tecnologia da digestão anaeróbia da vinhaça- caracteristica do efluente

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE ENGENHARIA MECNICA

Tecnologia da Digesto Anaerbia da Vinhaa e Desenvolvimento Sustentvel

Autor : Cludio Plaza Pinto Orientador: Lus Augusto Barbosa Cortez 19/99

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE ENGENHARIA MECNICA DEPARTAMENTO DE ENERGIA

Tecnologia da Digesto Anaerbia da Vinhaa e Desenvolvimento Sustentvel

Autor : Cludio Plaza Pinto Orientador: Lus Augusto Barbosa Cortez

Curso: Ps-Graduao em Planejamento de Sistemas Energticos. rea de concentrao: Planejamento de Sistemas Energticos

Dissertao de mestrado apresentada comisso de Ps Graduao da Faculdade de Engenharia Mecnica, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Planejamento de Sistemas Energticos.

Campinas, 1999 S.P. - Brasil ii

Dedicatria:

Dedico este trabalho minha companheira Jlia, com amor e carinho. Grato pela pacincia.

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Agradecimentos:

Este trabalho no poderia ser terminado sem a ajuda de diversas pessoas s quais presto minha homenagem:

Aos meus pais pelo exemplo de luta e vitria, que continuem ainda por muitos anos, com sade e serenidade.

Ao meu orientador, sem dvida, pea fundamental do quebra-cabeas acadmico, pelo respeito e amizade.

A todos os professores e colegas do departamento, que ajudaram de forma direta e indireta na concluso deste trabalho, especialmente: a Silvia, pela teoria dos custos exergticos; a Edna, pelos toques, principalmente, o do Brasil Aucareiro; a Neusa, o Rodrigues, o nnio, a Branca e a Snia pelo apoio na infra. Grato.

A Gilson Fuzaro, Jorge Lucas Jr. e Paulo de Lamo, espero ter feito bom uso das valiosas informaes.

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Se sabes pouco, tambm amas pouco. O Amor filho do Conhecimento. O Amor arde tanto mais quanto mais profundo for o Conhecimento. Saber Perfeito e Amor Perfeito devem ser a mesma coisa (Leonardo da Vinci). vi

ndice

NDICE.................................................................................................................................................................... VII RESUMO ..................................................................................................................................................................IX ABSTRACT ............................................................................................................................................................... X LISTA DE FIGURAS...............................................................................................................................................XI LISTA DE TABELAS .......................................................................................................................................... XIII NOMENCLATURA ..............................................................................................................................................XIV INTRODUO ..........................................................................................................................................................1 1. CAPTULO 1 DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL E VINHAA ...................................................5 1.1- CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL ............................................................................................5 1.1.1- Introduo ................................................................................................................................................5 1.1.2- Crescimento, Desenvolvimento, Cincia e Tecnologia...........................................................................10 1.1.3- O Conceito de Desenvolvimento Sustentvel..........................................................................................18 1.2- ENERGIA, TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL ........................................................................26 1.3- CONTEXTO ATUAL DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL .............................................................................31 1.4- TECNOLOGIA DA DIGESTO ANAERBIA DA VINHAA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL .........................36 CAPTULO 2 LCOOL E VINHAA NO BRASIL..........................................................................................41 2.1- A PRODUO DE LCOOL NO BRASIL..............................................................................................................41 2.1.1- Histrico .................................................................................................................................................41 2.1.2- Prolcool ................................................................................................................................................46 2.1.3- Conjuntura Atual ....................................................................................................................................47 2.1.4- Aspectos Ambientais ...............................................................................................................................52 2.2- A VINHAA .....................................................................................................................................................62 2.2.1- Histrico .................................................................................................................................................62 2.2.2- Destinao..............................................................................................................................................66

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CAPTULO 3 TECNOLOGIA DA DIGESTO ANAERBIA ........................................................................77 3.1- DIGESTO ANAERBIA ....................................................................................................................................77 3.1.1- Microbiologia .........................................................................................................................................80 3.1.2- Influncias no Processo..........................................................................................................................85 3.2- DIGESTORES ANAERBIOS ...............................................................................................................................89 3.2.1- Digestores de Fluxo Ascendente.............................................................................................................93 3.3- UTILIZAO DO GS........................................................................................................................................99 3.4- DIGESTO ANAERBIA DA VINHAA .............................................................................................................103 3.4.1- Consideraes Finais ...........................................................................................................................114 CAPTULO 4 DIGESTO ANAERBIA E EXERGIA ..................................................................................118 4.1- EXERGIA E MEIO AMBIENTE ..........................................................................................................................118 4.2- CUSTOS EXERGTICOS ..................................................................................................................................122 4.2.1- Sistema 1...............................................................................................................................................125 4.2.2- Sistema 2...............................................................................................................................................127 4.2.3- Sistema 3...............................................................................................................................................133 4.3- CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................................................134 CONCLUSES.......................................................................................................................................................136 BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................................................138

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Resumo

PINTO, Cludio Plaza, Tecnologia da Digesto Anaerbia da Vinhaa e Desenvolvimento Sustentvel, Campinas,: Faculdade de Engenharia Mecnica, Universidade Estadual de Campinas, 1999. 145p. Dissertao (Mestrado) Este trabalho considera a tecnologia da digesto anaerbia da vinhaa no novo contexto que emerge neste fim de sculo, no qual o conceito de desenvolvimento vem sendo esclarecido e modificado sob a influncia de pontos de vista que at ento tinham permanecido em segundo plano, notadamente as questes ecolgicas. Neste sentido, so examinados os aspectos que compem essas modificaes, culminando numa apreciao crtica do conceito de desenvolvimento sustentvel, seus desdobramentos na rea do planejamento energtico, bem como sua relao com a produo de biogs atravs da digesto anaerbia da vinhaa. apresentado um histrico do problema da destinao da vinhaa, de maneira a situ-lo junto ao desenvolvimento da indstria do lcool no Brasil e a colocar as alternativas de tratamento daquele que o seu resduo mais importante. A seguir, a tecnologia da digesto da vinhaa detalhada no seu funcionamento e so indicadas as alternativas de aproveitamento do biogs. So relatadas as principais experincias de uso desta tecnologia no Brasil. apresentada, tambm, uma anlise exergtica de uma usina, onde, foi, supostamente, instalado um biodigestor anaerbio de vinhaa para a produo de biogs. O trabalho conclui que a tecnologia da digesto anaerbia da vinhaa contribui para a melhoria da sustentabilidade da produo de lcool, vivel economicamente, em alguns casos, e pode vir a ocupar importante lugar na indstria deste produto no Brasil, dependendo da direo em que caminharem os melhoramentos necessrios para utilizao integral da energia da biomassa da cana de acar. Palavras Chave Desenvolvimento Sustentvel; Digesto Anaerbia; Vinhaa; Biodigestores; Indstria da Cana; Termoeconomia.

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Abstract

PINTO, Cludio Plaza, Tecnologia da Digesto Anaerbia da Vinhaa e Desenvolvimento Sustentvel, Campinas,: Faculdade de Engenharia Mecnica, Universidade Estadual de Campinas, 1999. 145p. Dissertao (Mestrado)

This work considers the anaerobic treatment of stillage in the context of the present improvements in the concept of development which is being explained and modified in the light of environmental questions. In this sense, the aspects of this modification are examined and the concept of sustainable development, its relationships with the energy planning and the production of biogas through anaerobic digestion are reviewed. An historical survey about vinasse disposal, the different alternatives for it and the development of alcohol industry in Brazil is presented. The technology for vinasse anaerobic digestion and use of biogas is detailed as well as the main experiences in the utilization of this technology in Brazil. An exergy analysis is made in an alcohol distillery which were hypothetically installed an reactor in order to produce biogas to be used in the plant. The work concludes that the anaerobic treatment of stillage helps to improve the sustainability of alcohol production. It is economical too, depending on the case, and may occupy an important place in regard to the total energy utilization from biomass of sugar cane, relying on the needed improvements to do so.

Key words Sustainable Development; Anaerobic Digestion; Stillage; Biodigestors; Sugar Cane Industry, Termoeconomics.

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Lista de Figuras

FIGURA 1: PROCESSAMENTO PADRO DO MODELO MUNDIAL ........................................................................................7 FIGURA 2: ECOSSISTEMA GLOBAL FINITO RELATIVO AO SUBSISTEMA ECONMICO EM CRESCIMENTO ..........................25 FIGURA 3: PRODUO DE LCOOL NO BRASIL .............................................................................................................45 FIGURA 4: EVOLUO DO PREO DO PETRLEO ..........................................................................................................50 FIGURA 5: CADEIA ENERGTICA PARA TRANSPORTE UTILIZANDO LCOOL NUM SISTEMA ENERGTICO .......................53 FIGURA 6: INTERAES NA FASE AGRCOLA DA PRODUO DE LCOOL ......................................................................55 FIGURA 7: INTERAES NA FASE INDUSTRIAL DA PRODUO DO LCOOL ...................................................................61 FIGURA 8: ANNCIO PUBLICITRIO EM REVISTA DIRECIONADA AO CULTIVO DA CANA, EM 1956 .................................64 FIGURA 9: CAMINHO-TANQUE PARA A DISTRIBUIO DE VINHAA............................................................................71 FIGURA 10: VECULO PARA ASPERSO DE VINHAA ....................................................................................................73 FIGURA 11: CHEGADA DA VINHAA NO CANAVIAL ......................................................................................................74 FIGURA 12: CANAL DE DISTRIBUIO DE VINHAA......................................................................................................74 FIGURA 13: ETAPAS DA FERMENTAO ANAERBIA PARA PRODUO DE METANO .....................................................84 FIGURA 14: BIODIGESTOR BATELADA EM TAMBOR METLICO .....................................................................................90 FIGURA 15: BIODIGESTOR EM PLSTICO FLEXVEL.......................................................................................................90 FIGURA 16: TANQUE SPTICO DE IMHOFF ....................................................................................................................91 FIGURA 17: BIODIGESTOR EMPREGADO EM TRATAMENTO DE ESGOTO .........................................................................92 FIGURA 18: BIODIGESTOR MODELO INDIANO ...............................................................................................................92 FIGURA 19: BIODIGESTOR MODELO CHINS. ................................................................................................................93 FIGURA 20: REPRESENTAO ESQUEMTICA DE UM BIODIGESTOR DE FLUXO ASCENDENTE ........................................94 FIGURA 21: LODO GRANULADO ...................................................................................................................................95 FIGURA 22: REPRESENTAO ESQUEMTICA DO REATOR IC.......................................................................................98 FIGURA 23: ESTAO PARA BIOGS AUTOMOTIVO ....................................................................................................101 FIGURA 24: EXEMPLO DE INSTALAO INDUSTRIAL DE BIODIGESTO DA VINHAA ...................................................105 FIGURA 25: VISTA AREA DA PLANTA DE DIGESTO ANAERBIA DA VINHAA NA DESTILARIA SO JOO.................108 FIGURA 26: REATOR PARA DIGESTO DA VINHAA NA USINA SO MARTINHO..........................................................112

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FIGURA 27: VISTA DO CONJUNTO QUE COMPE O SISTEMA DE DIGESTO ANAERBIA DA VINHAA NA USINA SO MARTINHO .......................................................................................................................................................113 FIGURA 28: QUEIMADOR PARA SECAGEM DE LEVEDURA UTILIZANDO O BIOGS NA USINA SO MARTINHO ..............113 FIGURA 29: CENTRO DE ARMAZENAGEM DA LEVEDURA ENSACADA PARA A VENDA NA USINA SO MARTINHO ........114 FIGURA 30: VISTA AREA DO REATOR DE DIGESTO ANAERBIA DA VINHAA NA USINA SO MARTINHO................115 FIGURA 31: SISTEMA 1 - USINA SEM BIODIGESTO .....................................................................................................124 FIGURA 32: SISTEMA 2 - USINA COM BIODIGESTO DA VINHAA E QUEIMA DO BIOGS NA CALDEIRA........................129 FIGURA 33: SISTEMA 3 - USINA COM BIODIGESTO DA VINHAA, PURIFICAO DO BIOGS E USO DO METANO NAFROTA ..............................................................................................................................................................131

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Lista de Tabelas

TABELA 1: CARACTERSTICAS DA VINHAA RESULTANTE DE MOSTOS DE MELAO, DE CALDO DE CANA E DE MOSTOSMISTOS ...............................................................................................................................................................67

TABELA 2 : BACTRIAS NO-METANOGNICAS ISOLADAS EM DIGESTORES ANAROBIOS ............................................81 TABELA 3: ALGUMAS ESPCIES DE BACTRIAS METANOGNICAS E COMPOSTOS ORGNICOS USADOS POR ELAS .........82 TABELA 4: CLASSIFICAO DE BIODIGESTORES ...........................................................................................................89 TABELA 5: CARACTERSTICAS DO BIOGS E OUTROS COMBUSTVEIS .........................................................................100 TABELA 6: ALTERNATIVAS PARA O ARMAZENAMENTO DO METANO ..........................................................................102 TABELA 7: EVOLUO DA PRODUO TOTAL DE BIOGS NA DESTILARIA SO JOO.................................................106 TABELA 8: DADOS DA FROTA DA DESTILARIA SO JOO (SAFRA 93/94) ...................................................................107 TABELA 9: CONSIDERAES COMPARANDO AS PRINCIPAIS CARACTERSTICAS DA ENERGIA E EXERGIA .....................120 TABELA 10: COMPARAO ENTRE EXERGIA CONTIDA E EXERGIA LIBERADA NO MEIO AMBIENTE..............................121 TABELA 11:VALORES NUMRICOS REFERENTES AOS FLUXOS DO SISTEMA 1 .............................................................126 TABELA 12: VALORES NUMRICOS REFERENTES AOS FLUXOS DO SISTEMA 2.............................................................130 TABELA 13: VALORES NUMRICOS REFERENTES AOS FLUXOS DO SISTEMA 3.............................................................132 TABELA 14: CUSTOS EXERGTICOS PARA OS TRS SISTEMAS.....................................................................................133

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Nomenclatura

Prolcool - Programa Nacional do lcool ONU - Organizao das Naes Unidas PNB - Produto Nacional Bruto IUCN - Unio Internacional para Conservao da Natureza WWF - Fundo Mundial para Vida Selvagem UNEP - Programa para o Meio Ambiente das Naes Unidas WCS - Estratgia Mundial para Conservao DBO - Demanda Biolgica de Oxignio DQO - Demanda Qumica de Oxignio CNTP - Condies Normais de Temperatura e Presso IAA - Instituto do Acar e lcool CETESB - Companhia de Tecnologia de Saneamento Bsico e Ambiental UASB - reator de Leito de Lodo Anaerbio Ascendente IC - reator de Circulao Interna IPT - Instituto de Pesquisas Tecnolgicas PAISA - Penedo Agroindustrial Destilaria

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Introduo

Numa poca de dificuldades para o Programa Nacional do lcool (Prolcool), os aspectos ambientais positivos da produo do etanol e do seu uso como combustvel tm sido os principais temas da defesa do programa, como o foi a questo da independncia energtica nacional nos primeiros anos de sua implantao. Em julho de 1992, a Reunio da Cpula da Terra das Naes Unidas (ONU), no Rio de Janeiro, apelou aos pases industrializados para que limitassem o consumo, impulsionassem a eficincia energtica e reduzissem a poluio e exausto dos recursos naturais, de modo a tornar o crescimento econmico menos prejudicial ao meio ambiente. Estava lanada as bases para a construo dos paradigmas ambientais que norteariam diversos trabalhos sobre a produo de etanol e seu impacto positivo ao meio ambiente, principalmente, no que se refere ao balano de CO2 e s possibilidades da produo de excedentes de energia eltrica atravs da cogerao nas usinas. O protocolo recentemente firmado em Kyoto prev, entre 2008/2012, uma reduo nas emisses de CO2 em torno de 6% em relao emisso de 1990, nos pases de economia avanada e nos de economia em transio. Um grande esforo se faz necessrio para atingir esta meta porque, atualmente, os pases desenvolvidos j esto emitindo 13% acima dos nveis de 1990. Fazendo-se uma estimativa grosseira, estes pases, se nenhuma providncia for tomada, estaro emitindo cerca de 39% de CO2 acima do nvel de 1990, ou seja, para atender o compromisso de Kyoto, ser necessrio reduzir em 45% este tipo de poluio. Esta tarefa exigir, da parte de todos, um esforo para incrementar o uso de fontes renovveis no causadoras dessas emisses.

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Alm dos aspectos internacionais do uso do etanol, a indstria da cana no Brasil, responsvel pela sua produo, influi de forma marcante o cenrio energtico, econmico e social do pas, e faz do Brasil o maior produtor do mundo de cana-de-acar, com cerca de 300 milhes de toneladas na safra 1997/1998, sendo aproximadamente 2/3 utilizados na produo do etanol, num total de 15,1 milhes de m3 e 14,7 milhes de toneladas de acar. Estes nmeros representam a gerao de cerca de 600 mil empregos diretos no campo, num total de 328 usinas produtoras, cultivando uma rea prxima de 5,5 milhes de hectares, numa movimentao de cerca de 11 bilhes de reais, representando 3% do Produto Interno Bruto brasileiro. Os subprodutos principais desta estrutura so por volta de 80 milhes de toneladas de bagao e cerca de 200 milhes de m3 de vinhaa (Macedo, 1997). Mesmo considerando-se somente as questes energticas, essa grande quantidade de material que resta no processo de fabricao do acar e lcool j indica um potencial significativo ainda pouco aproveitado da indstria da cana, com todas as vantagens que representa o uso de uma fonte renovvel no setor energtico, principalmente, no mdio e longo prazo. Para a situao especfica da vinhaa, na grande maioria dos casos, este resduo empregado in natura na lavoura da prpria cana-de-acar, em quantidades que variam de 120 a 300 m3/ha, substituindo, em parte, o uso de fertilizantes, com a fertilidade do solo sendo mantida aps anos de cultivo de cana-de-acar, a matria orgnica rapidamente mineralizada e o contedo de clcio, potssio, nitrognio e fsforo do solo aumentam. Esta prtica, chamada fertirrigao, parece ter oferecido a soluo para o problema da disposio desse resduo, quando foi proibido o seu simples descarte no curso dgua mais prximo da usina. Contudo, nitrognio na forma de nitrato pode, se alguns cuidados no forem tomados, infiltrar e atingir camadas mais profundas do solo e o lenol fretico, representando um risco para a sade humana, principalmente nos casos em que, para evitar custos de transporte, uma nica rea, chamada rea de descarte, recebe grandes concentraes de vinhaa (acima de 400 m3/ha). Mais pesquisas so necessrias para esclarecer estes pontos. Contudo, ainda que a prtica da fertirrigao possa no representar atualmente um problema ecolgico de maiores propores, parece claro que seu objetivo principal se livrar de um resduo incmodo e perigoso, a vinhaa, 2

da forma mais rpida e econmica possvel, sem causar maiores danos paralelos. Com o tratamento da vinhaa, os ganhos ambientais so relevantes quando considerados sob o ponto de vista do aproveitamento integral da energia da biomassa da cana, contribuindo para a melhoria da sustentabilidade desta fonte renovvel e aumentando sua taxa de converso energtica, podendo tornar a unidade produtora de etanol totalmente independente de combustveis de origem fssil, tanto na rea agrcola como na planta industrial, j suprida pelo uso do bagao. A exeqibilidade da digesto anaerbica da vinhaa vem sendo provada por vrios estudos operando com plantas-piloto em condies reais; contudo apenas algumas plantas em escala normal foram instaladas at o momento no Brasil, devido a um balano econmico desfavorvel, causado, principalmente, pelo baixo preo dos competidores diretos do biogs produzido na biodigesto, principalmente leo Diesel, no caso da utilizao em veculos. Alm disso, a falta de prtica na aplicao da tecnologia da digesto anaerbica tambm influi para coloc-la na posio marginal que ocupa atualmente na indstria do lcool. A dissertao de mestrado que ser apresentada pretende considerar a tecnologia da digesto anaerbica da vinhaa no novo contexto que emerge neste fim de sculo, no qual o conceito de desenvolvimento vem sendo esclarecido sob a influncia de pontos de vista que at ento tinham permanecido em segundo plano, notadamente as questes ecolgicas que aparecem juntamente com uma viso integrativa do meio ambiente humano, o qual se compe de aspectos ecolgicos, econmicos e sociais, sendo que estes, sob esta perspectiva, guardam uma estreita relao um com os outros. A essncia do trabalho parte do pressuposto que a tecnologia da digesto anaerbica da vinhaa o que se chama de tecnologia limpa, que contribui diretamente ao desenvolvimento sustentvel por razes que sero analisadas. Ser revisto o conceito de desenvolvimento sustentvel, seus limites e contradies. A prpria definio de tecnologia limpa (que a rigor no existe) merece ponderaes para deixar explcitas as consideraes e observaes que guiaro o trabalho. Dessa maneira, a partir do esclarecimento sobre do que est sendo tratado, o prximo passo ser situar historicamente a digesto da vinhaa na indstria da cana no Brasil, o que auxiliar a percorrer seu o futuro. Ser apresentada, tambm, uma avaliao dos custos

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exergticos em duas possibilidades de aproveitamento energtico da vinhaa numa planta de fabricao de etanol.

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1. Captulo 1

Desenvolvimento Sustentvel e Vinhaa

Neste captulo sero discutidas as bases em que esto fundamentadas as colocaes mais importantes sobre a maneira de abordar o problema da destinao da vinhaa tendo em vista que o contexto atual de mudanas, as quais podem, por sua vez, apresentar novas e melhores oportunidades de se tratar essa complexa questo. 1.1- Conceito de Desenvolvimento Sustentvel 1.1.1- Introduo Entende-se por cosmologia, ou cosmoviso, o conjunto de representaes de diferente natureza, que formam a imagem do universo que uma sociedade projeta para orientar-se e para situar o lugar do ser humano no conjunto dos seres (Boff, 1998). E foi no incio da era moderna, depois de diversas revolues do pensamento, que foram lanadas as bases da imagem atual, ou cosmologia, que fazemos do nosso mundo: finito, solto no vazio, arredondado, flutuando na escura imensido do universo. A essa viso se impe agora, como remate, a idia da fragilidade da vida, inclusive a nossa, imprensada numa lmina fina de gua, de terra e de ar, dependente do bom funcionamento de nossa nave-me.

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certo que a idia da limitao de recursos no seja nova na histria do pensamento. O primeiro autor que trabalha sistematicamente este assunto Malthus, no sculo XVIII, com sua lei de rendimentos decrescentes, a qual sugere simplesmente que se a quantidade de terras fixa, a produo pode aumentar somente de forma aritmtica, enquanto que a populao aumenta geometricamente. Ricardo, bastante influenciado por Malthus, elabora um refinado modelo que relaciona aluguel, lucros e salrios na agricultura, no qual est presente a noo de que o crescimento econmico deveria eventualmente se esgotar devido escassez de recursos naturais. Depois dos dois primeiros, e tambm bastante influenciado por eles, Mill refuta veementemente a idia de crescimento continuado, em moda na Inglaterra da poca (segunda metade do sculo XIX). Ele acreditava que a luta incessante por bens materiais, como progresso, no era nem natural, nem desejvel para a humanidade. Outros dois trabalhos que merecem destaque so o de Jevons, de 1865, que analisa o problema da escassez do carvo e a coloca como o maior obstculo ao desenvolvimento econmico da Gr-Bretanha, e o de Pigou, que foi um dos primeiros, em 1929, a sistematizar a idia da distribuio de renda entre geraes (Kula, 1992). Todavia, o trabalho que mais influiu na consolidao dessa imagem atual do nosso planeta e nos debates sobre seu futuro foi o de um grupo chamado Clube de Roma, composto por cerca de 30 indivduos de 10 pases, entre economistas, cientistas naturais, matemticos, executivos e educadores, que produziram vrios documentos, o principal deles conhecido como Relatrio Meadows, ou Limites do Crescimento, publicado em 1972. A partir de cinco grandes variveis o estoque de capital industrial, a populao, a poluio, a oferta de alimentos e a disponibilidade de recursos naturais no renovveis, os autores do Relatrio montaram um modelo matemtico capaz de evidenciar grandes tendncias, construindo em computadores os futuros possveis do sistema mundial constitudo at ento. Em linhas gerais, o relatrio mostrou que todas as variveis estavam sujeitas a ciclos positivamente realimentados, de modo que a variao das quantidades era exponencial. Vrias possibilidades de combinao reversa foram testadas, representando os diferentes encadeamentos possveis entre as variveis, mas, em todas, aparecia a mesma tendncia em direo a situaes insustentveis, mesmo mantendo-se estvel uma ou diversas variveis. Um detalhe importante que, surpreendentemente, nem a hiptese de recursos ilimitados garantiria a sustentao do crescimento, sendo o limite, neste caso, dado pela 6

poluio. Como proposta, o relatrio coloca a necessidade de se deterem todos os ciclos positivos de realimentao, e isto exige mudana profunda no modelo de desenvolvimento

Figura 1: Processamento padro do modelo mundial O processamento-padro do modelo mundial supe que no haja alteraes importantes nas relaes fsicas, econmicas ou sociais que, historicamente, tm regido o desenvolvimento do sistema mundial. As variaes traadas aqui seguem os valores histricos de 1900 a 1970. Alimentos, produo industrial e populao crescem exponencialmente at que a diminuio rpida de recursos force uma diminuio no crescimento industrial. Devido a atrasos naturais no sistema, tanto a populao como a poluio continuam a crescer durante algum tempo, depois do apogeu da industrializao. O crescimento da populao , finalmente, interrompido por um da taxa de mortalidade, devido diminuio de alimentos e servios mdicos (Meadows, 1978: p.122) (Benjamin, 1993). Uma tpica curva de resultados, entre as dezenas que foram apresentadas no relatrio, mostrada na figura 1. O Relatrio Meadows usa um modelo inspirado na lei de rendimentos decrescentes malthusiana, na qual uma ou algumas variveis do sistema se desenvolvem e so projetadas para o futuro, enquanto as outras permanecem fixas. Neste caso, so projetados populao e consumo 7

crescentes, considerando a base de recursos, a base tcnica de produo e a capacidade de tratar a poluio constantes; contudo, na vida real estes tambm evoluem. A utilizao de um ecossistema por um grupo social s encontra um limite mais ou menos fixo se as foras produtivas utilizadas por esse grupo tambm forem fixas (Benjamin, 1993). Sendo assim, a crtica mais dura ao relatrio dirigida aos seus pressupostos, que omitem as renovaes permanentes no sistema econmico devido ao avano tecnolgico, alm de considerar o mundo um lugar totalmente homogneo, ao trat-lo sem qualquer subdiviso geogrfica (Kula, 1992). Apesar das crticas atingirem diretamente as bases do Relatrio Meadows, este resta como um dos mais notveis documentos publicados na rea de recursos naturais e meio ambiente, contribuindo grandemente para intensificar o debate sobre as questes relacionadas escassez de recursos e degradao ambiental, que continuam, sem dvida, atuais. interessante, portanto, minuciar as crticas, com o intuito de aprofundar a discusso. Se a Terra finita, a oferta de recursos rgida; e se os estamos consumindo, eles acabaro. Estas so idias facilmente assimiladas pelo bom senso, mas esto equivocadas por no traduzirem a especificidade do conceito de recursos. Estes so aquelas partes da natureza que podem ser aproveitadas num momento dado. , portanto um conceito dinmico. O trabalho e a inteligncia humanos que fazem com que a matria passe condio de recurso. At o sculo XIX, o petrleo no era recurso. Antes do desenvolvimento da fsica nuclear, tambm no era recurso o urnio, e o mesmo raciocnio se aplica energia potencial das cachoeiras, s ondas de rdio, s ligas metlicas, roda e at pedra lascada. Assim, se a tecnologia varia de forma contnua, se modificam incessantemente os fatores, escapando-se ao determinismo da lei de rendimentos decrescentes de Malthus. Esta no se aplica, portanto, a situaes nas quais ocorrem desenvolvimento das foras produtivas e progresso tecnolgico. Os sucessivos nveis tcnicos permanecem ocultos at serem atingidos atravs de novas descobertas, definindo situaes histricas irreversveis. Os prprios autores do Relatrio Meadows rejeitaram a noo de limites fsicos ao crescimento em 1982, num encontro realizado em Filadlfia, Estados Unidos, chamando ateno, na ocasio, para a qualidade do crescimento e para os problemas enfrentados pelos pases pobres (Kula, 1992).

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Seguindo este encadeamento, as alternativas tecnolgicas para os problemas atuais do nosso mundo j so visveis: o domnio da fuso nuclear poder eliminar o limite representado hoje pelas reservas de combustveis fsseis; a eficincia no aproveitamento da energia solar tem aumentado; se pesquisa intensamente sobre supercondutividade; novas tcnicas permitem visualizar o trabalho com minrios mais pobres, alm da explorao do espao e do fundo dos mares, que est apenas comeando. Contudo, esse raciocnio no leva em conta a acelerao das mudanas promovidas pelo homem. Consumimos cada vez mais minrios e combustveis, e continuamos a observar a crescente extino de espcies animais e a perda contnua da cobertura vegetal do planeta. Apesar da existncia destes mesmos problemas no passado, e da tecnologia ter ajudado a resolv-los (substituindo a madeira pelo carvo - como combustvel, e pelo ferro - como material); a atual tecnologia industrial tem um impacto completamente novo: os efeitos de um derramamento de toneladas de petrleo, de um acidente nuclear, de emisses de CO2, outros gases-estufa ou compostos de cloro-flor-carbono alcanam regies inteiras de uma s vez, podendo, em seguida, afetar todo o planeta. Vem da a idia da fragilidade da vida complementando a de finitude, na imagem atual do nosso mundo. H um outro lado importante dessa discusso. As relaes econmicas e polticas fazem com que a utilizao das reservas esteja sujeita a diversas circunstncias, de natureza comercial e estratgica, capazes de tornar as mercadorias mais caras, graas a sua escassez, fazendo mais poderoso um grupo ou um pas. Todo um conflito de conquista, perda e distribuio de poder envolve essa discusso sobre limites fsicos da Terra. Isto nos remete ao problema das relaes dos homens entre si, e no somente destes com uma natureza que lhes seja exterior. Entre 80% e 90% do comrcio mundial de cobre, minrio de ferro, bauxita, produtos florestais, algodo, juta, tabaco, caf, cacau e outros produtos so controlados, no caso de cada produto, por trs a seis grandes empresas (Benjamin, 1993). preciso ento abrir a discusso sobre a qualidade do crescimento, em direo a servios menos poluentes e menos exigentes de recursos naturais, o que se liga necessria mudana nos padres de consumo. necessrio abordar muitas das questes crticas relacionadas ao 9

crescimento desigual e pobreza, que impem presses sem precedentes sobre terras, guas, florestas e outros recursos naturais do planeta. Se o nosso mundo pode ser finito e ilimitado graas nossa capacidade de recri-lo a cada era de inovaes, a tecnologia por si s no pode resolver os problemas da natureza humana a que, cedo ou tarde, os homens tero que fazer face. A religao com o mistrio subjetivo dessa cosmologia, na qual o universo um movimento incessante buscando seu equilbrio sempre frgil e exposto a mutaes; e na qual a prpria vida nasce da matria longe do seu equilbrio (total equilbrio equivale morte), e aparece como uma complexssima rede de energias e matria em permanente interao; em suma, esta religao dever ser no interior do ser humano. Todos os enormes gastos com as alternativas tecnolgicas na tentativa de resolver os impasses devidos limitao de recursos sujeitam-nos a esgotar nosso crdito em recursos naturais e humanos antes que as solues sejam encontradas, e, neste caso, as possibilidades estaro bastante reduzidas. arriscado desperdiar oportunidades, e o tempo vai mostrar aos que puderem ver. 1.1.2- Crescimento, Desenvolvimento, Cincia e Tecnologia A tomada de conscincia dos problemas ambientais aparece como umas das causas e como um sintoma das crticas ao atual estilo de desenvolvimento. Para Norgaard (1994), a chamada modernidade prometeu controlar a natureza por meio da cincia, abundncia material, tecnologia avanada, governo efetivo e seguro, e atravs de uma organizao social racional. Ela prometeu paz e justia atravs de uma forte moralidade individual e uma cultura coletiva superior, s quais todos iriam ascender. A modernidade, em suma, prometeu transformar a, at ento, vagarosa e incerta trajetria do progresso humano numa trilha veloz. A crena no progresso (aqui entendido como algo capaz de transformar a vida social e de conferir-lhe maior significao e alcance no contexto da experincia humana) tornou fcil a difuso do padro de desenvolvimento ocidental, baseado na modernidade, para quase todo o mundo. Esta crena pareceu se confirmar com a revoluo industrial na Europa, e, logo aps, nos Estados Unidos. A f no progresso resistiu a uma guerra mundial, Grande Depresso e ao tumulto poltico da primeira metade do sculo XX, que levou a outra guerra mundial. Ainda na segunda metade deste sculo, a confiana nas possibilidades de progresso encorajou o apoio ao desenvolvimento de um sistema econmico internacional capaz de modificar a vida do mais tosco proprietrio e campons do mais 10

longnquo canto do globo. As promessas no foram, ou foram s em parte, cumpridas, e o progresso foi trado. Norgaard (1994) enumera o que ele considera as principais lacunas nas promessas da modernidade: fomento do consumo material desequilibrado; acentuao das desigualdades; declnio dos entusiastas da modernidade nos embustes burocrticos; depauperao acelerada do estoque de recursos e degradao do meio ambiente do qual o progresso depende; oposio de povos contra povos num grande nmero de guerras regionais; converso de uma grande parte da populao do globo em refns e refugiados polticos e econmicos; existncia da possibilidade da aniquilao nuclear mtua e global. O autor ressalta que as crticas modernidade se tornaram numerosas e fceis; contudo, o principal desafio desenvolver uma explanao que considere a mudana e a evoluo conjunta dos sistemas ambientais (ecolgicos, sociais e econmicos), com vistas construo de novas bases para um verdadeiro desenvolvimento. Sachs (1986) identifica o estilo de desenvolvimento atual com o crescimento econmico e os desgastes ambientais e, por esta razo, no ser possvel nem desejvel para os pases pobres a repetio do caminho percorrido pelos pases industrializados. Todavia, o debate permanece em aberto j que, para uns, a qualidade de vida obtida s custas da limitao das produes materiais, enquanto que, para outros, ela , ao contrrio, proporcional abundncia de produtos. O ambiente , portanto, uma dimenso do desenvolvimento no seu sentido mais amplo. Para o autor, os problemas de recursos, energia, ambiente, populao e desenvolvimento s podero ser corretamente percebidos quando examinados em suas relaes mtuas, o que implica um quadro conceitual unificado. O fato que, com o sucesso da reconstruo econmica no ps-guerra, a amenizao do conflito russo-americano no fim da guerra da Coria e o encaminhamento mais ou menos pacfico da questo colonial, se comeou a difundir que havia sido encontrada a chave para a resoluo de todos os problemas humanos. Esta chave era o crescimento econmico, que se tornara, ento, sinnimo de desenvolvimento. Mas o que desenvolvimento? Por que o desenvolvimento? Desenvolvimento de qu e em direo a qu? necessrio trabalhar melhor a noo de desenvolvimento no seu sentido mais amplo, como escreveu Sachs (1986), 11

desvinculando-o de vez do crescimento econmico puro e simples, e procurando chegar a uma idia satisfatria de desenvolvimento sustentvel e sustentabilidade. Dos debates em torno do pioneiro Relatrio Meadows, pela primeira vez no campo da economia e gesto de recursos, admitiu-se de forma consensual a necessidade de se pensarem as intersees dos sistemas social, econmico e natural. Foi o reconhecimento da importncia das interrelaes entre sistemas, do papel da complexidade numa viso mais integrada da realidade e, ainda que implicitamente, a aceitao da limitao dos modelos cientficos, que gozavam ento de grande prestgio. Isto levou, entre outras coisas, idia de que a natureza no uma fonte de recursos inesgotveis e gratuitos, alm de uma grande lixeira, com a capacidade mgica de absorver no importa qual resduo sem ao menos abalar sua estrutura. Isto, portanto, atinge a prpria idia de economia (Benjamin, 1993). A economia vinha sendo tratada como um sistema fechado, cuja reproduo no tempo dependia apenas do equilbrio que se consiga obter entre fluxos de produo e circulao de mercadorias, de um lado, e dinheiro, de outro. Contudo, os materiais j existiam, antes de serem mercadorias, na forma de recursos naturais, e continuam a existir, depois de serem utilizados, na forma de resduos ou dejetos. Estas duas pontas externas do processo produtivo, que esto intimamente interrelacionadas, ainda no puderam ser incorporadas numa estrutura terica que supere a da economia tradicional, proporcionando uma viso mais abrangente. O consumo de recursos naturais do planeta, o empobrecimento dos solos, a poluio dos ares e mares, o extermnio da biodiversidade e, em suma, a diminuio das alternativas futuras de desenvolvimento da humanidade no importam para a economia tradicional. No h diferena entre o lazer de uma pessoa e a desocupao de um desempregado. Dentro deste arcabouo, se se gasta mais gasolina num engarrafamento e depois se compram calmantes, cresce o produto interno bruto. Pelos pressupostos bsicos nos quais se baseou este modelo, mais vale produzir e vender mercadorias que estraguem tudo e depois vender o conserto, que simplesmente se abster de poluir. uma imagem invertida do real, que explica as dificuldades da cincia, praticada sob esta viso, em tratar certos problemas, resultantes do mau funcionamento dos sistemas social, econmico e natural.

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A prpria cincia, incontestvel baluarte da modernidade, causa e conseqncia do progresso, no foi capaz de socorr-lo quando se precisou dela, e, com isso, no escapou das crticas. O cientista responsabilizava o poltico pelo lado mau, iludindo sua prpria tomada de conscincia das interaes entre cincia, tcnica, sociedade e poltica. No entanto, no faz sentido a viso simplista de lado bom ou lado mau da cincia. Para Edgar Morin (1982), evidente que o conhecimento cientfico determinou progressos tcnicos inauditos, sendo a cincia, pois, elucidativa, enriquecedora, conquistadora e triunfante. No entanto, ainda segundo o autor, estas mesmas caractersticas que tornam a cincia libertadora, colocam cada vez mais problemas graves que se referem ao conhecimento que produz, ao que determina, sociedade que transforma, trazendo ao mesmo tempo possibilidades terrveis de subjugao. Alguns trabalhos, como os de Karl Popper (1972) e, tambm, Thomas Kuhn (1975) apontam, como ponto comum, para a existncia de uma parte imersa enorme (como nos icebergs) que no cientfica, mas que indispensvel para o desenvolvimento da cincia. a chamada zona cega da cincia, que cr que a teoria reflete o real. Segundo Popper (1972), as teorias resistem algum tempo, no por serem verdadeiras, mas por serem as mais bem adaptadas ao estado contemporneo dos conhecimentos, como numa seleo natural. J Kuhn (1975) traz a idia de que se produzem transformaes revolucionrias na evoluo cientfica, onde um paradigma desaba para dar lugar a um novo paradigma; estes princpios fundamentais, inconscientes e invisveis comandam, de forma oculta, a organizao do conhecimento cientfico e a prpria utilizao da lgica. Morin (1982) indica a existncia de uma complexidade intrnseca, uma ambivalncia, que se encontra no cerne da cincia, e que supera a alternativa grosseira de pensar numa cincia boa (que s traz benefcios) e cincia m (que s traz prejuzos). Assim, o mesmo desenvolvimento disciplinar das cincias que traz as vantagens da diviso do trabalho, responsvel, sem dvida, por grande progresso do conhecimento cientfico, da tecnologia e da indstria moderna, leva fragmentao do saber, responsvel pela dificuldade da cincia em tratar o funcionamento de sistemas complexos como os que ocasionam os problemas ambientais e de desenvolvimento. A fragmentao do saber, outrora de grande valia, tambm a

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responsvel pela disjuno entre as cincias naturais e cincias humanas e pela manipulao do conhecimento reconcentrado pelos poderes polticos e econmicos. Observa-se, ento, que o progresso incrvel dos conhecimentos cientficos correlato com um progresso da ignorncia devido fragmentao, progresso dos aspectos benficos da cincia correlato com um progresso dos seus aspectos nocivos e, ainda, progresso acrescido dos poderes da cincia correlato com a impotncia acrescida dos cientficos a respeito destes mesmos poderes: a ambivalncia de que fala Morin (1982). Tem-se, pois, que a cincia, como um mapa, um reflexo da realidade, mas o mapa no o territrio que representa, o reflexo no o objeto. Se o mapa estiver correto, ele possui uma estrutura semelhante do territrio, o que justifica sua utilizao. Da mesma forma, a cincia apenas traduz o real em teorias mutveis e refutveis. As teorias cientficas so sistemas de idias que se aplicam aos dados verificados para serem adequadas a esses dados, e so teis na medida em que so capazes de explic-los coerentemente. No entanto, tornam-se obsoletas quando os dados no se encaixam nos seus pressupostos. O mapa, ento, torna-se pobre em detalhes, e j no serve mais para representar o territrio. Um ponto interessante distinguido por Morin (1982), que o progresso das certezas cientficas no vai no sentido de uma grande certeza e, ao contrrio, produz um progresso das incertezas. As extraordinrias descobertas da organizao molecular e informacional da mquina viva, por exemplo, conduzem-nos, no ao conhecimento final da vida, mas s portas do problema da organizao. O universo muito mais misterioso que se pensava h algum tempo, e est longe de ser uma mquina determinista da qual uma equao-chave nos daria o segredo. Textualmente (p.31): Podemos dizer at que, de Galileu a Einstein, de Laplace a Hubble, de Newton a Bohr, perdemos o trono de segurana que colocava nosso esprito no centro do universo: aprendemos que somos, ns mesmos cidados do planeta Terra, os suburbanos de um Sol de subrbio, ele mesmo exilado na periferia de uma galxia perifrica de um universo mil vezes mais misterioso do que ningum teria imaginado ainda h um sculo. O progresso das certezas cientficas produz, pois, um progresso da incerteza. Mas uma boa incerteza que nos liberta de uma iluso ingnua e nos desperta de um sonho lendrio: uma ignorncia que se 14

conhece como ignorncia. E assim, tanto as ignorncias como os conhecimentos provenientes do progresso cientfico trazem um esclarecimento insubstituvel aos problemas ditos filosficos. Assim, a cincia um campo sempre aberto onde se combatem no s as teorias, mas tambm os princpios de explicao, ou seja, as vises do mundo e os postulados metafsicos, ou seja, referenciais de pensamento ou paradigmas. As teorias cientficas surgem dos espritos humanos no seio de uma cultura. Neste sentido, quando desenvolvimento era sinnimo de crescimento econmico, o problema dos pases que ainda no eram desenvolvidos consistia em atingir um nvel de crescimento que permitisse gerar mais crescimento, isto , um crescimento auto-sustentado. A tarefa era conduzir estas sociedades at a etapa de decolagem, quando, a partir da, cuidariam de si prprias, se adentrando no reino dos civilizados. Da mesma maneira, o problema da cincia era encontrar essa frmula do crescimento, o que significava, muitas vezes, encontrar a melhor maneira de se apropriar dos recursos naturais. O estado normal de uma sociedade consistia na capacidade desta de crescer indefinidamente, sendo pois, o Ocidente modelo para o mundo inteiro. Quanto aos pases menos desenvolvidos, eles se encontravam desta forma devido existncia de obstculos aos desenvolvimento. Considerou-se, no comeo, que estes obstculos eram puramente econmicos; em conseqncia, houve injees de capitais na tentativa de criar plos de desenvolvimento. A ordem era importar mquinas, e como estas precisavam de homens para faz-las funcionar, o problema passou a ser a aquisio de qualificaes profissionais. Mesmo assim, havia algo errado, e se tentou culpar a ausncia de uma classe de empresrios nesses pases. Houve frmulas criadas para desenvolver esta classe lamentavelmente ausente. Contudo, comeou-se a perceber que no existiam obstculos ao desenvolvimento particulares e discernveis. Nas palavras de Castoradis (1987: p.142): ... para que o Terceiro Mundo pudesse se desenvolver, era preciso se modificarem as estruturas sociais, atitudes, a mentalidade, as significaes, os valores e a organizao psquica dos seres humanos. O crescimento econmico no era algo que pudesse ser acrescentado a estes pases, como os economistas tinham pensado. O problema era que as pessoas no eram desenvolvidas. O Ocidente acreditava haver descoberto,

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no uma maneira para produzir mais mercadorias, mais rapidamente e mais eficientemente, mas sim o modo de vida apropriado para todas as sociedades humanas. bvio que este modelo sofria crticas de toda a sorte, no somente porque ele distribua desigualmente os frutos do crescimento, mas tambm porque se preocupava apenas com um determinado tipo de crescimento, que acarretava determinadas conseqncias humanas e sociais. Nos anos sessenta, diversos indivduos e grupos buscaram estabelecer para si mesmos novas formas de vida comunitria. Comeou-se a levantar com insistncia a questo do preo que os seres humanos e a coletividade tinham que pagar pelo crescimento, e se descobriu um elemento novo e importantssimo nesta discusso, e que dizia respeito tambm aos filhos, e aos filhos dos filhos dos que estavam ali presentes: o acmulo macio e, talvez, irreversvel de danos infligidos biosfera terrestre, resultantes das interaes destrutivas dos efeitos da industrializao. Foram estabelecidos novos organismos burocrticos para cuidar da qualidade de vida, novos indicadores sociais e indicadores de bem-estar vieram para completar os j existentes indicadores econmicos. A idia de se questionar o quadro conceitual estabelecido ainda no havia sido cogitada. Mesmo os que viam no crescimento problemas incontrolveis, no vacilaram em comear a propagar o crescimento zero ou o no crescimento. Contudo, os aspectos dramticos da questo foram deixados de lado: crescimento era tudo o que se tinha para oferecer s pessoas; e mais, ser que deveria ser mantido o fosso entre pases que apresentam um PNB anual de at 30 mil dlares por habitante, e outros que apresentam um de 200 dlares por habitante? E caso se devesse cobrir este fosso, como seria triplicar o produto mundial bruto, com um consumo enorme de energia e recursos? E, dadas as estruturas polticas e sociais existentes, ser que os pases ricos aceitariam se tornar uma minoria impotente frente a pases asiticos, africanos e latino-americanos, to ricos quanto eles e bem mais populosos? Enfim, quando se chega s questes verdadeiramente importantes, fica difcil endireitar algo torto. Mas afinal o que o desenvolvimento? Desenvolver significa chegar a algo, ou a uma norma natural como define Castoradis (1987). Desenvolvimento , ento, um processo de efetivao de algo suscetvel de se realizar, predeterminado. H uma norma referente essncia daquilo que se desenvolve Castoradis (1987: p.143). No pode haver 16

desenvolvimento sem um ponto de referncia, um estado definido que deve ser atingido; e a natureza fornece para todo ser um estado deste tipo. A identificao de desenvolvimento com crescimento ilimitado surge, segundo Castoradis (1987), na emergncia de dois processos: a expanso da burguesia e a ascenso do racionalismo ocidental, de uma nova idia, a idia de que o crescimento ilimitado da produo e das foras produtivas , de fato, o objetivo central da vida humana. No h limites para os poderes e as possibilidades da razo, e o casamento destes dois processos se d na aplicao racional da cincia indstria, base de toda a ideologia do progresso (trado?, como se viu em Norgaard, 1994). Uma vez que no h limites para a progresso de nosso conhecimento, tampouco os h para a progresso de nosso poder (ou da nossa riqueza). Com esta frase Castoradis (1987: p.145) firma, no seu contundente ensaio, no qual trata de diversos recortes j apresentados aqui, as bases da identificao entre crescimento e desenvolvimento. Textualmente: Vem da a idia curiosa, ainda hoje compartilhada pela maioria dos cientistas, de uma progresso assinttica do conhecimento em direo verdade absoluta. No pode existir, portanto, nenhum ponto fixo de referncia para nosso desenvolvimento, um estado definido e definitivo a atingir; mas este desenvolvimento um movimento com uma direo fsica e, bem entendido, esse prprio movimento pode ser medido sobre um eixo no qual ocupamos, a cada instante, uma abscissa de valor crescente. Desse modo, chega-se situao na qual o desenvolvimento histrico e social consiste em abandonar qualquer estado definido, em atingir um estado que no definido por nada, exceto pela capacidade de atingir novos estados. Para usar os termos de Castoradis (1987), a norma que no h norma. E assim, finalmente, o desenvolvimento chegou a significar um crescimento indefinido, e sua maturidade, a capacidade de crescer sem fim. Isto se deveu, em grande parte, a essa crena na racionalidade dos mecanismos econmicos, na iluso da progresso assinttica do conhecimento cientfico, e, tambm, na crena da onipotncia virtual da tcnica (Castoradis, 1987). A tcnica era considerada um puro meio, em si mesmo neutro quanto aos fins. Todavia, como na argumentao descrita acima sobre cincia, nenhuma conquista tcnica importante est 17

livre da possibilidade de ser utilizada de maneira diversa da que foi originalmente especificada, nenhuma est desprovida de efeitos colaterais indesejveis, nenhuma deixa de interferir com o restante da sociedade. E, tambm, um aumento do poder da tcnica constitui, igualmente, um aumento do poder de fazer surgir o contrrio daquilo que se visava. Quando se consideram sistemas maiores, a idia de isolar e controlar os fatores, de medir e circunscrever seus efeitos, em suma, a idia da separao da tcnica se torna uma iluso perigosa (Morin, 1982; Castoradis, 1987). No se trata, entretanto, de subestimar tudo o que foi trazido pela cincia e tcnica modernas ou pela racionalidade ocidental. No se pode renunciar razo ou consider-la um instrumento que deveria ser melhor empregado, porque ela faz parte da cultura, e esta chega aos seres humanos sempre por inteiro. Mas possvel, com conscincia e responsabilidade, reconhecer no racionalismo, na iluso da onipotncia da cincia e da tcnica, na supremacia do clculo econmico e na idia do crescimento pelo crescimento criaes do homem, coloc-los todos no lugares onde eles devem ficar, e dar os passos que precisam ser dados no sentido da evoluo do esprito humano, proporcionando a religao com a natureza e uma compreenso mais fina de seus mecanismos. Neste sentido, alarga-se o universo de possibilidades e alternativas disposio da humanidade. 1.1.3- O Conceito de Desenvolvimento Sustentvel A construo do conceito de desenvolvimento sustentvel est ligada ao debate internacional em torno dos problemas ambientais e da qualidade do crescimento, superao da idia de desenvolvimento ligado necessariamente ao crescimento econmico e percepo que se tem da crise da chamada modernidade. Como ser detalhado a seguir, durante a Conferncia de Estocolmo (1972), as discusses centraram-se nos aspectos tcnicos da contaminao provocada pela industrializao, no crescimento populacional e na urbanizao, o que imprimiu nitidamente um carter elitista reunio1. Em contraste, a percepo dominante a partir da

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Um representante da ndia presente conferncia resumia em reunio prvia a Estocolmo: Aos ricos preocupa a

fumaa que sai de seus automveis; a ns preocupa-nos a fome. Citado por Becker (1994).

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Conferncia do Rio (1992) tem sido a de que os problemas do meio ambiente j no podem ser dissociados dos problemas do desenvolvimento. Alm das preocupaes com o meio ambiente, a histria do pensamento sobre o desenvolvimento sustentvel est tambm relacionada ao pensamento e atitudes dos seres humanos para com a natureza, e seu aparecimento figura como resposta mudana progressiva no entendimento de cincia e tecnologia, e das idias sobre o planeta e a sociedade humana, conforme foi discutido no item anterior (1.1.2). Os primeiros movimentos na estruturao do pensamento sobre desenvolvimento sustentvel e sustentabilidade tm suas razes nas iniciativas de preservao da vida selvagem e de conservao da natureza de diversos grupos e organizaes no sculo passado, responsveis pelo surgimento dos primeiros parques nacionais e das primeiras legislaes aplicadas preservao, principalmente da fauna, e, em particular, de pssaros teis na agricultura. Nessa poca, os caadores se espalhavam pelas estepes africanas atrs de marfim e peles, acompanhando a expanso comercial europia e as atividades missionrias. Um aspecto deste fenmeno de aproximao do homem branco das regies ditas selvagens foi um crescente interesse pela histria natural e taxonomia, o que levou emergncia de idias de controle da caa e, eventualmente, da idia de conservao. Todavia, a cincia da ecologia viria a ser desenvolvida somente no final do sculo XIX. Observam-se, de alguns trabalhos sobre o assunto (Adams, 1990; Beder, 1994), ligaes estreitas entre o surgimento da ecologia e o fortalecimento dos movimentos de preservao e conservao da natureza, na Europa, particularmente na Inglaterra, e EUA. A ecologia est tambm intimamente relacionada ao surgimento do ambientalismo nos anos 70. Neste perodo, a palavra ecologia e seus derivados eram usados largamente, mesmo onde as idias estavam pouco ou nada relacionadas aos mtodos da cincia; contudo, no h como duvidar de que as mais proeminentes figuras do movimento ambientalista eram ecologistas ou conheciam a fundo o assunto. O crescimento do ambientalismo nos anos 60 e 70 contribuiu para o avano significativo nos debates sobre o papel da ecologia e da conservao da natureza no 19

desenvolvimento, bem como para a construo da noo de Espaonave Terra, uma caracterstica importante da cosmologia atual2. De fato, a preocupao com problemas ambientais globais, que transcende fronteiras, foi uma das principais distines do movimento nesta poca. Aparece como uma perfeita sntese dessa perspectiva o livro escrito na preparao para a Conferncia das Naes Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, em Estocolmo, 1972, cujo ttulo era Only One Earth. Foi, portanto, em 1972, na Conferncia de Estocolmo, que ocorreu a primeira grande discusso internacional sobre o futuro do desenvolvimento econmico e social e a degradao ambiental. Foram 113 naes presentes. O carter eminentemente tcnico da conferncia pode ser sentido na citao a seguir retirada do texto de preparao (citado por Cavalcanti, 1995): Se as atuais tendncias de crescimento da populao mundial, industrializao, poluio e produo de alimentos, bem como as de diminuio de recursos naturais, continuarem imutveis, os limites de crescimento do planeta seriam alcanados algum dia dentro dos prximos cem anos. O resultado mais provvel seria um declnio sbito e descontrolado, tanto da populao quanto da capacidade industrial. (...) possvel modificar essas tendncias de crescimento e formar uma condio de estabilidade ecolgica e econmica que se possa manter at um futuro remoto. A insero das questes ambientais3 na agenda poltica de todos os governos est dentre os impactos imediatos da Conferncia de Estocolmo. Isto deu origem a um grande nmero de rgos governamentais de controle da poluio ambiental e conferncias com temas mais especficos (desertificao, habitao, fontes de energia), e a uma intensificao dos trabalhos de legislao ambiental nos pases. A posio brasileira na conferncia foi ativa e oscilava, em linhas gerais, entre a oferta de espao nacional para a instalao de indstrias poluidoras que se encontravam ameaadas, nos seus pases de origem, pelo crescente aumento da preocupao

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Como j foi dito no incio do captulo, entende-se por cosmologia o conjunto de representaes que formam a

imagem do universo que uma sociedade projeta para orientar-se e situar-se no contexto da sua relao com os outros seres e componentes do universo.3

As questes ambientais eram entendidas, naquele momento, como questes relacionadas ecologia e economia,

excluindo-se, por ora, qualquer considerao de carter social

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com o meio ambiente, e a ressalva de que as questes ambientais no poderiam se constituir em veculos que permitissem a interferncia de outros pases nos assuntos internos. Neste contexto, paralelamente crescente viso de uma crise neomalthusiana, explicitada principalmente pelo relatrio Meadows, j discutido anteriormente, emerge o conceito de desenvolvimento sustentvel. Para tanto, contribuiu decisivamente o encontro de especialistas promovido pela Naes Unidas, como um dos seguimentos de Estocolmo, em Cocoyoc, Mxico, em outubro de 1974. Este conseguiu aquilo que a Conferncia de Estocolmo no foi capaz de alcanar: considerar os problemas ambientais sob a perspectiva do Terceiro Mundo, especialmente dos pases mais pobres. O resultado do encontro foi uma declarao contundente, apontando para o problema da m distribuio dos recursos e satisfao das necessidades bsicas do ser humano, bem como para um redefinio das metas de desenvolvimento e do estilo de vida das sociedades mais ricas do planeta. Em 1980, foi publicado pela Unio Internacional para a Conservao da Natureza (IUCN), Fundo Mundial para a Vida Selvagem (WWF) e Programa para o Meio Ambiente das Naes Unidas (UNEP), o documento intitulado Estratgia Mundial para a Conservao (WCS)4, que enfatizava que o futuro da humanidade parte integrante da natureza, e est indissoluvelmente unido sua conservao. O desenvolvimento era apresentado, pela primeira vez, como um meio indispensvel para se atingir os objetivos de conservao, no como algo capaz de obstru-los. O raciocnio era que o desenvolvimento mitigaria a pobreza e a misria de milhes de pessoas, o que contribuiria para a diminuio do uso indiscriminado dos recursos naturais e, por conseqncia, um alvio das presses sobre suas fontes5. Era a primeira vez, tambm, em que se ligava o termo sustentvel ao desenvolvimento, referindo-se, prioritariamente, s espcies e ecossistemas, como pesca, pradarias e recursos florestais.

4 5

Do ingls, World Conservation Strategy (WCS). Embora inovador por considerar, de uma maneira mais difundida, a problemtica social na discusso ecolgica, o

raciocnio no leva em conta a enorme presso sobre os recursos naturais exercida pelo modelo de desenvolvimento que vinha sendo implementado pelos pases ricos, haja vista a grande diferena entre o consumo energtico per capita entre os pases industrializados e os no industrializados.

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Apesar de seu inegvel valor como um diagnstico da situao ambiental mundial e da necessidade de preservao dos recursos naturais, a principal crtica ao documento WCS que este no examina, nem ao menos expe, a questo das mudanas sociais e polticas que seriam necessrias aos objetivos de conservao; ou seja, parece que a conservao est alm de qualquer ideologia, e flutua tranqilamente no oceano das vises, cosmologia e paradigmas humanos, acima das questes de como a natureza e a cultura interagem entre si. Isto faz o documento sugerir, de forma sutil, que a conservao ultrapassa, de alguma maneira, as estruturas de poder e as desigualdades presentes no seio da sociedade, o que, no contexto do desenvolvimento e da teoria social, algo ingnuo (Adams, 1990). Assim, embora a Estratgia Mundial para a Conservao deva ser encarada como um documento que faz parte de um processo de elaborao, que continua ainda hoje na agenda das discusses sobre desenvolvimento, economia poltica internacional e temas afins, ela padece do fato de ser muito mais uma elaborao terica do que algo passvel de um tratamento aplicvel na prtica, alm de lidar mais com a escala local do que com os assuntos globais. A colocao definitiva de elementos do desenvolvimento sustentvel, no contexto poltico e econmico do desenvolvimento internacional, foi alcanada com a publicao do Nosso Futuro Comum (Our Common Future), ou Relatrio Brundtland, apresentado Assemblia Geral da ONU, em 1987. Este foi o resultado do trabalho encomendado pelas Naes Unidas Comisso Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, estabelecida tambm em Assemblia Geral, em dezembro de 1983. A presidncia da Comisso foi entregue ex-primeira-ministra da Noruega, Gro Brundtland. Tratava-se, por parte das Naes Unidas, de ... apelo urgente para se encontrar os caminhos do desenvolvimento sustentvel, os quais devem fornecer uma busca renovada de solues multilaterais e da reestruturao do sistema econmico internacional de cooperao (Brundtland, 1987: p.xi). O ponto de partida dos trabalhos da Comisso Brundtland foi deliberadamente abrangente, e resistiu bravamente a toda tentativa de restringir suas preocupaes apenas ao meio ambiente. Isto teria sido um grave erro. O meio ambiente no existe como uma esfera desvinculada das aes, ambies e necessidades humanas, e tentar defend-lo sem levar em conta os problemas

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humanos deu prpria palavra meio ambiente uma conotao de ingenuidade em certos crculos polticos (Brundtland, 1987: p.xiii). O Relatrio Brundtland coloca com firmeza as questes ambientais na agenda poltica. Ele parte da premissa que desenvolvimento e meio ambiente no podem ser separados. Alm disso, reconhece um vnculo explcito entre os problemas ambientais e a pobreza. , portanto, ftil tentar lidar com problemas ambientais sem uma perspectiva mais ampla que inclua os fatores por trs da pobreza mundial e desigualdades internacionais. (...) Muitas formas de desenvolvimento desgastam os recursos ambientais nos quais se deviam fundamentar, e a deteriorao do meio ambiente pode prejudicar o desenvolvimento econmico. A pobreza uma das principais causas e um dos principais efeitos dos problemas ambientais no mundo (Brundtland, 1987: p.3)6. No Nosso Futuro Comum, a definio de desenvolvimento sustentvel, (...) que atende s necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as geraes futuras atenderem a suas prprias necessidades (Brundtland, 1987:p.46), est baseada em dois conceitos. O primeiro o conceito de necessidade, e prioritariamente, de necessidade dos mais pobres; e o segundo a idia de que os limites do meio ambiente no so dados pelo prprio meio ambiente, mas pela organizao social e tecnologia. A diferena parece pequena, mas representa uma transformao extremamente importante no conceito de desenvolvimento sustentvel baseado unicamente em premissas ecolgicas, este ltimo preocupado apenas com a sade ambiental. Para o Relatrio Brundtland, o desenvolvimento sustentvel definido como a obteno de certos objetivos sociais e econmicos, para os quais , a partir da, estabelecida uma poltica ambiental. Em essncia, o desenvolvimento sustentvel um processo de transformao no qual a explorao de recursos, a direo dos investimentos, a orientao do desenvolvimento tecnolgico e a mudana institucional se harmonizam e reforam o potencial presente e futuro, a fim de atender s necessidades e aspiraes humanas (Brundtland, 1987: p.49).

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provvel que a pobreza seja, primeiramente, um efeito e, s ento, uma causa dos problemas ambientais, j que

ela tambm fruto da explorao econmica dos pases perifricos por parte dos pases centrais, o que inclui remessa de riqueza, manuteno de poderes estratgicos e outras questes ligadas s relaes entre pases de riqueza desigual.

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Os elementos do desenvolvimento sustentvel presentes no Nosso Futuro Comum representam uma mistura interessante de preocupaes relacionadas ao meio ambiente e ao desenvolvimento. Entre as primeiras esto a necessidade de manter um nvel populacional sustentvel, reconhecendo, todavia, a maior demanda de recursos de uma criana do mundo industrializado em relao ao mundo pobre; conservar (e melhorar) a base de recursos; e reorientar a tecnologia, particularmente administrando o risco. Entre as preocupaes com o desenvolvimento esto a proeminente meta de atender s necessidades essenciais de emprego, alimentao, energia, gua e saneamento (Brundtland, 1987: p.56); de incluir o meio ambiente e a economia no processo de tomada de decises; e de retomar o crescimento, visto como a nica forma de enfrentar a pobreza. Contudo, este crescimento deve ser de um novo teor, a fim de torn-lo menos intensivo em matrias-primas e energia, e mais eqitativo em seu impacto (Brundtland, 1987: p.56). Est clara a viso de um novo paradigma que situe o ser humano como o centro do processo de desenvolvimento, e que dever, necessariamente, considerar o crescimento econmico como um meio e no como um fim, ter que proteger as oportunidades de vida das geraes atuais e futuras, e ter, finalmente, que respeitar a integridade dos sistemas naturais que possibilitam a existncia de vida na Terra. Como bem lembra Guimares (1994), o novo estilo de desenvolvimento requer uma nova tica. O crescimento econmico no , e jamais foi, requisito para o desenvolvimento do ser humano; assim, o fator decisivo o uso que uma coletividade faz de sua riqueza, e no a riqueza em si. No obstante, o relatrio afirma a exigncia de manter e revitalizar a economia mundial para combater a pobreza (insustentvel) e de se obter o desenvolvimento sustentvel, o que significa um crescimento anual, segundo o relatrio, de no mnimo 3% na renda per capita dos pases em desenvolvimento e, tambm, um crescimento econmico mais rpido tanto nos pases em desenvolvimento como nos industrializados, maior liberdade no acesso ao mercado para os produtos dos pases em desenvolvimento, taxas de juros mais baixas, mais transferncia de tecnologia, e fluxos de capitais muito maiores, tanto em termos concessionrios como comerciais (Brundtland, 1987: p.97). Contudo, no d resposta questo de como ficaria um aumento da demanda por energia e matria-prima, e tambm ao problema da poluio. De fato, alguns autores como Goodland (1996) trabalham o caso em que o mundo j atingiu seus limites 24

de crescimento e apresentam como evidncia a apropriao humana da biomassa; o aquecimento global pelo efeito estufa; a ruptura da camada de oznio; a crescente degradao do solo; e a diminuio da biodiversidade. O autor considera improvvel que o mundo possa sustentar um sistema econmico duas vezes maior do que hoje, quanto mais de cinco a dez vezes, como seria necessrio para vencer, segundo consta no relatrio, o problema da pobreza. Ele conclui apontando a falta de disposio poltica do mundo industrializado, e afirmando de forma contundente que no adianta levantar o fundo sem tambm abaixar o topo do sistema econmico planetrio. A figura 2 mostra o tamanho do sistema econmico em relao ao planeta. Na viso de Goodland (1994), j estamos no limite, e arriscado prosseguir, como o prope a Comisso Brundtland.energia solar

subsistema econmico em cresc. -energia -recursos-populao -produtos

ecossistema global finito -energia -resduos -energia -recursos

subsistema econmico em cresc.

-populao -produtos

-energia -resduos

matria reciclada perda de energia

Figura 2: Ecossistema global finito relativo ao subsistema econmico em crescimento Fonte: Goodland, 1994: p.5 Apesar das crticas se centrarem, principalmente, na questo da necessidade de crescimento advogada pelo relatrio e na ausncia de propostas que vencessem as dinmicas scio-polticas concretas, os trabalhos da Comisso Brundtland conseguiram uma espantosa unanimidade, trazendo o desenvolvimento sustentvel para a ordem do dia no debate 25

internacional, e situando-o no contexto mais amplo possvel. Seus desdobramentos deram origem a vrios documentos, como a Carta da Terra, sobre os principais objetivos do desenvolvimento sustentvel; o Protocolo de Montreal, sobre a camada de oznio; e a Agenda 21, com o cronograma de aes e metas a serem atingidas, todos obtidos a partir da Conferncia Rio-92. Mas o mais importante foi a constatao de que as conseqncias ambientais de como os seres humanos utilizam, via atividades produtivas, os recursos do planeta revelam nada mais do que a estrutura e o padro de relaes sociais entre os prprios seres humanos; e isto significa superar vises segmentadas e/ou politicamente interessadas que opem o meio ambiente ao desenvolvimento, pois o primeiro nada mais do que o resultado do segundo. 1.2- Energia, Tecnologia e Desenvolvimento Sustentvel O Relatrio Brundtland dedica um captulo de quase 50 pginas ao desdobramento de suas premissas e discusses sobre o desenvolvimento sustentvel aplicadas na rea da energia, e delineia as opes para o meio ambiente e o desenvolvimento neste campo. Ele apresenta um breve diagnstico sobre energia, economia e meio ambiente, detalhando mais as problemticas referentes aos combustveis fsseis, energia nuclear, s fontes renovveis e eficincia energtica. O relatrio reconhece a importncia da energia para o desenvolvimento sustentvel, uma vez que ela indispensvel sobrevivncia diria, e chama ateno especial ao problema do desperdcio de energia. colocado que as atuais fontes primrias de energia so quase todas no-renovveis: gs natural, petrleo, carvo, turfa e energia nuclear, havendo tambm as renovveis como: madeira, vegetais, esterco, quedas dgua, fontes geotermais, energia solar, elica, das mars e das ondas, alm da fora muscular animal e humana. Cada forma de energia tem seus custos, benefcios e riscos econmicos, sanitrios e ambientais e estes so fatores que interagem ativamente com outras prioridades governamentais e globais. preciso fazer opes sabendo que a escolha de uma estratgia energtica determinar inevitavelmente a escolha de uma estratgia ambiental. Isto porque a maneira do homem lidar com a natureza est estreitamente relacionada s transformaes de energia em suas diversas manifestaes, tais como energia cintica, elstica, gravitacional, trmica, eltrica, qumica, radiante ou nuclear.

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Os principais elementos a serem abordados e conciliados na rea da energia, do ponto de vista da sustentabilidade, segundo o relatrio, so: i) aumento dos suprimentos de energia em quantidades suficientes para atender s necessidades humanas (o que significa ajustar-se a um mnimo de 3% de crescimento per capita nos pases em desenvolvimento); ii) medidas que visem conservao e ao rendimento energtico, de modo a minimizar o desperdcio dos recursos primrios; iii) sade pblica, reconhecendo os riscos segurana inerentes s fontes energticas; e iv) proteo da biosfera e preveno de formas mais localizadas de poluio. Os elementos apresentados acima so considerados elementos-chave pelo relatrio na rea de energia, e esto em consonncia com o que foi dito anteriormente no item 1.1 desta dissertao. No entanto, a questo que surge imediatamente da anlise desses pontos , simplesmente, a de como garantir o suprimento de energia para a sociedade, de modo a contribuir para o desenvolvimento sustentvel, o que significa contribuir para o combate pobreza e a redistribuio da renda; garantir o suprimento para sustentar um crescimento de 3% na renda, como advoga o relatrio; utilizar da maneira mais eficiente possvel a energia proveniente dos recursos naturais; proteger estes recursos e prevenir as formas de poluio; alm de levar em conta a qualidade de vida da populao de uma forma geral, preocupando-se com o desenvolvimento qualitativo, ao invs do crescimento quantitativo existente hoje!? O relatrio no apresenta uma resposta objetiva a essa pergunta, muito menos uma receita de bolo para os que trabalham no assunto. No entanto, ele no esconde o tamanho do desafio que colocado a todos. Tomando os dados de 1980, se o consumo de energia permanecesse nos nveis daquele ano (10 TW), por volta de 2025, para uma populao global de 8,5 bilhes de pessoas, o consumo estaria por volta de 14 TW, 5 TW para os pases em desenvolvimento e 9 TW para os industrializados, um aumento de 40% distribudos de forma extremamente desigual (Brundtland, 1987: p.188). Se o consumo de energia per capita se uniformizasse em todo mundo nos nveis atuais dos pases industrializados, por volta de 2025, a mesma populao global necessitaria de aproximadamente 55 TW (Brundtland, 1987: p.189)7. improvvel que qualquer

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Embora TW seja uma medida de potncia e no de energia, o texto do relatrio esclarece, numa nota na pgina

187, que TW-anos/ano aparece, a partir daquele ponto, como TW. Conforme consta na nota, 1 TW-ano igual a cerca de 1 bilho de toneladas de carvo.

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um dos dois casos se mostre realista, mas do uma idia aproximada da faixa em que se pode se situar o consumo de energia no futuro, pelo menos hipoteticamente. Um consumo elevado de energia agrava as inquietaes decorrentes dos riscos e incertezas ambientais, das quais o relatrio destaca quatro: i) a sria probabilidade de alterao climtica devido ao efeito estufa de gases emitidos na atmosfera, sendo o mais importante o dixido de carbono (CO2) produzido pela queima de combustveis fsseis; ii) a poluio do ar urbano pelas indstrias, devido a poluentes atmosfricos gerados pela queima de combustveis fsseis; iii) acidificao do meio ambiente devido s mesmas causas; e iv) risco de acidentes em reatores nucleares, os problemas de deposio dos rejeitos e da desativao dos reatores aps seu tempo de vida til, e os perigos da contaminao associados ao uso da energia nuclear (Brundtland, 1987: p.190). Alm destes, a escassez de lenha nos pases em desenvolvimento merece grande ateno. Em relao questo de quais fontes de energia sero capazes de fazer frente ao desafio do desenvolvimento sustentvel, os combustveis fsseis, gs natural, petrleo e carvo mineral, so vistos com reservas, principalmente, por causa da poluio que provocam (efeito estufa, poluio do ar urbano e acidificao). Alm disso, apesar de haver divergncias e do estoque de gs natural e carvo ainda serem grandes, muitos analistas esto convencidos de que o mundo deveria implementar imediatamente uma vigorosa poltica de conservao do petrleo (Brundtland, 1987; Jackson, 1992; Campbell, 1998). certo que os preos do petrleo no acompanharam as previses de aumento feitas aps seu primeiro choque em 1973, e que, todos pensavam, iriam ser a soluo para o problema do incentivo pesquisa para a viabilidade de outras fontes energticas, em especial as fontes renovveis. Mesmo com a recente crise do Golfo, o mercado mundial foi capaz de superar a perda completa de produo do Iraque e do Kuwait, no se concretizando, portanto, as condies econmicas nas quais as outras fontes de energia viriam a ser competitivas. Contudo, o fato de, at o momento atual, as fontes de energia alternativas ao petrleo no terem conseguido se firmar sob condies de mercado, significa apenas que a composio de preo dessas fontes, na contabilidade do sistema econmico, ainda no consegue considerar seus ganhos, por no levar em conta aspectos ecolgicos e sociais; e, assim, suas deficincias e 28

desvantagens adquirem, portanto, maior importncia, principalmente se comparadas com as vantagens do petrleo. O mundo acostumou-se a utilizar petrleo, e o faz h quase 150 anos. O motor a combusto interna o conversor por excelncia da moderna civilizao tecnolgica, tendo os derivados de petrleo como os combustveis essenciais. A sociedade certamente seria diferente da sua atual configurao se o petrleo no fosse abundante e barato. No entanto, o fantasma da escassez e do aumento dos preos permanece rondando. Em trabalho publicado numa importante revista cientfica nos Estados Unidos (Scientific American), em maro de 1998, dois consultores, com experincia de mais de 40 anos de servios prestados para a indstria do petrleo, analisam os atuais nmeros das reservas de petrleo, e previnem que o prximo choque no ser mais to temporrio quanto foram os dois primeiros, em 1973 e 1979 (Campbell, 1998). Esta concluso contradiz o quadro pintado pela indstria do petrleo, no qual so reportados 1020 bilhes de barris de leo ( 1020 Gbo) de reserva; dividindo este valor pela taxa de produo atual de 23,6 Gbo por ano, haveria petrleo convencional abundante e barato por mais 43 anos. Todavia, segundo Campbell e Laherrre (1998), estes nmeros esto baseados em trs erros crticos: primeiro, eles se fundamentam em estimativas distorcidas das reservas; segundo, consideram que a produo vai permanecer constante; e terceiro, e mais importante, assumem que a derradeira gota de leo pode ser bombeada do solo to facilmente quanto o foram todas as outras gotas at hoje. Na busca por dados que traduzam a real situao das reservas de petrleo, os autores chamam ateno para o fato de o aumento das reservas reportado por diversos pases, mais de 300 Gbo ao todo, no ter sido acompanhado de nenhuma nova descoberta. A explicao de como so feitas as estimativas das reservas d uma idia do quo imprecisos estes nmeros podem ser, e de como eles esto sujeitos conjuntura poltica que influi nas cotas de exportao dos pases, na queda ou aumento dos preos, na capacidade de obteno de emprstimos, etc. No final dos anos 80, 11 pases da OPEP (Organizao dos Pases Exportadores de Petrleo) aumentaram suas cifras em grandes quantidades, variando de 42 a 127%; ... nenhuma nova descoberta ou inovao tecnolgica justifica a surpreendente adio de 287 Gbo. Este valor maior do que todo o petrleo descoberto nos Estados Unidos, mais 40 por cento. (Campbell, 1998: p.61). Campbell e Laherrre no esto sozinhos em seus prognsticos de que, em 29

aproximadamente dez anos, a produo global de petrleo convencional ter atingido seu pico e comear a declinar. Outros pesquisadores chegaram concluso bem parecida de que isto ocorrer em doze ou quinze anos, sendo que a indstria do petrleo tem somente uma chance de 5% de que o pico seja alcanado em vinte anos (Campbell, 1998: p.63). A questo da escassez do petrleo e seu impacto na sociedade um campo frtil para debates que no podem ser aprofundados aqui, pois envolvem assuntos que vo alm do escopo dessa dissertao. O Relatrio Brundtland tambm evita esta polmica, e somente sugere que um programa de conservao seria uma atitude prudente. Como j foi mencionado, as maiores restries feitas aos combustveis fsseis no relatrio se baseiam no problema da poluio. Os comentrios sobre energia nuclear vo no mesmo sentido, alm de incluir o problema dos custos das usinas, que no pararam de crescer desde o incio dos programas nucleares nos vrios pases; e o perigo da proliferao das armas nucleares. reconhecida a existncia de grande controvrsia tambm neste assunto da energia nuclear; os debates na Comisso Brundtland refletiram esta controvrsia, e pararam neste ponto. Entretanto, o recado claro e conclusivo em relao problemtica da energia, desenvolvimento e meio ambiente: Seja qual for a poltica adotada, o importante que se d a mxima prioridade promoo de prticas que conduzam ao rendimento energtico em todos os setores ligados energia e de programas de pesquisa, desenvolvimento e demonstrao para um uso seguro e no atentatrio ao meio ambiente de todas as fontes supridoras de energia, especialmente as renovveis (Brundtland, 1987: p.209). As fontes renovveis de energia so vistas pelo relatrio como um enorme potencial ainda inexplorado, mas sem deixar de reconhecer que todas as fontes no deixam de apresentar riscos sade e ao meio ambiente. feito um alerta sobre aumento do consumo de combustvel vegetal nos pases em desenvolvimento, notadamente lenha e carvo, o que faz dessa suposta fonte renovvel algo tambm sujeito ao esgotamento. O rendimento energtico e a conservao de energia recebem um tratamento especial, ressaltando a importncia destes para o desenvolvimento sustentvel, na medida em que se aproveitam melhor os recursos naturais.

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O Relatrio Brundtland conclui com um pargrafo a parte dedicada energia, que resume o teor do que foi defendido ao longo do texto: A energia no um produto nico, mas uma combinao de produtos e servios da qual dependem o bem-estar dos indivduos, o desenvolvimento sustentvel das naes e as possibilidades de manuteno da vida do ecossistema global. No passado, permitiu-se que essa combinao fosse usada ao acaso, em propores ditadas por presses de curto prazo e pelos objetivos imediatistas de governos, instituies e empresas. A energia importante demais para que continue a ser tratada desta forma aleatria. Uma diretriz energtica segura, sensata do ponto de vista ambiental e economicamente vivel, que garanta o progresso humano at um futuro distante, evidentemente indispensvel. E tambm possvel. Mas para que isso seja conseguido sero necessrias novas dimenses de empenho poltico e cooperao institucional (Brundtland, 1987: p.225). 1.3- Contexto Atual do Desenvolvimento Sustentvel Afinal, o que desenvolvimento sustentvel na prtica? Como implement-lo? Como este conceito se aplica para um determinado setor? O que ele significa no contexto de uma regio? Como j foi mencionado, o Relatrio Brundtland, apesar das crticas, popularizou o termo sustentvel ou sustentabilidade, mas no o estendeu a todos os cantos do conhecimento. Existem, atualmente, dezenas de vises daquilo que representa o desenvolvimento sustentvel, algumas das quais so verdadeiros desiderata, e incluem liberdade, democracia, igualdade de gnero, fim do preconceito racial, e toda uma lista de desejos sociais. Outras procuram medir a sustentabilidade, em um dado contexto, atravs de ndices numricos calculados de acordo com procedimentos bem definidos e baseados em premissas cientficas. Sem dvida, em muitos casos, o termo sustentvel utilizado de forma irresponsvel, por interessados em tirar proveito prprio de sua quase unanimidade, dando origem a uma espcie de modismo. Isto ocorre, muitas vezes, com pessoas que vem a oportunidade de maquiar prticas duvidosas de negcios e legitimar ganhos escusos. Fatos como este tm levado, inclusive, a um desgaste do termo sustentvel entre as pessoas que trabalham seriamente com a questo do meio ambiente e desenvolvimento.

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Daquilo que foi apresentado at aqui, est claro que trabalhar pela sustentabilidade, em qualquer rea, significa procurar atender s necessidades de emprego, alimentao, energia, gua e saneamento, ou seja, combater a pobreza. Este ponto apresentado como prioridade no Relatrio Brundtland, e, em nome dele, at um crescimento adicional nada desprezvel de 3% ao ano proposto, dando margem s crticas de quem pensa que os limites do planeta j foram alcanados. No h, no momento, meios de saber se isto j ocorreu, embora a situao atual da humanidade, principalmente dos pases pobres, no seja confortvel no que se refere a efeitos de catstrofes e mudanas climticas, fome, falta de sade, analfabetismo, concentrao de renda, guerras e outras disfunes do sistema humano. No entanto, como j foi ressaltado, para que a recuperao dos pases pobres adquira signos de sustentabilidade, preciso resolver as situaes de extrema desigualdade dentro das naes e entre elas. O fato que o Relatrio deixa claro que o desenvolvimento sustentvel a obteno de certos objetivos sociais e econmicos, estabelecidos para atender as aspiraes humanas e, a partir da, definida a poltica ambiental. O foco est no ser humano, e este procedimento requer, com certeza, uma nova tica. Goodland (1994) procura amarrar o conceito de desenvolvimento sustentvel apresentado no Relatrio Brundtland, dando-lhe uma definio mais precisa. Para isto, distingue a sustentabilidade em trs tipos interdependentes: 1) Sustentabilidade Social: necessria para a sustentabilidade ecolgica, a sustentabilidade social enfatiza o desenvolvimento qualitativo em relao ao crescimento quantitativo para vencer a pobreza; poder ser alcanada somente por uma forte e sistemtica participao da comunidade ou sociedade civil. Coeso social, identidade cultural, solidariedade, senso de comunidade, amizade, fraternidade, amor, padres comuns de honestidade, instituies, leis, disciplina, etc, constituem o que foi chamado de capital social (ou capital moral) que depende da vida cultural e religiosa da comunidade e est sujeito a deteriorao, da mesma maneira que o capital fsico. 2) Sustentabilidade Econmica: a melhor definio de sustentabilidade econmica a manuteno do capital nas suas quatro formas: construdo, natural, social e humano. A manuteno do primeiro bem conhecida dos economistas desde os tempos mais remotos, isto , a busca do melhor investimento com a melhor taxa de retorno faz parte da sustentabilidade 32

econmica. O capital natural mais difcil de se avaliar, e o que se observa atualmente uma tendncia internalizao dos custos ambientais atravs de polticas ambientais e tcnica de valorao. O capital humano, investimentos em educao, sade e nutrio, j aceito como parte importante da economia, mas o capital social, como descrito acima, ainda no foi adequadamente incorporado. 3) Sustentabilidade Ecolgica: buscar a sustentabilidade ambiental significa procurar viver dentro dos limites estabelecidos pelo meio ambiente, tanto