telenovela projeção, identidade e identificação na modernidade líquida

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  • 7/26/2019 Telenovela Projeo, identidade e identificao na modernidade lquida

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    Revista da Associao Nacional dosProgramas de Ps-Graduao em Comunicao

    TelenovelaProjeo, identidade e identificao

    na modernidade lquida

    Aline Silva Correa Maia1Universidade Federal de Juiz de Fora

    Resumo: A partir da relao personagem de novela x sociedade,pretendemos evidenciar o papel dos meios de comunicao, especificamenteda televiso, na configurao dos indivduos e, por extenso, das estruturassociais. Uma vez que as relaes entre sujeitos so cada vez mais mediadas,percebemos a importncia em apontar como um personagem ficcional capaz de formar opinies, ditar comportamentos e reforar papis sociais. Afim de compreender a produo de sentidos impetrada pelas figuras

    dramticas construdas para e na TV, empreenderemos breve revisobibliogrfica de autores que analisam questes referentes s identidades noperodo de modernidade lquida, assim como analisaremos, particularmente,a simpatia e a identificao provocadas no pblico pela personageminterpretada por Camila Pitanga na novela Paraso Tropical, exibida pela TVGlobo.

    Palavras-chave:Identidade. Personagem. Telenovela

    Abstract: From the soap opera character x society relationship, it isintended to highlight the media role - specifically the TV role - in theconfiguration of individuals and, as an extension, of social structures. Sincethe relationships between subjects are more and more mediated, it has beennoticed that it is important to point how a fictional character can form

    opinions, impose behaviours and reinforce social roles. In order tounderstand the values produced by the characters built for and on TV, a briefbibliographical review is undertaken on authors who analyze issues onidentities in modernity. A particular analysis on the identification withspectators of the role played by Camila Pitanga in the Paraso Tropical soapopera in TV Globo is carried out, as well.

    Key words:Identity. Character. Soap opera.

    1 Jornalista graduada na Faculdade de Comunicao da Universidade Federal de Juiz de Fora- UFJF; mestranda em Comunicao e Sociedade do PPGCom-UFJF; produtora TV Panorama

    afiliada Rede Globo. Desenvolve pesquisas na linha de Comunicao e Identidades

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    Resumen:De la relacin de la sociedad x personaje de telenovela, se piensapara destacar el papel de los medios - especficamente el papel de la TV - en laconfiguracin de individuos y, como extensin, de estructuras sociales. Puestoque las relaciones entre los individuos se median cada vez ms, se ha notadoque es importante sealar cmo un personaje puede formar opiniones,impone comportamientos y refuerza papeles sociales. Para entender losvalores produjo por los caracteres construidos para y en la TV, una breverevisin bibliogrfica se emprende en los autores que analizan ediciones enidentidades en modernidad. Un anlisis particular en la identificacin con losespectadores del actuado en papel por Camila Pitanga en la telenovelaParaso tropical en TV Globo se realiza, tambin.

    Palabras clave:Identidad. Personaje. Telenovela.

    Rsum: Du rapport de socit X feuilleton televise du caractre, on leprvoit pour accentuer le rle de mdias - spcifiquement le rle de TV - dansla configuration des individus et, comme prolongation, des structuressociales. Puisque les rapports entre les sujets de plus en plus sont ngocis, onl'a not qu'il est important de diriger comment un caractre fictif peut formerdes avis, impose des comportements et renforce des rles sociaux. Afin decomprendre les valeurs produites par les caractres tablis pour et sur la TV,une brve revue bibliographique est entreprise sur les auteurs qui analysentdes questions sur des identits dans la modernit. Une analyse particuliresur l'identification avec des spectateurs du jou un rle par Camila Pitangadans feuilleton tlvis de Paraso Tropical dans TV Globo est effectue,aussi bien.

    Mots cls:Identit. Caractre. Feuilleton tlvis.

    1 Introduo

    A queda de conceitos at ento rgidos e que serviam de base para a

    delimitao das identidades (re)conhecidas - raa, gnero, classe, etc colabora para

    a percepo de outras categorias identitrias como, por exemplo, aquelas advindas da

    orientao sexual e da localidade geopoltica. Processos histricos esto entrando emcolapso e novas identidades esto sendo forjadas. Desponta uma reconfigurao

    social em que a existncia do indivduo marcada por um estar na fronteira, em

    constante busca de localizao temporal e espacial. Enquanto a pessoa humana perde

    as caractersticas de individualidade, os meios de comunicao de massa consolidam-

    se como vitrines que servem a fins de composio identitria.

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    Vivemos na modernidade lquida marcada pelo encurtamento das distncias

    fsicas, valorizao do poder de consumo e presena acentuada da mdia nas relaes

    sociais. Em nossas casas, nos dividimos entre as tarefas cotidianas e a parada na

    frente da televiso para acompanhar mais um captulo da novela das oito. Reunidos

    na sala, ou cada qual em seu quarto, somos bombardeados por representaes

    contidas em mensagens de entretenimento ou mesmo publicitrias. Recorrendo a

    idias e valores presentes no imaginrio popular, a televiso apresenta figuras que

    logo so oficializadas em modelos de pronta identificao e visibilidade.

    Potente difusora de imagens, a televiso interfere no cotidiano do receptor

    na medida em que produz determinados tipos de identidade por exemplo, por

    meio da narrativa das telenovelas, dos anncios e das tcnicas de venda

    (WOODWARD, 2000, 30), colocando na mesa dos brasileiros, de segunda a segunda-

    feira, informaes orientadas que podero ser consumidas a bel prazer por quem as

    desejar.

    A influncia da televiso no Brasil visvel nas ruas onde possvel

    identificar mulheres, por exemplo, desfilando com calas semelhantes s utilizadas

    no dia anterior por uma personagem de novela. Ou, ainda, no raro ouvimos em

    rodas de conversa o debate fervoroso sobre tema lanado no ltimo captulo do

    folhetim das sete. Percebemos nas telenovelas uma estrutura formal determinante desentidos e que cada vez mais ganha visibilidade como agente dinamizador de

    construes identitrias.

    Diante de um personagem de novela, o indivduo pode ou no se projetar,

    desencadeando convergncia de desejos ou mesmo partilha de interesses, de forma

    que num processo de simpatia / empatia com a imagem a-presentada poder

    identificar-se, e at chegar ao ponto de anular-se, passando a reconhecer-se enquanto

    a prpria figura da TV. E a partir da relao personagem de novela versus

    sociedade, que pretendemos, neste artigo, apontar o papel dos meios de

    comunicao, especificamente da televiso, na configurao dos indivduos e, por

    extenso, das estruturas sociais.

    Para exemplificar esta reflexo, examinaremos a personagem Bebel, uma

    garota de programa, interpretada pela atriz Camila Pitanga, na novela Paraso

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    Tropical, exibida desde maro de 2007, no horrio de 21 horas pela Rede Globo. Se

    em nossa sociedade as relaes entre sujeitos so cada vez mais mediadas,

    percebemos a importncia em apontar como um personagem, ainda que em um

    produto ficcional, capaz de formar opinies, ditar comportamentos e reforar

    papis sociais.

    A fim de compreender a produo de sentidos impetrada pelas figuras

    dramticas construdas para e na TV, empreenderemos breve reviso bibliogrfica de

    autores que analisam questes referentes s identidades na atualidade, bem como

    abordaremos o cinema como precursor da televiso e abre-alas para a contemplao

    de imagens e conceitos inspiradores de criaes sociais e culturais.

    2 Identidades lquidas ... e no liquidificador

    Na modernidade lquida apresentada por Bauman (2005), a decadncia de

    instituies sociais que at ento se prestavam como referncia para a construo da

    sociedade provoca o que Stuart Hall (2006) intitula de crise da identidade. Paisagens

    culturais de classe, gnero e etnia que no passado forneciam os alicerces para a

    localizao dos indivduos esto sendo fragmentadas.

    A identidade do sujeito ps-moderno j no taxada como fixa ou

    permanente, como acontecia no Iluminismo. Passa-se a compreender que o indivduopode assumir diferentes posies, conforme o papel que est representando, gerando

    um processo de identificao que no automtico, mas pode ser ganho ou perdido

    ao longo de sua trajetria. A complexidade da vida cotidiana, atravessada pela

    globalizao que encurta distncias e conecta comunidades em novas estruturas de

    espao-tempo, impe que assumamos distintas identidades que podem ser

    conflitantes entre si. Posicionamo-nos frente ao outro de acordo com as expectativas

    lanadas sobre ns.

    Conciliar identidades pode no ser uma tarefa fcil, de maneira que

    estaremos sempre deslocados, ou seja, no estamos totalmente em lugar algum, o que

    nos coloca na situao de sempre precisarmos dar explicaes, por um lado, ou

    mesmo estarmos em constante negociao, por outro. Nossa localizao contnua

    em uma regio de barganha, de troca, de maneira a influenciar nas identidades, que

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    por rua vez tornam-se flutuantes, lquidas, assim como nosso tempo, conforme

    sugere Bauman.

    Neste perodo em que nova roupagem dada s identidades, estas no

    devem ser incorporadas com unhas e dentes, como verdade nica. Mas preciso

    estar pronto para abandonar uma posio e to logo assumir outra. Na era lquido-

    moderna, as relaes humanas tendem tambm a se tornar volteis, descartveis,

    substituveis como um tnis comprado h poucos meses e que perde lugar para um

    modelo mais novo, mesmo estando ainda em condies de uso. Assim, o amor, por

    exemplo, reduzido ao modo consumista de ser e de viver, sendo descartado quando

    perde seus atrativos iniciais. Da mesma forma que as identidades, as relaes

    amorosas tornaram-se efmeras, lquidas, rapidamente esgotam-se e so

    abandonadas por outras mais convenientes aos olhos dos indivduos que as almejam.

    O comprometimento e o compromisso em longo prazo so vistos como armadilhas a

    serem evitadas.

    O futuro sempre foi incerto, mas o seu carter inconstante e voltilnunca pareceu to inextricvel como no lquido mundo moderno dafora de trabalho flexvel, dos frgeis vnculos entre os sereshumanos, dos humores fluidos, das ameaas flutuantes e doincontrolvel cortejo de perigos camalenicos (BAUMAN, 2005,74).

    Homi Bhabha (2005) tambm confere ao descentramento do sujeito a percepo de outras categorias

    estabelecidos e fixos. Neste ambiente de no lugar - j que esto ausentes referncias e eixo

    imvel para os indivduos identidade torna-se um conceito sob rasura, como sugere Hall;

    ou seja, uma palavra cortada, mas que pode ser lida, j que se trata de uma idia que no

    pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas questes-chave no podem ser

    sequer pensadas (HALL, 2000, 104).

    Constitudas por meio das diferenas estas, encontradas na regio de

    fronteira as identidades moldam-se a partir da relao com o outro, com aquiloque no , com o exterior. H um jogo de poder e excluso, negao e aceitao, que

    vai resultar na estruturao identitria, pois

    as identidades so as posies que o sujeito obrigado a assumir,embora sabendo, sempre, que elas so representaes, que arepresentao sempre construda ao longo de uma falta, ao longode uma diviso, a partir do lugar do Outro e que, assim, elas no

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    podem, nunca, ser ajustadas (...) aos processos de sujeito que sonela investidos (HALL, 2000, 112).

    Adriano Rodrigues (2000) apresenta a modernidade como o perodo em que

    o sujeito est em constante busca de libertao daquilo que possa limitar suasexperincias, sua vivncia, seu contato com o outro, com o diferente e o

    desconhecido. uma poca em que, de acordo com o estudioso, mais do que nunca,

    evidencia-se a necessidade do indivduo de soltar-se das amarras do tempo e do

    espao. As diferentes culturas so o primeiro alvo desta poca: se a totalidade no

    pode ser experienciada, seria ento preciso globalizar as experincias. Assim, as

    invenes tcnicas, ao longo do tempo, refletem a peregrinao humana por

    ultrapassar barreiras. Pois so estas invenes os mecanismos encontrados pelos

    indivduos para seguirem sempre adiante, alm. Se falamos de inveno, esbarramosna televiso como meio de acessar tudo sem estar em lugar algum, apenas na sala da

    prpria casa.

    Nesta era lquida-moderna, os meios de comunicao despontam como

    potentes colaboradores do intrincado processo de construo identitria dos sujeitos,

    fabricando em grande escala modelos para projeo e identificao. Neste contexto,

    destacam-se as mdias audiovisuais, meio com poder suficiente para interferir no

    inconsciente e no imaginrio social, compondo cenrios em que novas identidades -

    tambm flutuantes - so apresentadas e defendidas.

    3 No comeo, era o cinema ...

    Antecessor da televiso, o cinema pode ser considerado matriz do

    imaginrio coletivo brasileiro, exibindo fora suficiente para suplantar a realidade

    existente. Por assim dizer, um filme remete a identidades ao sugerir projees e

    suscitar reconhecimento. Sem contar que esta arte tambm nos transporta para o

    contato com a diversidade e a diferena, necessrias identificao.

    Integrante da indstria cultural, a cinematografia serve aos interesses de

    retratao do espetculo, de forma que os temas a serem abordados precisam chamar

    ateno, causar impacto de alguma forma. Neste contexto, percebemos a preferncia,

    muitas vezes, pela exibio de temticas que esto s margens de uma ordem

    institucional vigente, sendo que boa parte dos filmes vai abordar o diferente. No

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    necessariamente objetivando incitar o pblico a refletir sobre o que se encontra

    alheio, mas evidenciando o que tomado como distinto em contraste norma social

    prevalecente. A dramaticidade visual e auditiva requisito imprescindvel para a

    eficcia e potencializao do efeito de realidade inerente construo de

    representaes sociais das mdias de massa audiovisuais.

    Produtor e refletor de identidades que evidenciam novos sujeitos na cena

    cultural, o discurso cinematogrfico provoca conhecimento de uma dada realidade. A

    srie de imagens justapostas e bem editadas exibida na grande tela poder

    desencadear a projeo de quem a assiste na prpria histria contada. Se a

    comunicao de massa reprodutora da cultura, como prescreve Orlando de Miranda

    (1992), o cinema sob este aspecto deve ser visto. Classes subalternas e violncia, por

    exemplo, ganham facilmente as telas brasileiras. Assim tambm acontece com o sexo,

    potencializado pela mesma ordem social que se sente ameaada com sua repetida

    exposio. No intuito de se aproximar da realidade, o cinema, muitas vezes, engendra

    a hiper-realidade, mais prxima do espetculo, pois

    no possvel fazer uma oposio abstrata entre o espetculo e aatividade social efetiva. O espetculo que inverte o real efetivamente um produto. Ao mesmo tempo, a realidade vivida materialmente invadida pela contemplao do espetculo e retomaem si a ordem espetacular a qual adere de forma positiva. (...) a

    realidade surge no espetculo, e o espetculo real Essa alienaorecproca a essncia e a base da sociedade existente (DEBORD,1997, p. 15).

    4 ... E veio a televiso... Trazendo as telenovelas

    Unio do rdio e do cinema, a televiso domesticou a imagem, que antes s

    existia na telona. Com o surgimento da TV, mocinhas e viles inicialmente

    apresentados na grande sala escura dos cinemas foram transportados para a telinha

    no aconchego dos lares. As celebridades pularam dos filmes para as novelas,

    passando a fazer companhia diria ao pblico. No Brasil, o primeiro folhetim - SuaVida me Pertence - foi lanado na dcada de 50. Se anteriormente as telenovelas

    eram exibidas trs vezes por semana, hoje vemos um bombardeio destas produes,

    sendo apresentados, atualmente, de seis a nove programas do gnero, por dia, na

    televiso brasileira. Os folhetins ultrapassaram as barreiras do lazer, pautando

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    jornais e virando tema de estudos acadmicos, por exemplo; reflexo do poder e do

    alcance da TV.

    Roberto Amaral Vieira (1992) defende que a televiso intervm no cotidiano

    dos indivduos propositadamente, a fim de constru-lo. Ao estruturar a realidade, este

    meio de comunicao tambm interferiria no inconsciente e no imaginrio social.

    Para Vieira, a televiso uma produo coletiva de imaginrios coletivos, um meio

    massivo que pretende criar um grande mercado de massa, atravs da

    homogeneizao de desejos e fantasias da sociedade.

    O autor expe que a televiso nos vende no apenas a moda de calas e

    blusas, mas tambm comportamentos, ideologias e sensaes. Para ele, a televiso

    tem o poder de proporcionar alegorias que sozinho o indivduo no tem condies derealizar. Ao comprar um objeto publicizado na TV por uma mulher sensual, por

    exemplo, o homem, na verdade, estaria satisfazendo o desejo de ter aquela mulher

    para si, e no necessariamente a mercadoria adquirida. Assim como Vieira, Orlando

    de Miranda (1992) tambm atribui televiso importante papel na formao de

    mercados homogneos: ela seria uma fonte de atualizao do indivduo com o seu

    tempo; ainda que seja uma modernizao do e para o consumo.

    Inspirando e difundindo padres de comportamento, consumo e opinio, a

    televiso se revela, ainda, um liquidificador cultural, envolvendo-nos em uma densa

    camada de videosfera. As imagens de TV, cada vez mais em alta resoluo, propem-

    se a levar a prpria realidade para dentro das casas. Somos todos embarcados (por

    vontade prpria, ou no?) na iluso de que tudo que vemos na telinha verdade

    j que programas de entretenimento, novelas e filmes, revezam-se com os jornais que

    se propem a registrar a realidade -, esquecendo-nos, muitas vezes, de que televiso

    mediao. Por isso, Joo Carlos Correia (2002) defende que cada vez mais

    significativa a presena dos meios de comunicao na relao indivduo versus

    sociedade, pois, de acordo com o autor, os seres humanos agem a partir dos

    significados que lhes so atribudos pela mdia. Atravs da representao,

    construes identitrias adquirem sentido. E quem tem o poder de representar tem

    o poder de definir e determinar a identidade (SILVA, 2000, 91).

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    A linguagem utilizada pelos mediatambm exerce autoridade nas formaes

    identitrias. Assim como a repetio de enunciados, idias e conceitos, pode ser

    comprometedora.

    Ao dizer algo sobre certas caractersticas identitrias de algumgrupo cultural, achamos que estamos simplesmente descrevendouma situao existente, um fato do mundo social. O queesquecemos que aquilo que dizemos faz parte de uma rede maisampla de atos lingsticos que, em seu conjunto, contribui paradefinir ou reforar a identidade que supostamente apenas estamosdescrevendo (SIlVA, 2000, 93).

    5 Perua, piranha, minha energia que mantm voc suspensa noar... toa, vadia, comea uma outra histria aqui na luz deste diaD...

    A letra cantada por Caetano Veloso em uma melodia que remete ao molejo e

    tropicalidade tipicamente brasileiros anuncia que Bebel est entrando em cena.

    Com decotes ousados, pernas a mostra e boca vermelha, a garota de programa da

    novela das 21 horas da Rede Globo invade nossas casas atravs da televiso. E fica!

    Por meio do bordo da personagem que ser incorporado ao repertrio familiar, pelo

    mesmo modelo de saia que ser comprado, pela msica No Enche que ser

    repetidamente executada no aparelho de som. A prostituta, interpretada por Camila

    Pitanga, uma mulher linda, atraente e sem carter. No incio da novela, trabalhava

    em um bordel na cidade nordestina de Marapu, fictcia.

    Ambiciosa, individualista e com auto-estima inabalvel, aliou-se a um

    cafeto que a levou para o Rio de Janeiro. Em terra carioca, passa a trabalhar no

    calado de Copacabana, at conhecer Olavo Novais, interpretado por Wagner

    Moura, com quem estabelece complexa relao permeada por atrao e dinheiro. Ao

    tornar-se fixa do executivo - como a prpria personagem define sua condio de

    prostituta que serve apenas a um cliente -, Bebel revela que seus interesses

    ultrapassam o vnculo empregatcio, j que acaba apaixonando-se pelo patro. Ahistria da garota de programa est inserida em Paraso Tropical, de Gilberto Braga e

    Ricardo Linhares, que estreou em maro de 2007, substituindo Pginas da Vida, de

    Manoel Carlos. A previso que a produo termine em setembro de 2007.

    Na trama, Bebel aproxima-se do perfil de vil, pois colabora com as

    armaes de Olavo para prejudicar os mocinhos do folhetim, Paula (Alessandra

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    Negrini) e Daniel (Fbio Assuno). Poderia se pensar que a personagem de Camila

    Pitanga causaria repulsa no pblico, pois ela conivente com o ncleo de carter

    duvidoso da novela e ganha a vida exercendo uma atividade que est s margens

    daquelas aceitas pela sociedade. Bebel apresenta todos os requisitos para suscitar a

    indiferena do pblico receptor ante seu personagem.

    No entanto, o que se percebe uma imediata simpatia com a prostituta, de

    forma que, nas ruas, por exemplo, fcil verificar mulheres que se deixam influenciar

    pela figura dramtica de Paraso: seja nas bolsas grandes utilizadas pela personagem

    na trama, ou no corte de cabelo, ou nas mini-saias que deixam as pernas mostra.

    Pela interpretao da atriz, somos conduzidos empatia que substancia uma falsa

    aparncia do personagem. De acordo com matria publicada na coluna Gente & TV,

    do Portal Terra, a prpria Camila se diz surpresa com o sucesso da personagem. No

    achava que Bebel seria adorada pelo pblico, declara. Fato que a prostituta

    conquistou admiradores.

    medida que o pblico deixa-se influenciar por personagens ficionais,

    temos desencadeado um processo de identificao. Assim, diante de uma figura de

    televiso o indivduo pode ou no se projetar, encerrando uma convergncia de

    interesses, ou, ainda, uma partilha de desejos. Ao aproximar nossa prpria imagem

    de um determinado personagem, o que buscamos nos reconhecermos como tal. Hapropriao de idias, sentimentos, atitudes, que pode resultar em uma fuso

    proposital da nossa prpria identidade ao do personagem.

    Bebel divertida, irreverente. Fala errado, mas quer aprender o que certo.

    No sabe portar-se em um jantar de negcios em um restaurante chique, mas

    contrata uma professora de boas maneiras para reverter a ignorncia e obter

    catiguria. V na relao com Olavo no s a satisfao sexual e amorosa, como a

    oportunidade para mudar de vida, adquirir bens materiais at ento inacessveis e

    conquistar, principalmente, a dignidade enquanto mulher. Talvez, Bebel seja a

    imagem de tantos outros brasileiros e brasileiras que se prestam sub vida, em

    atividades degradantes ou promscuas de trabalho - no porque querem, mas porque

    no h outra alternativa e que sonham um dia sair da subalternidade a que

    estariam condenados. H ainda o humor e a paixo que envolvem o casal Olavo e

    Bebel. Os encontros e desencontros da dupla remetem s comdias romnticas cuja

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    frmula j foram incansavelmente provadas e aprovadas pelo pblico, desde o

    cinema.

    Deixamo-nos identificar pela autenticidade e simplicidade da personagem

    Bebel, alm da simpatia e beleza prprias da atriz, de forma que podemos ficar na

    dvida sobre onde termina Camila Pitanga e onde comea a interpretao da garota

    de programa. Ao receber um prmio, no Rio de Janeiro, pelo reconhecimento do seu

    trabalho, Pitanga arrancou aplausos da platia ao encarnar sua personagem em

    Paraso mesmo estando fora do estdio e longe das cmeras de gravao! - e

    disparar o bordo di catiguria mermo, referindo-se premiao, conforme nota

    no Portal Terra. J em outra matria, no site Folha On Line, Camila se apresenta

    como o contrrio da personagem que interpreta: Vi na Bebel uma oportunidade para

    me reinventar. Ela quase meu espelho ao contrrio. Tive que me desconstruir e

    deixar de lado minha postura alongada. Na Bebel tudo exibido, exacerbado, quase o

    meu oposto. Ela chega e acontece. Eu, no..., revelou em entrevista. Se para a atriz a

    personagem que interpreta seu espelho ao contrrio, para ns, pblico, este

    mesmo espelho reflete uma imagem da qual muitos se apropriam, causando

    verdadeiro furor para com ator - figura dramtica.

    O personagem um ser imaginrio construdo semelhana do ser real,

    uma figura necessria histria por mover as aes narradas. As caractersticas dopersonagem podem atingir a sensibilidade do espectador, provocando paixes e

    projeo, como acontece com Bebel. A prostituta que saiu de Marapu para tentar a

    vida na capital carioca aparece, majoritariamente, em cenas caricatas, com bom grau

    de comicidade e que reforam os esteretipos para este tipo de personagem, lgico,

    valendo-se dos artifcios do figurino, da maquiagem e da postura corporal.

    6 Concluso

    Se para manter uma identidade preciso reafirm-la o tempo todo,principalmente em perodo de modernidade fluida, em que a efemeridade a marca

    desta poca, encontramos nas telenovelas o artifcio necessrio para manuteno dos

    processos de identificao. A cada novo folhetim, vemos revigorados os modelos j

    conhecidos, mas apresentados em nova histria e interpretados por diferente ator.

    So rotulaes scio-culturais, frmulas fixas, receitas prontas que no exigem

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    esforo intelectual e das quais usam e abusam em produo massiva os gneros

    televisivos, muitas vezes copiando o cinema, meio precursor da TV, como j

    abordamos anteriormente.

    O que a histria de Bebel seno a mesma comdia romntica inscrita no

    filme Uma linda Mulher, de Garry Marshall? O romance norte americano, lanado

    em 1990, narra o caso vivido por uma prostituta (Julia Roberts) com um magnata

    (Richard Gere) que a contrata por uma semana para acompanh-lo em eventos

    sociais. Neste perodo, a prostituta se transforma em uma elegante jovem e a relao

    patro-empregada desvirtua-se em um envolvimento homem-mulher. Tambm nesta

    obra, a empatia do pblico com o casal imediata, reforando tendncias e

    inspirando imaginrio e imaginao.

    Dado que os meios de comunicao massivos, em especial a televiso, so

    agentes significantes, fabricantes de sentidos que no apenas reproduzem a

    realidade, mas tambm a definem, encontramos na telenovela uma estrutura formal

    propulsora de identidades. Trabalhando com a experincia do telespectador, os

    folhetins apresentam personagens que ratificam valores e conceitos. Sendo a

    sociedade um produto humano e o homem um produto social, num cclico processo

    de exteriorizao interiorizao indicado por Berger (1985), a televiso tem seu

    papel de destaque neste sistema ao capturar idias e imagens latentes no cenriosocial, apropriar-se temporariamente delas, mold-las e devolv-as para os

    indivduos, que prontamente as re-absorvem.

    Se, de um lado, temos as identidades concebidas por processos

    determinados pela estrutura social, de outro, encontramos a estrutura social

    remodelada ou mesmo modificada pelas identidades criadas. Cabe reforar que as

    identidades esto em permanente construo, sujeitas aos deslizamentos e aos

    deslocamentos. Elas no so, portanto, unidimensionais e fixas; so mltiplas e esto

    em constante movimento, transformao, nomadismo e tenso, interferncias estas

    provocadas tambm pelos meios de comunicao, como a televiso.

    J passado o tempo em que famlia, escola e igreja dividiam, sozinhas, a

    responsabilidade na formao dos indivduos. Esta tarefa tambm tem sido

    desenvolvida na atualidade pelos meios de comunicao. Desde cedo ainda crianas

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    temos na mdia sobretudo na televiso um mecanismo para suprir nossas

    carncias afetivas, espaciais e de relacionamento. atravs dos meios de

    comunicao de massa que o indivduo assimila considervel volume de contedos

    para construo de seu conhecimento e identidade, apesar dos meios no

    reivindicarem para si esta funo.

    7 Referncias bibliogrficas

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    Camila Pitanga encarna Bebel em premiao no Rio. OITO de agosto de2007. Disponvel em:www.terra.com.br Coluna Gente & TV

    Acesso em: 8 agosto 2007

    No achava que Bebel seria adorada, diz Camila Pitanga. Trs de agostode 2007. Disponvel em:www.terra.com.br Coluna Gente & TV

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