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FACULDADE SABERES PÓS-GRADUAÇÃO/ESPECIALIZAÇÃO LATO SENSU LETICIA GOMES LEAL SILVA O PSICOPEDAGOGO, O PACIENTE E PRODUÇÃO DE SENTIDO: UM ESTUDO DE CASO 1

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FACULDADE SABERES

PÓS-GRADUAÇÃO/ESPECIALIZAÇÃO LATO SENSU

LETICIA GOMES LEAL SILVA

O PSICOPEDAGOGO, O PACIENTE E PRODUÇÃO DE SENTIDO:

UM ESTUDO DE CASO

VITÓRIA

2015

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LETICIA GOMES LEAL SILVA

O PSICOPEDAGOGO, O PACIENTE E PRODUÇÃO DE SENTIDO:

UM ESTUDO DE CASO

Monografia apresentada ao Programa de Pós-Graduação — Especialização lato sensu em Psicopedagogia da Faculdade Saberes, como requisito obrigatório para a obtenção do certificado.

Orientadora: Professora Mestre Sonia Pinto de Oliveira

VITÓRIA

2015

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LETICIA GOMES LEAL SILVA

O PSICOPEDAGOGO, O PACIENTE E PRODUÇÃO DE SENTIDO:

UM ESTUDO DE CASO

Monografia apresentada ao Programa de Pós-Graduação — Especialização lato sensu em Psicopedagogia da Faculdade Saberes, como requisito obrigatório para a obtenção do certificado.

Aprovada em __ de __________ de 2015.

Professora Mestre Sonia Pinto de Oliveira

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SUMÁRIO

1 – INTRODUÇÃO ----------------------------------------------------------------------------- 5

2 – O CASO CLÍNICO ------------------------------------------------------------------------11

3 – ENTENDENDO O TDAH --------------------------------------------------------------- 20

4 – CHEGANDO A DEFICIÊNCIA DE VITAMINA B12 ------------------------------ 26

5 – REPENSANDO O TEMPO VIVIDO ------------------------------------------------- 30

6 – O OLHAR DO PSICOPEDAGOGO ------------------------------------------------- 36

7 – CONCLUSÃO ----------------------------------------------------------------------------- 42

8 – REFERÊNCIAS --------------------------------------------------------------------------- 45

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1- INTRODUÇÃO

“Hoje me sinto mais forte, mais feliz, quem sabe

Só levo a certeza de que muito pouco eu sei,

Eu nada sei...” (Renato Teixeira e Almir Sater)1

A percepção que temos de cada momento de vida, de cada dor, alegria

ou tristeza é apenas o sentido que damos para aquilo, apenas um dos milhares

de sentidos que cada coisa pode ter.

O verso de Almir Sater e Renato Teixeira, citado acima, me traduz um

percurso que fez com que quanto mais consciente de minha infinita pequenez,

mais forte me sentisse frente à vida. E assim começo a escrever esse

memorial, fragmentos de uma história de vida que começa a ser reinventada a

partir desse aprendizado. Reinventada porque está sendo atualizada no

presente, “a cada dia nós somos a mais nova atualização de nós mesmos”

(Mario Sérgio Cortella) 2.

O significado do meu nome, Leticia, em latim, é alegria; e assim foi a

primeira década da minha vida: pura alegria. Aos 10 anos me deparei com um

diagnóstico de câncer no meu pai, e, após passar nove meses longe dos meus

pais que foram em busca de tratamento nos grandes hospitais no mundo todo,

1 Trecho da música TOCANDO EM FRENTE de Almir Sater e Renato Teixeira2 CORTELLA, Mario Sergio – DVD Novos Paradigmas da educação.

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meu pai faleceu. Passei os anos da minha adolescência sem o equilíbrio que

sempre busquei, e continuo buscando até hoje.

Nos nove meses que meu pai ficou doente, escreveu alguns de seus

conhecimentos, pensamentos; talvez por medo de não ter tempo de passar

para suas filhas tudo que ele gostaria. E quando digo que minha vida se traduz

nos versos citados no início, volto nesses escritos de meu pai:

“... O homem, ao tomar conhecimento desta premissa de não vir e ir

daqui por vontade própria, ele toma conhecimento de sua grande fraqueza.

Aliado a este sentimento de fraqueza surge... (inacabado)” 3

E ele morreu sem significar essa impotência que sentiu da vida, da

doença, e eu passei anos atrás do significado dele. Ainda na faculdade iniciei a

minha primeira pós-graduação em terapia corporal e fiz meus estágios nas

áreas clínicas e hospitalar, trabalhando com pacientes com dor orofacial

crônica no Hospital das Clínicas, onde aprendi a importância do trabalho

interdisciplinar.

Ainda na área clínica hospitalar, fui trabalhar com cirurgia de obesidade

e transtornos alimentares. Durante os cinco anos que passei preparando os

pacientes para mudar de vida e acompanhando, pelo menos, os seis primeiros

meses dessa nova vida, fui aos poucos percebendo que muitas complicações,

tanto físicas quanto emocionais, poderiam ser evitadas com um trabalho

preventivo. Nessa época fiz uma pós-graduação em Obesidade e

Emagrecimento pela Universidade Veiga de Almeida/RJ e estudei o corpo

humano sob quatro aspectos: médico, psicológico, nutricional e da atividade

3 Trecho dos escritos de Helvécio Leal Silva, 1987.

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física. Passei, então, a ter um entendimento mais global do ser humano e sua

saúde, e a alimentação e estilo de vida passou a ser, pra mim, sempre algo a

observar no consultório. Passei a entender esse corpo como unidade global,

sem dicotomia entre mente e corpo.

Se partirmos da noção de unidade corpórea, abrangendo aspectos

psicológicos, biológicos e sociais, não podemos descartar nenhum movimento

desse corpo e precisamos nos cercar de cada detalhe que atravessa esses

movimentos cuidadosamente junto com o paciente.

Embora algumas correntes teóricas ainda guardem uma postura dualista

entre mente/corpo, como até mesmo a teoria do inconsciente de Freud, onde

fatores psicológicos manifestam-se no corpo físico, com o avanço dos estudos

em neurociência essa dicotomia vem sendo cada vez menos aceita e o corpo

como unidade global, abrangendo todos os aspectos.

“O sistema nervoso autônomo não é tão autônomo assim e se encontra

regulado pelas estruturas límbicas junto com o controle emocional. O sistema

imune influencia e é influenciado pelo cérebro.” (DE CASTRO, 2006).

Com esse novo conceito de ser saudável, eu comecei a me dedicar a

um trabalho muito mais clínico do que hospitalar. Além disso, tinha uma

motivação ainda maior pra sair do hospital que era passar mais tempo com

meu filho que tinha 05 anos na época.

Mais dois filhos vieram em uma gravidez complicada de gêmeos e eu

precisei me afastar até mesmo da clinica por um tempo. Nesse período eu

mergulhei inteiramente em cuidar da família e por mais difícil que fosse estar

longe do meu trabalho, construí um vínculo ainda maior com meus três filhos,

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cresci muito como mãe, como ser humano. E mais uma vez volto aos escritos

do meu pai:

“... Exija da vida tudo que ela puder lhe dar. Nunca estacione, porém.

Aprenda, aprenda tudo o que puderes. Sofra, pois sofrendo aprende-se mais

depressa.” 3

E não estacionei. Na vida nem por um minuto, sei; e profissionalmente,

quando os gêmeos estavam com três anos de idade eu aceitei um convite para

voltar a atender em uma clínica de Psicologia, Pedagogia e Fonoaudiologia. E

é aqui, depois de um longo percurso reinventado para situar o leitor no meu

momento atual, que tem início a minha nova paixão pessoal profissional.

A clínica funciona com atendimento psicológico a adultos, crianças e

jovens de até 16 anos. Os pacientes que ali chegam vêm geralmente

encaminhados de suas escolas por algum problema de aprendizagem ou

comportamento. Eles então passam por uma avaliação neuro-cognitiva e são

encaminhados para grupos de terapia e de trabalhos psicopedagógicos.

Inicialmente eu trabalhava com clínica geral de adultos, como fiz durante tanto

tempo em meu consultório particular, mas como uma boa apaixonada por

crianças que me tornei, logo estava mergulhada naquele novo universo

profissional: comecei a atender essas crianças em grupos e os jovens

individualmente.

Preciso agora esclarecer que a minha paixão passa longe desse modelo

de atendimento, onde os pacientes são submetidos a uma avaliação e

classificados dentro de certo padrão de funcionamento, como se pudesse

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definir que há uma maneira correta de estar no mundo e ainda julgar aqueles

que existem de outras formas, seja em que critério estamos falando.

Eu fui, na verdade, me apaixonando pelas maneiras diferentes de ser,

de estar, de perceber o mundo de cada uma daquelas crianças e me

incomodando com os padrões exigidos pelas escolas, pelos médicos, pelas

relações familiares.

Comecei então a perceber que aquelas crianças que chegavam até mim

diagnosticadas com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH),

Problemas de Aprendizagem, Transtorno Opositor Desafiador (TOD), entre

outros, estão vivendo com seus professores, suas famílias uma crise de

valores; ou não seriam os nossos valores que estão em crise?

De um lado, pais que precisam de uma resposta, um nome para aquilo

que muitas vezes não sabem lidar; de outro, médicos que precisam dar

respostas rápidas, algumas vezes pressionados pela insatisfação e aceleração

desses pais. E no meio disso tudo temos crianças diagnosticadas cada vez

mais apressadamente, sem cautela.

O que pretendo com este trabalho é propor um olhar crítico que não

busque respostas universais, totalizadoras. Um olhar que seja construído e

fortalecido com o tempo; Não só o tempo vivido do psicopedagogo enquanto

ser humano aprendiz em si, mas o tempo vivido com o paciente, a fim de

acompanhar os movimentos do mesmo para ser capaz de construir um

pensamento problematizante. Um olhar que permita observar o que é possível

tornar-se, e não o que se é.

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Isso se justifica através de um estudo de caso com uma jovem que foi

diagnosticada com TDAH aos 13 anos e tomou metilfenidato (comercialmente

conhecido como Ritalina) até pouco tempo depois de iniciar a terapia com 16

anos, sem muitos resultados positivos. A proposta não é encontrar um modelo

único de atendimento, até porque acredito que cada atendimento é único e se

constrói a cada encontro. A proposta é mostrar novas possibilidades e olhares

sobre esse diagnóstico que chega “pronto”, para entender a importância de

muito pouco saber ou nada saber sobre o paciente e a importância de tudo

pesquisar, investigar, questionar.

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2 – O caso clínico

A.K. iniciou sua terapia no dia 20/03/2012 e chegou com diagnóstico de

TDAH, muito deprimida e emagrecendo muito. Quase não falava, e quando o

fazia, falava baixo e com frases muito curtas. Começou a fazer sessões de

fonoaudioterapia para melhorar a sua fala. A primeira “Impressão” era estar

lidando realmente com um caso de depressão. Aos poucos foi me contando um

pouco mais de sua história. Uma mãe muito amiga, que faz tudo por ela e um

pai que não aceita nenhuma desculpa pra justificar fracassos. Rígido, alcoolista

e muito ausente.

Ela tinha um namorado há um ano e nove meses. A mãe reclama que o

namoro é estranho, sem vida, parece que ela não gosta dele. Um irmão mais

novo que teve complicações no parto (apóxia) e ficou com sequelas no lobo

frontal, prejudicando sua memória, atenção e aprendizagem.

A.K. tem 17 anos e chegou ao consultório para psicoterapia individual

com a queixa de má adaptação na escola (cursando o 3º ano do curso técnico

de administração), muita timidez, poucos amigos. Foi diagnosticada com TDAH

aos 13 anos e faz uso de cloridrato de metilfenidato 1 a 2 vezes ao dia

(psicoestimulante comumente usado para TDAH) e um antidepressivo

(Citalopram) desde então.

De acordo com sua mãe, A.K. só passa de ano na escola porque

começou a usar o medicamento. Mas o relacionamento dela com o pai é muito

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difícil porque ele não entende a ‘doença’ e cobra muito dela. Seu pai é muito

rígido, e ela, que tem o pensamento de que “não adianta discutir com ele”, foi

se calando ao longo dos anos. Fomos conversando sobre a importância de se

expressar. Mesmo que não produzisse nenhuma mudança inicialmente no pai,

era importante ela aprender a se posicionar, expressar seus pensamentos.

Como ela poderia acreditar mais nela se não permitia nem dizer o que

pensava?

Coluna curvada pra frente, sempre uma bolsa na frente dos seios, como

se tentasse se esconder do mundo o tempo todo. Uma menina bonita, magra,

alta, seios fartos, olhar triste, andar lento. Muita insatisfação com o corpo,

achava-se magra demais, “perna fina, sem bunda, sem quadril, toda feia”.

Trabalhei com o desenho do corpo em tamanho real. Com a paciente deitada

no chão em cima de um papel grande, eu risquei o contorno de seu corpo para

que ela pudesse ter a exata noção de seu tamanho e suas formas. Depois

fomos para o espelho para trabalhar as insatisfações reais e as que ela apenas

imaginava e pôde desfazer com o desenho. Ela foi se dando conta que o

quadril não era tão pequeno assim, já que começou a perceber que a cintura

era mais fina e o corpo era proporcional. E foi afirmando para si mesma, no

espelho, que não era tão ruim e foi conseguindo até mesmo se fazer alguns

elogios, como “bonitinha”, “nem tão sem graça”.

Comecei a perceber certa “acomodação” em A.K. e comecei a trabalhar

com ela possíveis paixões, algo que pudesse acelerar seu coração, que a

tirasse da zona de conforto. Não existia. A.K. não tinha paixão por nada em sua

vida. O que era de se esperar com um diagnóstico de depressão; mas existia

algo mais. Ela já tomava metilfenidato desde os 13 anos sem muito sucesso e

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agora, já medicada com Citalopram, seria mais um remédio que não ia fazer o

efeito esperado? Os primeiros efeitos terapêuticos do Citalopram são

observados após 2 a 4 semanas de uso e A.K. já usava o medicamento há

mais de um ano. Mesmo se aceitando mais, menos inibida com o corpo, o

andar continuava lento, as costas curvadas.

Neste período do tratamento, A. K. já arriscava alguns posicionamentos

nas conversas com o pai. Não com o objetivo de produzir mudanças nele ou

expectativas de que ele concordasse com ela, o exercício era apenas aprender

a se posicionar. Poder mostrar que poderiam existir duas opiniões diferentes

sobre um mesmo assunto e um respeitar a opinião do outro. Ate para ela

aceitar que o pai não precisava pensar como ela também. Tentamos encontrar

um equilíbrio entre se curvar frente à opinião do outro e ficar com raiva porque

o outro não pensa como ela.

Ao mesmo tempo, alguns elogios começavam a aparecer em frente ao

espelho. A.K. alisou o cabelo, fez mechas e começou a elogiar os cabelos,

depois as unhas. Já era comum vê-la sorrindo ao se olhar. Mas ainda assim, a

postura, a expressão corporal, o olhar triste, nada disso alterava. Teria a rigidez

do pai destruído tanto assim a sua autoestima? Nem poderia afirmar se apenas

a relação com o pai contribuiu para isso.

Comecei um olhar mais atento para a sua rotina e questionei a sua

alimentação. A.K. estudava no período da manhã e sua rotina alimentar era:

5h – acorda e geralmente não toma café da manhã.

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08h50minh – intervalo da escola (come raramente no intervalo, umas 2X

por semana no máximo.). Come biscoito salgado (tipo chips), ou salgado na

cantina.

12h30minh – Almoço (arroz, bife e tomate) Sempre em pequenas

quantidades.

16h – quando não dorme à tarde, come chips.

18h – pão com presunto e queijo ou requeijão, ou biscoito (não toma

leite).

Costuma dormir por volta de 22h e não come mais nada.

Como seria possível esperar que A.K. tivesse energia ou disposição para

fazer as coisas com uma alimentação tão pobre em nutrientes e em tão pouca

quantidade? Como ela faria exames de rotina com a sua neurologista, como

hemograma, glicose, etc. Pedi que incluísse vitamina B12 e que ela me

trouxesse os exames. O resultado da vitamina B12, a saber:

VITAMINA B12 180.00 pg/ml

material:Sangue

metodo..: QUIMIOLUMINESCENCIA (CIA)

Valor de referência: 240 a 900 pg/ml

Data coleta: 16/06/2012                      Data liberação 18/06/2012 às 13:42

Com o resultado em mãos começaram novos questionamentos, novas

observações. A.K. tinha níveis séricos muito baixos de vitamina B12, o que

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explicaria a sua apatia, sua falta de memória, sua fraqueza, e até mesmo os

sintomas depressivos e a falta de apetite.

A mãe de A.K. fez cirurgia bariátrica há oito anos e tem muita dificuldade

para ingerir qualquer tipo de carne desde então. Sendo assim, a alimentação

da família passou a ser muito pobre em carne, pois A.K. quase não se alimenta

nas refeições principais, seu irmão mais novo não gosta de carne e o pai não

almoça em casa por causa do trabalho. A saber, a carne vermelha é a principal

fonte de vitamina B12.

Como a vitamina B12 é uma vitamina hidrossolúvel, ou seja, o seu

excesso é eliminado facilmente pela urina, a suplementação é muito segura e

não precisa da autorização médica para realizar.

Sugeri que ela começasse a usar um suplemento vitamínico que

contivesse B12 e, no caso dela foi o Centrum®, que é um suplemento simples,

encontrado em farmácias; mesmo com a suplementação conversamos sobre a

importância de incluir fontes da vitamina diariamente em sua alimentação.

Começamos um trabalho psicoeducativo. Facilitar a promoção de interesse

pelos valores nutricionais e as mudanças que a alimentação poderia realizar

em seu corpo e em sua mente não foi das tarefas mais fáceis. Como a relação

com a mãe era muito forte e quem sempre cuidou de sua alimentação foi sua

mãe, modificar conceitos alimentares não foi tão simples para A.K. É preciso

ter cautela, respeitar os limites do paciente e não simplesmente jogar em cima

dele um monte de informação científica. Começamos pela alimentação da mãe,

pela saúde da mesma e o fato de ter precisado se submeter a uma cirurgia por

talvez não ter dado conta de controlar a sua própria alimentação. Questionei

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A.K. sobre a vontade de seguir os passos da mãe na alimentação ou tentar

mudar e ser melhor, à medida que ela mesma foi se dando conta dos diversos

erros que sua mãe cometeu com a própria saúde. Foi assim que ela começou a

se interessar pela culinária. Desejo de, ela mesma ser capaz de se cuidar.

O Principal agora era conhecer, junto com a paciente, todas as questões

que a desanimavam frente à vida e que mudanças ela deseja produzir. Algum

tipo de força precisava ser produzida, inventada, para preservar a ânima de

A.K. “Ânima”, em latim, significa alma, e desanimar é perder a ânima, perder a

alma.

Sem questionar inicialmente os diagnósticos, comecei a questionar o que

tinha concretamente em minhas mãos: os exames de sangue, o desânimo da

paciente e a ausência de resultados dos medicamentos. Aos poucos ela foi

diminuindo o uso do Citalopram até parar de usar completamente em pouco

mais de um mês de terapia.

Com pouco mais de um mês do uso contínuo do poli vitamínico, comecei

a perceber pequenas mudanças no estado de ânimo de A.K. Começou a trazer

planos para o seu futuro, como estudar psicologia e trabalhar com crianças

especiais. A.K. estava cursando o terceiro ano de um curso técnico em

administração e se formou no final do ano de 2012. Logo que ela chegou à

terapia não falava sobre seus sonhos, seus planos, era como se nada disso

existisse. Em setembro, pouco mais de dois meses do uso de vitaminas, ela já

havia notado melhora no rendimento escolar e passou a notar uma dificuldade

específica em matemática, e também trouxe uma insatisfação pessoal com o

professor da referida disciplina. Junto com a melhora da sua disposição, ela

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começou a aprender a se auto afirmar, valorizar o que tinha de melhor, buscar

soluções para os seus problemas ao invés de se conformar com tudo, aspectos

que fomos trabalhando no processo terapêutico, mas que acredito que não

teria tanto sucesso com aquela apatia inicial da paciente. Conversamos então

sobre diminuir o uso do metilfenidato para apenas um comprimido pela manhã

e antes mesmo de sua formatura ela já havia, sozinha, se livrado totalmente do

uso do medicamento.

Ao contrário do que a sua mãe afirmava no início do tratamento, que A.K.

só passava de ano “graças à Ritalina”, ela só ficou de recuperação em

matemática e depois conseguiu se formar junto com a sua turma. Isso

contribuiu para aumentar ainda mais a sua autoestima e autoconfiança.

Seu namoro tinha ganhado outro padrão e a menina que antes se

escondia de tudo, agora com 18 anos feitos no fim do ano, começou a trazer

para a terapia desejos e dúvidas a respeito do sexo. A relação com o seu pai

ainda era muito difícil e o medo de fazer algo contra a vontade do pai era muito

grande. Embora ela já conseguisse argumentar suas vontades com o pai

quando ele estava sóbrio, o medo que ela tinha dele sob efeito da bebida não

permitia A.K. se libertar totalmente e decidiu que seria melhor pra ela esperar

pelo casamento; sim, A.K. já falava em casamento.

Depois de sua formatura passou um tempo em casa, aprendendo a se

organizar nas tarefas domésticas a aprendendo a cozinhar. O seu interesse

pela culinária foi crescendo diretamente proporcional à melhora na sua

alimentação. Sua mãe, sempre muito presente, foi ensinando algumas receitas

mais fáceis e A.K. já era capaz de ficar sozinha em casa com o seu irmão mais

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novo de 11 anos e até preparar comida para os dois. O que foi também dando

uma folga na rotina da mãe.

Seis meses se passaram com melhoras notáveis. A.K resolveu iniciar

uma atividade física para ganhar mais disposição e massa muscular. O corpo,

que antes vivia escondido, agora já era assunto na terapia. E o desejo de

modifica-lo fez com que entrasse nas aulas de karatê. Conversamos muito

sobre a importância de uma atividade física aliada a alimentação para produzir

mudanças no corpo e melhorar ainda mais a sua saúde. A luta trazia ainda

mais disciplina para a vida de A.K.

O próximo passo foi iniciar envio de currículos para conseguir um

emprego. Logo conseguiu um, perto da clínica. Saía do trabalho e continuava

indo à terapia uma vez por semana. Muitas frustrações ocorreram nessa fase.

O seu trabalho era muito mal remunerado e o ambiente muito hostil. A vontade

de estudar para o ENEM e fazer uma faculdade voltaram, mas o cansaço era

um obstáculo. Foi difícil conversar com A.K. sobre não voltar a tomar Ritalina,

pois com o remédio ela certamente se concentraria mais fácil, e os seus

resultados poderiam ser melhores. Tivemos que recordar como o remédio não

a ajudou muito em todo o tempo que tomou e fui pesquisar sobre os efeitos

colaterais que o medicamento pode trazer.

PASTURA, Giuseppe e MATOS, Paulo, fizeram uma revisão de literatura

em 2004 e publicaram as conclusões que em curto prazo, os efeitos colaterais

mais significantes do Metilfenidato são insônia, cefaleia e falta de apetite. Já

em longo prazo, pode provocar alterações cardiovasculares e redução do

crescimento. Não poderia deixar que A.K. perdesse novamente o apetite,

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voltasse a se alimentar mal como antes, e voltasse para o círculo vicioso da

dependência do remédio e dos baixos valores nutricionais. Tudo foi

questionado com ela, estudamos juntas esses efeitos colaterais e ela, que

agora já acreditava mais no seu poder de decisão, decidiu não voltar a tomar o

remédio.

Além disso, comecei a questionar A.K. sobre a sua verdadeira motivação

em voltar a estudar. Não há como negar que a maior parte do seu tempo de

estudante foi marcada por fracassos, rótulos, dúvidas e angústias. Pensar em

voltar para esse papel não era nada agradável para ela. A cognição e a

afetividade estão intimamente ligadas, e as dúvidas sobre querer de verdade

fazer faculdade eram muitas. Chegamos a conversar um pouco sobre a não

cristalização do papel de estudante que viveu a maior parte da sua vida. Afinal,

os últimos seis meses foram um bom exemplo de mudança.

Começou a redistribuir currículos e passou em um processo seletivo para

trainee de técnico administrativo de um grande hospital do estado. Pela carga

horária, A.K. não conseguiu mais continuar com a terapia, mas saiu com a

certeza de que estava pronta para resolver os problemas que continuarão a

surgir em sua vida, como na vida de todo mundo.

Com uma boa autoestima e uma boa dose de autoconfiança, A.K. seguiu

seu caminho livre da dependência dos medicamentos e também dos rótulos

que antes carregava. E foi assim que A.K. aprendeu a se reinventar a cada

instante, produzindo a si mesma.

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3 – Entendendo o TDAH

Há uma discussão no mundo todo acerca do abuso dos diagnósticos de

TDAH desde o início da década de 80. Mas do que exatamente estamos

falando? O que é TDAH ou TRANSTORNO DO DÉFICIT DE ATENÇÃO E

HIPERATIVIDADE?

O critério diagnóstico utilizado pelos profissionais de saúde para definir se

um paciente possui o TDAH é normalmente descrito no Manual Diagnóstico e

Estatístico de Transtornos Mentais, que desde maio de 2013 está na sua 5ª

edição (DSM – V).

No DSM – IV, os critérios diagnósticos eram:

A- “Qualquer de (1) ou (2) ou ambos1. Seis (ou mais) dos seguintes sintomas de desatenção persistiram por

pelo menos seis meses, em um grau mal adaptativo e inconsistente com o nível de desenvolvimento:

a) Frequentemente deixa de prestar atenção a detalhes, ou comete erros por descuido em atividades escolares, de trabalho e outras.

b) Frequentemente tem dificuldade de sustentar a atenção em tarefas ou atividades lúdicas.

c) Frequentemente parece não escutar quando alguém lhe dirige a palavra.

d) Frequentemente não acompanha instruções, não completa os deveres escolares, domésticos ou profissionais (não devido a comportamentos de oposição ou incapacidade de compreender instruções).

e) Frequentemente tem dificuldades de organizar tarefas ou atividades.f) Frequentemente evita, não gosta, ou reluta em envolver-se em tarefas

que requerem esforço mental por longo tempo.g) Frequentemente perde coisas necessárias para as tarefas ou

atividades.h) Frequentemente se distrai com estímulos alheios à tarefa.i) Frequentemente se esquece das atividades diárias.

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2 – Seis (ou mais) dos seguintes sintomas de hiperatividade/impulsividade persistiram por pelo menos seis meses, em um grau mal adaptativo e inconsistente com o nível de desenvolvimento:

HIPERATIVIDADE:a) Frequentemente agita as mãos, pernas, ou remexe-se na cadeira.b) Frequentemente se levanta da carteira, ou de situações que deveria

ficar sentado.c) Frequentemente corre ou sobe em locais ou situações que não são

apropriados (em adolescentes ou adultos, pode estar limitado a sensações subjetivas de inquietação).

d) Frequentemente apresenta dificuldade em brincar ou se envolver silenciosamente em atividades de lazer

e) Frequentemente encontra-se ou sente-se “a mil” ou como se estivesse “a todo vapor”

f) Frequentemente fala em excessoIMPULSIVIDADE:

g) Frequentemente responde às questões entes que tenham sido completadas

h) Frequentemente tem dificuldade de esperar a sua vezi) Frequentemente interrompe ou se intromete em assuntos alheios

B – Alguns sintomas de hiperatividade/impulsividade ou de desatenção que causaram prejuízo estavam presentes antes dos sete anos de idade.

C – Algum prejuízo causado pelos sintomas está presente em dois ou mais contexto

D – Desajustes claros, evidentes e significativos, nas funções sociais, acadêmicas ou ocupacionais.

E – Sintomas não ocorrem exclusivamente, durante o curso de um transtorno invasivo do desenvolvimento, esquizofrenia ou outro transtorno psicótico e não é melhor aplicado por outro transtorno mental (p.ex., transtorno do humor, transtorno de ansiedade, transtorno dissociativo, ou um transtorno de personalidade).

Classifica-se com base no tipo:

Transtorno de Déficit de atenção/hiperatividade, tipo combinado: se tanto os critérios A1 quanto A2 são satisfeitos durante os últimos seis meses.

Transtorno de Déficit de atenção/hiperatividade, tipo predominantemente desatento: se o critério A1 é satisfeito, mas o critério A2 não é satisfeito nos últimos seis meses.

Transtorno de Déficit de atenção/hiperatividade tipo predominantemente hiperativo/impulsivo: se o critério A2 é satisfeito, mas o critério A1 não é satisfeito nos últimos seis meses.”

Poucas foram as mudanças para o DSM – V quanto aos critérios do

TDAH. Para adultos agora são necessários apenas cinco sintomas de cada

categoria entre desatenção, hiperatividade/impulsividade. No critério B, a idade

de sete anos passou para 12, com o propósito de facilitar o diagnóstico em

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pacientes adultos, que muitas vezes tinham dificuldade de lembrar-se de

períodos anteriores a sete anos de idade. E a última novidade é poder

classificar o TDAH em leve, moderado e grave, de acordo com o

comprometimento dos sintomas na vida do paciente.

O que observamos, porém, em ambas as versões do DSM, é que muitos

tópicos são subjetivos e podem ser produzidos por muitos fatores. Quando um

profissional de saúde diagnostica um TDAH em uma criança, assumindo que

houve prejuízos causados pelos sintomas e que há desajustes claros nas

funções sociais ou acadêmicos, ele normalmente parte do conceito de prejuízo

que ele ou os pais da criança possuem. O ambiente em que essa criança vive,

suas relações parentais e sociais precisam ser olhadas, assim como os seus

cuidados básicos, como higiene, alimentação.

CALIMAN (2008) escreveu um artigo questionando sobre o abuso dos

diagnósticos em TDAH, principalmente em crianças e adolescentes no mundo

todo e retrata bem a dificuldade em diagnosticar corretamente sem considerar

questões importantes da vida do individuo que se apresenta:

“A prática diagnóstica e terapêutica do TDAH não é simples, tampouco óbvia. Defender a existência biológica do transtorno e privilegiar a terapêutica medicamentosa não exime o médico, o psicólogo, o profissional de saúde ou da educação de considerar todos os aspectos, individuais, econômicos, morais e sociais envolvidos em sua clínica.”

No mesmo artigo, CALIMAN traz números alarmantes de como as vendas

da Ritalina vem aumentando assustadoramente, chegando a triplicar entre

2001 e 2006. Em 2014 a revista VEJA publicou um estudo feito pela psicóloga

Denise Barros que mostra um crescimento de 775% nas vendas de Ritalina

entre 2003 e 2012. Porém, o que CALIMAN questiona é até que ponto o que

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Page 23: Tcc leticia gomes leal silva

temos não é a busca por uma competência da atenção e não uma adequação

da mesma.

Depois do ano 2000, uma explosão de notícias sobre os efeitos do

Metilfenidato (princípio ativo da Ritalina) para o aumento da atenção e melhora

nos resultados em estudos saiu na mídia e o medicamento chegou a ficar

conhecido por nomes bem atraentes como “a pílula da inteligência” e “a pílula

da boa nota”. Em 2009, a revista SUPERINTERESSANTE teve como capa a

“pílula da inteligência”, falando sobre os efeitos para turbinar o cérebro e

comentando em linhas menores sobre os riscos de dependência e efeitos

colaterais.

Entre os pacientes com TDAH e os indivíduos que buscam a otimização

da atenção existem vários fatores como a indústria farmacêutica, visando o

lucro, o mercado empresarial, visando aumento de produtividade e políticas de

segurança, visando controle das personalidades impulsivas, entre outros. É

responsabilidade do profissional de saúde ter cautela para avaliar se existe

algum ganho direto ou indireto, seja para o paciente, como a busca por melhor

performance cerebral ou condições especiais de ensino na escola; ou para

todos os outros setores envolvidos, citados acima. Com o abuso dos

diagnósticos apressados e algumas vezes infundados, os profissionais podem

acabar não identificando as expectativas individuais, e até sociais, que

sustentam a suspeita do diagnóstico.

Há ainda outra grande questão que permeia a polêmica do grande

crescimento dos diagnósticos de TDAH nos últimos anos. O que muda na vida

dessas crianças?

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FREITAS (2011), em sua tese de doutorado, faz uma análise das crianças

diagnosticadas com TDAH nas escolas da rede municipal de Porto Alegre e

nos fala um pouco sobre esses corpos que não param em sala de aula e que a

escola os abriga a aquietar. A autora nos leva a um passeio por

questionamentos acerca do que é a atenção, a aprendizagem e o enorme

“tear” que se forma nesses processos.

“Não passamos a ser aluno ou professor porque nosso nome consta

numa lista de chamada. Aprendemos quando escutamos e podemos escutar.

Aprendemos de quem elegemos, de quem escolhemos para tal” (FREITAS,

2011).

Então podemos entender que esse processo de aprendizagem é como

uma grama, um rizoma4, que não tem centro nem hierarquia e se prolifera. A

Atenção, a aprendizagem, assim como a híper ou hipo atividade não são

origem e nem consequência uma das outras, elas existem entrelaçadas, como

uma rede ou teia.

“Poderia imaginar no ‘tear’ mais fios. Agora eles já são vários: atenção +

invenção + aprender + atenção...” (idem).

Quando uma criança recebe um laudo de TDAH, ela vai, geralmente, ser

medicada, e essa cultura da medicalização que Freitas encontra presente nas

escolas prioriza sinais e sintomas, esquecendo o sujeito.

O medicamento mais usado para o tratamento do TDAH é o metilfenidato,

que no Brasil é fabricado de três formas diferentes, sendo duas de ação mais

4 Rizoma, na botânica é um tipo específico de raiz que não tem começo e nem fim, como a grama, por exemplo. Deleuze e Guatarri se apropriaram do termo para representar um sistema conceitual aberto, que não tem centro, nem raiz, e se prolifera.

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prolongada (Ritalina® LA, Concerta®) e uma de ação imediata (Ritalina®), que

era o medicamento usado pela paciente no caso clínico em questão. É um

psicoestimulante, com início de ação em 30 minutos e pico entre uma a duas

horas. “Seu mecanismo de ação é o estímulo de receptores alfa e beta-

adrenérgicos diretamente, ou a liberação de dopamina e noradrenalina dos

terminais sinápticos indiretamente” (DE MORAES, 2009).

Nessa revisão bibliográfica, os autores falam sobre a importância do

tratamento medicamentoso e como ele é mais eficaz do que outros tratamentos

como psicoterapia comportamental com as crianças e orientação a pais e

professores; porém, não é o que estamos questionando neste trabalho. O que

estamos abordando aqui é a importância de ter mais cautela com os

diagnósticos, em primeiro lugar, e também sobre acompanhar os movimentos

no cotidiano dessas crianças já diagnosticadas.

Essa criança, que é rotulada como desatenta, está com a atenção voltada

para onde? Quem escuta essa criança? E aqui podemos voltar no conceito já

discutido aqui de que essa criança vai geralmente aprender, inclusive a se

tornar aluna, quando puder ser escutada e escutar.

Precisamos nos questionar o que torna uma criança desatenta, o que a

agita ao invés de obrigá-la a parar; considerar os indivíduos em sua

multiplicidade, assim como a multiplicidade de fatores que atravessam o

cotidiano escolar desses indivíduos.

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Page 26: Tcc leticia gomes leal silva

4 – Chegando até a deficiência de vitamina B12

Quando trabalhei com cirurgia da obesidade, acabei estudando a fundo

as vitaminas do complexo B, em especial a B12 por haver uma deficiência não

incomum no pós-operatório imediato; por isso talvez tenha feito uma ligação

tão imediata com tal vitamina.

A deficiência de vitamina B12 no organismo pode provocar fadiga, perda

de apetite, falta de concentração, pouca memória e em alguns casos,

depressão, formigamento nas mãos e pés, falta de equilíbrio. Como o

diagnóstico de Déficit de atenção é muito feito em cima do critério de

dificuldade para se concentrar, me chama atenção a possibilidade de dosar a

vitamina B12 a fim de descartar uma deficiência antes de concluir o

diagnóstico, e principalmente antes de medicar o paciente.

Alguns estudos vêm demonstrando como a alimentação interfere

diretamente no funcionamento do cérebro. De acordo com Dr. Richard

Wurtman (1983), vários nutrientes presentes nos alimentos são precursores de

neurotransmissores, o que significa que dependendo do alimento ingerido,

alguns neurotransmissores vão ter a sua passagem facilitada no cérebro,

potencializando a sua função e agindo diretamente no humor, na atenção, no

comportamento.

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Parece consenso que não há um único sistema de neurotransmissores

envolvido no TDAH, mas a maioria dos estudos aponta para alterações nas

catecolaminas, em especial a dopamina e noradrenalina. Tanto que a droga

mais utilizada para controle do TDAH é o metilfenidato, um psicoestimulante

que atua liberando dopamina e noradrenalina dos terminais sinápticos. Assim

sendo, se sabemos que os alimentos atuam sobre os neurotransmissores,

podemos supor que uma boa alimentação vai contribuir para um funcionamento

melhor do cérebro.

São vários os nutrientes que vão interferir no nosso comportamento, mas

vamos nos ater aqui a vitamina B12, que é o objeto de estudo do presente

trabalho. A vitamina B12, também chamada de cianocobalamina, é

hidrossólúvel e possui papel fundamental no funcionamento do cérebro,

sistema nervoso e formação de células sanguíneas. Nós não produzimos

vitamina B12, por isso precisamos ingeri-la através da alimentação.

Encontramos vitamina B12 em alimentos de origem animal, como carne

(principalmente carne vermelha), ovos e leite.

As vitaminas do complexo B possuem um papel tão importante no bom

funcionamento cerebral que estudos comparativos entre os mecanismos de

ação destas com o metilfenidato já vêm sendo feitos. SHAW (2010) observou

que a suplementação de vitaminas do complexo B podem ter semelhanças na

eficácia de tratamento do TDAH com o metilfenidato.

“Há um aumento da concentração de dopamina sináptica, que por sua

vez pode ativar o receptor de dopamina D2 pós-sináptico e, assim, melhorar os

sintomas de TDAH” (SHAW, 2010. Tradução nossa).

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Mais uma vez lembramos, porém, que o objetivo do trabalho não é propor

a substituição do tratamento medicamentoso em casos diagnosticados com

cautela e responsabilidade. O Trabalho de SHAW é citado apenas para mostrar

a íntima ligação entre uma boa ingesta de vitaminas do complexo B e um bom

funcionamento do sistema nervoso de uma forma geral, assim como para

mostrar como, com uma visão pessoal profissional mais ampla de corpo

indivíduo, foi relativamente simples chegar a suspeita de deficiência de

vitamina B12.

As manifestações clínicas da deficiência de vitamina B12 variam de

estados mais brandos a condições muito severas, e normalmente aparecem

em um quadro clássico de anemia megaloblástica (diminuição dos glóbulos

vermelhos) associada a problemas neurológicos. Mas uma parcela

consideravel dos pacientes podem apresentar danos neurológicos sem a

presença de anemia, por isso, a dosagem sérica da Vitamina B12 é tão

importante. As manifestações neurológicas da deficiencia de vitamina B12

devem-se a danos progressivos do sistema nervoso central e periférico.

Relatos de déficit de memória, disfunções cognitivas, demência e transtornos

depressivos são comuns.

Sheila Rotenberg e Sonia de Vargas (2004) publicaram um estudo sobre

a influência da família nos hábitos alimentares das crianças, em uma pesquisa

feita na Rocinha, Rio de Janeiro, a partir da qual concluíram que “as práticas

alimentares são construídas a partir de diferentes dimensões: temporal, de

saúde e doença, de cuidado, afetiva, econômica e de ritual de socialização,

que se entrelaçam conformando uma rede”.

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Falar sobre diagnósticos, precoces ou não, sobre neurotransmissores,

padrões alimentares, etc. nos remete a complexidade do ser humano. Se

pegarmos a ideia de complexidade dentro da fenomenologia, onde nenhum

fenômeno possui uma só causa ou efeito, podemos deixar claro que não há

intenção aqui de determinar uma causa para o TDAH e muito menos afirmar

que toda criança que não tem um bom padrão alimentar terá deficiência de

vitamina B12 ou apresentará sintomas de Déficit de Atenção.

A ideia é exatamente entender que esses processos de diagnosticar,

classificar, rotular, definir, muitas vezes pecam por enxergar o sujeito apenas

como um sintoma, fora de um contexto complexo de relações e até mesmo de

um funcionamento neurofisiológico atravessado o tempo todo pelo seu modo

vivente. É perceber que um diagnóstico dado é apenas uma das formas de

olhar e interpretar aquele sujeito que pode ficar marcado pelo resto da vida.

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5 – Repensando o tempo vivido

Entendo que para abordar um tema que envolve diagnósticos,

alimentação e um olhar clínico que precisa integrar cada um dos temas, preciso

situar o leitor em que tempo espaço me detenho.

Há, nas últimas décadas, um aumento crescente dos casos

diagnosticados de crianças com TDAH, principalmente encaminhadas pelas

escolas até os médicos. Mas há, também, um consumo desenfreado por

alimentos industrializados (ricos em xarope de milho, gordura vegetal e

conservantes e pobres em nutrientes), fastfood, açúcar e até mesmo cafeína.

Ao mesmo tempo temos crianças que se movimentam cada vez menos,

impedidas de correr, pular ou jogar bola livremente, presas pelo aumento da

violência e o abuso de televisão, vídeo games e computadores. O que isso

significa? Que as crianças consomem cada vez mais energia e gastam cada

vez menos energia, resultando em agitação motora, irritabilidade, má qualidade

do sono, obesidade, entre outras coisas. Isso não quer dizer que o consumo de

determinados alimentos provocam hiperatividade, até porque não existem

estudos que comprovem essa relação. Mas todos estes fatores citados acima

podem ser causas de distúrbios do sono, o que afeta diretamente a

aprendizagem e o humor:

”Nos últimos anos, a redução das horas de sono tornou-se uma característica também entre crianças. Essa tendência se desenvolve concomitantemente a um importante aumento na prevalência da obesidade na população infantil. A falta de atividade física e o excesso

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de estímulos como TV e computadores e a alimentação inadequada são fatores que atingem também um contingente populacional muito jovem e que podem provocar ausência do sono. (...) Quando a criança dorme menos que o satisfatório, não consegue reter adequadamente o que aprendeu, prejudicando a atenção e a memória.” (TURCO, 2011)

Existem alguns estudos que relacionam a obesidade com o TDAH de

outra forma, pensando na dificuldade dos pacientes diagnosticados com TDAH

aderirem a uma alimentação adequada devido à sua impulsividade. DE SOUZA

(2012) fez um estudo na Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)

verificando a prevalência de sobrepeso e obesidade entre os pacientes já

diagnosticados com TDAH e verificou uma prevalência maior do que na

população geral, concluindo que:

“... a impulsividade, um dos sintomas centrais do TDAH, é um importante fator relacionado à obesidade uma vez que torna praticamente impossível a escolha de uma dieta mais consciente e regrada por parte da criança. Além disso, o TDAH dificulta a aderência disciplinada a dietas.” (DE SOUSA, 2012)

Os estudos que relacionam a obesidade com o TDAH são normalmente

regionais e concluem necessidade de elaboração de instrumentos específicos

para realizar essa relação, assim como de qualquer outra co-morbidade

psiquiátrica associada à obesidade. Porém é inegável que a ciência já faça a

associação da alimentação com o comportamento.

Vivemos numa época de intensas transformações das relações do

homem com o tempo, o espaço, o lazer, o trabalho, o corpo, a educação, etc.

São muitas as variáveis que precisamos considerar ao fazermos um

diagnóstico, ou simplesmente atender a um paciente.

A própria psiquiatria vive há alguns anos uma transformação

metodológica, estrutural e científica. BIRMAN (2002) contextualiza muito bem

essa transformação mostrando o percurso que as ciências mentais fizeram

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desde o seu incômodo dentro do campo médico por não conseguir se

fundamentar dentro da racionalidade médica até o avanço da neurociência que

coloca a psiquiatria, com bases cada vez menos psicanalíticas e mais

biológicas, como especialidade médica. O que aumenta ainda mais o poder da

medicalização.

“A Psicopatologia se transformou no referencial fundamental da terapêutica psiquiátrica, dado que as neurociências pretenderam fundar uma leitura do psiquismo. Com isso, a medicação psicofarmacológica pretende ser a modalidade essencial da intervenção psiquiátrica. Em consequência disso, a psicoterapia tende a ser eliminada do dispositivo psiquiátrico, transformando-se num instrumento totalmente secundário face à intervenção psicofarmacológica.” (BIRMAN, 2002).

É com a medicalização cada vez mais em evidência e a história do

paciente cada vez mais em segundo plano que precisamos nos propor uma

escuta totalizadora. Não com o objetivo de ir contra a transformação científica,

mas sim com o cuidado de não ser seduzido pela modernidade dos

diagnósticos rápidos, baseados muito mais em sintomas do que na etiologia do

paciente e pelos tratamentos medicamentosos.

“... É o medicamento, como instrumento supostamente ‘eficaz’ sobre um conjunto articulado de sintomas, que passa a ser referência maior para a nomeação e a construção da síndrome. A etiologia passa, nesse novo contexto, a ocupar um lugar secundário.” (idem).

Esses sintomas são avaliados cada vez mais sobre o ponto de vista

funcional do paciente e, independente da patologia em questão, as escolas

possuem essa mesma leitura do mal-estar corpóreo, com uma direção muito

mais funcional do que etiológica.

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“A escola, diante da criança que não para, com muita frequência abdica

de seu saber ou de sua possibilidade de investigar e ensinar, e encaminha o

sujeito a uma avaliação médica.” (FREITAS, 2011).

Desde a época da industrialização no Brasil, surge a necessidade de

preparar as pessoas para um mercado de trabalho que até então não existia.

Dessa forma, várias escolas são construídas. Surgem as escolas de fábrica,

baseadas nos moldes do regime militar e seguem o padrão dos reformatórios

ou presídios. Ainda hoje, o objetivo principal das escolas que funcionam nestes

moldes, parece ser tirar as crianças das ruas. Mas é importante uma reflexão

porque cidadania se aprende na cidade.

É o conceito de continuidade, de movimento constante que nos leva a

questionar essa tentativa de isolamento escolar, como se o aluno deixasse de

existir fora dos portões da escola ou pudesse abrir mão de sua vida ao entrar

no espaço escolar. A escola é atravessada o tempo todo pelas vidas diversas

que os alunos trazem consigo e também pelas relações que acontecem entre

os que ali circulam. Sendo assim, o conteúdo que os professores discutem em

sala de aula, pode estar longe de ser o único ou principal ponto de interesse

desses alunos.

Observamos ainda que têm sido cada vez mais frequente a introdução de

novos objetos técnicos ao processo educacional, como televisão, computador,

tablets e celulares, tornando quase inesgotável a fonte de conhecimento

técnico que os alunos podem usufruir.

Pensando nesses vários fios que montam essa rede interminável na vida

dessas crianças, precisamos sair do discurso de velhos conhecidos como

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“causa” dos ditos problemas de aprendizagem, uma vez que os mesmos não

existem em nenhuma relação de causa e efeito. FREITAS (2011) nos fala

sobre a necessidade de descentralizar a atenção. Vivemos em um mundo

hipercinético e nos é exigido o tempo todo dar conta do todo, uma atenção

flutuante.

“O tempo em que vivemos pede atenção simultânea e não podemos entender atenção apenas como concentração. Atenção precisa ser reconhecida como descentração, como dispersão criativa, com a possibilidade de reconhecermo-nos como autores, de inventarmos conhecimento.” (FREITAS, 2011).

E esse conceito de atenção flutuante de FREITAS, aqui no referido

trabalho, serve tanto para pensarmos sobre o diagnóstico de TDAH de A.K., e

que (des) atenção é essa de que ela reclama; quanto na própria atenção do

psicopedagogo, que não pode estar focado apenas no diagnóstico, uma vez

que os fatores que atravessam a atenção de A.K. são incontáveis.

Estudos recentes mostram que há uma incidência muito grande de baixos

valores nutricionais em pacientes diagnosticados com transtornos mentais.

Shaheen E Lakhan e Karen F Vieira publicaram no Nutrition Journal, em janeiro

de 2008 uma pesquisa que mostra que suplementos alimentares podem

auxiliar no tratamento de transtornos mentais de uma forma geral, uma vez

que:

“Notavelmente, vitaminas essenciais, minerais, e ácidos graxos, como ómega-3, são muitas vezes deficientes na população em geral na América e em outros países desenvolvidos, e são extremamente deficientes em doentes que sofrem de desordens mentais.” (LAKHAN, 2008).

Isso inclui os pacientes diagnosticados com TDAH, que chegam aos

consultórios médicos ou psicológicos e o profissional, ao olhar mais os

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sintomas do que o próprio individuo em sua frente, acabam diagnosticando e

medicando a criança sem ao menos verificar e descartar outras possibilidades

que produzem aqueles sintomas.

Mais uma vez vale lembrar que não está em questão a existência do

Transtorno e nem a eficácia do tratamento medicamentoso, até porque, dentro

dessa infinidade de transformações politicosocioculturais que vivemos, existe

também outra vertente de não medicalização de nossas crianças. As pesquisas

de SHAW (2010), já citadas anteriormente, são uma prova disso; uma tentativa

de substituir o uso do metilfenidato pela suplementação de vitamina B no

tratamento de TDAH atraves de um estudo comparando o mecanismo de ação

de ambos nos receptores de dopamina no cérebro, o que teria efeito sobre os

sintomas de TDAH. SHAW não cita, porém, se o grupo estudado tinha

deficiência de vitamina B.

A proposta aqui é exatamente estar disponível para observar esses

movimentos que surgem. Sair do papel de especialista que é tão valorizado em

nossa sociedade e se permitir buscar, em outras áreas, conhecimento para

encontrar novas possibilidades. E principalmente para reconhecer os limites do

profissional psi e saber o momento de pedir ajuda em um trabalho

interdisciplinar.

“As possibilidades que hoje se colocam são imensas e, portanto, é

preciso aprender uns com os outros, sem excluir, a priori, nenhuma

competência”. (BARROS, 2000)

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6 – O olhar do Psicopedagogo

Chegamos agora a um ponto crucial do trabalho. Já situados no

tempoespaço, entre o TDAH e as deficiências nutricionais, que olhar é, enfim,

este que o profissional psi precisa ter para o paciente?

Em primeiro lugar, vamos esclarecer que a expressão “um olhar” é

apenas um modo de dizer, já que, na verdade, jamais será um olhar fixo,

imutável. É uma infinidade de possibilidades, ‘fios’, que esse olhar precisa dar

conta de tentar acompanhar. Sim, tentar porque os movimentos acontecem tão

rapidamente que seria utópico dizer que é possível acompanhar tudo. Quando

falamos desse olhar do psicopedagogo, a proposta é um olhar que se permite

não apenas debrucar-se sobre o paciente, acolhendo-o, é preciso criar novos

territórios existenciais, desviar do que já está estampado, exposto.

A proposta é um profissional que se dsponibilize, que se disponha à

crianção de novas questões, com o objetivo de tornar o paciente o principal

analista de si mesmo, já que ele precisa ser capaz de encontrar soluções frente

a novas questões que vão sempre surgir em seu cotidiano. O paciente precisa

aprender a criar suas próprias questões num enfrentamento com as já

existentes para só então produzir novas formas de ser/estar.

Essa clínica do desvio, do clinamen, é definida por TEIXEIRA (2008):

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“uma clínica da produção de subjetividade não busca meramente a solução de problemas, mas a crianção de novas questões, numa experimentação analítica das formas instituidas. E, assim, a clínica deve se dar sempre numa relação com acontecimentos que ultrapassam a vivência individual, abrindo-se para a história, para a política, para o plano coletivo”.

Quando um paciente chega ao psicólogo com um diagnóstico pronto, ou

com um rótulo, o primeiro passo é entender de quem é a queixa. No caso do

TDAH, a quem esta falta de atenção ou essa inquietação incomoda? Quem

encaminhou o paciente ao psicopedagogo e que caminho ele já percorreu até

ali? É preciso compreender se há um sofrimento a priori, ou se este passou a

existir após o diagnóstico.

Um diagnóstico psicológico, seja de TDAH ou de qualquer outro

transtorno ou síndrome, não se faz em um único encontro. É preciso cuidado,

muita observação e tempo para afirmar que o paciente tem o tal diagnóstico e o

que ele vai fazer com aquilo. As dificuldades do paciente podem estar

relacionadas à carência sociocultural, problemas de relacionamento familiar,

distúrbios de origem orgânica (visual, auditivo, motor, etc.), deficiências

nutricionais entre outras infinidades de questões que precisam ser observadas

com responsabilidade pelo profissional.

Além disso, é preciso cautela reflexiva, perceber o momento certo para

produzir mudanças. Sim, pois se o paciente que chega também se reinventa o

tempo todo e chega para produzir mudanças de vida, não podemos prendê-lo

num rótulo ou diagnóstico para não fazer nada com aquilo. A saúde do

paciente depende de um modo potente de pensar a vida, e muitas vezes, um

diagnóstico apressado serve apenas para justificar a acomodação no que já é

conhecido.

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O diagnóstico não é negativo, ele só não pode ser definitivo. E também

não dá pra pensar que o paciente é apenas o seu diagnóstico. Classificar é

uma forma de controle, uma vez que o estranho, o desconhecido, o novo pode

representar uma ameaça. Mas só quem não teme o novo pode produzir

mudanças. O papel do psicólogo/psicopedagogo é exatamente olhar através do

que é conhecido, diagnosticado, padronizado para criar novas possibilidades.

Para dizer que um aluno tem dificuldade em aprender, a escola precisa partir

de um padrão de aprendizagem que é imposto a esse aluno. Preferimos pensar

a aprendizagem como invenção de sentido, autopoiese.5

Pensando sobre a produção de subjetividade de Deleuze e Guattari, o

objetivo então do profissional psi seria devolver a plasticidade ao paciente,

produzir ou devolver a sua capacidade de reinvenção. Ao mesmo tempo, o

próprio profissional se reinventa o tempo todo, pois aprende com o paciente.

Afinal, a visão de mundo para Deleuze é de multiplicidade, e o conhecimento

vai se aproveitar disso. Voltando ao rizoma, na aprendizagem também não há

hierarquia, ninguém ensina, todo mundo só aprende.

Deleuze e Guattari trabalharam com a ideia de minoridade, falando em

literatura maior/literatura menor, filosofia maior/filosofia menor, ciência

maior/ciência menor, para citar apenas alguns. GALLO (2007) desloca estes

termos para o campo da educação com o objetivo de obter mais elementos

para refletir o cotidiano da escola e fala em Educação maior/educação menor,

sem oposição entre as duas mas, ao contrário, assim como nos conceitos de

minoridade de Deleuze e Guattari, uma complementaridade de campos e 5 AUTO (Por si) + POIESE (Produção/Invenção). Quem usou pela primeira vez a noção de autopoiese foram os biólogos Humberto Maturana e Francisco varela que dizer que o que caracteriza o ser vivo é a produção de si mesmo. Mais tarde, G. Deleuze e F. Guatarri vão se apropriar do termo e o colocar numa dimensão filosófica que fala sobre o indivíduo se reinventar/ (re)produzir o tempo todo

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ações. Para explicar melhor onde queremos chegar, GALLO explica esses

conceitos da seguinte forma:

“Educação maior, aquela produzida no campo da macropolítica e da gestão, desenvolvida nos gabinetes, no Ministério da Educação, nas Secretarias de Educação de estados e municípios, traçando metas, planos, cronogramas de realização. (...) Educação menor, aquela desenvolvida pelos professores na solidão de sua sala de aula, para além dos planos, políticas e determinações legais. É também aquela que acontece fora da sala de aula, nas relações e nos acontecimentos do cotidiano da instituição escolar.” (GALLO, 2007).

Inspirada por GALLO, e com o objetivo de enfatizar o meu desejo de não

construir um modelo de atendimento psicopedagógico, atrevo-me a tentar

deslocar esse conceito de minoridade para a clínica e propor um debate acerca

de Olhar maior/olhar menor. Também sem contrariedade entre os dois, o olhar

maior seria aquele produzido nos comitês médicos para elaboração de

manuais classificatórios de doenças e nas grandes conferências médicas, de

onde saem os grandes debates para padronização de sintomas e práticas.

Poderíamos pensar este olhar maior também nas indústrias farmacêuticas e

todas as instituições que se esforçam para classificar, padronizar e organizar

os sintomas, as doenças e os pacientes.

Um olhar menor é exatamente o que este trabalho propõe, aquele

desenvolvido pelo profissional durante o processo terapêutico. O olhar que,

sem desconsiderar a padronização das doenças, vai além. É o olhar que tem a

função de devolver ao paciente, ou construir com ele, um fluxo livre de criação.

Vai ocupar um espaço de resistência aos atos desse olhar maior.

Vamos voltar aos escritos de GALLO pra exemplificar melhor quando falo

do olhar menor possibilitar a produção de poder inventivo ao paciente:

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“A educação maior, no campo da macropolítica, está necessariamente investida de relações de poder. A ela cabe gestar e gerir, controlar. Aquilo que Deleuze e Guattari chamaram em ‘Mil Platôs” de estriamento de espaço, isto é, a definição de regras protocolos, formas de ação, que permitem controlar todo o processo. (...) Já no campo da micropolítica, a educação menor opera mais pelo alisamento do espaço, permitindo o livre fluxo da criação. É por isso que, embora não haja oposição entre educação maior e educação menor, não raro a educação menor constitui-se como espaço de resistência aos atos de educação maior. A educação menor pode ser capturada pela educação maior e ser estratificada, estriada, engessada. Mas como vimos que o cotidiano opera na ordem do acontecimento, isto é, do inesperado e do inusitado, as fugas sempre acontecem e o estriamento nunca consegue ser total e absoluto.” (GALLO, 2007).

Quando o paciente chega ao consultório, o profissional tem muito a

aprender sobre ele e com ele. O Olhar do profissional não pode estar voltado

para solucionar e sim para problematizar aquilo que o paciente traz consigo. É

esse olhar menor que vai facilitar o processo criativo que o paciente já foi

buscar no consultório. O diagnóstico, que engessa, estria, estratifica, ele já

encontra em vários lugares, o cotidiano do processo terapêutico precisa ser

mais inventivo.

Voltando ao caso de AK, o olhar do psicopedagogo jamais poderia se

prender somente ao diagnóstico de TDAH e nem somente ás relações

conflituosas que ela possuía tanto em família quanto com professores. É

preciso ir além. O olhar profissional precisa ir além do que está exposto,

precisa ser criativo, reinventado a cada novo encontro com o paciente, pois é

de se esperar que o próprio paciente se reinvente a cada encontro. Só assim

podemos realmente facilitar o processo criativo do paciente para que ele crie

questões mais saudáveis e satisfatórias.

O paciente não vai para a clínica para saber o que ele é e sim para

descobrir o que pode tornar-se. E a forma como o psicopedagogo vai conduzir

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este encontro vai ser determinante entre cristalizar o sintoma ou construir

novas formas de ser/estar nas relações de vida. O sintoma que chega é

apenas um sinalizador de que em algum momento aquela forma foi necessária

para lidar com questões que não necessariamente ainda existem.

Para nos proteger, fazemos sintomas – formações existenciais de compromisso que funcionam como solução contemporizadora. De um lado (...) atenua momentaneamente nosso desassossego e abre possibilidades de vida. Do outro lado, porém, esquivar-se tem seu custo. (ROLNIK, 1996)

No caso do TDAH, ainda os diagnósticos verdadeiros, em que hoje já se

sabe que o indivíduo nasce TDAH, não resumem o paciente. Ainda assim ele

existe no espaço de relações que o permeia e essas são questões a serem

trabalhadas. Questões de afeto e de cuidado são fundamentais até mesmo

para despertar o desejo de cuidar de si no paciente. Questões essas que se

iniciam na própria relação Terapeuta/paciente e os afetos produzidos

mutuamente na mesma.

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7 – CONCLUSÃO

Sem nenhuma intenção de criar um modelo único de atendimento

terapêutico, podemos concluir que cada paciente que chega ao consultório,

seja médico ou psicológico, não traz apenas os seus sintomas, traz consigo

uma história, hábitos de vida, sentimentos e comportamentos que precisam ser

investigados.

Não precisamos de respostas prontas, podemos aprender a lidar com a

ansiedade das famílias que chegam até nós e com a nossa própria ansiedade

de atender às expectativas das mesmas. Um olhar mais inteiro, mais cauteloso

pode nos mostrar um paciente que se revela com o tempo, que nos ensina e

aprende conosco.

“Não procuro a certeza; ao contrário, fujo dela. Se assim fosse, teria encontrado conforto na ideia de TDAH, mas o que acontece é que quanto mais dela sei, mas sei que deve ter muito mais. Eu busco o sujeito. Pessoas não são um conjunto de sinais e sintomas.” (FREITAS, 2011).

É preciso cautela com os diagnósticos, somos seres em constante

construção, reinvenção, transformação. Os pacientes que chegam até nós com

suas queixas querem se ver livre dos seus sintomas, mas como ajudá-los se

estamos, nós mesmos, cada vez mais presos a eles? A proposta é olhar o

paciente além de suas queixas, além de seus sintomas. Olhar o que não é dito,

descobrir o que complementa, tentar chegar a um todo que não existe, mas

buscar alcançar o todo que se apresenta, naquele instante de vida.

Aqui, no caso proposto, fragmentos da minha vida se cruzam com a da

paciente, uma vez que o meu olhar, treinado para observar hipovitaminoses

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acelerou a descoberta de uma questão central no tratamento de A.K., mas sem

dúvida, me permitir transbordar além das queixas iniciais, produzir tensão entre

a rigidez do diagnóstico e a flexibilidade de ela estar ali buscando mudança é

que deu a possibilidade de mudanças significativas.

O que não podemos é perder a dimensão do movimento de criação. Não

temos, nem por um momento, a intenção de criar um modelo a ser seguido, até

porque a ideia é exatamente fugir de prescrições que já existem ‘a priori’. A

proposta é

“estar atento às várias redes de poder que se configuram de forma

incessante, investindo de maneira à arguí-las e desmanchá-las. Precisamos

ser mais criativos que as máquinas de subjetivação capitalista” (DE BARROS,

2000).

Não há como concluir que AK teve uma resposta positiva somente à

suplementação de vitamina B12, porque junto com a suplementação ela

trabalhou questões importantes que a mantinham presa a sintomas que já não

exerciam mais nenhum papel em suas novas relações. Assim como não há

como saber se ela teria as mesmas respostas, ou em tão pouco tempo, se não

fizesse uso da suplementação. O mais importante aqui é que o diagnóstico de

TDAH, que a trouxe ao consultório, só foi uma questão importante enquanto ela

sentiu-se rotulada com ele. Desviar do sintoma foi fundamental para construir

novas questões com a paciente.

A.K. possivelmente aprendeu a analisar e problematizar questões

importantes do seu cotidiano e esse deve ser o principal papel do profissional

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psi, ser um facilitador para o resgate ou a criação desse processo inventivo do

paciente.

As mudanças na vida de A.K. foram produzidas por ela mesma, por uma

nova forma que surge a partir da problematização e questionamentos sobre a

forma que ela chega ao consultório. E essa nova forma, provavelmente em

breve vai ser novamente problematizada, pois novas questões vão surgir junto

com ela. Cada nova forma que adquirimos na vida é temporária. E voltamos

aqui ao conceito de autopoiese, quando percebemos que as dificuldades são

aprisionamento em certa estrutura autopoiética; a clínica precisa visar devolver

essa plasticidade necessária à potência de vida do paciente.

É através de muita observação, muito estudo, muito cuidado que

podemos, enfim desfrutar da certeza de muito pouco saber, ou nada saber

quando o paciente chega com sua dor, seu passado, e seu sintoma. Pois é,

junto com ele que podemos produzir um novo sentido para a sua história.

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8 – REFERÊNCIAS

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