teatro de perto

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Teatro de perto

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“O tempo é uma realidade encerrada no instante e suspensa entre dois nadas.”

Gaston Bachelard

Um segundo e meio...

...é a história de um homem que encontra a vida recontando os passos percorridos em sua trajetória. Essa possibilidade se dá quando alcança o limiar entre a lembrança de fatos reais de sua existência e a poesia de uma memória que vai além do tempo real. Nesta história, o encontro com a morte é o encontro com a totalidade da vida.

Um segundo e meio é um projeto que reúne uma bus-ca estética de dramaturgia e linguagem cênica simultâ-neos. O texto, em sua estrutura narrativa, funciona mais como pensamentos descarregados sobre o papel, um conto que reflete a velocidade e a ne-cessidade que seu protagonista tem de cuspir fragmentos de sua própria história, e por eles purgar pequenos acontecimentos que marcaram sua vida.

Nossa busca é pensar, experi-mentar, como dizer o texto num fluxo contínuo de movimento em que caibam as palavras e sentidos dessa dramatur-gia, apoiando-se apenas na figura do ator, única fer-ramenta utilizada por nós para diminuir a distância até o homem.

Proposta de encenação

o diretor

Minha paixão pelo ofício do ator, o homem que exer-cita tornar-se outro, outros, para penetrar em si mesmo e conhecer-se e expor essa experiência para que o especta-dor de sua exibição pública possa ver-se também e, quem sabe, lembrar-se de si. As centenas de jovens atores com os quais convivi e com vários deles a promessa de traba-lharmos juntos algum dia. Marcello Airoldi é um, e por isso nunca paramos de nos perseguir. E cá estamos para vivenciar, com a montagem de Um Segundo e Meio, a re-criação dos mistérios do ser. A jornada de um homem e a companhia que ele escolhe para a viagem mais lúcida, por isso poética, que um homem pode propor-se, instante em que se descortina o histórico de uma vida na velocidade de um elétron em torno do seu núcleo atômico.

Antonio Januzelli

O ator tem em si mesmo seu instrumento de trabalho, portanto, a potência de sua presença depen-de da qualidade que ele consegue imprimir no espaço através de seu corpo e suas ações.

A proposta de um treinamento, de uma prática diária tem como objetivo dar ao ator a possibilidade de limpar, de desobstruir o corpo/canal de toda resistência que blo-queia os impulsos criativos. Para que o corpo se torne livre e pronto para reagir aos estímulos e possa dar vida aos mais diversos caracteres hu-

O corpo transparente sobre o treinamento do ator

estrutura de treinamento no qual o ator é estimulado a confrontar suas dificuldades e seus automatismos.

A prática de um treinamento diário provoca o ator a questionar os meios com os quais constrói seu ofício, e a manter viva a inquieta-ção que o faz buscar novos estímu-los para desenvolver sua arte.

Esta pesquisa prática tem como objetivo fundamental o trabalho sobre a presença do ator através do corpo e sua poética.

Joana Levi

manos. Para que se torne um corpo transparente e seja capaz de irradiar a vida.

No processo criativo são incor-poradas, então, ferramentas artís-ticas que tratam da “afinação” do corpo do ator e sua sintonia com a imaginação, de modo que este seja um instrumento potente e sensí-vel.

As relações entre percepção e qualidade, equilíbrio e oposição, energia e forma, precisão e espon-taneidade são desenvolvidas através de exercícios físicos dentro de uma

A vida é cheia de simultaneida-des: pensamentos, ações, contradi-ções, felicidades e tristezas, dores, banalidades, tudo acontecendo ao mesmo tempo. Há uma espécie de sincronismo entre as pessoas, entre os fatos. Pessoas que nunca se viram vivenciam experiências similares simultaneamente, em lugares diferentes. Assim também parece ser entre o sub-consciente e a razão, pois apesar de coexistirem, seus conteúdos são revelados em momentos diferentes, e o por que disso e não daquilo vir à tona, é um mistério da dialética entre consci-ência e inconsciência.

Nos estudos científicos sobre tempo e espaço, já se aventa possi-bilidades da existência de um tem-po paralelo, como uma dimensão na qual fatos do passado coexistem com os do presente, sem dialoga-rem entre si, sem uma porta que facilite o contato entre eles.

De qualquer forma, é inegável a existência de um tempo paralelo - ou seria enviesado? - ao tempo do relógio. Pelo menos na poesia.

Em sendo assim, é possível afir-mar que a memória é o lugar pos-sível da simultaneidade e diálogo entre passado e presente, como uma ponte entre a ancestralidade e o futuro. Ora, onde está o homem que habitará a terra daqui mil anos? Em nós. O futuro passa, assim, a integrar a memória do homem.

No teatro, ciência da alma e da sociedade, é possível revelar um tempo poético que reserva um es-tado que contêm todas as coisas, um fragmento de todas as experi-ências do homem, sem cronologia histórica, sem envelhecimento, sem duração, mesmo que para isso o tempo cronológico seja emprega-do para possibilitar o entendimen-to de uma trama apresentada ao público. Então, certa linearidade

narrativa se faz necessária, já que ainda somos privados da faculdade de assimilar todas as coisas ao mes-mo tempo.

Assim, não soa tão estranho a plenitude da vida, ser condensada num pequeno fragmento de tem-po cronológico, instantes antes da morte. Condensada, não dimi-nuída. Poeticamente isso é muito possível. Nesse instante, pleno, um estado diferenciado se instau-ra, uma capacidade de assimilação e entendimento descomunais, dis-tantes das capacidades cotidianas de percepção. Essa totalidade não está na duração do tempo, mas na poesia do instante, vertical, inten-so, num tempo impossível de ser contabilizado.

Marcello Airoldi

Sobre o textoQuanto tempo dura um segundo e meio?

... quer vasculhar o que há de mais intimo no homem, percorrer interiores esquecidos ou distantes. Trazer à superfície o que naufra-gou no cotidiano, na prática, na mecanicidade de nossos passos, na acomodação que maneja nossas vidas. Um teatro de olhos nos olhos que não incomode o espectador pela proximidade física, mas que perturbe sua alma.

O principal objetivo do núcleo é montar espetáculos baseados essencialmente no trabalho de interpretação do ator, criando uma dramaturgia própria para favorecer sua busca criativa, ou utilizar trechos de obras consagradas da dramaturgia mun-dial, romances, contos e peças experi-mentais que sirvam de base para esse vasculho da expressividade do ator.

Assim, além de percorrer cami-nhos que priorizem o ator, estudos

ator com o público, e é neste uni-verso que queremos trabalhar.

Assim, o primeiro trabalho com essas características foi a montagem de Café com Torradas, de Gero Ca-milo, que estreou em novembro de

2006 e ainda percorre os palcos da cidade de São Paulo. O texto de Gero foi o mote perfeito para a busca de um ator “ordinário”, de um despojamento dos complementos teatrais como linguagem. A peça acontece numa sala de espera com luz

fluorescente, cadeiras de plásti-co para o público e para o ator,

este vestindo apenas um pijama e carregando uma escova de dentes. A montagem é baseada na simplici-dade, no essencial. Quanto menor, maior. E é nesta relação com a sim-plicidade que se revela o contradi-tório e o complexo. Na síntese está muitas vezes o que procuramos nes-se teatro de perto.

O Teatro de Perto...

de novos processos de dramaturgia fazem parte dos objetivos do núcleo.

Outra idéia é a eliminação total,

ou de grande parte da cenografia, adereços e objetos utilizados para compor o espetáculo. Para nós o teatro, o jogo se dá, na relação do

Ficha Técnica

Texto e interpretaçãoMarcello Airoldi

DireçãoAntonio Januzzeli

Orientação corporalJoana Levi

IluminaçãoAline Santini

Design GráficoMidia Transgênica

FotosTato Guion – estúdio ponto

Assessoria de ImprensaPaulo Duek- Asses. de Comunicação

Produção

Foto Eduardo Sofiati

Histórico

Café com Torradas a partir de 2006

• Teatro Júlia Bergman• Casarão da Escola Paulista de Restauro• Feira de Teatro Ventoforte• 1ª Mostra Paulista de Monólogos• Festival de Teatro de Extrema - MG• 3ª Mostra de ReferênciasTeatrais de Suzano

VISITA DE UM DESCONHECIDOpor Marcella Franco

Depois de obter igual repercussão positiva por sua atuação em Cleide, Eló e as Pêras, e A Procissão, também apresentadas recentemente, agora é possível analisar o trabalho de Gero Camilo como dramaturgo no mo-nólogo Café com Torradas, que tem direção e atuação de Marcello Airol-di. Em cartaz num dos espaços mais novos da cidade, o espaço Artistas do Riso – Teatro Julia Bergmann, inaugurado a menos de um ano, a peça é uma reflexão sobre a in-dividualidade humana perante a sociedade de hoje em dia.

Em um breve, mas eficiente jogo teatral, Marcello Airoldi conversa com a platéia, apresentando as mais diversas e absurdas justificativas para não atender ao chamado insistente de alguém que, apenas no desfecho da peça, nos será apresentado.

A atmosfera que impera é a in-formalidade: o palco é literalmente uma sala de espera, com iluminação fria e cadeiras de plástico espalhadas pelas quatro paredes. Airoldi se apresenta ao público como um “igual” – a exemplo de todos os espectadores, tam-bém recebeu uma senha e aguarda algo ou alguém des-

Crítica

conhecido. Trata-se de um cenário perfeito, que ambienta de maneira redonda a proposta da direção.

Na interpretação do texto de Gero Ca-milo, Airoldi apresenta excelente preparação corporal e vocal, mantendo o ritmo do texto inalterado e firme. A interação com o públi-co segue de maneira sutil e não ostensiva (o que é sempre um risco em um espetáculo desse tipo), funcionando perfeitamente com qualquer tipo de público.

REVISTA BRAVO Edição dezembro/2006

Antonio JanuzelliDiretor, ator, professor e pesquisador.

É formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas; ator, pela Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (EAD/ECA/USP); e fez mestrado e doutorado na Es-cola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde atua como professor da graduação e pós-graduação, no Departamen-to de Artes Cênicas.

É representante do Depto. de Artes Cênicas da USP na AIEST

– Asosiacion Iberoamericana de Escuelas Superiores de Teatro (Mé-xico), entidade da qual faz parte do Conselho Consultivo. É membro do conselho editorial da revista LUME/Unicamp.

Atuou como Vice-Chefe do Depto. de Artes Cênicas da ECA/USP ente 2002 e 2003, e coorde-nou o Encontro Internacional “Vo-zes para o Ator” em 2002 na Uni-versidade de São Paulo.

Ministra oficinas de Comunica-

ção e Expressão Dramática no Bra-sil e exterior, e é autor dos livros A Aprendizagem do Ator – Ed. Áti-ca/SP, O Oficio do Ator e o Estágio das Transparências e Metodologias da Prática do Ator: Brasil e América Latina, ambos a serem publicados.

Seus trabalhos mais recentes como diretor foram O Porco, de Raymond Cousse; Querido Pai, a partir de texto de Kafka; Se eu fosse eu, partir de textos de Cla-rice Lispector.

Há seis anos faz parte do Tea-tro Ventoforte, um dos mais pre-miados grupos de teatro do Brasil, que participou em abril de 2006 do Festival Mundial de Teatro e Música da Holanda, com o espe-táculo Bodas de Sangue, vencedor de 2 prêmios Shell em 2005 (me-lhor música e cenário). No grupo, além de participar como ator de espetáculos de repertório, escre-veu e dirigiu “A Casa do Gaspar, ou Kaspar Hauser, o órfão da Eu-ropa”, em 2007. Participa como ator da nova montagem do grupo, “Se o mundo fosse bom, o Dono morava nele”, baseado em “A Pena e a Lei”, de Ariano Suassuna.

Dirigiu e atuou nos espetáculos do extinto Teatro de Viés, Macário, de Álvares de Azevedo e o infantil Medo de Vassoura, de André Colla-zzi.

Com o núcleo de pesquisas do ator, Teatro de Perto, apresenta o

monólogo “Café com Torradas”, de Gero Camilo, em que atua e diri-giu.

Como ator participou de es-petáculos como Pedra no Rim e O Beijo da Última Hora, de Leo Lama, Jung e O Casamento (peça em que recebeu indicação de me-lhor ator na 13ª edição do Festival Universitário de Blumenau), com direção de Marinho Piacentini, e na EAD de montagens como Macaco Peludo, direção de Celso Frateschi, Tartufo, direção de José Rubens Siqueira, A Cozinha, dire-ção de Iacov Hillel, entre outros.

Recebeu prêmio de melhor di-reção pela peça Macário (Projeto Viva Cultura da Secretaria do Es-tado da Cultura -1993) e pelo es-petáculo Café com Torradas, na 9ª edição do Festival de Monólogos de Piedade em 2002.

Dirigiu os projetos Contos na TV e Contos no Rádio, na Secre-

taria de Cultura de Barueri, traba-lhos de vídeo e áudio com obras da literatura brasileira e estrangei-ra, e Odisséia, de Homero, espetá-culo multimídia apresentado para mais de 20 mil jovens no Teatro Municipal de Barueri. Foi diretor do Departamento de Cultura de Barueri de 1997 a 2006.

Atua como professor de teatro desde 1990, e atualmente ministra aulas no colégio Waldorf Micael, além de dirigir a Cia. de Teatro Vizinho Legal, que faz parte do projeto Conexões da Cultura In-glesa e British Council, com ado-lescentes que participam de um programa social da Roche Farma-cêutica.

Na TV participou da nove-la Belíssima, e em campanhas publicitárias No cinema par-ticipou das filmagens de Li-nha de Passe, filme inédito de Walter Sales.

Marcello Airoldi DRT 16215

Atualmente, é atriz e assistente de direção da Casa Laboratório para as Artes do Teatro, dirigida por Cacá Carvalho e Roberto Bacci (da Fondazione Pontedera Teatro). Anteriormente, trabalhou com o diretor iraniano Massoud Saidpour (nos EUA e no RJ), com a diretora Celina Sodré (Studio Stanislavski/

RJ), com a atriz italiana Silvia Pasello, entre outros. Participou de seminários com: Yoshi Oida, Eugenio Barba, Declan Donnellan, Gerald Thomas, Stephane Brodt, entre outros.

Em 2006, dirigiu o espetáculo Dois perdidos numa noite suja de Plínio Marcos, no Sesc Avenida Paulista.

Joana LeviDRT 36230/ RJ

A atriz desenvolve pesquisa sobre o treinamento físico e já ministrou oficinas para atores, bailarinos e estudantes no Rio de Janeiro (UNIRIO, Escola de Dança Angel Viana), Belo Horizonte (Galpão Cine Horto, ECUM), São Paulo (Teatro Vento Forte) e Recife (Fundação Joaquim Nabuco).

Trabalhou com projetos luminotécnicos do ano de 1998 a 2000 na LaLampe Iluminação.

Durante 05 anos (2000 a 2005) foi assistente do renomado iluminador Wagner Pinto, onde teve seu nome ligado ao crédito de diversos trabalhos teatrais, ao lado de grandes encenadores, tais como Gerald Thomas (“Deus ex-maquina”), Élcio Nogueira (“Jardim das cerejeiras”), Hugo Possolo (“Pantagruel”), Domingos de Oliveira (“A casa dos budas ditosos”, com Fernanda Torres),

Cleber Papa ( no Festival de Ópera de Belem-PA, “Carmen” e “Lohengrin” no Theatro Municipal de São Paulo). Participou tambem das gravações dos DVDs “Bacantes” e “Ham-Let” de José Celso Martinez Corrêa. É iluminadora da “Terça-Insana”, dir. Grace Gianoukas há 05 anos inclusive iluminou o DVD produzido pela TRAMA , foi iluminadora de Gerald Thomas (“Um circo de rins e fígados”, com Marco Nanini) e do último projeto de 4 espetáculos dirigidos por Gerald Thomas que estreou em

Aline SantiniDRT de iluminadora - 16168

abril 2006. Em 2005 iluminou o espetáculo “Do que Orlando me disse”, com Paula Picarelli, direção Georgette Fadel.

Em janeiro de 2007 fez o curso de cinema intensivo na AICinema onde dirigiu o curta metragem “Mais uma vez...” e criou o roteiro de “Me deixas louça...” que tambem foi filmado. Em maio de 2007 criou a luz do espetáculo de dança-teatro Gira, direção de Estelamare dos Santos para o festival de dança do C.C.S.P.

um segundo e meio

Marcello Airoldi

Um neurônio, do sistema nervoso simpático, envia uma carga elétrica, bzzz... a outro neurônio, também do sistema nervoso simpático, bzzz... que manda pra outro neurônio. Essa carga elétrica bzzz... passeia numa velocidade inacreditável pelo hipocampo, que fica no lobo temporal... bzzzz... até o neocórtex... bzzzz... As conexões entre o hipocampo e o bzzz.... neocórtex, região posterior do córtex cerebral, são essenciais para formação de novas lembranças bzzzzzzzzzzzzzz... Essas novas lembranças ficam presentes na relação entre os neurônios, as chamadas sinapses bzzzzz... que quando ativadas, fazem ressurgir as lembranças ali impressas bzzzz... E graças aos mecanismos associativos, os neurônios são interconectados, formando conjuntos de neurônios, que são ativados simultaneamente quando uma lembrança é evocada bzzzz... Essa sincronia e interconexão entre as múltiplas redes neuronais, são fundamentais para a formação da nossa memória, que fica principalmente armazenada no neocórtex. Bzzzzzz. Se imaginarmos que essas pequenas ondas elétricas também possam ser mensagens que se conectam com

todo o resto de nosso corpo, podemos dizer que é por causa de pequenas mensagens elétricas enviadas a nosso sistema nervoso, bzzzzzzzz... que as recebe e as repassa como impulso às várias gamas musculares da nossa organização corpórea... bzzzz que todos os nossos músculos e ossos e células começam a se movimentar. Bzzz... bzzz... bzzz... Então você dá o primeiro passo.... bzzz... e percebe que o primeiro passo não é o primeiro. Bzzz...bzzz... Você começa a andar, pé daqui, pé dali, andou um pouco, e de novo, outro pouco, e quando você percebe está andando, escolhendo pra onde quer ir. Você escolhe. Comecei a caminhar agora e só parei daqui a três mil quilômetros. Do sul ao norte de um mesmo lugar.

Vocês não estão vendo, mas aqui há uma arma de fogo. Não de terra, nem de ar, nem de água. Fogo. Um disparo – pá. Seguro a bala entre o indicador e o polegar. Esta é a bala que vai matar um homem. O projétil será companhia na caminhada.

Caminhar implica numa mensagem enviada pelo cérebro.Caminhar implica numa mensagem enviada pelo coração. Bzzz...

Uma vez narrados os preâmbulos, comecei a cair para o norte, em busca do homem que eu queria matar. Nunca tinha ido para muito longe. Eu e a bala, seguimos.Pegar carona não adianta, porque se partilha com o outro o que os seus pés têm de andar. Basta o sangue

dos próprios pés, já dizia... não sei quem. A cidade pode ser a mesma, a casa pode ser a mesma, o outro pode até ir para o mesmo lugar, mas nunca é o mesmo lugar. Imagine: você e o ser humano que te deu carona. Você olha para mesma estrada que ele, os mesmos carros indo e vindo que ele vê, você vê, eu vejo,

mas nunca o que os olhos dele virem vai ser o que os meus olhos virem. É tudo igual, mas diferente. Ele vai para o mesmo lugar, mas nunca é o mesmo destino. E sabe onde está a diferença?Ai meu Deus! Não apaguei a luz da sala quando saí. Mas também não paguei a conta de luz. Não foi de

propósito. Deixo tudo em débito automático: água, telefone, internet rápida, banda larga, lixo, a taxa do lixo, iptu - esse não dá para por no débito automático - celular que tira foto e grava, computador, ipod, iphone, lap top, meu cachorro - não tenho gato, tenho rinite -, plasma, lcd, dvd, windows, um livro, jornal, almoço em débito automático, antena parabólica, amigo virtual, sexo na rede, a do computador, tudo automático e débito, débito, débito, e tudo automático. Mas a luz, tinha dado problema no cadastro da luz, não dava pra pagar a conta da luz. Assim simplesmente no dia certo cai na sua conta e tem dinheiro - pof, está pago! Com a luz dá para estar em débito, mas não dá para ser automático. Deixei minha mulher e meus dois filhos no escuro. Alguém passa com a mão na buzina e logo digo: vai buzinar pra sua mãe, seu vagabundo, desgraçado! Só porque tem carro acha que é dono do mundo. Terceiro mundo. Não perco tempo!

É tudo igual, mas diferente. Ele vai para o mesmo lugar, mas nunca é o mesmo lugar. E sabe onde está a diferença? Nos passos. Ando até chegar lá, longe, levo uma bala de companhia pra matar um homem. Então, essa história que

parece mal ter começado, acaba.Sei de um homem que não conheci, mas que caminhou muito. Seu Pedro Pereira da Consolação. O

Pereira vinha do pai, que era filho legítimo e direto do avô do seu Pedro, que tinha mudado o nome por ser judeu refugiado - polonês, francês, iugoslavo, eslavo - vindo de não sei onde e andado um tanto até o aqui. Escolheu o Brasil, mas pensou em ir para Austrália naquela época. Talvez se chamasse Seu Peter. Sorte que veio pra cá porque dá pra falar da sua caminhada. Pereira do pai e o Consolação da mãe, por escolha dela mesmo, não era nome de família, era por causa de um sonho. Sua mãe disse: será um homem ajudador. Para ela, Pedro seria capaz de consolar qualquer dor, de qualquer um que estivesse do seu lado e padecesse de algum infortúnio. Seria a Consolação da mãe. Por que alguém quer que o filho ajude os outros? Seu Pedro, Peter, se fosse na Austrália, caminhou 127 quilômetros de joelhos até Aparecida do Norte pra pagar promessa que fez pra a mãe ver e pra ver a mãe consolada por ter um filho triste que dava trabalho. O pai já tinha morrido quando Pedro ainda era pequeno e nem sonhava em dar os primeiro passos. O Pedro apronta demais, a mãe falava. Ele demorou 47 dias e meio, pra chegar até a porta da catedral, de joelhos. Seu Pedro, Seu porque já tinha uns sessenta e tingia o cabelo de acaju. Seu Pedro matou um homem. O Pedro apronta demais, a mãe falava. Pedro triste, sempre deu trabalho. A mãe precisava mesmo de consolação. Pedro jovem roubou, fumou tóxico, desandou a família inteira, mas era

leal, por um amigo era capaz de tudo. Foi preso. Roubaram, ele e o Romano, filho dos italianos, única família que tinha carro na vila, a policia pegou, mas o Romano tinha um filho pequeno e a mulher era paraplégica, quem consegue casar com uma paraplégica? O Pedro pensava. Mas a mulher do Romano era paraplégica e não caminhava, e tinha um filho, e o Pedro falou: fui eu! Eu que roubei. Sua mãe perdeu a perna direita por causa da diabete, que era emocional. Amputaram na Santa Casa,

caminhava de vez em quando com ajuda das muletas. Pedro cumpriu pena e lá dentro caminhava em volta do campo de futebol. Descobriu que o Romano arrumou outra e matou a mulher. Quem consegue matar uma paraplégica? O Pedro pensava. O filho, ninguém sabe do filho. E o Romano ainda tirou o Pedro de burro, que pensou quando soube: vou matar esse filho da puta que não respeita paraplégico. Quando saiu da cadeia a mãe estava cega, diabete é fogo, nunca mais caminhou. Romano fugiu, mas morreu atirado - pá, pá, pá, pá - quatro azeitonas no peito. Minha companhia assiste a tudo. Refiro-me ao projétil, que aliás, gostou dessa cena. O Seu Pedro falou e fez. É um exemplo. Aquele homem tinha de morrer. Não adiantou fugir porque o Pedro caminhou até encontrar o Romano, o corpo ainda lá estirado no chão o Pedro pensou: vou de joelhos até Aparecida pra minha mãe voltar a enxergar. Cento e vinte e sete quilômetros de joelhos. Quarenta e sete dias e meio, para chegar até a porta da catedral, quase entrar, e ser preso pela policia. Nunca mais caminhou em volta do campo de futebol na penitenciária, os joelhos doíam muito. A mãe morreu no décimo sexto ano de reclusão do Seu Pedro, mas nunca voltou a enxergar. Queria ter conhecido o Seu Pedro. Pereira do pai, Consolação da mãe, Pedro de pedra e pedra não anda.

Mama, just killed a man, I put a gun against his head… Caminha, caminha. Jamais parar até chegar ao homem que tem de morrer. Pulled my trigger now he´s dead... A bala me acompanha destinada a ele.É tudo igual, mas diferente. Ele vai pro mesmo lugar, mas nunca é o mesmo lugar. E sabe onde está a

diferença? Life had just begun, but now I´ve gone and thrown it all away. Mama… uuuuuu….lá lá lá lá lá lá... O que será que Jonas aprendeu na sua travessia dentro do ventre de um peixe?

A Marlene dentuça ensinava catecismo, meio gorda, eu gostava dela. Ela falou: tinha um homem que duvidava que Deus existisse. Então ele subiu num morro muito alto e falou bem alto, meio gritando: Senhor, se o Senhor existe mesmo, fala comigo. Me deixa acreditar, porque eu tô precisando. Não desafiou, mas pediu para Deus aparecer. Nada de Deus. Ô Senhor, dá um sinal. Esperou uns vinte minutos e nada. Resolveu descer o morro, meio irritado, decepcionado. Quando ele chegou lá embaixo, tinha bombeiros, polícia, a família desesperada, a esposa chorando. Ele tinha sumido havia uma semana. Ele pensou: às vezes Deus vem tão rápido! Será? Quando lembrei da Marlene rezei uns Pai Nosso, Ave Maria não. Foi

um dia de chuva, muita chuva. Neste dia eu não falei nada e fiquei o tempo todo pensando em não pensar em nada, em não pensar, não pensar, não pensar, não pensar, não pensar, não pensar, não pensar... O dia foi muito longo.Caminho trilhado a pé é caminho pra se saber de cor pro resto da vida. Estrada assim não justifica

desistência porque fica escrita em cada passo dado de pé sangrado. Até rimou. Estou caindo três mil quilômetros acima e de companhia levo uma bala destinada ao homem que precisa morrer. Pá.

No caminho, às vezes me sentia meio dormido. Abria a boca e descansava do cansaço. Não é de andar que o cansaço aparece, é de não sair do lugar. Olhando de longe, o asfalto quente exala uma espécie de miragem. É um vapor, parece. As imagens ficam

distorcidas e você não sabe direito o que é. Eu sempre ficava me perguntando o que poderia aparecer lá de longe, se transformando de névoa em sei lá o que. Vocês não podem ver, mas tem uma bala me fazendo companhia. Um dia apareceu uma aranha – com as mãos mostro o tamanho do bicho, mas logo mudo de opinião - era maior. Gigante. Talvez a aranha fosse mecânica, mas não parecia. Veio na minha direção, nem se deu conta de mim por causa do meu tamanho, passou por cima da minha cabeça e caminhou em direção a uma cidade muito grande que eu deixei pra trás. Talvez ela começasse a soltar um fio, eterno, que ligasse o sul ao norte. Teceu sua teia que, como um manto bordado foi cobrindo todos os edifícios e o rio que alimentava a cidade de água e até a torre de comunicação que mantinha aquela gente em contato com o resto do mundo. Essa cidade era bem longe das outras, e eu olhando tudo do alto da estrada, num topo, e a aranha começasse a soltar tanta teia, tanta teia, que o horizonte fosse coberto e tudo que fosse longe e todo mundo e a terra debaixo da teia da aranha e a cidade e a teia começou a subir, subir e preencher o céu que ficava branco ao invés de azul e o branco da teia ia ficando preto de sem luz porque o sol estava ficando cada vez mais escuro, a teia cobriu todo o firmamento e completou o ciclo no horizonte do outro lado. Mas eu tinha de continuar andando, e com o indicador da mão direita rompi a teia e passei. Neste dia, não voltei o olhar nenhuma vez.

Tenho de pôr pó de grafite na fechadura da porta da cozinha, a chave às vezes enrosca. Tantas coisas que vão e vem e vão e voltam. Pus grafite na fechadura do fusca do meu pai. Original, um fusca vermelho, original. Meu pai tinha um fusca vermelho 69 original, e ele passava os domingos de manhã lavando o carro, e naquela época ele já usava balde com água, não mangueira, e polia os acessórios prateados do fusquinha que era na verdade cereja, não vermelho, mas não tinha faixas brancas nos pneus. A gente até fazia piquenique na beira da estrada de vez em quando e eu até comia patê de sardinha, porque sardinha

é insuportável, como todo peixe é insuportável, mas peixe tem um cheiro nojento que só fica com cheiro de peixe quando é cozido, porque cru, peixe não tem cheiro nem gosto de peixe, e num domingo o fusca estava brilhando, polido impecável, e blim blom, tocaram a campainha, ou foram palmas que bateram, porque uma época não tinha campainha em casa, clap clap clap clap, acho que foi a campainha mesmo que soou, e eu naquela minha empáfia infantil - eu não sei por que, mas tinha um orgulho besta quando era criança - abri a janela e tinha uns negros pedindo comida e eu falei em alto e bom tom pra um deles, que era meio estrábico e estava com a mão em cima do capô do fusca cereja original e limpo do meu pai: por favor, você pode tirar a mão de cima do carro porque meu pai acabou de lavar? E ele ainda olhou pra a mão enquanto a tirava de cima do carro e conferiu se tinha ofuscado o brilho cereja do fusca 69 do meu pai. Cereja original.O tibetano Lama Sherab Gyalsten, de trinta e cinco anos, se arrasta em uma estrada em sua jornada

ao monastério de Bodh Gaya, na Índia, para adorar Buda. Ele anda de seis a sete quilômetros por dia, rastejando, numa viagem que já dura, um ano e sete meses. A vida de um homem está na quantidade de passos que ele deu, mas, como é que se contam os passos do Lama Sherab Gyalsten se ele rasteja? Será que assim vale mais? Como se conta os passos da mulher paraplégica do Romano?

Mama, just killed a man…uuuuuu…

Olhando de longe, o asfalto quente exala uma miragem. As imagens ficam nebulosas e você não sabe direito o que é. No topo da estrada, parecia um golfinho em pé no horizonte. O vapor quente fazia o bicho rebolar um pouco. Parece que eu ouvi um ié ié ié, que nem os golfinhos cantam. A voz das baleias é muito linda. Que nem som de baleia cantando, eu acho que tinha ouvido. E quando fui chegando perto e a névoa do asfalto diminuindo, era uma mulher, uma puta de estrada, aquelas de amar caminhoneiro. Pegam um aqui e descem, sabe lá Deus onde e voltam amando outro e vão de novo e procuram na bolsa batom e desodorante para deixar um pouco melhor a situação, e quando você vê, o bafo quente do asfalto desaparece e a realidade vem rápido demais, às vezes. Elza. Não era Valesca, Françoise, Emanuele, era Elza mesmo. Nome de guerra, o de batismo era Acássia, com dois esses. As irmãs, todas, eram flores: Rosalina, Jasminia, Margarida, Petúnia, e Acássia, com dois esses. Mas a última era Adelaide, que na hora de registrar o pai enjoou de flor. Adelaide morreu com três anos de meningite. Mas isso não era miséria não. Aliás, a Elza era uma puta feliz que o mundo conheceu. Feliz porque gostava de dar e quando era deixada longe pelo dono do caminhão gostava mais. Sofria e gostava. Preferia que nem lhe pagassem, mas não podia somente viver de prazer, tinha que levar dinheiro para sustentar o jardim de irmãs que os pais

tinham plantado no mundo, então cobrava. Mas queria mesmo era fazer de graça. Gostava. Ela falava errado e dizia: gosto de fazer dês graça! Colocava um s meio perdido no meio da frase, depois do d que soava desgraça. Mas era só para caminhoneiro, transeunte normal como eu tinha de pagar, e eu falei tenho mulher e filhos que deixei no escuro e não quero obrigado e ela falou chupeta é dez, e eu confesso que pensei, era bonita a Elza, magrela, pernas longas e finas, meio tetuda, quase loira, era castanho claro e os cabelos curtos mostravam mesmo certa coragem atitude, mulher de cabelo curto tem atitude, dentes brancos, mas insisti tenho mulher e filhos e não quero obrigado e ela falou faço por cinco e eu pensei tenho mulher tão longe a essas alturas foi quando Elza segurou meio forte minha nuca que estava molhada encharcada de suor porque eu estava andando fazia quatro horas e não tinha parado porque tinha emendado pensar sobre o homem que eu estava indo matar, a bala ainda comigo de companhia, aqui do lado, e de novo emendei a Elza segurava minha nuca molhada eu e a Elza molhada a mão no meio das pernas magras de Elza, mamilos grandes e sapato judiado de salto, segurei forte os cabelos eram curtos a mão molhada escapou um gemido olhei os olhos meus nos dela enterrei na Elza as pernas magras por trás apertam minha bunda molhada de suor e Elza molhada e eu pensando no que ia morrer e eu beijei na boca mesmo, tem puta que não beija, mas não era mais a Elza, já era a Acássia com dois esses... Paguei, por causa das irmãs e quando olhei de longe, Elza passava um desodorante sob os braços, axilas brancas e lisas como acácias, agora com c e o vapor do asfalto foi transformando a Elza Acássia, com dois esses, numa lembrança, com cedilha.

Um domingo de manhã, a Marlene perguntou no catecismo, o meu pai, acho que estava lavando o fusca cereja original em casa, e eu no catecismo, olhei de lado e vi a Teca, aluna nova, e a Marlene perguntou para uma outra menina pequena: o que Deus criou pra gente tomar banho e ficar limpinho? E a menina respondeu: o sabonete. A Marlene falou que ela era muito nova pra aprender Deus e mandou ela embora. Eu voltei pra casa, a Teca desse tamanho na cabeça, e eu subi as escadas de casa, o fusca original cereja original brilhando, tocaram a campainha, blim blom, ou foram palmas? Eu acho que minha mãe deu comida pros meninos negros aquele dia. Ele olhou a mão, o fusca, me olhou. Eu nem almocei. Encontrei o negro menino estrábico várias vezes na escola, e ele nunca me bateu.

Ando até chegar lá, longe. Eu e a bala. Projétil! Quando chegar a história acaba. Matar o homem que precisa morrer. Pode estar de costas que não é covardia, não neste caso. Em alguns casos é permitido atirar pelas costas. É melhor não olhar nos olhos senão nasce a pena e aí já viu. Arrependimento mata. Então pode ser por trás. Quatro tiros: pá, pá, pá, pá. Não, cinco: pá. Mas disparei um só tiro que me acompanha, não vai dar tempo pra quatro, cinco tiros.

No catecismo, a Marlene dentuça ensinava catecismo, meio gorda, eu gostava dela, era dentro da igreja a aula, junto com os santos, as imagens, as imagens dos santos, e de um anjo, a Teca, o primeiro tesão que eu senti foi dentro da igreja. Santo Antonio, Nossa Senhora, São Benedito, São Sebastião, que era romano, São João, o Batista, me abaixo e me benzo diante de Jesus num crucifixo, grande, nunca vou me esquecer do olhar que a Teca, me deu. Mas no centro da igreja, o principal era uma pintura, mais pro vermelho, uma moça com cara de boa, olhar meio lesado, os santos têm olhar lesado, meio anuviado, dizem que é de êxtase, ela no meio de um monte de gente que parecia pedir conselho pra ela. Teca de Peteca. A pintura era uma mata, tinha um cachorro também. Bonito. Era tudo meio puxado pro vermelho apesar de ser uma mata onde eles estavam, e pediam conselho pra a moça de olhar de êxtase. Bonito. A aula acabava e eu ficava lá. A missa acabava e eu ficava lá. Era coroinha. Eu ficava lá depois da missa, eu, a moça de olhos de êxtase, São Sebastião, Antonio, Benedito, a Teca maldita ia embora, e eu ficava, porque eu queria ser padre, e já derramei vinho no altar durante a missa porque eu era coroinha e queria ser padre porque sabia de cor as missas todas e a parte do evangelho, único momento diferente da rotina, era só ler, não dá pra decorar as boas novas, o vinho eu derramei vermelho e a pintura mais pro vermelho, a moça de êxtase, a toalha branca, a Teca branca, o vermelho escorrendo no São Sebastião, as setas indicando tanta coisa, o vermelho do Jesus grande, o vermelho da Teca, o padre não brigou quando derramei o vermelho na toalha branca, nem pra me xingar, me corrigir, riu de mim, devia ser viado e queria me pegar, riu pra mim, e a Marlene gorda achando que ensinava catecismo com todos os santos olhando pra conferir se a gente estava aprendendo, e me olharam e eu disse: que que foi? Nunca viram? A moça vermelha na parede pintada com êxtase e vinho derramado no altar a toalha branca vermelha... Ah... Estou cansado demais. Quis parar pra descansar, mas não podia interromper. Anda, anda. Acho que eles não pediam conselho pra a moça da pintura, pediam perdão. Jonas aprendeu a olhar a face de Deus depois da travessia dentro do peixe, a Marlene disse.

Mama... Anda, anda, anda, um pé, outro passo, um pé após o outro, mas eu não conto os passos. Just killed a man, I put a gun against his head… Sou um homem que escolhi andar. Vou matar um homem que precisa morrer. Vem bala, não fica pra trás, corre. Ando e me canso de andar, mas não de ir. E num outro horizonte distorcido pela névoa do asfalto, eu vi o Sherab se arrastando pra encontrar

Buda. Rastejando muito chão todos os dias. Gritei de longe: Lama Sherab, você está trocando os pés pelas mãos. Mas ele passou do outro lado e a gente não se cruzou, exatamente. Ele ainda respondeu na língua dele do Tibet, mas eu entendi: você anda de pé, eu prefiro seguir rastejando, é mais rápido. Eu falei: não tenho pressa. Mas eu tenho pressa, menti pro Sherab. Ele seguiu o caminho dele, trocando cabeça por

coração, e eu olhei para um rio que já me acompanhava há algum tempo. Um rio das pedras. Pedra com água, água com pedra, um azeite a água, descia comigo o caminho que eu subia, e não parava. O rio não parava e ao invés de parar pra ver o rio e deixar as águas levarem o homem que precisava morrer, eu acompanhei o rio. Tivesse jogado na corrente... Será? Pensei tudo isso sem parar de andar, apenas pensei tudo isso. Anda, anda, anda, e depois de muito caminho com a companhia do rio de um lado e do projétil do outro, percebi que tinha mais água no meu rosto do que no leito do rio. Pensei: um leito agora seria uma maravilha. Já tinha caminhado hoje trinta mil passos. Também menti quando disse que não contava os passos. Pensei em entrar no rio, lavar o rosto, lavar os pés, mas não podia parar, interromper o trajeto. Então tropecei pela primeira vez depois de todos os passos que ficaram. Ralei joelho, cotovelo direito, palma da mão esquerda, quase o nariz, eram três e dezessete da tarde. Cai com o focinho no relógio. Não acredito em sinais. Mentira, acredito sim. Fui ao rio, descendo um barranco de três metros, cheio de carrapichos, que, aliás, inspiraram os americanos a inventarem o velcro, fui descendo, mas não caí, mas quase, andei calmamente da base do barranco até o rio, tirei tênis, meias, lembrei de uma música de infância, a camiseta, que se fodam as fechaduras sem grafite, a bolsa joguei um pouco pra trás, tirei o cinto marrom, a calça, olhei à esquerda não tinha ninguém, à direita nem perdi tempo, tirei a cueca e pus primeiro o pé direito na corrente das águas, fechei os olhos, não tenho frieira, pensei, então o pé esquerdo, o direito, o esquerdo, o direito, e fui me batizando lentamente sem respirar os próximos quarenta e três segundos naquele dia de sol, e submerso, mas de pé, as águas me levaram dezessete metros em seu curso até a reação dos pulmões em busca do ar, subi, suspirei como alguém que acabara de nascer, e meus olhos eram rios também. Num plano americano fora d´agua, encontrei uma pedra cheia de limbo côncava, me encaixei e fiquei. Shhhhh... A água passando......shhhh... A água passa sem dar um passo...shhhh... Passa...e leva o homem que precisa morrer... shhhhh... Foi a água! Pra gente tomar banho, Deus criou a água, menina. Até fiz xixi no rio. Um xixi cor de ouro. Tomei três banhos até a noite cobrir a tarde. Dormi ao barulho de um rio pela primeira vez na vida, mas meu debut não sensibilizava as muriçocas, que não me deixaram em paz, vocês não vêem, mas elas me picam o pescoço. E pensar que sete quilômetros rio abaixo a mulher bate roupa no meu xixi dourado. Levantei, me sequei, e andei. Não rápido, nem devagar. Num tempo que algumas poesias têm. Não tinha ritmo nem velocidade,

nos passos já vinham fusca original cereja, aranha, mãe, negro estrábico, Seu Pedro, escola, dor... Meio estranho, meio misturado, sem seqüência, sem ordem. Pensei: devo estar chegando. Não sei se o pensamento sobre estar chegando veio antes ou depois da aranha, cereja, mãe, Seu Pedro, escola, velório. Sempre tem café e bolachas em velório. Parei num. Disse: bala - o projétil - espera aqui fora. Esse velório tinha chá doce. Uma sala clara com uma grande vidraça no teto. Bonito. Os vidros

sujos. Uns elementos dançavam no ar cansado, dava pra ver por causa da poeira na luz. Quente. Me sentei um pouco do lado de uma senhora que nem chorava mais, tomei um gole de café pra descer o seco da cream cracker e olhei para o morto deitado num caixão simples, esses de serviço público. De frente uma menina mais moça chorava só um pouco. Era perto do enterro e as águas se gastaram durante a noite. Ninguém reparou muito em mim, estavam fumando lá fora, tinha até uns que riam meio longe, na maioria homens, o morto também, homem, barbeado, penteado, um leve sorriso, eu acho. Às vezes a gente vê coisas no morto que não estão lá. As mãos com dedos entrelaçados, magro, e uns cavaletes frágeis, sustentavam o caixão. Meu Deus! Tem um parafuso mal atarraxado! Estava meio solto e dava pra perceber agora que uma parte do caixão estava mais baixa, meio envergada. Descubro que ainda há humor nessa ausência de tempo, e penso: o morto cai antes de ser enterrado, pode quebrar uma perna, sei lá! Rio sozinho cuspindo um pouco de cream cracker, e tomei mais café e tive de disfarçar fingindo que era choro, pra não ficar chato. Mas por que ele chora, esse que só veio tomar café? Pensaram. Eles sabiam que eu estava de passagem, mas não falaram nada. Pensei em ir até lá atarraxar melhor o parafuso, mas não havia tempo. Por ter fechado os olhos um instante, um pequeno lapso, a sala ficou mais branca e nenhuma sombra tinha chance.

O asfalto quente exala uma névoa de fusca vermelho de negro estrábico peixe eu e meus pés velório de uma aranha cream cracker gigante e o tibetano rasteja uma vida cheia de teia no horizonte do catecismo da mulher paraplégica que atarraxou o parafuso do morto na escola passei no rio gelado de água e nasci suspirando pela primeira vez todas as coisas. Agora o fluxo era veloz e demais, como alguém que vê a urgência aumentar quando chega perto do banheiro.Acho que correu muita coisa, porque quando abri os olhos todos já tinham saído, até o morto, e o

café. Pensei: será que alguém atarraxou melhor o parafuso? E me deu vontade de fumar. No café do velório nem lembrei do homem que tinha de morrer. Senti de novo o cheiro da Elza Acássia, com dois esses, mas não fumei. Pensei que o negro estrábico devesse ter me batido, pensei em todos os velórios, que o patê de sardinha talvez fosse bom. Tudo junto sem divisão, tomando posse de tudo. Pensei em todas as despedidas e rituais de partida, e nesse instante suspenso, a vida veio jorrando, numa poesia avassaladora, tudo se repetindo de um outro ponto da vida. Na despedida o encontro principal. A vida de uma só vez.

Dizem que vemos nossa vida completa em poucos segundos, enquanto estamos caindo de um prédio, por exemplo.

Não de terra, nem de ar, nem de água. De fogo. Vocês não viram, mas havia uma arma de fogo. Um disparo - pá.Seguro a bala entre o indicador e o polegar, e a vida, não se aprende durante a vida.

E logo adiante num espaço inexistente, o homem que precisa morrer está lá de costas, e na velocidade da queda me aproximo, dois mil novecentos e noventa e sete quilômetros, me aproximo mais, ensaio os cinco tiros descritos no percurso, mas aqui não há tempo, uma só bala me acompanha, bzzz.... O sistema nervoso simpático... Me aproximo, dois mil novecentos e noventa e nove quilômetros, próximo do norte, o objetivo se aproxima, não olho pra trás pra não me arrepender, dois mil novecentos e noventa e nove quilômetros e meio que não existem neste espaço, um só tiro – pá - pelas costas. Eu de costas. Me vejo a uma certa distância que nem existe aqui, e na velocidade da queda, as alcovas começam a se esfacelar, os avessos se esclarecem cuspindo segredos vermelhos tão bem guardados, e tudo o que o olho nu não enxergava o trajeto escancara. A queda é irreversível. Veloz. Passo um tanto a frente de meu corpo por causa da velocidade da queda, me viro, olho nos meus olhos, afasto o indicador do polegar e a bala segue caminho. Quase três mil quilômetros. Agora o asfalto quente exala uma névoa de Elza Acássia, de fusca vermelho e negro de pedir perdão estrábico, peixe é bom, uma aranha gigante rasteja uma vida tocaram a campainha nas palmas a teia no horizonte do catecismo da mulher paraplégica do Seu Pedro que atarraxou o parafuso do morto, as pernas molhadas... Um infinito de coisas desfilou diante de mim a meu respeito, mas impossível relatar, não cabem no tempo e no formato deste conto.A bala...bzzz... Cumpre o trajeto. O sistema nervoso simpático, antipático se desfaz. Cumpre o trajeto...

bzzz... Um neurônio é rompido... bzzzzzzz...E um outro... bzzz... Interrompido. Três mil quilômetros em um segundo e meio eterno, da nuca ao centro da cabeça... bzzz... A vida de uma só vez. Cheguei.

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