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Anthony Giddens Modernidade e Identidade Tradução: P línio D entzien Jorge Zahar Editor Rio dejaneiro

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Anthony Giddens

Modernidade e Identidade

Tradução: P l ín io D e n t z ie n

Jorge Zahar Editor R io d e ja n e iro

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1. Os contornos da alta modernidade

Abro minha discussão descrevendo algumas das descobertas de um estudo sociológico específico, tomado de maneira um tanto arbitrária em uma área de pesquisa. Segundas chances, de Judith Wallerstein e Sandra Blakeslee, é uma pesquisa sobre o divórcio e um novo casamento.1 O livro descreve o impacto da ruptura do casamento, ao longo de um período de dez anos, em sessenta conjuntos de pais e filhos. O divórcio, apontam as autoras, é uma crise nas vidas pessoais dos indivíduos, que apresenta perigos para sua segurança e sensação de bem-estar, ao mesmo tempo em que abre novas oportunidades para seu desenvolvimento e felicidade futuros. A separação e o divórcio, e suas conseqüências, podem levar a ansiedades duradouras e a distúrbios psicológi­cos; no entanto, as mudanças provocadas pela dissolução do casamento ofere­cem também possibilidades, como dizem as autoras, de “crescer emocional­mente”, “estabelecer competência e orgulho novos” e “fortalecer relações íntimas muito além das capacidades anteriores”.

A separação conjugal, dizem Wallerstein e Blakeslee, é um marcador “que congela certas imagens que enquadram os cursos de ação que se seguem. A raiva freqüentemente se instala e se alimenta do modo como o casamento se rompeu: um parceiro repentinamente descobrindo que o outro tinha um caso com o(a) melhor amigo(a) de ambos; o parceiro deixando um bilhete infor­mando ao outro, sem aviso prévio, que o casamento acabou; o parceiro partindo de repente, levando as crianças e não deixando endereço...” Um casamento que se desfaz tende a provocar luto, independente da infelicidade ou desespero dos parceiros quando juntos.

Quanto mais tempo os parceiros tiverem vivido juntos, tanto mais longo será o período de luto. O luto deriva da perda dos prazeres e experiências compartilhados, somado ao necessário abandono das esperanças investidas na relação, Quando não ocorre um processo de luto, o resultado é muitas vezes a prolongação dos sentimentos feridos, às vezes levando ao desespero e a um colapso. Para a maioria das pessoas, de fato, os sentimentos provocados pelo divórcio parecem não desaparecer completamente com a passagem dos anos; podem ser reavivados violentamente por eventos subseqüentes, como o novo

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casamento do antigo parceiro, dificuldades financeiras ou desavenças sobre como os filhos devem ser criados. Se um parceiro permanece fortemente envolvido emocionalmente com o outro, mesmo que de maneira negativa, o resultado tende a ser um reaparecimento da amargura.

Passar por um período de luto, segundo Wallerstein e Blakeslee, é a chave para "retomar o controle de si próprio” depois do divórcio. Quem consegue se “descolar” de seu cônjuge anterior enfrenta a tarefa de estabelecer um "novo sentido do eu”, um “novo sentido de identidade”. Num casamento longo, o sentido de identidade de cada indivíduo se torna unido ao da outra pessoa e, de fato, ao próprio casamento. Depois da ruptura do casamento, cada pessoa deve “retroceder à sua experiência prévia e encontrar outras imagens e raizes de independência, para ser capa2 de viver só e enfrentar a segunda chance que o divórcio oferece”.

Uma pessoa separada ou divorciada precisa de coragem moral para tentar novos relacionamentos e encontrar novos interesses. Muitas pessoas nessas circunstâncias perdem a confiança em seus próprios juízos e capacidades, e podem vir a sentir que fazer planos para o futuro é algo sem valor. “Sentem que a vida dá duros golpes e é essencialmente imprevisível; concluem que os planos mais cuidadosos dão errado e desistem de formular objetivos de longo prazo ou mesmo de curto prazo, e mais ainda de trabalhar por esses objetivos.” Superar tais sentimentos demanda persistência em face de reveses e uma disposição de alterar traços ou hábitos pessoais já estabelecidos. Os filhos de pais divorciados, que freqüentemente sofrem profundamente com a dissolu­ção do lar, precisam de qualidades semelhantes. “Os filhos do divórcio”, dizem Wallerstein e Blakeslee, “enfrentam uma tarefa mais difícil que as crianças cujos pais morreram. A morte não pode ser desfeita, mas o divórcio acontece entre pessoas vivas que podem mudar de idéia. Uma fantasia de reconciliação penetra fundo na psique dessas crianças ... elas podem não superar essa fantasia de reconciliação até elas mesmas se separarem dos pais e saírem de casa.”2

Problemas pessoais, sofrimentos e crises pessoais, relações pessoais: o que eles podem nos dizer, e o que exprimem, sobre o panorama social da moder­nidade? Não muito, diriam alguns, pois seguramente sentimentos e proble­mas pessoais são muito semelhantes em todos os tempos e lugares. Pode-se aceitar que o advento da modernidade traz mudanças importantes no ambien­te social externo do indivíduo, afetando o casamento e a família assim como outras instituições; mas as pessoas continuam a viver suas vidas como sempre fizeram, enfrentando da melhor maneira que podem as transformações sociais à sua volta. Ou não? Pois as circunstâncias sociais não são separadas da vida pessoal, nem são apenas pano de fundo para ela. Ao enfrentar problemas

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pessoais, os indivíduos ativamente ajudam a reconstruir o universo da ativida­de social à sua volta.

O mundo da alta modernidade certamente se estende bem além dos domínios das atividades individuais e dos compromissos pessoais. E está repleto de riscos e perigos, para os quais o termo “crise” — náo como mera interrupção, mas como um estado de coisas mais ou menos permanente — é particularmente adequado. No entanto, ele também penetra profundamente no centro da auto-ídentidade e dos sentimentos pessoais. O “novo sentido de identidade”, que Wallerstein e Blakeslee mencionam como necessário após o divórcio, é uma versão aguda de um processo de “encontrar-se a si mesmo” que as condições sociais da modernidade impõem a todos nós. É um processo de intervenção e transformação ativas.

Wallerstein e Blakeslee resumem o resultado de sua pesquisa num capítulo intitulado “Perigo e oportunidade”. Embora banal, a expressão se aplica não só ao casamento e sua perturbação, mas ao mundo da modernidade como um todo. A esfera do que passamos hoje a chamar de “relações pessoais” oferece oportunidades de intimidade e de auto-expressão ausentes em muitos contex­tos mais tradicionais. Ao mesmo tempo, tais relações se tornaram arriscadas e perigosas, em certos sentidos desses termos. Modos de comportamento e sen­timento associados à vida sexual e conjugal tornaram-se móveis, instáveis e “abertos”. Há muito a ganhar; mas há um território inexplorado a mapear, e novos perigos a evitar.

Consideremos, por exemplo, um fenômeno extensamente discutido por Wallerstein e Blakeslee: a nova natureza da família “de adoção”. Muitas pes­soas, adultos e crianças, vivem hoje em famílias “de adoção” — em geral não, como em épocas anteriores, em conseqüência da morte de um dos cônjuges, mas por causa da reorganização de laços familiares após o divórcio. Uma criança numa família “de adoção” pode ter duas mães e dois pais, dois conjun­tos de irmãos e irmãs, além de outras relações complexas de parentesco resul­tantes dos múltiplos casamentos dos pais. Até a terminologia é difícil: deveria a madrasta ser chamada de “mãe” pela criança, ou por seu nome próprio? Negociar tais problemas pode ser árduo e psicologicamente custoso para todas as partes; mas também existe a oportunidade de novos tipos de relações sociais recompensantes. Podemos no entanto estar certos de que as mudanças envol­vidas não são simplesmente exteriores ao indivíduo. Essas novas formas de laços de família devem ser desenvolvidas pelas próprias pessoas que se encon­tram mais diretamente aprisionadas nelas.

A ansiedade é o correlato natural dos perigos. É causada por circunstân­cias perturbadoras, ou por sua ameaça, mas também ajuda a mobilizar respos­tas adaptativas e novas iniciadvas. Termos como dor, preocupação e luto são

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usados repetitivamente pelas autoras de Segundas chances. Da mesma forma que coragem e resolução. A vida apresenta os problemas pessoais de maneira aparentemente aleatória e, reconhecendo isso, algumas pessoas se refugiam numa espécie de apatia resignada. Mas muitas são capazes de perceber de maneira mais positiva as novas oportunidades que se abrem quando os modos preestabelecidos são barrados, e então mudam a si mesmas. Qual é a novidade dessas ansiedades, perigos e oportunidades? De que maneira são claramente influenciados pelas instituições da modernidade? Essas são as perguntas que tento responder nas páginas que se seguem.

Segundas chances é uma obra de sociologia, mas não será lida apenas por sociólogos. Terapeutas, analistas de família, assistentes sociais e outros profis­sionais provavelmente a folhearão. É perfeitamente possível que pessoas do público leigo, especialmente se tiverem se divorciado recentemente, leiam o livro e relacionem suas idéias e conclusões às circunstâncias de suas próprias vidas. As autoras estão cientes dessas possibilidades. Embora o livro seja escrito como um estudo que apresenta um conjunto determinado de resultados, diversas passagens sugerem respostas práticas e cursos de ação que podem ser seguidos pelos recém-separados ou divorciados. Sem dúvida poucos livros influenciam muito o comportamento social getal. Segundas chances é uma pequena contribuição a um vasto e mais ou menos contínuo fluxo de textos, técnicos e populares, sobre o tema do casamento e das relações íntimas. Esses textos fazem parte da reflexividade da modernidade: servem para organizar e alterar rotineiramente os aspectos da vida social que relatam ou analisam. Quem quer que contemple o casamento hoje, ou que enfrente a situação da ruptura de um casamento ou de uma longa relação íntima, sabe muito bem (ainda que nem sempre ao nível da consciência discursiva) “o que está aconte­cendo” na arena social do casamento e do divórcio. Esse conhecimento não é acidental, mas constitutivo do que está acontecendo — como se dá em todos os contextos da vida social nas condições da modernidade.

Mais que isso: todos estamos de algum modo conscientes da constituição reflexiva da atividade social moderna e das implicações disso para nossas vidas. A auto-identidade constitui para nós uma trajetória através das diferentes situações institucionais da modernidade por toda a duração do que se costu­mava chamar de “ciclo da vida”, um termo que se aplica com maior precisão a contextos não-modernos que aos modernos. Cada um de nós não apenas “tem”, mas vive uma biografia reflexivamente organizada em termos do fluxo de informações sociais e psicológicas sobre possíveis modos de vida. A moder­nidade é uma ordem pós-tradicional em que a pergunta como devo viver?” tem tanto que ser respondida em decisões cotidianas sobre como comportar-

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se, o que vestir e o que comer — e muitas outras coisas — quanto ser interpretada no desdobrar temporal da auto-identidade.

Vamos agora do nível das vidas pessoais para um plano mais institucional. Para dar um pano de fundo a este estudo como um todo precisamos caracteri­zar esse fenômeno perturbador e tumultuado: a modernidade.

Modernidade: considerações gerais.

Neste livro emprego o termo “modernidade” num sentido muito geral para referir-me às instituições e modos de comportamento estabelecidos pela pri­meira vez na Europa depois do feudalismo, mas que no século XX se tornaram mundiais em seu impacto. A “modernidade” pode ser entendida como apro­ximadamente equivalente ao “mundo industrializado” desde que se reconheça que o industrialismo náo é sua única dimensão institucional.3 Ele se tefere às relações sociais implicadas no uso generalizado da força material e do maquí- nário nos processos de produção. Como tal, é um dos eixos institucionais da modernidade. Uma segunda dimensão é o capitalismo, sistema de produção de mercadorias que envolve tanto mercados competitivos de produtos quanto a mercantilização da força de trabalho. Cada uma dessas dimensões pode ser analiticamente distinguida das instituições de vigilância, base do crescimento maciço da força organizacional associado com o surgimento da vida social moderna. A vigilância se refere ao controle e à supervisão de populações submissas, assuma esse controle a forma da supervisão “visível”, no sentido de Foucault, ou do uso da informação para coordenar atividades sociais. Essa dimensão, por sua vez, pode ser separada do controle dos meios de violência no contexto da “industrialização da guerra”. A modernidade inauguta uma era de “guerra total” em que a capacidade destrutiva potencial dos armamen­tos, assinalada acima de tudo pela existência de armas nucleares, tornou-se enorme.

A modernidade produz certas formas sociais distintas, das quais a mais importante é o estado-nação. Observação banal, é claro, até que nos lembre­mos de que a sociologia tende a considerar a “sociedade” como seu objeto. A sociedade” do sociólogo, pelo menos quando aplicada ao período da moder­

nidade, é o estado-nação, mas essa em geral é uma equação velada em vez de explicitamente teorizada. Como entidade sociopolítíca, o estado-nação con­trasta de modo fundamental com a maioria dos tipos de ordem tradicional. Desenvolve-se apenas como parte de um sistema mais amplo de estados-na- ções (que hoje se tornou de caráter global), tem formas muito específicas de territorialidade e capacidade de vigilância, e monopoliza o controle efetivo

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sobre os meios da violência.^ Na literatura sobre relações internacionais, os estados-nações são tratados muitas vezes como “atores” — ou “agentes” e não “estruturas” — , e isso definitivamente se justifica. Pois os Estados modernos são sistemas reflexivamente monitorados que, mesmo que não “atuem” no estrito sentido do termo, seguem políticas e planos coordenados numa escala geopolítica. Como tais, são um exemplo maior de uma caraterística mais geral da modernidade: a ascensão da organização. O que distingue as organizações modernas não é tanto seu tamanho, ou seu caráter burocrático, quanto o monitoramento reflexivo que elas permitem e implicam. Dizer modernidade é dizer não só organizações mas organização — o controle regular das relações sociais dentro de distâncias espaciais e temporais indeterminadas.

Em vários aspectos fundamentais, as instituições modernas apresentam certas descontinuidãdes com as culturas e modos de vida pré-modernos. Uma das características mais óbvias que separa a era moderna de qualquer período anterior é seu extremo dinamismo. O mundo moderno é um "mundo em disparada”: não só o ritmo da mudança social é muito mais rápido que em qualquer sistema anterior; também a amplitude e a profundidade com que ela afeta práticas sociais e modos de comportamento preexistentes são maiores.5

O que explica o caráter peculiarmente dinâmico da vida social moderna? Três elementos, ou conjuntos de elementos, principais estão envolvidos — e cada um deles é essencial para os argumentos desenvolvidos aqui. O primeiro é o que chamo de separação de tempo e espaço. Todas as culturas, é claro, tiveram ou têm de lidar com o tempo, de alguma forma ou de outra, e também modos de situar-se espacialmente. Não há sociedade em que os indivíduos não te­nham sentido de futuro, presente e passado. Cada cultura tem alguma espécie de marcador espacial padronizado que designa uma consciência especial de lugar. Em situações pré-modernas, porém, tempo e espaço se conectavam através da situacionalidade do lugar.

Grandes culturas pré-modernas desenvolveram métodos mais formais para o cálculo do tempo e para o ordenamento do espaço — como calendários e mapas simples (pelos padrões modernos). De fato, eram pré-requisitos para o “distanciamento” no tempo e no espaço pressupostos pelo surgimento de formas mais extensas do sistema social. Mas em eras pré-modernas, para o grosso da população e para a maioria das atividades da vida cotidiana, o tempo e o espaço continuavam ligados através do lugar. Marcadores de “quando” se ligavam não só ao “onde" do comportamento social, mas à substância mesma desse comportamento.

A separação de tempo e espaço envolveu acima de tudo o desenvolvimen­to de uma dimensão “vazia” de tempo, a alavanca principal que também separou o espaço do lugar. A invenção e difusão do relógio mecânico é em

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geral vista — acertadametite — como a primeira expressão desse processo, mas é importante não interpretarmos esse fenômeno de maneira excessiva­mente superficial. O uso generalizado de instrumentos de marcação do tempo facilitou, mas também pressupunha, mudanças profundamente estru­turadas no tecido da vida cotidiana — mudanças que não poderiam ser somente locais, que eram inevitavelmente universalizantes. Um mundo com um sistema de tempo universal e zonas de tempo globalmente padronizadas, como o nosso hoje, é social e experíençialmente diferente de todas as eras pré-modernas. O mapa global, onde não há privilégio de lugar (uma projeção universal), é o símbolo correlato do relógio no “esvaziamento” do espaço. Não é apenas um modo de retratar “o que sempre esteve lá” — a geografia da Terra — , mas também constitutivo de transformações básicas nas relações sociais.

O esvaziamento de tempo e espaço não é um desenvolvimento linear; ele opera díaleticamente. Muitas formas de “tempo vivido” são possíveis em situações sociais estruturadas pela separação de tempo e espaço. Além disso, a separação do tempo em relação ao espaço não significa que eles se tornam, por isso, aspectos mutuamente alheios à organização social humana. Ao contrário: ela fornece a própria base para sua recombinação de maneiras que coordenam as atividades sociais sem necessariamente fazer referência às particularidades do lugar. As organizações, e a organização, tão características da modernidade, são inconcebíveis sem a reintegração do tempo e do espaço separados. A organização social moderna supõe a coordenação precisa das ações de seres humanos fisicamente distantes; o “quando” dessas ações está diretamente conectado ao “onde”, mas não, como em épocas pré-modernas, pela mediação do lugar.

Todos podemos perceber até que ponto a separação de tempo e do espaço é fundamental para o maciço dinamismo que a modernidade introduz nas questões sociais humanas. O fenômeno universaliza aquele “uso da história para fazer história" tão intrínseco aos processos que afastam a vida social moderna das amarras da tradição. Tal historicidade se torna global na sua forma com a criação de um “passado” padronizado e de um “futuro” univer­salmente aplicável: uma data como o “ano 2000” é um marcador reconhecível para toda a humanidade.

O processo de esvaziamento do tempo e do espaço é crucial para a segunda principal influência sobre o dinamismo da modernidade: o desencaixe das instituições sociais. Escolho a metáfora do desencaixe em deliberada opo­sição ao conceito de “diferenciação” algumas vezes adotado por sociólogos como meio de contrastar sistemas sociais pré-modernos e modernos. A dife­renciação envolve a imagem de uma progressiva separação de funções, como

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por exemplo quando modos de atividade organizados de maneira difusa em sociedades pré-modernas se tornam mais especializados e precisos com o advento da modernidade. Sem dúvida a idéia tem certa validade, mas deixa de captar um elemento essencial da natureza e do impacto das instituições mo­dernas — o “descolamento” das relações sociais dos contextos locais e sua rearticulaçáo através de partes indeterminadas do espaço-tempo. Esse “desco­lamento” é exatamente o que quero dizer com desencaixe, que é a chave para a imensa aceleração no distanciamento entre tempo e espaço trazido pela modernidade.

Mecanismos de desencaixe são de dois tipos, que chamo de “fichas simbó­licas” e “sistemas especializados”. Tomados em conjunto, refiro-me a eles com o sistemas abstratos. Fichas simbólicas são meios de troca que têm um valor padrão, sendo assim intercambiáveis numa pluralidade de contextos. O pri­meiro exemplo, e o mais importante, é o dinheiro. Embora todas as formas maiores de sistema social pré-moderno tenham desenvolvido a troca monetá­ria de uma forma ou de outra, a economia monetária se torna muito mais refinada e abstrata com o surgimento e amadurecimento da modernidade. O dinheiro põe entre parênteses o tempo (porque é um meio de crédito) e também o espaço (pois o valor padronizado permite transações entre uma infinidade de indivíduos que nunca se encontraram fisicamente). Os sistemas especializados põem entre parênteses o tempo e o espaço dispondo de modos de conhecimento técnico que têm validade independente dos praticantes e dos clientes que fazem uso deles. Tais sistemas penetram em virtualmente todos os aspectos da vida social nas condições da modernidade — em relação aos alimentos que comemos, aos remédios que tomamos, aos prédios que habitamos, às formas de transporte que usamos e muitos outros fenômenos. Os sistemas especializados não se limitam a áreas tecnológicas; estendem-se às próprias relações sociais e às intímidades do eu. O médico, o analista e o terapeuta são tão importantes para os sistemas especializados da modernidade quanto o cientista, o técnico ou o engenheiro.

Os dois típos de sistema especializado dependem essencialmente da con­fiança, uma noção que, como foi indicado, desempenha um papel central neste livro. A confiança é diferente da forma de crença a que Georg Simmel chamava de “conhecimento intuitivo fraco” envolvido nas transações for­mais.6 Algumas decisões são baseadas em inferências indutivas a partir de tendências passadas, ou de alguma experiência passada supostamente relevan­te para o presente. Esse tipo de crença pode ser um elemento da confiança, mas não é suficiente por si mesmo para definir uma relação de confiança. Esta pressupõe um salto para o compromisso, uma qualidade de “fé” que é irredu­tível. Está relacionada especificamente à ausência no tempo e no espaço, e

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também à ignorância. Não precisamos confiar em alguém que está constante­mente à vista e cujas atividades podem ser diretamente monitoradas. Assim, por exemplo, ocupações monótonas ou desagradáveis, e mal pagas, em que a motivação para desempenhar a tarefa com perfeição é fraca, são em geral posições de “baixa confiança”. Postos de “alta confiança” são aqueles que supõem o desempenho fora da presença da gerência ou da equipe de supervi­são.7 De modo semelhante, não há necessidade de confiança quando um sistema técnico é bem conhecido por um indivíduo particular. Em relação aos sistemas especializados, a confiança põe entre parênteses o conhecimento técnico limitado que a maioria das pessoas possuí sobre a informação codifica­da que afeta rotineiramente suas vidas.

A confiança, de tipos e níveis variados, está na base de muitas decisões cotidianas que tomamos na orientação de nossas atividades. Mas a confiança nem sempre é o resultado de decisões conscientes: é mais freqüentemente uma atitude geral da mente que subjaz a essas decisões, algo que tem suas raízes na conexão entre confiança e desenvolvimento da personalidade. Podemos tomar a decisão de confiar, um fenômeno que é comum por causa do terceiro elemento da modernidade (já mencionado, mas também discutido adiante): sua reflexividade intrínseca. Mas a fé que a confiança implica também tende a resistir a esse processo calculista de decisão.

Atitudes de confiança em relação a situações, pessoas ou sistemas específi­cos, e também num nível mais geral, estão diretamente ligadas à segurança psicológica dos indivíduos e grupos. Confiança e segurança, risco e perigo, existem em conjunções historicamente únicas nas condições da modernidade. Os mecanismos de desencaixe, por exemplo, garantem amplas arenas de segurança relativa na atividade social diária. Pessoas que vivem em países industrializados, e em certa medida em qualquer lugar hoje, estão geralmente protegidas contra alguns dos perigos enfrentados rotineiramente em tempos pré-modernos — como as forças da natureza. Por outro lado, novos riscos e perigos, tanto locais quanto globais, são criados pelos próprios mecanismos de desencaixe. Comidas com ingredientes artificiais podem ter características tóxicas ausentes das comidas mais tradicionais; perigos ambientais podem ameaçar os ecossistemas da Terra como um todo.

A modernidade é essencialmente uma ordem pós-tradicional. A transfor­mação do tempo e do espaço, em conjunto com os mecanismos de desencaixe, afasta a vida social da influência de práticas e preceitos preestabelecidos. Esse é o contexto da consumada reflexividade, que é a terceira maior influência sobre o dinamismo das instituições modernas. A reflexividade da modernida­de deve ser distinguida do monitoramento reflexivo da ação intrínseco a toda atividade humana. Ela se refere à suscetibilidade da maioria dos aspectos da

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atividade social, e das relações materiais com a natureza, à revisão intensa à iuz de novo conhecimento ou informação. Tal informação ou conhecimento não é circunstancial, mas constitutivo das instituições modernas — um fenômeno complicado, porque existem muitas possibilidades de se pensar sobre a reflexi­vidade nas condições sociais modernas. Como indicou a discussão de Segundas chances, as ciências sociais desempenham um papel básico na reflexividade da modernidade: elas não se limitam a “acumular conhecimentos” como as ciências naturais.

Separação de tempo e espaço: a condição para a articulação das relações sociais ao longo de amplos intervalos de espaço-tempo, incluindo siste­mas globais.Mecanismos de desencaixe: consistem em fichas simbólicas e sistemas especializados (em conjunto = sistemas abstratos). Mecanismos de de­sencaixe separam a interação das particularidades do lugar.Reflexividade institucional: o uso regularizado de conhecimento sobre as circunstâncias da vida social como elemento constitutivo de sua organi­zação e transformação.

Quadro 1. O dinamismo da modernidade

Em relação ao conhecimento científico tanto social quanto natural, a reflexividade da modernidade acaba por confundir as expectativas do pensa­mento iluminista — embora seja produto desse pensamento. Os fundadores originais da ciência e da filosofia modernas acreditavam estar preparando o caminho para o conhecimento seguramente fundamentado dos mundos so­cial e natural: as afirmações da razão deveriam superar os dogmas da tradição, oferecendo uma sensação de certeza em lugar do caráter arbitrário do hábito e do costume. Mas a reflexividade da modernidade de fato solapa a certeza do conhecimento, mesmo nos domínios centrais da ciência natural. A ciência depende não da acumulação indutiva de demonstrações, mas do princípio metodológico da dúvida. Por mais estimada e aparentemente estabelecida que uma determinada doutrina científica seja, ela está aberta à revisão — ou poderá vir a ser inteiramente descartada — à luz de novas idéias ou descober­tas. A relação integral entre a modernidade e a dúvida radical é uma questão que, uma vez exposta, não é inquietante apenas para os filósofos, mas é existencialmenteperturbadora para os indivíduos coniuns.

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O local, o global e a transformação da vida diária

As tendências globalízantes da modernidade são inerentes às influências dinâ­micas que acabo de esboçar. A reorganização de tempo e espaço, os mecanis­mos de desencaixe e a reflexividade da modernidade supõem propriedades universalizantes que explicam a natureza fulgurante e expansionista da vida social moderna em seus encontros com práticas tradicionalmente estabeleci­das. A globalização da atividade social que a modernidade ajudou a produzir é de certa maneira um processo de desenvolvimento de laços genuinamente mundiais — como aqueles envolvidos no sistema global de estados-nações ou na divisão internacional do trabalho. Entretanto, de modo geral, o conceito de globalização é melhor compreendido como expressando aspectos fundamen­tais do distanciamento entre tempo e espaço. A globalização diz respeito à interseção entre presença e ausência, ao entrelaçamento de eventos e relações sociais “à distância” com contextuai idades locais. Devemos captar a difusão global da modernidade em termos de uma relação continuada entre o distan­ciamento e a mutabilidade crônica das circunstâncias e compromissos locais. Como cada um dos outros processos mencionados acima, a globalização tem que ser entendida como um fenômeno dialético, em que eventos em um pólo de uma relação muitas vezes produzem resultados divergentes ou mesmo contrários em outro. A dialética do local e do global é um dos principais argumentos empregados neste livro.

A globalização significa que, em relação às conseqüências de pelo menos alguns dos mecanismos de desencaixe, ninguém pode “eximir-se” das trans­formações provocadas pela modernidade: é assim, por exemplo, em relação aos riscos globais de uma guerra nuclear ou de uma catástrofe ecológica. Muitos outros aspectos das instituições modernas, inclusive os que operam em menor escala, afetam as pessoas que vivem em ambientes mais tradicionais, fora das partes mais “desenvolvidas” do mundo. Nesses setores desenvolvidos, contudo, a conexão entre local e global está ligada a um intenso conjunto de transformações na natureza da vida cotidiana.

Podemos entender essas transformações diretamente em termos do im­pacto dos mecanismos de desencaixe, que atuam desqualificando muitos aspectos das atividades cotidianas. Essa desqualificação não é simplesmente um processo em que especialistas técnicos se apropriam do conhecimento cotidiano (uma vez que muitas vezes há características imponderáveis ou ardentemente disputadas em seus campos de especialização); e nem é um processo unidírecional, porque a informação especializada, como parte da reflexividade da modernidade, é de uma forma ou de outra constantemente apropriada pelos leigos. Essas observações se aplicam aos escritos dos socíólo-

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gos tanto quanto aos de quaisquer outros especialistas: vimos que as descober­tas de livros como Segundas chames voltam a infiltrar-se nas situações em que as pessoas tomam decisões sobre relações, casamento e divórcio. A confiança nos mecanismos de desencaixe não se limita aos leigos, porque ninguém consegue ser um especialista sobre mais que uma parte ínfima dos diversos aspectos da vida social moderna condicionada pelos sistemas abstratos. Todos os que vivem nas condições da modernidade são afetados por inúmeros siste­mas abstratos, e podem na melhor das hipóteses processar apenas um conhe­cimento superficial de suas técnicas.

A consciência das fragilidades e limites dos sistemas abstratos não se limita aos especialistas técnicos. Poucos indivíduos mantêm uma confiança inabalá­vel nos sistemas de conhecimento técnico que os afetam, e todos, consciente ou inconscientemente, escolhem entre as possibilidades concorrentes de ação que tais sistemas (ou o abandono deles) oferecem. A confiança muitas vezes se mistura à aceitação pragmática — é uma espécie de “barganha de esforços” que o indivíduo faz com as instituições da modernidade. Diversas atitudes de ceticismo ou antagonismo em relação aos sistemas abstratos podem coexistir com uma crença não-questionada nos outros. Por exemplo, uma pessoa pode chegar a extremos para evitar ingerir alimentos que contêm aditivos, mas se ela não cultivar tudo o que come, deverá necessariamente confiar que os fornece­dores de “alimentos naturais” oferecem produtos superiores. Alguém pode se voltar para a medicina holística depois de uma decepção com a ortodoxia médica, mas é claro que isso não passa de uma transferência de fé. Alguém que sofre de uma doença pode desconfiar das afirmações de todas as formas de cura a ponto de evitar qualquer contato com médicos independente do pro­gresso da doença. Mas mesmo uma pessoa que tenha efetivamente optado por uma separação radical como essa achária virtualmente impossível escapar de todo do impacto dos sistemas de medicina e pesquisa médica, dado que eles influenciam muitos aspectos do “ambiente de conhecimento”, assim como os elementos concretos da vida social cotidiana. Por exemplo, afetam a regula­mentação da produção de alimentos — sejam eles “artificiais” ou “naturais”.

A mediação da experiência

Virtualmente toda experiência humana é mediada — pela socialização e em particular pela aquisição da linguagem. A linguagem e a memória estão intrin­secamente ligadas, tanto ao nível da lembrança individual quanto ao da Institucionalização da experiência coletiva.8Para a vida humana, a linguagem é o meío original e principal de distanciamento no tempo e no espaço,

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elevando a atividade humana além da imediatez da experiência dos animais.9 A linguagem, como diz Lévi-Strauss, é uma máquina do tempo, que permite a reencenaçáo das práticas sociais através das gerações, ao mesmo tempo em que torna possível a diferenciação de passado, presente e futuro.10 A palavra falada é um meio, um rraço, cuja evanescência no rempo e no espaço é compatível com a preservação do significado através de distâncias no tempo e no espaço por causa do domínio humano das características estruturais da linguagem. A oralidade e a tradição estão intimamente relacionadas. Como diz Walter Ong em seu estudo da fala e da escrita, as culturas orais “investem pesadamente no passado, registrando-o em suas instituições altamente conser­vadoras e em performances e processos poéticos orais, os quais seguem fórmu­las relativamente invariáveis e calculadas para preservar o conhecimento dura­mente conquistado das experiências passadas que, como não há registro escri­to, estariam condenadas a simplesmente desaparecer.”11

Embora Lévi-Strauss e outros tenham explorado habilmente a relação entre a escrita e o surgimento de sistemas sociais dinâmicos “quentes”, apenas ínnis e, depois dele, McLuhan, teorizaram em detalhes o impacto da mídia sobre o desenvolvimento social, especialmente em relação ao surgimento da modernidade.12Os dois autores sublinham as conexões entre tipos dominan­tes de mídia e transformações espaço-temporais. A medida em que um meio serve para alterar as relações espaço-temporais não depende fundamentalmen­te do conteúdo ou das “mensagens” que carrega, mas de sua forma ou repro- dutibüidade. Innís sugere, por exemplo, que a introdução do papiro para a inscrição da escrita estendeu o âmbito dos sistemas administrativos, porque era muito mais fácil de ser transportado, estocado e reproduzido que os materiais utilizados até então.

A modernidade é inseparável de sua “própria” mídia: os textos impressos e, em seguida, o sinal eletrônico. O desenvolvimento e expansão das institui­ções modernas está diretamente envolvido com o imenso aumento na media­ção da experiência que essas formas de comunicação propiciaram. Quando os livros eram feitos a mão, a leitura era seqüencial: o livro tinha que passar de pessoa para pessoa. Os livros e textos das civilizações pré-modernas estavam substancialmente atrelados à transmissão da tradição, e eram quase sempre de caráter essencialmente “clássico”. Materiais impressos atravessam o espaço tão facilmente quanto o tempo porque podem ser distribuídos para muitos leito­res mais ou menos simultaneamente.13 Apenas meio século depois do apareci­mento da Bíblia de Gutenberg, centenas de casas impressoras se espalhavam pelas cidades da Europa. Hoje, a palavra impressa continua no centro da modernidade e de suas redes globais. Praticamente todas as línguas conhecidas da humanidade foram impressas, e mesmo naquelas sociedades em que os

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níveis de alfabetização são baixos os materiais impressos e a capacidade de produzi-los e interpretá-los são meios indispensáveis de coordenação adminis­trativa e social. Calcula-se que, num nível global, a quantidade de materiais impressos dobra a cada quinze anos desde os dias de Gutenberg.14

A imprensa foi uma das principais influências no surgimento do Estado moderno e de outras instituições da modernidade, mas quando olhamos para as origens da alta modernidade o que é importante é o desenvolvimento cada vez mais entrelaçado da mídia impressa e da comunicação eletrônica. O surgimento de materiais impressos de circulação em massa é em geral conside­rado como parte de uma era anterior à das mensagens eletrônicas — particu­larmente por McLuhan, que as contrapôs radicalmente. Em termos da pura sucessão temporal, é verdade que o primeiro exemplo de material impresso em massa — o jornal — surgiu aproximadamente um século antes do advento da televisão. Mas é um equívoco ver o primeiro como uma mera fase prévia ao surgimento da segunda; desde muito cedo a comunicação eletrônica foi vital para o desenvolvimento da mídia impressa em massa. Embora a invenção do telégrafo seja um pouco posterior ao primeiro florescimento dos diários e periódicos, foi fundamental para o que hoje conhecemos como jornal e, em verdade, para o próprio conceito de “notícia”. O telefone e o rádio expandi­ram ainda mais essa conexão.

Os antigos jornais (e várias outras revistas e periódicos) desempenharam um papel importante completando a separação entre espaço e lugar, mas esse processo só se tornou um fenômeno global por causa da integração da mídia impressa e eletrônica. Isso é facilmente demonstrado através do desenvolvi­mento do jornal moderno. Assim, Susan Brooker-Gross examinou as mudan­ças no alcance espaço-temporaj dos jornais. Ela descobriu que as notícias t/picas de um jornal norte-americano de meados do século XIX, antes da difusão do telégrafo, eram diferentes tanto das dos jornais do começo do mesmo século, quanto das produzidas depois. As notícias se referiam a fatos ocorrido em cidades distantes nos Estados Unidos, mas sem a imediatidade a que o leitor de hoje está acostumado.15

Antes do telégrafo, como mostra Brooke-Gross, as notícias descreviam eventos próximos e recentes; quanto mais distante um acontecimento, mais tarde ele aparecia. Notícias de longe tomavam a forma do que ela chama de amontoado geográfico”. Matérias da Europa, por exemplo, chegavam literal­

mente em pacotes nos navios, e eram apresentadas como chegavam: "um navio chegou de Londres, e estas são as notícias que ele trouxe”. Em outras palavras, os canais de comunicação e as pressões das diferenças entre tempo e espaço moldavam diretamente a apresentação das páginas impressas. Depois da introdução do telégrafo e, em seguida, do telefone e de outros meios

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eletrônicos, o evento em si torna-se o fator determinante da inclusão, e não mais o lugar de sua ocorrência, A maioria dos veículos de notícias preservam algum sentido de “lugar privilegiado” em relação à sua própria posição — com algum viés para as notícias locais — , mas apenas contra o pano de fundo da predominância do evento.16

As imagens visuais que a televisão, o cinema e os vídeos apresentam sem dúvida criam texturas de experiência via mídia que não estão disponíveis na palavra impressa. No entanto, como os jornais, revistas, periódicos e outros tipos de matéria impressa, esses meios são tanto a expressão das tendências globalizantes, desencaixadoras, da modernidade, como instrumentos dessas tendências. Como modalidades de reorganização do tempo e do espaço, as semelhanças entre os meios impressos e os eletrônicos são mais importantes que suas diferenças na constituição das instituições modernas. E isso vale para as duas características básicas da experiência transmitida pela mídia nas condi­ções da modernidade. Uma é o efeito colagem. Dado que o evento se tornou quase completamente dominante em relação ao lugar, a apresentação dos meios de comunicação toma a forma de justaposição de histórias e itens que nada têm em comum exceto serem “oportunos” e terem conseqüências. A página de jornal e o guia de programação da televisão são exemplos igualmen­te significativos do efeito colagem. O desaparecimento de narrativas e até, talvez, a separação dos signos em relação aos referentes, como querem alguns, marcam esse efeito?17 Certamente não. Uma colagem não é, por definição, uma narrativa; mas a coexistência de itens diferentes nos meios de comunica­ção de massa não representa uma confusão caótica de signos. Antes, as “histó­rias” separadas que são exibidas lado a lado expressam ordenamentos típicos de conseqüencialidade de um ambiente espaço-temporal transformado, do qual a predominância do lugar praticamente se evaporou. Não se somam numa única narrativa, mas dependem de unidades de pensamento e de cons­ciência, as quais de certa forma elas também expressam.

Uma segunda característica da experiência transmitida pela mídia nos tempos modernos é a intrusão de eventos distantes na consciência cotidiana, que é em boa parte organizada em termos da consciência que se tem deles. Muitos dos eventos relatados no noticiário, por exemplo, podem ser experimentados pelo indivíduo como exteriores e remotos; mas muitos também se infiltram na atividade diária. A familiaridade gerada pela experiência transmitida pela mídia pode talvez, com freqüência, produzir sensações de “inversão da realida­de”: o objeto ou evento real, quando encontrado, parece ter uma existência menos concreta que sua representação na mídia. Além disso, muitas experiên­cias que podem ser raras na vida cotidiana (como o contato direto com a morte e os moribundos) são encontradas rotineiramente nas representações

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midiáticas; o enfrentamento dos fenômenos reais em si é psicologicamente problemático. Falarei mais desse fenômeno adiante. Em suma, nas condições da modernidade, os meios de comunicação não espelham realidades, mas em parte as formam. O que não deve nos levar à conclusão de que os meios de comunicação criam um reino autônomo de “ h i per-real idade”, onde o signo ou imagem é tudo.

Hoje é lugar-comum a afirmação de que a modernidade fragmenta e dissocia. Houve quem chegasse a supor que tal fragmentação marca a emer­gência de uma nova fase de desenvolvimento social além da modernidade — uma era pós-moderna. Mas as características unificadoras das instituições modernas são tão centrais para a modernidade — especialmente na fase da alta modernidade — quanto as desagregadoras. O “esvaziamento” do tempo e do espaço pôs em movimento processos que acabaram por estabelecer um “mun­do” único onde antes não existia nenhum. Na maioria das culturas pré-mo- dernas, inclusive na Europa medieval, o tempo e o espaço se misturavam com o reino dos deuses e espíritos, e também com o “privilégio do lugar”.18 Tomados em conjunto, os diversos modos de cultura e de consciência caracte­rísticos dos “sistemas mundiais” pré-modernos formavam um cortejo genui­namente fragmentado de comunidades humanas. Por contraste, a modernida­de tardia produz uma situação em que a humanidade em alguns aspectos se torna um “nós”, enfrentando problemas e oportunidades onde não há “ou­tros”.

A alta modernidade e seus parâmetros existenciais

A alta modernidade é caracterizada pelo ceticismo generalizado juntamente à razão providencial, em conjunto com o reconhecimento de que a ciência e a tecnologia têm dois gumes, criando novos parâmetros de risco e perigo ao mesmo tempo em que oferecem possibilidades benéficas para a humanidade. Esse ceticismo não se limita aos escritos e meditações de filósofos e intelec­tuais: já vimos que a consciência dos parâmetros existenciais da reflexividade se torna parte da própria reflexividade num sentido muito amplo. Viver no “mundo” produzido pela alta modernidade dá a sensação de conduzir um juggernaut.^ Não só ocorrem processos de mudança mais ou menos profun­dos; a mudança não se adapta nem à expectativa nem ao controle humanos. A

* Juggtfytâutx carro de Jagrená, divindade hindu, sob cujas rodas m u ito s devotos se jogavam na certeza de qu e tal m orte lhes traria a salvação, (N .T .)

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percepção de que o ambiente social e natural estaria cada vez mais sujeito ao ordenamento racional não se verificou. A previsão da modernidade está envol­vida diretamente com esse fenômeno. A crônica inclusão do conhecimento nas circunstâncias da ação que analisa ou descreve cria um conjunto de incertezas que se somam ao caráter circular e falível das pretensões pós-tradi­cionais ao saber.

A razão providencial — a idéia de que o aumento da compreensão secular da natureza das coisas intrinsecamente leva os seres humanos a uma existência mais segura e satisfatória — carrega resíduos de concepções do destino deriva­das de eras pré-modernas. Noções de destino podem ter um tom sombrio, mas sempre implicam que o curso dos eventos é de alguma maneira predetermina­do. Nas circunstâncias da modernidade, noções tradicionais de destino po­dem ainda existir, mas são em sua maioria inconsistentes com uma visão em que o risco se torna elemento fundamental. Aceitar o risco como risco, orien­tação que nos é mais ou menos imposta pelos sistemas abstratos da moderni­dade, é reconhecer que nenhum aspecto de nossas atividades segue um curso predestinado, e todos estão expostos a acontecimentos contingentes. Nesse sentido, é bem precisa a caracterização da modernidade, como faz Ulrich Beck, como uma “sociedade de risco”,20 expressão que se refere a algo mais que o simples fato de que a vida social moderna introduz novas formas de perigo que a humanidade terá que enfrentar. Viver na “sociedade de risco” significa viver com uma atitude calculista em relação às possibilidades de ação, positivas e negativas, com que somos continuamente confrontados, como indivíduos e globalmente em nossa existência social contemporânea.

Por causa de seu dinamismo reflexivamente mobilizado — embora intrin­secamente errático — , a atividade social moderna tem um caráter essencial­mente contrafactual. Num universo social pós-tradícional, um âmbito inde­terminado de cursos potenciais de ação (com seus riscos correspondentes) se abre a cada momento para os indivíduos e coletividades. Escolher entre tais alternativas é sempre uma questão “como se”, uma questão de selecionar entre mundos possíveis”. A vida nas circunstâncias da modernidade é mais bem

compreendida como um problema de contemplação rotineira de contrafac- tuais, e não implica uma simples troca de uma “orientação para o passado”, característica das culturas tradicionais, por uma “orientação para o futuro”.

Dada a extrema reflexividade da modernidade tardia, o futuro não consis­te exatamente na expectativa de eventos ainda por vir. Os “futuros” são reflexivamente organizados no presente em termos do fluxo crônico do conhe­cimento nos ambientes sobre os quais tal conhecimento foi desenvolvido — o mesmíssimo processo que, de maneira aparentemente paradoxal, freqüente­mente confunde as expectativas que o conhecimento gera. A popularidade da

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futurologia no sistema da alta modernidade não é uma preocupação excêntri­ca, equivalente contemporâneo da leitura da sorte de antigamente. Ela assina­la um reconhecimento de que a consideração de possibilidades contrafacmais é intrínseca à reflexividade no contexto da estimativa e avaliação do risco. Em alguns aspectos, tal perspectiva há muito Íntegra as instituições modernas. O seguro, por exemplo, há muito está ligado não só aos riscos envolvidos nos mercados capitalistas, mas aos futuros potenciais de ampla gama de atributos individuais e coletivos. O cálculo dos futuros por parte das companhias de seguros é ele mesmo um empreendimento arriscado, mas é possível limitar o risco a alguns aspectos-chave de modos não-disponíveis na maioria dos con­textos práticos da ação. O cálculo do risco para as companhias de seguros é atuarial e essas companhias tipicamente tentam excluir aspectos ou formas de risco que não estão de acordo com o cálculo de probabilidades a partir de grandes amostras: ou seja, “atos de Deus”.

A vida sempre foi um negócio arriscado, cercado de perigos. Por que seriam a estimativa do risco e uma tendência ao pensamento conttafactual significativos na vida social moderna, quando comparados aos sistemas pré- modernos? Podemos acrescentar a essa uma pergunta sobre a especial Í2ação: há algo de distintivo sobre a confiança e os sistemas abstratos na modernidade, dado que nas culturas pré-modernas as pessoas também consultavam especia­listas e curandeiros sobre seus problemas? Em cada um desses aspectos, há de fato importantes diferenças entre a generalidade dos sistemas pré-modernos e as instituições da modernidade. Em relação à segunda pergunta, as diferenças dizem respeito ao grande alcance dos sistemas abstratos, em conjunto com a natureza da relação entre o conhecimento técnico e o leigo. Havia especialistas nas sociedades pré-modernas, mas poucos sistemas técnicos, particularmente nas sociedades menores; daí que era muitas vezes possível para os membros individuais dessas sociedades levar sua vida, se assim o quisessem, quase que exclusivamente em termos de seu próprio conhecimento local, ou do de seu grupo imediato de parentesco. Tal desengajamento não é possível nos tempos modernos. Em certos aspectos, isso é verdade, como já indiquei, para todos na face da Terra, mas especialmente para aqueles que vivem nas áreas geográficas centrais da modernidade.

A diferença nas conexões entre o conhecimento técnico e o conhecimento leigo, quando comparamos sistemas pré-modernos e modernos, diz respeito à acessibilidade das habilidades e informações especializadas para os atores, O conhecimento especializado nas culturas pré-modernas tende a depender de procedimentos e formas simbólicas que resistem à codificação explícita ou, quando tal conhecimento é codificado, não se torna disponível para os indiví­duos porque a alfabetização é monopólio zelosamente guardado por poucos.

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A preservação dos aspectos esotéricos do conhecimento especializado, particu­larmente onde esse elemento está separado das “artes e ofícios”, é provavel­mente a principal base do status diferenciado alcançado pelos especialistas. Os aspectos esotéricos da especialização nos sistemas modernos têm pouco ou nada a ver com sua inefabilidade, mas dependem de um longo treinamento — embora, sem dúvida, os especialistas (como os sociólogos) freqüentemente ergam uma barreira de jargão e ritual para proteger reivindicações de uma distinção técnica. A especialização é na realidade a chave para o caráter dos sistemas abstratos modernos. O conhecimento incorporado nas formas mo­dernas de especialização está em princípio disponível para qualquer um, desde que tenha os recursos, tempo e energia para adquiri-lo. O fato de que ser especialista em um ou dois pequenos escaninhos dos sistemas abstratos mo­dernos seja tudo o que alguém pode alcançar significa que os sistemas abstra­tos modernos são opacos para a maioria. Sua opacidade — o elemento subja­cente na extensão da confiança no contexto dos mecanismos de desencaixe -— provém da própria intensidade da especialização que os sistemas abstratos tanto demandam quanto alimentam.

A natureza especializada da capacidade moderna contribui diretamente para o caráter errático e descontrolado da modernidade. A especialização moderna, em contraste com a maioria das formas pré-modernas, é altamente mobilizada em termos reflexivos, e geralmente se orienta para o aperfeiçoa­mento e eficácia contínuos. Os empreendimentos especializados na resolução de problemas tendem freqüentemente a ser medidos por sua capacidade de definir questões com clarezá ou precisão crescente (qualidades que por sua vez têm o efeito de produzir especialização adicional). Contudo, quanto mais um problema é colocado em foco, tanto mais as áreas circundantes de conheci­mento se tornam embaçadas para os indivíduos que delas se ocupam, e tanto menos é provável que eles sejam capazes de antever as conseqüências de sua contribuição para além da esfera particular de sua aplicação. Embora a espe­cialização seja organizada dentro de sistemas abstratos mais amplos, a própria perícia tem foco cada vez mais estreito, e tende a produzir resultados indeseja- dos e não-previstos que não podem ser evitados — salvo pelo desenvolvimen­to de especialização adicional, repetindo assim o mesmo fenômeno.21

Essa combinação de conhecimento especializado e conseqüências excên­tricas é uma das principais razões por que o pensamento contrafactual, junto com a centralidade do conceito de risco, é tão importante nas condições da modernidade. Em culturas pré-modernas, “pensar adiante” normalmente sig­nifica ou o uso indutivo da experiência acumulada, ou a consulta a adivinhos. As culturas têm que ser semeadas, por exemplo, anrecipando as necessidades futuras e levando em consideração as mudanças de estação. Métodos tradicio-

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nalmente estabelecidos de cultivo, talvez acompanhados por conselhos mági­cos especializados, seriam empregados para juntar a necessidade presente e os resultados futuros. Na vida social moderna, os indivíduos podem ser capazes de viver por longos períodos misturando hábitos estabelecidos com a consulta a especialistas específicos em “consertos gerais” e em contingências inespera­das. Os próprios especialistas — que, sublinho novamente, não são um grupo claramente distinguível na população — continuam a realizar seu trabalho técnico com uma concentração decidida numa área estreita, dando pouca atenção a conseqüências ou implicações mais amplas. Nessas circunstâncias, a estimativa de riscos está bastante bem “arraigada” entre os modos mais ou menos firmemente estabelecidos de ação. Mas a qualquer ponto essas práticas podem tornar-se repentinamente obsoletas ou estar sujeitas à mais completa transformação.

O conhecimento especializado não cria arenas indutivas estáveis; situa­ções e eventos novos, intrinsecamente erráticos, são o resultado inevitável da extensão dos sistemas abstratos. Há ainda perigos constituídos fora das esferas reflexivamente infundidas da ação (por exemplo, terremotos ou desastres naturais), mas a maioria é filtrada, e em certa medida ativamente produzida, por aquelas esferas de ação. Muitas vezes pensamos nos riscos em termos de parâmetros de probabilidade que podem ser estimados com precisão, como as companhias de seguros fazem seus cálculos. Mas nas circunstâncias da moder­nidade tardia muitas formas de risco não admitem uma estimativa clara, devido ao ambiente de conhecimento em transformação que as emoldura; e até a estimativa de risco em situações relativamente fechadas muitas vezes só é válida “até segunda ordem”.

Por que modernidade e identidade?

As transformações na auto-identidade e a globalização, como quero propor, são os dois pólos da dialética do local e do global nas condições da alta modernidade. Em outras palavras, mudanças em aspectos íntimos da vida pessoal estão diretamente ligadas ao estabelecimento de conexões sociais de grande amplitude. Não quero negar a existência de muitos tipos de conexões intermediárias — por exemplo entre localidades e organizações estatais. Mas o nível do distanciamento tempo-espaço introduzido pela alta modernidade é tão amplo que, pela primeira vez na história humana, “eu” e “sociedade” estão in ter-rei acionados num meio global.

Vários fatores, nas circunstâncias da alta modernidade, influenciam dire­tamente a relação entre auto-identidade e instituições modernas. Como foí

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sublinhado nas páginas precedentes, a modernidade introduz um dinamismo elementar nas coisas humanas, associado a mudanças nos mecanismos da confiança e nos ambientes de risco. Não penso que seja verdade que, como sugerem alguns, a era moderna seja uma era marcada por alta ansiedade em contraste com épocas anteriores. Ansiedades e inseguranças afetaram outras épocas além da nossa, e é provavelmente pouco justificável supor que a vida em culturas menores e mais tradicionais tenha um teor mais equilibrado que o de hoje. Mas o conteúdo e a forma das ansiedades predominantes certamen­te mudaram.

A reflexividade da modernidade se estende ao núcleo do eu. Posto de outra maneira, no contexto de uma ordem pós-tradicional, o eu se torna um projeto reflexivo. Transições nas vidas dos indivíduos sempre demandaram a reorganização psíquica, algo que era freqüentemente rttualizado nas culturas tradicionais na forma de ritos de passagem. Mas em tais culturas, nas quais as coisas permaneciam mais ou menos as mesmas no nível da coletividade, geração após geração a mudança de identidade era claramente indicada — como quando um indivíduo saía da adolescência para a vida adulta. Nos ambientes da modernidade, por contraste, o eu alterado tem que ser explora­do e construído como parte de um processo reflexivo de conectar mudança pessoal e social. Essa é uma ênfase clara no estudo de Wallerstein e Blakeslee, e sua obra é não só um documento sobre esse processo, mas também uma contribuição constitutiva dele. O “novo sentido do eu” que, como elas dizem, um indivíduo tem que cultivar após o divórcio, é construído como parte de um processo de formas sociais pioneiras e inovadoras, como aquelas envolvi­das na moderna família “de adoção”. O processo de “retorno às primeiras experiências” que Wallerstein e Blakeslee analisam é precisamente parte de uma mobilização reflexiva da auto-identidade; não se limita às crises da vida, mas é uma característica geral da atividade social moderna em relação à organização psíquica.

Em tais circunstâncias, os sistemas abstratos passam a estar centralmente envolvidos não só na ordem institucional da modernidade mas também na formação e continuidade do eu. A primeira socialização das crianças, por exemplo, tende cada vez mais a depender do conselho e instrução de especia­listas (pediatras e educadores), e não mais da iniciação direta de uma geração pela outra — e esse conselho e instrução por sua vez respondem reflexivamen­te à pesquisa em andamento. Como disciplinas acadêmicas, a sociologia e a psicologia estão assim envolvidas de maneira direta com a reflexividade do eu. E no entanto a conexão mais distintiva entre os sistemas abstratos e o eu deve ser encontrada no surgimento de modos de terapia e orientação de todos os tipos. Um modo de interpretar o desenvolvimento da terapia é da maneira

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puramente negativa, como resposta aos efeitos debilitantes das instituições modernas sobre a auto-experiência e as emoções. A modernidade, pode-se dizer, rompe o referencial protetor da pequena comunidade e da tradição, substituindo-as por organizações muito maiores e impessoais. O indivíduo se sente privado e só num mundo em que lhe falta o apoio psicológico e o sentido de segurança oferecidos em ambientes mais tradicionais. A terapia oferece alguém para quem podemos nos voltar, uma versão secular do confes­sionário.

Não quero dizer que esse ponto de vista deve ser posto inteiramente de lado, uma vez que sem dúvida contém elementos válidos. Mas há boas razões para supor que ele é substancialmente inadequado. A auto-identidade se torna problemática na modernidade de uma maneira que contrasta com as relações eu-sociedade em contextos mais tradicionais; mas essa não é apenas uma situação de perda, e tampouco implica que os níveis de ansiedade aumentem necessariamente. A terapia não é simplesmente um meio de lidar com novas ansiedades, mas uma expressão da reflexividade do eu — um fenômeno que, ao nível do indivíduo, como as instituições maiores da modernidade, equili­bra oportunidade e catástrofe potencial em medidas iguais.

Essa observação será ampliada nos capítulos que seguem. Mas antes de expandi-la é preciso enfrentar certos problemas gerais relacionados ao eu e à auto-identidade. Essas considerações formam um pano de fundo conceituai para o estudo como um todo.