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TÉCNICA Esse vinho está oxidado! Esta frase é semelhante àquela que introduz o artigo sobre acidez, publicado na Wine Style 08. Naquela ocasião, afirmávamos que a maioria dos consumidores esclarecidos é capaz de detectar a oxidação do vinho. Entretanto, poucos são aqueles que conhecem e percebem o defeito causado pelo fenômeno inverso ao da oxidação, a redução. A redução é um processo químico que está incluí- do nas reações nas quais, de modo simples, há per- das ou ganhos de elétrons por átomos ou moléculas. No caso da oxidação, há perda de elétrons, ficando a carga elétrica do átomo, ou da molécula, mais posi- tiva. Habitualmente, essa reação é induzida por uma substância que recebe esses elétrons e que é chama- da de agente oxidante. O oxigênio é um desses agen- tes que, ao entrar em contato com o vinho, faz com que algumas das substâncias contidas sejam oxida- das, alterando sua cor e seu aroma. A redução con- siste no ganho de elétrons pelo átomo ou molécula e os agentes que a induzem são chamados redutores. é OS AROMAS DE OXIDAÇÃO SÃO FACILMENTE RECONHECIDOS POR QUEM TEM O MÍNIMO DE EXPERIÊNCIA EM DEGUSTAÇÃO. MUITO MENOS CONHECIDOS SÃO OS AROMAS DA REDUÇÃO. SAIBA UM POUCO MAIS SOBRE ESTE ASSUNTO POLÊMICO fácil deduzir que se um agente oxidante “rouba” elé- trons da substância que se oxida, ele próprio, simul- taneamente, é reduzido já que ganha esses elétrons. Assim, tomando como exemplo a reação de oxidação mais conhecida que é o enferrujamento, o oxigênio é o agente oxidante e o ferro é a substância oxidada. O oxigênio é reduzido no processo. Louis Pasteur descreveu o oxigênio como inimi- go do vinho. Desde então, as práticas de vinificação tendem a elaborar os vinhos em ambiente redutivo isolando-o sistematicamente do contato com o oxi- gênio. Essa prática moderna não é impune, podendo acarretar alguns defeitos ao vinho. Emile Peynaud, em sua obra fundamental “Le Goût du Vin” , dá a esses defeitos o nome de odores de redução, de garrafa, de “luz” ou de “sol” (o efeito fotoquímico da luz exacer- ba esse problema) e os descreve como uma falta de nitidez aromática, odor ligeiramente desagradável, de caráter aliáceo, lembrando por vezes o suor. O meio redutivo propicia a formação de compostos 30 por JOSÉ LUIZ BORGES ilustração THOMATE

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Page 1: TÉCNICA - artwine.com.br · No caso da oxidação, há perda de elétrons, fi cando a carga elétrica do átomo, ou da molécula, mais posi- ... o agente oxidante e o ferro é a

TÉCNICA

Esse vinho está oxidado! Esta frase é semelhante

àquela que introduz o artigo sobre acidez, publicado

na Wine Style 08. Naquela ocasião, afi rmávamos que

a maioria dos consumidores esclarecidos é capaz de

detectar a oxidação do vinho. Entretanto, poucos são

aqueles que conhecem e percebem o defeito causado

pelo fenômeno inverso ao da oxidação, a redução.

A redução é um processo químico que está incluí-

do nas reações nas quais, de modo simples, há per-

das ou ganhos de elétrons por átomos ou moléculas.

No caso da oxidação, há perda de elétrons, fi cando a

carga elétrica do átomo, ou da molécula, mais posi-

tiva. Habitualmente, essa reação é induzida por uma

substância que recebe esses elétrons e que é chama-

da de agente oxidante. O oxigênio é um desses agen-

tes que, ao entrar em contato com o vinho, faz com

que algumas das substâncias contidas sejam oxida-

das, alterando sua cor e seu aroma. A redução con-

siste no ganho de elétrons pelo átomo ou molécula e

os agentes que a induzem são chamados redutores. é

OS ArOmAS DE OXiDAÇÃO SÃO FAciLmENtE rEcONHEciDOS POr QUEm tEm O mÍNimO DE

EXPEriÊNciA Em DEgUStAÇÃO. mUitO mENOS cONHEciDOS SÃO OS ArOmAS DA rEDUÇÃO.

SAiBA Um POUcO mAiS SOBrEEStE ASSUNtO POLÊmicO

fácil deduzir que se um agente oxidante “rouba” elé-

trons da substância que se oxida, ele próprio, simul-

taneamente, é reduzido já que ganha esses elétrons.

Assim, tomando como exemplo a reação de oxidação

mais conhecida que é o enferrujamento, o oxigênio é

o agente oxidante e o ferro é a substância oxidada. O

oxigênio é reduzido no processo.

Louis Pasteur descreveu o oxigênio como inimi-

go do vinho. Desde então, as práticas de vinifi cação

tendem a elaborar os vinhos em ambiente redutivo

isolando-o sistematicamente do contato com o oxi-

gênio. Essa prática moderna não é impune, podendo

acarretar alguns defeitos ao vinho. Emile Peynaud,

em sua obra fundamental “Le goût du Vin”, dá a esses

defeitos o nome de odores de redução, de garrafa, de

“luz” ou de “sol” (o efeito fotoquímico da luz exacer-

ba esse problema) e os descreve como uma falta de

nitidez aromática, odor ligeiramente desagradável,

de caráter aliáceo, lembrando por vezes o suor.

O meio redutivo propicia a formação de compostos

30 por JOSÉ LUIZ BORGES ilustração THOMATE

Page 2: TÉCNICA - artwine.com.br · No caso da oxidação, há perda de elétrons, fi cando a carga elétrica do átomo, ou da molécula, mais posi- ... o agente oxidante e o ferro é a

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do enxofre como o sulfeto de hidrogênio, os mercap-

tanos, os tióis e o dimetilsulfeto. Os odores defeituo-

sos associados a esses compostos são: cheiro de ovo

podre, de repolho, de borracha queimada, de pedra

de isqueiro atritada e de milho cozido.

Potencial Redox Uma maneira de estimar o risco de que esses pro-

blemas ocorram é conhecer o potencial redox do vi-

nho. Essa medida, expressa em milivolts (mV), com-

para a afinidade de diferentes substâncias por elé-

trons. Vinhos tintos aerados têm potencial redox de

400mV a 450mV. A guarda desses vinhos, isolados do

ar, diminui o potencial para 200 - 250mV. Se o nível

alcançar os 150mV, os defeitos de redução podem ser

produzidos. As práticas enológicas como a trasfega e

a filtração fazem com que o oxigênio seja dissolvido

no vinho e o potencial redox volte para 200-300mV.

Dois outros fatores que contribuem para a dimi-

nuição do potencial redox são a concentração de di-

óxido de enxofre (SO2) e as borras, que agem como

antioxidantes absorvendo o oxigênio. Nem sempre

os compostos de enxofre são desagradáveis. Sabe-

se que um ligeiro aroma de fósforo queimado pode

acrescentar complexidade em vinhos elaborados

a partir de cepas muito maduras de climas quentes

como os Syrah do mediterrâneo. Por outro lado, a

mesma concentração de compostos de enxofre em

um Cabernet Sauvignon de clima temperado, com

aromas vegetais, pode ser muito desagradável. Apa-

rentemente, uvas mais maduras produzem vinhos

com maior concentração de macromoléculas, que

tendem a reter as frações voláteis dos compostos de

enxofre, diminuindo o efeito aromático.

Algumas características aromáticas varietais ou

atribuídas ao terroir podem ter sua real origem nas

reações de redução, que liberam compostos de en-

xofre. Assim, a tão falada e pouco compreendida

mineralidade de certos vinhos como os Rieslings

pode ser resultado de compostos voláteis de en-

xofre presentes nesses vinhos. Da mesma forma,

pode ser entendido o aroma de sílex de muitos vi-

nhos de Sauvignon Blanc do vale do Loire. Outras

características, ditas varietais, dessa cepa como o

aroma de urina de gato e de maracujá são reco-

nhecidamente devidas às substâncias 4-mercap-

to-4-metilpentan-2-ona e 3-mercaptohexil acetato,

ambos compostos voláteis de enxofre.

Outra causa de defeitos aromáticos associados à

redução pode ser a tendência atual de fechamento

das garrafas com o sistema “screwcap”, que veda o

recipiente de forma mais efetiva que a rolha de corti-

ça e as rolhas de polímeros. Alguns defeitos aromá-

ticos, particularmente o cheiro de borracha, têm sido

associados a essa forma de vedação. Nesses casos,

talvez, seja necessário deixar um espaço maior, pre-

enchido por ar, na garrafa.

A grande arte do enólogo é equilibrar a vinifi-

cação redutiva com pequenos aportes de oxigênio

para que as verdadeiras características varietais e de

terroir se expressem, juntamente com a preservação

do frescor e dos aromas frutados propiciados pela

vinificação em ausência de oxigênio. A sabedoria

enológica, que se desenvolveu por séculos, nos dá

um claro exemplo desse equilíbrio. Vinhos brancos

que descansam sobres suas borras (vimos que as le-

veduras mortas agem como antioxidantes, diminuin-

do o potencial redox), tendem a desenvolver aromas

de redução. A prática secular da bâtonnage, além de

extrair produtos favoráveis da massa

de leveduras, introduz pequena quantidade

de oxigênio no vinho, restabelecendo

o balanço entre redução e oxidação.

JO S é L U i z A LV i m B O r g E S

é E D i tO r DA W i N E St y L E

E V i c E - P r E S i D E Nt E DA A B S - S P.