 da Constituição Federal).

3.3 OS POLÊMICOS LEILÕES DE SANTO ANTÔNIO E JIRAU

SANTO ANTÔNIO

Depois da concessão da LP, o leilão da UHE de Santo Antônio foi realizado em dezembro de 2007, e o lance vencedor (de R$ 78,87/MWh) foi feito pelo consórcio liderado pela Odebrecht. Furnas e Odebrecht haviam idealizado o projeto do Complexo Madeira e trabalhado nele durante seis anos, o que lhes permitiu total conhecimento técnico, sufi ciente para derrubar a concorrência, criar barreiras para o acesso às informações estratégicas sobre o empreendimento e, com isso, vencer o leilão.

A cartada fi cou por conta do lance, com um valor muito alto de deságio para os padrões do setor, feito pelo consórcio da Odebrecht, o que surpreendeu o mercado na época. O lance era muito maior do que o esperado, pois até então o consórcio contava que arremataria no futuro a UHE de Jirau, estratégia que, além de ter um cunho monopolista, proporcionaria também ganhos em es-

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cala. O relatório do TCU, antes do leilão, já sinalizava haver sobrepreço nos custos da UHE de Santo Antônio apresentados pelo consórcio de Furnas e Odebrecht.

O interesse principal da Odebrecht, uma das maiores empreiteiras brasileiras, sempre esteve nas obras civis de engenharia. Sua participação no consórcio vencedor permitiria que ela fosse a primeira a faturar com o empreendimento. Arrematar e construir as duas obras, Santo Antônio e Jirau, sempre foi seu objetivo principal, desde que o megaprojeto foi “vendido” para o governo federal.

JIRAU

Para o leilão da UHE de Jirau, que aconteceu em 19 de maio de 2008, o consórcio liderado pela Odebrecht era considerado favorito. Tinha a seu favor todo o conhecimento necessário dos estu-dos de viabilidade técnico-econômica (EVTE). Embora o consórcio tivesse a posse da “chave” para o projeto, algo deu errado, pois o consórcio acabou perdendo o leilão para o grupo formado pela gigante francesa GDF Suez, em parceria com outra grande empreiteira e concorrente brasileira, a Camargo Corrêa.

O consórcio vencedor do leilão de Jirau, liderado pela GDF Suez, surpreendeu o mercado, ao dar um lance com deságio muito maior do que o oferecido pelo consórcio Odebrecht e Furnas. O lance vencedor – R$ 71,80/MWh –, que tirou o concorrente favorito do páreo, teve como justifi -cativa a possibilidade de inovar nas características do projeto e na tecnologia dos equipamentos.

A GDF Suez e a Camargo Corrêa apresentaram, em seguida ao resultado do leilão, um novo pro-jeto de engenharia e a decisão de mudar a localização da UHE de Jirau. O consórcio informou que teria feito uma consulta informal à Aneel sobre a possível mudança física do local da UHE de Jirau, no rio Madeira, e que a agência lhe dera sinal verde. Para a empresa vencedora, a usina poderia custar menos (uma economia de R$ 1 milhão) se ela fosse construída nove quilômetros rio abaixo, no local chamado “Ilha do Padre”.

A Aneel divulgou uma nota logo após o leilão, na qual informou desconhecer ofi cialmente a proposta da GDF Suez para a mudança da localização de Jirau. Mas, em setembro de 2007, du-rante reunião com as empresas concorrentes ao leilão de Santo Antônio, presidida por Jerson Kel-man, na sede da Aneel, a questão sobre a viabilidade de um novo arranjo foi, sim, colocada pelo representante da GDF Suez. Houve quem dissesse, na época, que tudo se tratava de uma grande artimanha entre a Aneel e a GDF Suez para tirar o primeiro consórcio da jogada, com cartas mar-cadas:

1) A Aneel considera factível os investidores que desenvolveram outras opções de ar-ranjo/motorização realizar reuniões consultivas, individuais, com a equipe da Aneel, visando reduzir o risco de oferecer um preço de tarifa módico baseado em um projeto mais barato, lógico, sem a perda de segurança/qualidade?

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3.4 UM PROCESSO DE LICENCIAMENTO MARCADO POR IRREGULARIDADES

Outro fato ilustra perfeitamente a pretensão de Furnas e Odebrecht de ter o monopólio dos em-preendimentos do rio Madeira: as empresas não forneceram as informações técnicas sobre as sondagens no leito do rio Madeira no local escolhido para o eixo da barragem de Santo Antônio. A desculpa dada pelo representante de Furnas é que essa sondagem não tinha sido feita, pois não foi possível superar os obstáculos naturais do perigoso local da cachoeira de Santo Antônio. A velocidade das águas e a falta de segurança para a balsa que levava os trabalhadores impun-ham muitos riscos, segundo o que foi dito. No entanto, o conhecimento do terreno é imprescind-ível para dimensionar o tipo das fundações e as estruturas necessárias para a construção do em-preendimento e fazer os cálculos dos custos das obras principais.

Mais pontos obscuros do processo de licenciamento também foram questionados na época que antecedeu os leilões, como o fato de Furnas e Odebrecht, em 2003, não terem apresentado à Aneel estudos de alternativas com custos mais baixos. O consórcio vencedor do leilão de Jirau, liderado pela GDF Suez, mostrou que a opção feita originalmente parecia ser comparativamente mais cara. Com a mudança pretendida pelo consórcio vencedor, segundo a própria Suez, seria possível escavar até cinco vezes menos a rocha, por exemplo, uma diferença bastante expressiva. E se havia a possibilidade de alterações neste aspecto das obras civis, outras poderiam ser perfei-tamente possíveis.

Isso não era sinal, no entanto, de que a GDF Suez estivesse sendo ética, ao mostrar uma opção que teoricamente reduziria os custos da obra (isso só veio a benefi ciar o consórcio e, mais tarde, com-provou ser um artifício para ganhar o leilão). A estratégia acabou tirando do páreo seu principal e único concorrente.

Mais uma vez fi cou patente que no caso do processo das usinas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, prevaleceram os interesses fi nanceiros de grandes empreiteiras em detrimento dos recursos naturais e da sociedade, que, como mostrou a história futura das obras, acabaria pagando um preço antecipado muito mais alto pela energia que será gerada. Esses fatos poderiam ter levado a uma nova análise do TCU sobre os custos dos empreendimentos.

O leilão de Jirau despertou a sociedade, especialistas, ONGs e o Ministério Público para a possibi-lidade de haver custos “equivocados” ou sobrepreço nos dois empreendimentos. Além disso, aler-tou que, se tivessem sido feitos antecipadamente estudos de opções de localização e de arranjos das estruturas, os preços-teto dos leilões teriam sido inferiores. Com outros estudos em mãos, o consórcio vencedor do leilão da UHE de Jirau surpreendeu o mercado com um deságio maior e retirou da disputa o concorrente único e favorito. Não há dúvidas de que há sérias suspeitas, ainda, sobre o fato de que os custos das obras poderiam estar superdimensionados por Furnas e Odebrecht no projeto de todo o Complexo do Rio Madeira: nas hidrelétricas, nas eclusas e no sistema de transmissão.

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O processo todo dá a dimensão de como obras de infraestrutura podem custar mais do que de-veriam e que, além disso, ainda impactam o meio ambiente, a competitividade do país, os bolsos dos brasileiros e põem em risco a segurança de populações tradicionais e dos povos indígenas.

A sociedade brasileira ainda não tem ferramentas efi cientes para aferir, acompanhar e controlar o grande plano de “negócios” que se tornou o setor elétrico no Brasil pós-apagão de 2001. Esses fa-tos já seriam sufi cientes para defi nitivamente jogar uma “pá de cal” nos projetos hidrelétricos que estão sendo construídos no rio Madeira e que acabaram não servindo de lição para a sociedade brasileira repensar o modelo de desenvolvimento calcado na geração de energia por megausinas na Amazônia.

Belo Monte está aí como prova de que não aprendemos a lição.

Em 13 de junho de 2008, três organizações da sociedade civil (a Kanindé – Associação de Defesa Etnoambiental, de Rondônia; a Apromac – Associação de Proteção ao Meio Ambiente, do Paraná; e a Atla – Associação Terra Laranjeiras, de São Paulo) entraram com uma representação no Minis-tério Público Federal de Rondônia, na qual descreviam todas as falhas no processo das UHEs de Santo Antônio e Jirau.

O documento protocolado no MPF foi calcado nas questões apresentadas no Requerimento de Informações apreciado pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) na 90ª Reunião Or-dinária, em Brasília. A representação teve como objeto a exposição dos fatos relevantes que macu-lavam o processo de licenciamento das UHEs de Santo Antônio e Jirau. As organizações entend-eram que o Ministério Público deveria invocar o princípio da precaução, principal norteador das políticas ambientais, e adotar medidas de caráter emergencial quanto à viabilidade ambiental das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, em consonância com a legislação em vigor, para impedir que o licenciamento tivesse continuidade e que também fosse instaurado Inquérito Civil Público (ICP).

3.5 O PBA DE SANTO ANTÔNIO

O PBA de Santo Antônio foi entregue ao Ibama em 13 de fevereiro de 2008, quando também foi protocolado o pedido de concessão da Licença de Instalação (LI).

O Plano Básico Ambiental (PBA) da UHE de Santo Antônio deveria listar e detalhar os programas ambientais e os planos de trabalho exigidos, inclusive, pelas condicionantes da LP, mas não pas-sou de uma revisão e atualização do EIA/Rima. Essa foi mais uma prova de que os estudos ambien-tais analisados pelos técnicos do Ibama, para atestar a viabilidade ambiental do empreendimento e subsidiar a concessão da LP, não foram sufi cientes ou confi áveis. O PBA subsidia a Licença de Instalação (LI).

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O conteúdo dos programas apresentados no PBA não correspondeu às recomendações do EIA e foi omisso com relação às condicionantes específi cas da LP emitida pelo Ibama, em 10 de julho de 2007, para os dois empreendimentos hidrelétricos (Santo Antônio e Jirau). As medidas mitiga-doras e compensatórias, os monitoramentos e os estudos relativos aos impactos prognosticados, qualifi cados e quantifi cados no EIA se referiam aos dois empreendimentos.

Para atender à separação dos processos licitatórios determinada pela Aneel, seria preciso elaborar projetos e estudos diferenciados para cada um dos empreendimentos, fato que ocasionou o com-partilhamento de muitos dos programas do PBA pelas duas usinas.

Alguns programas (como os relativos à conservação da fl ora, da fauna e da ictiofauna; os relativos à saúde pública, ao monitoramento hidrossedimentológico e às ações quanto à jusante) foram considerados como compartilhamentos aplicáveis tanto a Santo Antônio como a Jirau. Foi, inclu-sive, estabelecido um cronograma segundo o qual os programas começariam sob responsabili-dade do consórcio de Santo Antônio e depois passariam a ser conduzidos pelos responsáveis por Jirau.

O Programa de Apoio às Comunidades Indígenas – que considera as TIs Karipuna e Karitiana e os índios isolados – e os Programas Relacionados ao Patrimônio Arqueológico, Pré-Histórico e Histórico foram considerados sob a responsabilidade conjunta de Santo Antônio e de Jirau e com uma divisão dessa responsabilidade específi ca para cada empreendimento.

No caso de Santo Antônio, o PBA não forneceu informações confi áveis sobre os programas para mitigação dos efeitos dos impactos na saúde pública, no ecossistema e nas terras indígenas. O plano foi omisso, por exemplo, em relação aos compromissos para o monitoramento dos depósi-tos de mercúrio no leito do rio Madeira, que seriam revolvidos com as escavações. Essa questão já havia sido alvo de vários pedidos por parte da equipe técnica quando o EIA estava sendo ana-lisado.

O PBA subestimou os impactos socioambientais decorrentes da implantação do empreendimen-to e os programas propostos foram espelhados em conclusões pouco convincentes e não com-provadas sobre o alcance dos impactos. Os cronogramas foram estabelecidos aleatoriamente.

No ano de 2008, de fevereiro a agosto, o Ibama analisou os programas do PBA apenas da UHE de Santo Antônio, que, a pedido da concessionária, passaria a seguir em processo independente da UHE de Jirau. Em junho, o Ibama já questionava a então Madeira Energia S.A. (Mesa) com relação aos Programas de Comunicação Social, Educação Ambiental e de Saúde Pública, pedindo refor-mulação e adequações, e com relação ao Programa de Monitoramento Hidrogeoquímico, em que solicitava apoio técnico para sua análise.

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Em 13 de junho, foi assinado o Contrato de Concessão de Uso de Bem Público para Geração de energia Elétrica entre a União e a Empresa Madeira Energia S.A. Na mesma época, foram também apresentados os projetos dos estudos para transposição dos peixes e o Plano de Ações Prioritárias de Saúde na Área de Canteiro de Obras do AHE de Santo Antônio e de seu entorno, para atender à condicionante 2.26 da LP.

Em julho de 2008, a Funai, fi nalmente, encaminhou o Parecer Técnico n° 017/2008-CMAM/CG-PIMA/DAS-Funai, sobre a avaliação do Programa de Apoio às Comunidades Indígenas (seção 20 do PBA).

Em agosto, o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade se manifestaria favorável ao empreendi-mento, mesmo tendo conhecimento dos impactos que a UHE de Santo Antônio provocaria na Floresta Nacional de Bom Futuro (Flona). Muitos outros problemas seriam debatidos no âmbito da análise do PBA, como aqueles relacionados aos impactos dos efeitos de remanso na Bolívia. Permaneceriam a pendência na questão do mercúrio no leito do rio Madeira e o risco de contami-nação dos peixes. Os problemas não cessariam, mas se avolumariam, apesar das intervenções do Ministério Público Federal e das pressões dos movimentos sociais e das ONGs.

Em 8 de agosto de 2008, o Ibama emitiu o Parecer Técnico nº 45/2008 – Cohid/Cgene/Dilic/Ibama, que analisou as informações do PBA da UHE de Santo Antônio, apresentado pela Empresa Ma-deira Energia S.A.(Mesa), e fez uma avaliação do cumprimento das condicionantes específi cas da LP n° 251/2007. O parecer teve o objetivo de subsidiar o pedido de Licença de Instalação (LI) feito pela concessionária.

A equipe técnica do Ibama concluiu pela não concessão da Licença de Instalação (LI) para a UHE de Santo Antônio. Novamente, diante de uma criteriosa avaliação do PBA e dos relatórios sobre o cumprimento das condicionantes, a equipe técnica constatou que os critérios para a emissão da LI não haviam sido observados. Não foi comprovado pela concessionária o atendimento de condi-cionantes. O PBA não detalhou ações que deveriam ser executadas para a mitigação dos impactos e os documentos apresentados não atenderam aos requisitos e preceitos de ordem legal.

Depois de incontáveis reuniões para a discussão de importantes aspectos do PBA, chegou-se à conclusão de que eles não foram estudados com a necessária clareza e profundidade. O destaque dos técnicos sobre as inconsistências foi dado para a questão dos efeitos de remanso e o pe-rímetro da área alagada. Outros problemas foram apontados (como a falta de documentos, o não cumprimento total de pelo menos 13 condicionantes da LP, as falhas na abordagem de alguns programas, como o Prognóstico da Qualidade da Água, o Monitoramento Limnológico e de Icti-ofauna e o Projeto do Sistema de Transposição dos Peixes).

Mesmo assim, em 13 de agosto, cinco dias depois do Parecer Técnico, a LI nº 540/2008 foi con-cedida, assinada por Roberto Messias Franco, que de coordenador de licenciamento havia sido

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guindado à posição de presidente do Ibama. A LI foi emitida com 48 condicionantes específi cas, que refl etiam e postergavam todas as falhas, as lacunas e os vícios tanto do PBA como das condi-cionantes da LP, apontados no parecer do dia 8 de agosto. Mais uma vez, a ilegalidade pontuou o processo de licenciamento das UHEs do Madeira.

Outra vez, a sociedade se deparou com mais uma licença irregular, em que o conjunto de condi-cionantes específi cas mais parecia outro Termo de Referência para novo EIA. As condicionantes da LP não tinham sido atendidas e, mesmo assim, o presidente do Ibama, Roberto Messias Franco, sem justifi cativa alguma e sem tomar conhecimento do parecer da sua equipe técnica, assinou a LI. As 48 condicionantes indicavam a necessidade de diagnósticos, programas, subprogramas, monitoramentos e previsão de objetivos, que serviriam apenas como mais um trampolim para a próxima fase, a da Licença de Operação (LO).

As obras começaram imediatamente.

Ainda no mês de agosto, depois da LI, a Câmara Técnica de Assuntos Internacionais (CTAI) do Con-ama ouviria as explicações dos representantes do Ministério de Relações Exteriores (MRE) sobre as UHEs do rio Madeira e os impactos que elas provocariam na Bolívia. Os questionamentos foram apresentados por Zuleica Nycz, conselheira do Conama (Apromac – PR), e Telma Monteiro, pes-quisadora independente, que elaboraram um documento no qual apontavam as preocupações manifestadas pelos movimentos bolivianos e brasileiros quanto aos empreendimentos do PAC no rio Madeira.

Os impactos no território boliviano já haviam sido considerados por especialistas e ainda se pro-curava discutir sua magnitude e como enfrentar isso no âmbito internacional. Um documento do movimento social boliviano comprovava que esses impactos seriam muito maiores do que o governo brasileiro explicava ao governo boliviano.

Em dezembro de 2008, surgiam os primeiros indícios daquilo que estava destinado para a região. O primeiro desastre ambiental, no início da fase das obras das ensecadeiras da usina de Santo Antônio, uma verdadeira hecatombe, decorrente da mortandade de toneladas de peixes exata-mente na época do defeso (quando os peixes sobem o rio para reprodução e desova e é proibido pescar), que não estava previsto no EIA/Rima. O Ibama abriu um processo de crime ambiental, lavrou multa e o MPF de Rondônia instaurou um Inquérito Civil Público (ICV).

Dessa época em diante, os fatos se sucederam e os atropelamentos da legislação ambiental pas-saram a ser uma constante, e não exceção. O MPF de Rondônia ainda tentava reverter a situação, ao ajuizar outra ACP, desta vez contra a mudança da localização de Jirau. As denúncias viriam de várias frentes: um vídeo produzido pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) mostrou que, muito antes de ser emitida a Licença de Instalação da hidrelétrica de Santo Antônio, o consór-cio Madeira Energia, responsável pela obra, já “negociava” a saída dos ribeirinhos, que teriam suas

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casas, terras e rendas afetadas.

Apesar de toda a pressão dos movimentos sociais, do MPF, das populações tradicionais que se-riam prejudicadas pelas UHEs, a LI de Jirau também foi concedida, no dia 13 de novembro de 2008. Mas, antes disso, havia notícias sobre a iminência da concessão de uma licença “parcial” para Jirau. O consórcio formado pela GDF Suez, que na época se chamava Enersus, divulgou a inten-ção de não construir mais a hidrelétrica se a licença não saísse até o dia 31 de outubro de 2008. O então ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, substituto de Marina Silva, disse que concederia a licença para o início das obras, pois – caso contrário – o governo teria que construir mais usinas térmicas a carvão. As pressões políticas eram cada vez mais intensas.

Não seria possível haver um esforço orquestrado mais hábil entre empresários e min-istros para viabilizar o “desmanche” da legislação ambiental. A sociedade pedia uma ação de improbidade administrativa contra Roberto Messias Franco, já que, sob sua administração como diretor de licenciamento e depois como presidente do Ibama, concedera duas licenças ilegais, a LP para as duas usinas e a LI de Santo Antônio.

Naquele momento, ele praticaria mais um ato administrativo ilegal, ao assinar uma licença inédita de instalação de canteiros de obras e ensecadeiras para Jirau sem os estudos ambientais, inclu-sive, que deveriam considerar a presença dos indígenas em isolamento voluntário ignorados no EIA/Rima elaborado por Furnas e Odebrecht.

3.6 O PROCESSO VICIADO DA UHE DE JIRAU DEPOIS DO LEILÃO

As irregularidades se sucederam numa velocidade vertiginosa. Tanto o Ministério Público como a sociedade civil perdiam a capacidade de acompanhar e apontar as falhas cada vez mais gritantes no processo de licenciamento. Depois do leilão, Sultan Alam, o consultor internacional especial-izado em sedimentos, foi chamado – desta vez, a pedido do consórcio Enersus – para dar um parecer sobre o projeto de Jirau e a alteração da localização do arranjo da referida usina.

Em julho de 2008, ele emitiu um novo relatório, devidamente traduzido por tradutor juramenta-do, sobre o projeto da UHE de Jirau, na Ilha do Padre, a 9,2 quilômetros rio abaixo do local original. Seu relatório mostrou preocupação com o comportamento estrutural da barragem diante da in-formação insufi ciente sobre os sedimentos. Haveria risco de perda das turbinas e de inviabilização de uma obra de dezenas de bilhões de reais de investimentos e, pior, depois de produzidos imen-suráveis prejuízos socioambientais.

Mais uma constatação sobre impactos não diagnosticados no processo de licenciamento, na fase dos estudos ambientais ou dos estudos de viabilidade, ainda que apontados pelos técnicos do Ibama, não impediu a concessão das licenças ambientais.

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O Ibama apontou, também, em documento técnico, que não tinham sido considerados os efeitos de remanso do reservatório de Jirau. Em 8 de outubro de 2008, a Nota Técnica nº 07/2008 apon-tava que haverá uma elevação do perfi l da linha d’água agravada “pela não consideração dos efei-tos de remanso ao longo do reservatório”. Mais grave ainda foi a afi rmação de que esse impacto se somaria a outros,“omitidos e negligenciados” no processo de licenciamento, que poderão resultar em situações ainda não estudadas de efeitos hidráulicos. Os técnicos consideraram “o ineditismo deste processo de licenciamento ambiental, o qual compreende a análise ambiental da modifi -cação do eixo do barramento da UHE de Jirau”.

Mais uma falha específi ca, apontada nessa nota técnica do Ibama, refere-se ao fato de que o con-sórcio tinha entregue até o momento apenas o Projeto Básico Ambiental (PBA) do canteiro de obras, uma forma de “cortar caminho” para obter a LI.

Em dezembro de 2008, o Banco da Amazônia S.A. (Basa) e a Caixa Econômica Federal (CEF) foram chamados para complementar os recursos necessários para o fi nanciamento dos empreendimen-tos do Madeira junto ao BNDES. Havia certa difi culdade para ocorrer a adesão de outros bancos ao Complexo do Rio Madeira. Fragilidades fi nanceiras, institucionais, ambientais e sociais estavam pesando na decisão.

Em abril de 2009, o governo brasileiro foi condenado, em segunda instância, pela Corte Ética do Fórum Mundial da Água, em Istambul, na Turquia. O Tribunal Latino-Americano (TLA) da Água já havia condenado o Brasil no ano anterior, na Guatemala. A construção das usinas no rio Madeira foi criticada não somente pela destruição ambiental, mas também pelos danos gerados às comu-nidades indígenas que vivem na região.

4. A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS NO PROCESSO DO COMPLEXO DO

RIO MADEIRA

A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Trib-ais, assinada em 1989 e ratifi cada pelo Brasil em 19/06/2002, por intermédio do Decreto Legis-lativo nº 142/2002, em vigor desde 25/07/2003, dispõe que os governos “deverão consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas in-stituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”. Além disso, estabelece que consultas devem ser realizadas com “boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias”. A Funai não obedeceu à Convenção nº 169 da OIT sobre a Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) junto aos povos indígenas afetados pelas UHEs de Santo Antônio e Jirau.

No EIA/Rima do Complexo do Rio Madeira foi assinalada a existência de comunidades indígenas no município de Porto Velho, mas os empreendedores não consideraram que elas fossem afeta-

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das diretamente pelos aproveitamentos em estudo, embora tivessem reconhecido a pressão indi-reta que a presença desses aproveitamentos exerceria sobre os territórios indígenas da região. No entanto, o EIA/Rima mencionou a vulnerabilidade a que estariam sujeitas, no raio de abrangência do empreendimento, as Terras Indígenas Karipuna, Karitiana e Uru-Eu-Wau-Wau, além das Terras Indígenas Lage e Ribeirão, habitadas pelo povo Wari’ – consideradas pelo consórcio fora das áreas de infl uência direta e indireta do empreendimento.

A Funai exigiu que se fi zesse a indicação de todos os impactos socioambientais e as propostas de medidas mitigadoras e compensatórias, consideradas insufi cientes nos estudos apresentados.

São poucos os estudos sobre índios isolados na Área de Infl uência Indireta (AII), defi nida no termo de referência dos estudos, apesar dos relatos, vestígios e indícios comprovados de sua existência. Segundo dados da Funai e dos relatórios técnicos da Associação de Defesa Etnoambiental Kanin-dé, na área de infl uência direta e indireta da UHE de Santo Antônio e da UHE de Jirau, existem grupos de índios isolados nas seguintes regiões: rio Jaci Paraná (margem direita do rio Madeira), incluindo alguns de seus tributários, como o rio Branco, rio Caracol, rio Oriente, rio Vertente e Ig-arapé Belo Horizonte, rio Candeias, afl uente da margem direita do rio Madeira, rio Karipuninha, afl uente da margem esquerda do rio Madeira, rio Mucuim, incluindo seus tributários (Jacareúba/Katauxi), em região compreendida entre a Serra Três Irmãos e os rios Mucuim e Jacareúba. O rio Mucuim desemboca na margem direita rio Purus e se localiza na divisa dos estados de Rondônia e Amazonas.

Não faltaram indícios e relatos sobre os índios isolados localizados em região muito próxima do canteiro de obras das hidrelétricas, em alguns locais, a menos de 30 km, como no caso dos índios isolados Katauxi, em área onde a Funai fez levantamento e interdição. Outros exemplos são os índios isolados das bacias dos rios Candeias e Jaci Paraná, que perambulam entre o rio Candeias, a Serra dos Morais, a Reserva Extrativista Jaci Paraná, a Terra Indígena Karitiana e o rio Jaci Paraná. Os índios Karitiana avistaram, em 2003, índios isolados perto do rio Candeias.

A completa desconsideração da presença de índios isolados de mais de 17 terras indígenas à ju-sante das duas hidrelétricas e de outras no corredor do sistema de transmissão passou a chamar a atenção de ONGs internacionais. Entre os diversos documentos do processo de licenciamento ambiental havia um ofício da Funai para o Ibama, datado de outubro de 2006, que entre outras coisas: (i) explicitava que os estudos apresentados contemplavam insufi cientemente o compo-nente indígena para o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira e dizia que a Funai era contrária à emissão das Licenças Prévias para os empreendimentos das AHEs de Santo Antônio e Jirau; (ii) pedia audiências públicas específi cas para os grupos indígenas, que deveriam ser realizadas nas suas terras; (iii) afi rmava que havia terras indígenas na área de infl uência do corredor do sistema de transmissão de Jirau–Santo Antônio–Cuiabá (naquela época, o projeto era levar o corredor de transmissão só até Cuiabá) e que estas também deveriam ser objeto de estudos ambientais; (iv) argumentava que os estudos deveriam considerar todas as terras indígenas da bacia do rio

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Madeira e no corredor do sistema de transmissão e não apenas aquelas próximas aos empreendi-mentos; (v) e afi rmava que outro aspecto importante e omitido seria a presença de indígenas em isolamento voluntário na área de infl uência do Complexo do Rio Madeira.

Ainda outro documento, de julho de 2008, era um plano de trabalho, resultado de uma reunião entre a Funai e representantes do consórcio Mesa, que propunha atividades em regiões onde já havia indícios da presença de indígenas em isolamento voluntário na área de infl uência da UHE de Santo Antônio. Nesse plano foi descrito que “os grupos de índios isolados e as terras onde habitam, passíveis de serem atingidos, pelas usinas, estão localizados à margem esquerda do rio Madeira, nas áreas Jacareúba/Katawixi e Mujica Nava/Serra Três Irmãos, em duas referências ge-ográfi cas, no estado do Amazonas; e à margem direita, nas áreas no rio Candeias e nos igarapés Oriente, Formoso e Cachoeira do Remo (região das Terras Indígenas Karipuna e Karitiana e Flona Bom Futuro), em três referências geográfi cas, no estado de Rondônia”.

A equipe que elaborou o Plano de Trabalho entendia que “a Coordenação Geral de Índios Isolados (CGII), da Funai, jurisdicionada à Diretoria de Assistência (DAS), teria a competência de planejar e coordenar ações desenvolvidas pelas Frentes de Proteção Etnoambiental em Terras Indígenas no Território Nacional, referentes à proteção dos grupos indígenas isolados”.

O documento reafi rmava que seria atribuição da Funai “garantir aos índios e grupos indígenas isolados o direito de assim permanecerem, mantendo a integridade de seu território”. Além disso, o documento assinalava, como diretrizes da Política de Índios Isolados, entre outras: (i) a garantia aos índios isolados do pleno exercício de sua liberdade e de suas atividades tradicionais; (ii) a proteção e a garantia dos limites físicos, das riquezas naturais, da fauna, da fl ora e dos mananciais das terras habitadas por índios isolados; (iii) e a proibição, no interior da área habitada por índios isolados, de toda e qualquer atividade econômica e comercial.

Um mapa da Funai, da época em que foi fi rmado o Plano de Trabalho, mostrava que entre as 69 (sessenta e nove) referências existentes de indígenas em isolamento voluntário, 5 (cinco) estariam na área de abrangência da UHE de Santo Antônio, nos estados de Rondônia e Amazonas. Essas informações e o mapa foram juntados como prova em uma das ACP ajuizadas para impedir a con-tinuidade da construção das UHEs no rio Madeira, mas foram completamente ignorados pelo juiz federal Élcio Arruda, que apreciava as ações.

Esses dois importantes documentos da Funai, de 2006 e 2008, que são parte do processo de licen-ciamento do Complexo do Rio Madeira, conduzido pelo Ibama, confi rmavam e provavam que o EIA/Rima tinha sérias lacunas quanto ao diagnóstico sobre terras indígenas e a presença dos indí-genas em isolamento voluntário nas áreas de infl uência dos empreendimentos. O caso seria para anulação das licenças ambientais e tanto a sociedade civil como o Ministério Público envidaram esforços neste sentido.

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Naquela época, o governo começou uma campanha contra as ONGs e o Ministério Público para atribuir-lhes a culpa pela demora na análise dos estudos ambientais e pelo travamento do plane-jamento do desenvolvimento do Brasil. O Judiciário mostrou-se um grande aliado do governo, no caso das usinas do Madeira, ao ignorar e justifi car as ilegalidades comprovadas nas concessões de licenças ambientais.

5. DIÁLOGOS REFERENTES AO COMPLEXO DO RIO MADEIRA–BELO MONTE: LIÇÕES APREN-

DIDAS E DESAFIOS

UM POUCO DA HISTÓRIA DE BELO MONTE

Belo Monte, a UHE que começou a ser construída no rio Xingu, no estado do Pará, foi planejada para entrar em operação em 2015 – as primeiras turbinas – e até 2019 poderá estar pronta com plena capacidade, se não houver um gesto de sensatez por parte do governo federal. O projeto prevê capacidade instalada (limite da produção ou capacidade máxima de produção) de 11 mil MW e 4 mil MW médios de energia assegurada (a máxima produção de energia que pode ser man-tida quase que continuamente pelas usinas hidrelétricas ao longo dos anos). O Consórcio Norte Energia (Nesa) venceu o leilão em 20 de abril de 2010. A propaganda do governo se refere à UHE de Belo Monte como a maior usina do Brasil e a 3ª maior do mundo, já que Itaipu, localizada na fronteira entre Brasil e Paraguai, é binacional.

Os primeiros estudos sobre Belo Monte datam da década de 1970, ainda no período da ditadura militar. Já na época, Belo Monte foi idealizada para suprir o aumento previsto da demanda de energia, devido ao desenvolvimento acelerado do País. Os estudos foram realizados sob respon-sabilidade da Eletrobras e analisados pelo Ibama para atestar a viabilidade ambiental e social do empreendimento. Governo, movimentos sociais e comunidades que serão impactadas têm opin-iões divergentes sobre a real necessidade de construção de um projeto hidrelétrico no rio Xingu.

Na década de 1970, o potencial hidroenergético da Amazônia brasileira foi alvo de muitos estudos e passou a ser prioridade para os setores de infraestrutura. O inventário hidrelétrico do Xingu foi elaborado pela empresa estatal Eletrobras, por sua subsidiária Eletronorte e pela empresa privada Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores S.A. (CNEC), do grupo Camargo Corrêa, uma das maiores empreiteiras do Brasil.

O inventário da Bacia Hidrográfi ca do Xingu previa, inicialmente, seis usinas hidrelétricas com 20.375 MW de capacidade instalada e 18.300 quilômetros quadrados de área alagada por res-ervatórios. Seriam cinco usinas no rio Xingu e uma no rio Iriri.

Na década de 1980, foi concluído e entregue o Estudo de Viabilidade Técnico-Econômica (EVTE)

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de todo esse complexo hidrelétrico. No primeiro Plano Nacional de Energia Elétrica (PDEE), já se previa a construção de 165 usinas hidrelétricas até 2010, das quais 40 estariam na Amazônia Le-gal. No fi nal daquela década, foi aprovado o Relatório Final dos Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfi ca do Rio Xingu, no qual constavam os seis aproveitamentos hidrelétricos. O destaque era a usina Kararaô, atualmente Belo Monte.

Durante o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, os índios kayapó protestaram contra a con-strução do Complexo Hidrelétrico do Rio Xingu e contra as decisões tomadas na Amazônia sem a participação dos indígenas.

Na década de 1990, foram então concluídos os estudos de viabilidade de Belo Monte – os povos indígenas proibiram o uso do nome Kararaô – e foi também criado um grupo de trabalho para analisar a alternativa de construir os canais de desvio das águas do rio Xingu. O governo queria contornar o confl ito gerado na região em decorrência da possibilidade de se construir todas as seis usinas previstas.

Na década de 2000, foi assinado um acordo de Cooperação Técnica entre a Eletrobras e a Eletronorte com o objetivo de complementar os estudos de viabilidade de Belo Monte e incluir os canais de desvio das águas do Xingu. Esta é a confi guração atual do projeto que está sendo construído. Mesmo o projeto atual já sofreu alterações depois que foi licitado, em 2010.

Ainda na década de 2000, foi instaurado pela Funai um processo para acompanhar o licencia-mento ambiental de Belo Monte. O Ministério de Minas e Energia (MME) aproveitou a ocasião para anunciar um plano de emergência de US$ 30 bilhões para aumentar a oferta de energia no País, com a construção de 15 usinas hidrelétricas (entre elas, Belo Monte).

Em 2001, o Ministério Público Federal (MPF) moveu a primeira Ação Civil Pública (ACP), atendendo às reivindicações da sociedade, para suspender os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monte. O pedido foi aceito pela justiça e o projeto passou a ser licenciado pelo Ibama, e não mais pelo governo do Estado do Pará. O rio Xingu é um rio federal e, por tal razão, compete ao Ibama o licenciamento ambiental de qualquer aproveitamento planejado para ele.

Um dos argumentos fundamentais do MPF foi que os estudos ambientais deveriam considerar toda a Bacia do Xingu, e não apenas uma parte dela, como o governo federal havia determinado. Em 2004, em nova ação, o MPF apontou falhas no processo de licenciamento ambiental de Belo Monte e conseguiu obter na justiça a paralisação do processo. Apesar das sentenças favoráveis em primeira instância, em 2007 o Tribunal Regional Federal mandou dar continuidade aos estudos e o governo incluiu o empreendimento de Belo Monte no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).

Todas as ações do MPF contra Belo Monte estão descritas no blog “Belo Monte de Violências”, do procurador federal Felício Pontes Jr.: <http://belomontedeviolencias.blogspot.com/>.

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Naquela época, o governo desistiu temporariamente dos demais aproveitamentos hidrelétricos no rio Xingu e o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) defi niu que Belo Monte seria o único potencial a ser explorado no rio Xingu. Essa decisão, no entanto, poderá ser revogada a qualquer tempo, por outra resolução.

No início de 2009, os Estudos de Impacto Ambiental e o respectivo Relatório de Impacto Am-biental (EIA/Rima) foram encaminhados para a análise do Ibama. Só em abril daquele mesmo ano foram entregues pelo empreendedor os estudos do componente indígena, para a análise e o parecer da Funai. O Ibama solicitou então, aos proponentes do projeto, relatórios complementa-res com a análise integrada do componente indígena.

As audiências públicas para apresentação e discussão do EIA/Rima se realizaram nos municípios de Brasil Novo, Vitória do Xingu, Altamira e Belém. Elas não foram sufi cientes para dar vazão aos questionamentos das populações e dos povos indígenas que serão afetados ou sequer foram sufi -cientes para esclarecer as dúvidas da sociedade. Nova ACP do MPF do Pará pediu o cancelamento das audiências.

O PROJETO E O CUSTO DE BELO MONTE

O projeto da hidrelétrica de Belo Monte é tão inverossímil que os 26 quilômetros de canais que serão escavados em rocha, idealizados para fazer o desvio de 80% das águas do rio Xingu, variam entre 400m e 750m de largura e serão revestidos com uma camada de 10cm de concreto. Com o desvio de cerca de 80% das águas do rio Xingu, através do canal artifi cial, na altura da barragem principal, a Volta Grande do Xingu – um grande meandro do rio e da região dos pedrais – terá a vazão reduzida num trecho de 100 quilômetros.

Essa “solução mágica”, que deixará fl uir apenas 20% das águas para a Volta Grande, é chamada de “vazão ecológica”. Os 80% desviados vão abastecer o reservatório dos canais para acionar as turbinas da casa de força principal. A alteração no fl uxo das águas vai criar uma verdadeira heca-tombe ambiental, que se refl etirá até a foz do rio Amazonas. Se a usina de Belo Monte for mesmo construída, os impactos negativos afetarão diretamente terras dos municípios de Vitória do Xingu, Altamira e Brasil Novo.

Uma consulta a engenheiros e construtores mostrou que o projeto de Belo Monte não teria obras civis sufi cientes para justifi car um custo ofi cial calculado em R$ 25 bilhões. O TCU tinha aprovado inicialmente custos de R$ 19 bilhões, apresentados pela Aneel.

Em 18 de fevereiro de 2011, a Norte Energia S.A. (Nesa) assinou o contrato de construção de Belo Monte, no valor de R$ 13,8 bilhões, com o Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM). O CCBM é for-

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mado por dez grandes empreiteiras do Brasil, lideradas pela Andrade Gutierrez (18%). As restantes são: Odebrecht (16%), Camargo Corrêa (16%), Queiroz Galvão (11,5%), OAS (11,5%), Contern (10%), Galvão (10%), Serveng (3%), J. Malucelli (2%) e Certenco (2%). A Camargo Corrêa e a Odebrecht haviam desistido de participar do leilão de Belo Monte.

O BNDES deve fi nanciar cerca de R$ 19 bilhões. O Consórcio Construtor Belo Monte, responsável pelas obras civis, deverá fi car com 55,2% dos R$ 25 bilhões. Se Belo Monte produzir os 4 mil MW médios previstos, gerará uma receita, no período de 30 anos, de R$ 105 bilhões. O empreendi-mento se pagaria em sete anos. Um grande negócio!

O PROCESSO DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL

Em novembro de 2009, a equipe técnica do Ibama emitiu um parecer técnico no qual pedia no-vas complementações aos estudos ambientais. Os técnicos concluíram que não havia elementos sufi cientes para a concessão da Licença Prévia (LP) de Belo Monte. Em 1º de fevereiro de 2010, contrariando todos os argumentos técnicos de especialistas e da própria equipe, o presidente do Ibama assinou a LP, acrescentando 40 condicionantes.

As condicionantes postergaram os esclarecimentos necessários de todas as questões pendentes nos estudos ambientais. A LP foi concedida sob pressão política do governo federal sobre o Ibama.

O leilão de venda da energia de Belo Monte foi realizado em 20 de abril de 2010. Duas novas ações do MPF e uma ação ajuizada pelas organizações Kanindé e Amigos da Terra Amazônia Brasileira não tiveram sucesso para impedir o leilão. O governo federal tinha organizado uma força-tarefa, com mais de 100 advogados, para derrubar qualquer decisão favorável ao cancelamento da lici-tação.

Na semana que antecedeu o leilão, as principais empresas (entre elas, a Camargo Corrêa e a Ode-brecht, que iriam concorrer) desistiram, sob a alegação de que os estudos de viabilidade técni-co-econômica não eram confi áveis. Outras empresas sem conhecimento técnico da região, dos impactos ambientais e dos confl itos sociais foram convidadas na última hora para preencher a la-cuna deixada. Eram necessários no mínimo dois consórcios de empresas para legitimar o certame.

Dois grupos concorreram ao leilão. O azarão, um consórcio liderado pela estatal Chesf (Compan-hia Hidroelétrica do São Francisco) e formado por empresas menores, foi criado para preencher a ausência e dar uma falsa ideia de concorrência. O mercado do setor de energia apostava que este consórcio, criado no afogadilho, perderia a disputa, mas – para a surpresa geral – acabou vencen-do. As grandes construtoras que desfi zeram as parcerias antes do leilão, na verdade, não tinham em mente um negócio de geração de energia, mas um negócio de construção. Queriam, mesmo, fazer as obras civis. O faturamento sempre entra antes para quem constrói uma obra.

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As desistentes, as mesmas empresas que elaboraram os estudos, recuaram movidas pelas in-certezas sobre os custos ambientais e sociais, pela exposição falsa da inviabilidade fi nanceira e pela incrível resistência dos movimentos sociais e dos povos indígenas do Xingu, que voltaram com mais força depois de 20 anos. As empreiteiras que, juntamente com a Eletrobras, idealizaram esse “monstro” no rio Xingu sempre tiveram um único interesse: fazer a obra, faturar antecipada-mente e lucrar muito com a construção.

Para os vencedores, aqueles laçados na última hora para concorrer ao leilão, no entanto, as promes-sas do governo garantiam rentabilidade. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e So-cial (BNDES) já está fi nanciando 80% dos investimentos necessários para construir Belo Monte, com prazo de pagamento de 30 anos e juros de 4% ao ano. Desses 80%, parte é do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), ou seja, dinheiro dos trabalhadores brasileiros para fi nanciar um grande projeto de risco. Além disso, o governo federal concedeu um pacote de benesses para estimular a participação no leilão: o consórcio vencedor terá um desconto de 75% no imposto de renda durante 10 anos e isenção de taxas federais durante as obras.

Mesmo assim, o leilão quase não ocorreu por falta de participantes. Os motivos seriam desde as incógnitas do projeto com relação às escavações em rocha dos canais até as dúvidas sobre os custos socioambientais, não completamente transparentes na época. Houve quem dissesse que a questão principal estaria na quantidade de energia que seria gerada pela chamada “hidrelétrica sazonal”. Até o momento, Belo Monte ainda é considerada um bom negócio, tanto pelo governo federal como pelas empresas.

OS IMPACTOS SOCIAIS E AMBIENTAIS

As áreas consideradas diretamente afetadas não foram objeto de estudos aprofundados e atin-girão uma população muito maior do que aquela mencionada no EIA/Rima. Continuam sendo omitidos vários impactos, tais como a perda de biodiversidade no trecho da Volta Grande; o deslo-camento compulsório da população rural e urbana, que foi minimizado; a avaliação dos impactos na saúde, que foi subestimada; os riscos à segurança hídrica e, por fi m, os custos das externali-dades.

O aumento do movimento migratório está ameaçando o equilíbrio da região, que já tem tamanha fragilidade. Altamira já registra índices de aumento da violência, de prostituição, de demanda por infraestrutura e de preços de aluguéis e serviços. As pressões sobre as terras indígenas (com invasões, especulações imobiliárias e desmatamento) já se tornaram duras realidades em outras regiões da Amazônia que receberam ou que têm projetos hidrelétricos em construção. Que a so-ciedade brasileira veja os problemas insolúveis da região onde estão implantando as usinas do Madeira.

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Todos os impactos decorrentes da construção da hidrelétrica de Belo Monte já foram e têm sido apontados à exaustão pelo Ministério Público, pelos especialistas, pelos movimentos sociais, pe-las ONGs, pelos programas de TV, pelas análises e pelos artigos veiculados na mídia. Belo Monte ainda é uma triste história sem fi nal defi nido. A sociedade brasileira vai ter que criar coragem para escrever o seu fi nal, pois é dele que depende a sobrevivência da Amazônia.

UMA VISÃO COMPARATIVA ENTRE O “COMPLEXO DO RIO MADEIRA” E “BELO MONTE”, CONSIDERANDO-SE AS LIÇÕES APRENDIDAS E AS PERSPECTIVAS DE FORTALECIMEN-TO DA CAPACIDADE DE ORGANIZAÇÕES SOCIAIS MONITORAREM E INFLUENCIAREM OS PROCESSOS DE LICENCIAMENTO

Sob a ótica de especialistas, pesquisadores, organizações, movimentos sociais e do Ministério Público, alguma coisa está muito errada nos processos de licenciamento de projetos hidrelétricos. Essa questão é recorrente no processo de licenciamento da UHE de Belo Monte, no rio Xingu. A perplexidade tem sido a tônica e o contencioso judicial passa a ser uma regra e uma espécie de tábua de salvação para a sociedade insatisfeita, porque não se respeita a Constituição Federal e a legislação ambiental.

Os mesmos artifícios com falsos critérios técnicos de preservação do meio ambiente e respeito aos direitos humanos, no caso do Madeira, estão também sendo utilizados para justifi car Belo Monte. Alguns conceitos estão sempre presentes nas entrevistas e nos eventos que contam com a participação de representantes das empresas do setor e do governo federal, tais como o uso de turbinas tipo bulbo, por exemplo, que diminuiria a área dos reservatórios, causando menor impacto.

Os técnicos do Ibama têm sido submetidos às pressões políticas decorrentes para a concessão das licenças ambientais, assim como ocorreu para as usinas do rio Madeira, para a LI “parcial” de Jirau ou para o longo processo de Belo Monte. Os consórcios Mesa, Enersus e Norte Energia têm desen-cadeado uma grande revolta das ONGs, das populações tradicionais, dos movimentos e das redes sociais. As ameaças de ministros – que argumentavam ser necessária a construção de mais ter-melétricas a carvão ou que o Brasil estaria na iminência de um apagão semelhante ao que ocorreu em 2001, se usinas na Amazônia não forem construídas – têm acarretado confl itos cada vez mais duros, judicialização e prejuízos aos cofres públicos. Coincidentemente, no processo doloroso do licenciamento das usinas do rio Madeira, o ministro de Minas e Energia era o mesmo Edison Lobão de hoje, que enfrenta a sociedade com o projeto de Belo Monte e que lançou mais uma “ameaça”: a construção de novas usinas termonucleares no lugar das hidrelétricas.

Continua havendo um esforço orquestrado entre empresários, ministros e representantes do gov-erno federal para viabilizar o “desmanche” da legislação ambiental, com a conivência da diretoria e presidência do Ibama. A concessão de licenças ilegais, com o uso do mesmo modus operandi

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do processo das usinas do rio Madeira, está sendo a tônica também no caso de Belo Monte. Em 2008, a presidência do Ibama concedeu a Licença de Instalação Parcial dos canteiros de obras e das ensecadeiras para a UHE de Jirau, sem estudos socioambientais das alterações impostas pelo consórcio vencedor e sem colocar a questão em discussão, em audiência pública, conforme prevê a legislação de licenciamento, fato que ameaça até hoje a sobrevivência física e cultural dos indí-genas com ou sem contato na região.

Com Jirau, sob os auspícios do então presidente do Ibama, Roberto Messias Franco, foi criada a fi gura da licença parcial de instalação, inexistente na legislação ambiental. Essa invenção foi ob-jeto de ações de ONGs e do Ministério Público, mas ainda permanece intacta, impune e se conso-lidou. Pode-se dizer, até, que tal invenção se institucionalizou defi nitivamente em Belo Monte, que também teve a sua licença parcial de instalação concedida.

Todos esses processos vêm sendo conduzidos à revelia dos movimentos sociais e dos ambiental-istas, tendo sido ainda amplamente denunciados pela sociedade nas audiências públicas fora do Brasil, em organismos internacionais. O caso do rio Madeira foi parar também na Organização dos Estados Americanos (OEA), no fi nal de 2009, e no Tribunal Latino-Americano da Água, em 2008, quando recebeu sentença condenatória. Belo Monte está seguindo o mesmo caminho, com as mesmas denúncias sobre as violações dos direitos humanos, dos direitos dos povos indígenas, das populações tradicionais, da omissão sobre a presença de índios isolados no EIA/Rima, além do descumprimento da Convenção nº 169 da OIT e da falta de consentimento livre, prévio e in-formado. O governo brasileiro está sendo denunciado e responsabilizado internacionalmente por etnocídio indígena.

Tanto no caso do rio Madeira como no atual de Belo Monte, a presença da Funai é apenas aparente, como se cumprisse compromissos de praxe, assim como a análise e a discussão dos estudos ambi-entais nas audiências públicas. Os processos irregulares das usinas do Madeira ainda têm desdo-bramentos e, assim como está acontecendo em Belo Monte, em ambos foi completa a desconsid-eração dos indícios da presença dos indígenas em isolamento voluntário.

Um dos argumentos fundamentais do MPF, na primeira ACP contra o projeto de Belo Monte, foi a omissão dos estudos ambientais, que deveriam considerar toda a Bacia do Xingu e não apenas uma parte dela, como o governo federal havia determinado. Mais uma singularidade que também havia sido objeto de polêmica entre o Ibama e Furnas no processo do Complexo do Rio Madeira: o Termo de Referência do Ibama, para a elaboração do EIA/Rima, pedia que os estudos fossem feitos abrangendo toda a bacia hidrográfi ca do rio Madeira, mas Furnas conseguiu que essa exigência fosse retirada.

Outra similaridade entre o processo de Belo Monte e o do Complexo do Rio Madeira refere-se ao crédito para as obras. A maior parte dos recursos tem vindo do BNDES, e os argumentos mais uma vez se repetem, baseados na importância das obras e em sua infl uência no setor de infraestrutura

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e na consolidação do desenvolvimento do Brasil. O BNDES prossegue na escalada de investir em obras na Amazônia com juros subsidiados (no caso de Belo Monte, com recursos do FAT) e igno-rando os Princípios do Equador.

Quando o processo de licenciamento das usinas do rio Madeira começou, a sociedade estava de-spreparada para assimilar os fatos, que marcaram o início de uma era na Amazônia. As ONGs e os movimentos sociais estavam menos articulados e, no início, a discussão esteve reservada e restrita a alguns segmentos da sociedade, até 2007, quando o MPF deu o pontapé inicial, com a primeira ACP contra as ilegalidades já consumadas.

O caso do rio Madeira produziu lições que provocaram mudanças substanciais na visão do fu-turo de projetos polêmicos e que deveriam ter sido consideradas pelas instituições fi nanceiras ao analisar sua participação em empreendimentos não sustentáveis. Um exemplo histórico disso foi a presença do grupo Santander no consórcio da UHE de Santo Antônio. Uma organização in-ternacional, a espanhola Setem, patrocinou ações dos movimentos sociais que viabilizaram as denúncias das violações dos direitos das populações locais para a assembleia anual dos acionistas em Madri, no início de 2009. Foi um feito inédito, que demonstrou que o projeto seria social e ambientalmente incorreto, o que poderia acarretar a depreciação das ações e o prejuízo com a perda de reputação.

Essa campanha contra uma instituição que fi nanciaria um projeto hidrelétrico mostrou que não estavam sendo cumpridos os critérios dos Princípios do Equador. Pela primeira vez, uma ação in-usitada de resistência contra as usinas do rio Madeira transformou-se num marco histórico, pois o alvo, a principal fonte de fi nanciamento dos projetos, poderia mudar seus critérios de concessão de crédito por exigência dos acionistas.

Outra lição a ser aprendida diz respeito ao acompanhamento e à fi scalização das obras. O episódio da mortandade dos peixes em Santo Antônio, um exemplo da falta de controle do órgão licencia-dor, acabou provocando um processo do Ibama, inquérito civil instaurado por crime ambiental e que poderia ter sido utilizado para responsabilizar os fi nanciadores, também. Os prejuízos podem ser repassados aos fi nanciadores, considerados igualmente réus no caso – com responsabilidade objetiva e solidária. Os agentes fi nanciadores, conforme estabelece a Lei nº 6.938/81, também são considerados poluidores responsáveis, diretos ou indiretos, pelos danos ambientais. Enquadram-se nessa categoria as instituições fi nanceiras que contribuem para o dano ambiental ao fi nanciar empresas que cometem crime ambiental. Além disso, na esfera criminal, o fi nanciador pode ser demandado como partícipe ou igualmente réu.

Junte-se a tudo isso a percepção dos casos imponderáveis, com a difi culdade de ações corretivas, minimização de riscos dos impactos socioambientais, já que os danos não dependem de seus atos, mas sim de atos de terceiros, ou seja, das empresas fi nanciadas.

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Outros aspectos interessantes marcaram a história do Complexo do Rio Madeira, como o número de ações civis públicas e a capacidade das ONGs em elaborar representações e subsidiar o Minis-tério Público. O número de ACPs ajuizadas de cunho socioambiental contra as ilegalidades no pro-cesso das usinas do rio Madeira chegou a 18. Um verdadeiro recorde, graças à maior agilidade do MP, que atualmente conta com corpo técnico multidisciplinar, e graças à Procuradoria da Repúbli-ca, que tem o respaldo das Câmaras de Coordenação e Revisão, que aproveitam os estudos, as análises e os pareceres produzidos por ONGs, movimentos sociais, especialistas e pesquisadores.

Novos advogados competentes em grupos nacionais (como a “Terra de Direitos – Justiça Global”) e organizações internacionais (como a “Aida – Ayuda, Intercambio y Desarrollo”) são especialis-tas em meio ambiente, direitos humanos e nos meandros jurídicos de comissões em organismos como a OEA e a ONU. Essas instituições têm feito parcerias com ONGs e movimentos sociais para garantir o enfrentamento aos grandes projetos na Amazônia. Enquanto empresas e consórcios enfrentam o aumento dos custos com a judicialização e os riscos jurídicos, ONGs e movimentos sociais passaram a ter profi ssionais disponíveis para levar as denúncias de violação de direitos humanos para instâncias antes inacessíveis.

Cortes internacionais, como o Tribunal Latino-Americano da Água (TLA), já são parte indispensável para a resistência das populações tradicionais e dos povos indígenas. Mesmo que as sentenças dessas cortes sejam apenas simbólicas e recomendatórias, elas refl etem a insatisfação e o olhar crítico do resto do mundo sobre os governos que passam sobre seus povos em nome de um desenvolvimento insustentável e de priori-dades escolhidas no seio do autoritarismo.

Com as usinas do rio Madeira também surgiram as parcerias entre ONGs, movimentos sociais e es-pecialistas e consultores para a elaboração de pareceres independentes que fortalecem a resistên-cia, os argumentos jurídicos do Ministério Público e contestam pareceres técnicos e documentos ofi ciais. Criou-se também uma espécie de sinergia entre a sociedade e técnicos dos órgãos licenci-adores, possibilitada pelo acompanhamento de todo o processo de licenciamento, pelo aumento do nível de exigência e pelas informações em tempo real pela internet. Falta, ainda, aperfeiçoar algumas ferramentas, como a disponibilização mais transparente dos documentos ofi ciais dos processos de licenciamento nas páginas dos órgãos licenciadores.

O grande papel da disseminação de informações confi áveis fi cou por conta das redes sociais e da mídia alternativa, que conseguem se contrapor às mídias tradicionais e impor maior destaque para o tema da sustentabilidade e do respeito às minorias e aos direitos humanos. Isso força a discussão e o interesse antes restrito da sociedade e obrigatoriamente das agendas dos partidos políticos em processo de transformação.

Todos esses ganhos, [com] maior aperfeiçoamento de luta, são resultantes de um con-junto de acontecimentos, desencadeados pelo megaprojeto do Complexo Madeira,

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fortalecido depois pela repetição dos fatos semelhantes no processo de Belo Monte. Os primeiros impactos causados pelas transgressões à legislação e pela distorção do papel do Judiciário acabaram por entorpecer a capacidade de manifestação daqueles que acreditavam na mudança e no respeito aos seus direitos e de poder optar por um modelo de desenvolvimento menos predatório para a Amazônia.

O controle social passa ainda por uma fase incipiente, com a falta de recursos para empoderar a sociedade com mais ferramentas para impedir a tomada de decisão autoritária e a indústria do fato consumado. A justiça tem se deitado literalmente sobre as ações contra as usinas do rio Ma-deira e Belo Monte, e cada vez mais entendemos que juízes são manipulados por interesses.

O acompanhamento dos programas de compensação do PBA e do cumprimento das condicion-antes tem sido um grande desafi o para a sociedade civil. O planejamento dos grandes projetos considerados indispensáveis pelo governo federal para o crescimento econômico do Brasil não prevê formas de controle e nem recursos para o custeio de empresas de auditorias independ-entes. A raposa continua tomando conta do galinheiro.

Bibliografi a

Arcadis Tetraplan. 2008. “Aproveitamento Hidrelétrico Santo Antônio - AHE Santo Antônio - Pro-jeto Básico Ambiental - PBA”. Brasília : s.n., 2008.Empresa de Pesquisa Energética - EPE. 2008. Estudos para Licitação da Expansão e Geração - AHE Jirau. Brasília : s.n., 2008.Furnas Centrais Elétricas S.A. e a Construtora Norberto Odebrecht S.A. 2007. “Complexo Hidroelé-trico do Rio Madeira – Estudos de Viabilidade do Aproveitamento Hidroelétrico de Jirau”. Brasília : s.n., 2007.—. 2007. COMPLEXO HIDRELÉTRICO DO RIO MADEIRA - Estudos de Viabilidade do AHE Santo Antônio - RELATÓRIO COMPLEMENTAR. Brasília : s.n., 2007.Ibama. 2007. Despacho L. F. Kunz. Brasília : s.n., 2007.—. 2006. INFORMAÇÃO TÉCNICA nº 12/2006 – COLIC-HID/CGLIC/DILIQ/IBAMA - Análise preliminar do EIA/RIMA do AHE Santo Antônio e do AHE Jirau. Brasília : s.n., 2006.—. 2007. PARECER TÉCNICO Nº 014/2007 –COHID/CGENE/DILIC/IBAMA. 2007.—. 2007. PARECER TÉCNICO Nº 06/2007 – COHID/CGENE/DILIC/IBAMA. Brasília : s.n., 2007.Leme Engenharia. 2006. EIA - Tomo B 1/8, p.II-83. 2006.Leme Engenharia Ltda. . 2003 A 2005. “Aproveitamentos Hidrelétricos Santo Antônio e Jirau”, Es-tudo de Impacto Ambiental - EIA. Brasília : s.n., 2003 A 2005.

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Notas

1 Tomo A – Volume I, do EIA, p. 12, 14, 20, 43/44, 100.2 Estudos de Viabilidade. 3 “Aproveitamentos Hidrelétricos Santo Antônio e Jirau – Rio Madeira, RO – Interferência em Uni-dades de Conservação, no Âmbito dos Estudos de Viabilidade – Verifi cação de Campo – Síntese – DEA.T.RTT.082.2005”.

4 O TCA está disponível em: <http://www.mp.ro.gov.br/c/document_library/get_fi le?uuid=f6cee05d-461b-4e0e-bad7-8cb0cd759a1c&groupId=41601>.

5 Relatório disponível em: <http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/Dossie/Mad/Documentos%20Ofi ciais/Madeira_COBRAPE/11118-COBRAP-report.pdf>.

6 Parecer Técnico do Ministério Público do Estado de Rondônia sobre o Relatório da Cobrape – Doc. nº 062/2006/Caoma-AT, disponível em: <http://www.mp.ro.gov.br/c/document_library/get_fi le?uuid=1ef71bcb-56f5-48db-a5a1-e98c00461d76&groupId=41601>.7 Os nomes dos especialistas constam no Relatório, disponível em: <http://www.mp.ro.gov.br/c/document_library/get_fi le?uuid=1ef71bcb-56f5-48db-a5a1-e98c00461d76&groupId=41601>.

8 O Banco Mundial forneceu uma espécie de “assessoramento técnico” ao MME e ao BNDES, ao apontar – no seu estudo “Licenciamento Ambiental de Empreendimentos Hidrelétricos no Brasil: Uma contribuição para o Debate”, lançado no primeiro semestre de 2008 – que o processo para a obtenção dos licenciamentos seria excessivamente demorado. O documento, inédito na história do banco, abordou o licenciamento ambiental para hidrelétricas (do ponto de vista econômico, jurídico e estrutural) e concluiu que os licenciamentos de hidrelétricas no Brasil oneram o em-preendimento entre 15,2% a 20,1%. Os dados deste estudo foram coletados até o ano de 2005, cujo objetivo seria a adoção de mecanismos na relação de confl itos, para minimizar as ações no Judiciário e acelerar os processos. Estudo disponível em: <http://www.maternatura.org.br/hi-dreletricas/biblioteca_docs/Brazil_licenciamento_SintesePortugueseMarch2008.pdf>.