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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SANTOS ANDREZZA RIBEIRO BICHIAROV BEATRIZ BADIM DE CAMPOS INTERSECÇÕES ENTRE REALIDADE E FICÇÃO NO ROMANCE INCIDENTE EM ANTARES, DE ERICO VERISSIMO SANTOS – 2008

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Page 1: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SANTOS

ANDREZZA RIBEIRO BICHIAROV BEATRIZ BADIM DE CAMPOS

INTERSECÇÕES ENTRE REALIDADE E FICÇÃO NO ROMANCE INCIDENTE EM ANTARES, DE ERICO VERISSIMO

SANTOS – 2008

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ANDREZZA RIBEIRO BICHIAROV

BEATRIZ BADIM DE CAMPOS

INTERSECÇÕES ENTRE REALIDADE E FICÇÃO NO ROMANCE

INCIDENTE EM ANTARES, DE ERICO VERISSIMO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para obtenção do grau de licenciatura de Letras à Universidade Católica de Santos.

Orientadora: Profª. Ms. Elita Cezar Argemon

SANTOS – 2008

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ANDREZZA RIBEIRO BICHIAROV BEATRIZ BADIM DE CAMPOS

INTERSECÇÕES ENTRE REALIDADE E FICÇÃO NO ROMANCE

INCIDENTE EM ANTARES, DE ERICO VERISSIMO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para obtenção do grau de licenciatura de Letras à Universidade Católica de Santos.

Orientadora: Profª. Ms. Elita Cezar Argemon

Banca Examinadora __________________________________________ Profª. Ms. Elita Cezar Argemon Universidade Católica de Santos __________________________________________ Profª. Drª. Sylvia Maria Corrêa Rocha Homem de Bittencourt Universidade Católica de Santos __________________________________________ Prof. Ms. Pedro Paulo Angrisani Gomes Universidade Católica de Santos

Data da aprovação _____________________

SANTOS – 2008

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DEDICATÓRIA

Dedicamos este trabalho a Erico Verissimo pedindo licença a Carlos Drummond de Andrade para fazermos de suas palavras as nossas:

“A falta de Érico Veríssimo”

Falta alguma coisa no Brasil

depois da noite de sexta-feira. Falta aquele homem no escritório

a tirar da máquina elétrica o destino dos seres,

a explicação antiga da terra.

Falta uma tristeza de menino bom caminhando entre adultos

na esperança da justiça que tarda – como tarda!

a clarear o mundo.

Falta um boné, aquele jeito manso, aquela ternura contida, óleo

a derramar-se lentamente. Falta o casal passeando no trigal.

Falta um solo de clarineta.

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AGRADECIMENTOS

As nossas famílias, pelo amor e incentivo incondicionais;

A Elita Argemon, pela sabedoria e empenho na orientação deste trabalho; A Sylvia Bittencourt, por aceitar fazer

parte deste projeto acadêmico e de vida; A Pedro Paulo Gomes, pelo encontro

inesperado e descobertas inesquecíveis.

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RESUMO

BICHIAROV, Andrezza Ribeiro e CAMPOS, Beatriz Badim de. Intersecções

entre realidade e ficção no romance Incidente em Antares, de Erico Verissimo.

Santos, 2008, 87p. (Trabalho de Conclusão de Curso) Universidade Católica de

Santos.

Este trabalho procura conceituar como os recursos literários - personagem,

dialogismo, polifonia, intertextualidade, intratexto, fantástico, ironia, contraponto

- são definidos na área literária, qual o papel por eles desempenhado nos

textos literários e, mais especificamente, como esses recursos podem viabilizar

as ideologias políticas contrastantes em um período repressivo de ditadura

militar (por meio do romance) no romance Incidente em Antares, de Erico

Verissimo. Por meio dos recursos literários, procuram-se revelar as relações

existentes entre o interno e o externo do texto, o que possibilita ao leitor

participar do diálogo entre texto literário e realidade factual. Para tanto, faz-se

uso de teóricos da área de Literatura, Política e Sociologia como

fundamentação para a análise do corpus deste trabalho. Na área de Teoria da

Literatura serão trabalhados os conceitos como dialogismo, polifonia,

intertextualidade e intratextualidade propostos por Mikhail Bakhtin e Julia

Kristeva; o fantástico, estudado por Tzvetan Todorov; o contraponto, criado por

Aldous Huxley; a questão da personagem discutida por Aristóteles e retomada

por Fernando Segolin e Beth Brait e a ironia tratada também por Brait. Hanna

Arendt, Elio Gaspari e Marcos Napolitano serão a base para o aprofundamento

das questões políticas e históricas brasileiras e mundiais. E na área da

Sociologia, tomar-se-á como principal norteador Lucien Goldmann e sua

Sociologia do Romance.

Palavras chaves: recursos literários, ditadura militar brasileira, Incidente em

Antares, Erico Verissimo.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 7

CAPÍTULO 1. SOCIOLOGIA E POLÍTICA NA LITERATURA 12

1.1 A presença da Sociologia na Literatura 14

1.2 Política e Arte 15

1.3 Recursos Literários 19

CAPÍTULO 2. O ROMANCE INCIDENTE EM ANTARES 29

2.1 Os recursos literários na relação entre realidade e ficção em

Incidente em Antares 31

CONSIDERAÇÕES FINAIS 80

REFERÊNCIAS 83

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INTRODUÇÃO

- Já leu Jorge Amado? - Por alto. É bandalho e comunista. - E o nosso Erico Verissimo? - Nosso? Pode ser seu, meu não é. Li um romance dele que fala sobre o Rio Grande de antigamente. [...] por esse livro se via que o autor não conhece direito a vida campeira, é “bicho de cidade”. Há uns anos o Verissimo andou por aqui, a convite dos estudantes, e fez uma conferência no teatro. [...] Quem vê a cara séria desse homem não é capaz de imaginar as sujeiras e despautérios que ele bota nos livros dele. - A senhora diria que ele também é comunista? [...] - O Prof. Libindo costuma dizer que, em matéria de política, o Erico Verissimo é um inocente útil.

Incidente em Antares, Erico Verissimo

O diálogo entre as personagens de Incidente em Antares traz à tona

dois nomes da nossa literatura: Jorge Amado e Erico Verissimo. O primeiro, um

exímio representante da literatura nordestina brasileira, do povo baiano e da

zona cacaueira, que ficou conhecida mundialmente por meio de sua obra. O

segundo, um “contador de histórias” gaúcho, que se via como uma

personagem de sua história e não como escritor dela. Isso fica evidente

quando, na epígrafe deste texto, ele aparece como personagem de sua própria

obra em um sentido contrário ao habitual em que o autor, munido de

criatividade e voz ativa, constrói suas personagens e as encaminha dentro da

narrativa. Erico Verissimo não encaminha as suas personagens, mas é

encaminhado por elas. Ele as escuta, respeita a personalidade de cada uma,

deixa que elas tomem as suas decisões, pois, para ele, literatura é liberdade e

as personagens não podem ficar presas nos limites do texto. Elas devem ir

além, devem provocar quem as conhece, não devem ser denúncia, mas

transformação, pois a literatura transcende à linguagem, a padrões estéticos e

formais, ela é o despertar do homem para o mundo.

Conversando sobre a escolha de autores e obras para serem

trabalhados no projeto desenvolvido pela Universidade Católica de Santos,

Leitura Viva: Ler por prazer, vários nomes foram sugeridos para serem

trabalhados em posteriores encontros do grupo de discussão literária, mas um

nos chamou a atenção por não ter sido citado: o do escritor Erico Verissimo.

Page 9: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

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Tal fato despertou-nos interesse, pois percebemos que os autores sugeridos

para terem suas obras estudadas eram os “cânones” da Literatura Brasileira,

como Machado de Assis, José de Alencar, entre outros. Além destes que

denominamos “cânones”, autores como Clarice Lispector, Vinícius de Moraes,

Cecília Meirelles, Moacyr Scliar e Luis Fernando Verissimo também foram

sugeridos. Uma pessoa do grupo questionou o porquê de Erico Verissimo, que

possui uma obra bastante rica, de renome internacional, não ter sido citado

enquanto o seu filho, Luis Fernando Verissimo, ter sido lembrado por vários

membros do grupo, apesar de sua obra não ter expressão literária tão

significativa quanto a do pai. Algumas pessoas acharam a questão

impertinente, outros tentaram respondê-la, mas a pergunta ficou sem resposta.

Tal situação remeteu-nos aos nossos tempos de escola, mais precisamente de

Ensino Médio, em que, nas aulas de Literatura Brasileira, Erico Verissimo não

passava de mero coadjuvante no cenário literário. Sua obra era apenas citada

pelos professores e algumas informações sobre sua biografia eram dadas de

forma bastante sucinta e totalmente descontextualizada.

Questionamo-nos, então, sobre o porquê de Erico Verissimo permanecer

à margem dos grupos de discussões e de aulas de Literatura Brasileira nas

escolas de Ensino Médio e, mais uma vez a questão ficou sem resposta. Este

foi o ponto de partida para pensarmos em um possível trabalho sobre a obra de

Erico Verissimo e darmos a nossa contribuição para a valorização desta.

Começamos, então, a “desbravar” o mundo verissiano e esse desbravamento

teve seu início pelo último romance do autor: Incidente em Antares.

A vida antarense foi-nos apresentada de forma tão envolvente e real que

nos sentimos parte daquela sociedade como se ela fosse a representação da

nossa própria cidade ou de qualquer outra situada em nosso país. Fomos

surpreendidas por uma curiosa indagação que foi o grande questionamento

que norteou nosso trabalho: será que, de fato, Antares não foi criada como

forma de refletir sobre as principais questões históricas, sociais e políticas do

Brasil? Erico Verissimo valeu-se das funções da literatura, com destaque para

a de expressar o caráter social e político de um povo, para criar sua identidade

e, principalmente, em Incidente em Antares, para expor uma realidade em que

os leitores viviam.

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Para encontrarmos uma resposta, precisávamos estudar a fundo a

história, sociedade e política brasileiras. E foi o que fizemos. Iniciamos nossas

investigações em Cultura Brasileira e, dois anos depois, em Teoria Política,

ambas as disciplinas do curso de graduação em Jornalismo e que cursamos

como enriquecimento curricular. A primeira mostrou-nos um panorama do país

por meio da produção cultural brasileira (cinema, teatro, música, televisão,

rádio, etc.) tendo como ponto de partida a década de 1950 até chegar

à de 1990. A disciplina estruturou-se partindo de uma descrição histórica do

Brasil, seguida pela política e como as duas foram determinantes para a

concepção da cultura brasileira. A segunda fez-nos conhecer e refletir sobre as

diferentes correntes de pensamento em relação às forças atuantes nas

sociedades internacionais e no Brasil, como: influência da sociedade civil na

política; influência desta na concepção das sociedades; como se organizam os

partidos políticos e qual a função dos mesmos; os tipos de regimes

governamentais existentes e quais as heranças que estes deixaram para a

sociedade atual. Com esses conhecimentos, iniciamos nossas pesquisas na

área política.

As aulas de Literatura Brasileira e Teoria Literária, disciplinas do curso

de Letras, deram-nos o alicerce necessário para que pudéssemos iniciar

nossos estudos na área da literatura. Entramos em contato com conceitos que

aprofundamos posteriormente em outras leituras, como o de intertextualidade

(diálogo entre textos), como denomina Julia Kristeva e de intratextualidade

(cruzamento de texto de um mesmo autor); o de polifonia e dialogismo

estudados por Mikhail Bakhtin, e que, segundo ele, referem-se respectivamente

aos vários textos, ou vozes presentes em um determinado texto e o processo

de interação que ocorre entre esses textos e o leitor; o de verossimilhança

(representação da realidade no texto); o de paródia (imitação de um texto

subvertendo o seu sentido original) e paráfrase (retomada de um texto sem

subverter o seu sentido original), estes últimos também estudados por Bakhtin.

Nesse processo, muitos outros livros de Erico Verissimo e sobre sua

obra foram lidos e verificamos que nossa indagação sobre o debate de

questões da sociedade brasileira por meio da literatura era pertinente, já que a

obra verissiana revelou-nos um escritor consciente e militante em favor de um

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pensamento político-liberal e contra qualquer forma de repressão e corrupção

como ele próprio enfatiza em um pronunciamento dado em 1962:

Não aceito nenhum sistema de governo que não se baseie no respeito da dignidade da pessoa humana e dos direitos civis. Acho que não pode haver literatura digna desse nome em um ambiente de opressão e censura governamental ou de qualquer outra natureza. (VERISSIMO apud FRESNOT, 1977, p.70)

No aprofundamento de nossas pesquisas, constatamos que as questões

sociais e históricas abordadas no romance eram conduzidas por uma mesma

linha de pensamento que compunha o livro todo: a política. Incidente em

Antares foi concebido em um período de ditadura militar em que a sociedade

era impossibilitada de expressar-se livremente, as normas de conduta tinham

de respeitar as ordens do governo e liberdade significava dizer “sim” ao que os

governantes ditavam, como fica explícito na fala do general Ernesto Geisel no

livro de Elio Gaspari, A Ditadura Derrotada: “A liberdade que precisa para se

viver, essa existe. Não há liberdade para a bagunça, a baderna, a ação contra

o governo.” (p.106)

Para tanto, utilizamos os conhecimentos adquiridos nas disciplinas

Cultura Brasileira e Teoria Política, os estudos feitos sobre a obra de Erico

Verissimo pelo Doutor em Letras e Literatura Brasileira pela Universidade de

São Paulo e grande amigo do autor, Flavio Loureiro Chaves. Ainda em relação

à obra verissiana, apoiamo-nos também nos trabalhos de mestrado de Daniel

Fresnot, O pensamento político de Erico Verissimo e de doutorado de Oswaldo

Antonio Furlan, intitulado Estética e Crítica Social em Incidente em Antares. O

embasamento político de nossas pesquisas deu-se também por meio de obras

de Marcos Napolitano que tratam dos períodos pré e pós ditadura militar, assim

como da obra O que é política?, de Hanna Arendt e A ditadura derrotada, de

Elio Gaspari.

Nossa fundamentação teórica norteou-se, principalmente, pelos

conceitos de polifonia, dialogismo, paródia e paráfrase de Mikhail Bakhtin e de

intertextualidade, na concepção de Julia Kristeva, como apresentamos

anteriormente. Além desses conceitos, estudos sobre literatura e sociedade

apresentados em livro homônimo de Antonio Cândido e sobre sociologia na

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literatura e no romance propostos por Lucien Goldmann também foram de

fundamental importância em nosso trabalho.

Não tivemos dúvida, portanto, em escolher o tema para o nosso trabalho

científico já que todo esse percurso de investigações, estudos e constatações

foi construído ao longo de nossa experiência acadêmica. A necessidade de

mostrarmos os recursos utilizados pelo autor de Incidente em Antares para

abordar as questões em voga nas décadas de 1960 e 1970, sob a óptica

política, levou-nos a pensar no presente trabalho a que demos o título

provisório de “A visão política na narrativa de Incidente em Antares, de Erico

Verissimo”. O título sofreu alteração por considerarmos que não só a visão

política deveria ser tratada neste trabalho uma vez que a política não pode ser

desvinculada da sociedade e nem da história. Portanto essa visão deveria ser

mais ampla para que a análise do romance de Erico Verissimo fosse uma

leitura de um momento político, social e histórico do Brasil por meio de

intersecções entre o texto literário e a realidade factual. Por esse motivo é que

optamos por intitular o presente trabalho “Intersecções entre realidade e ficção

no romance Incidente em Antares, de Erico Verissimo.”

Esperamos, enfim, que nosso trabalho sirva como ponto de partida para

novos desbravadores da obra verissiana e que estes, como nós, possam

mergulhar no mundo desse “contador de histórias” – título que foi dado a Erico

Verissimo por ele mesmo e forma pela qual gostava de ser chamado.

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CAPÍTULO 1. SOCIOLOGIA E POLÍTICA NA LITERATURA

... o menos que o escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.

Erico Verissimo

Várias são as acepções do termo literatura, porém, essas acepções

convergem para uma única definição, que apesar de simples é bastante ampla:

literatura é arte. Assim como a pintura, a escultura, a música, a literatura

configura-se como arte a partir do momento em que utiliza artifícios para

transformar simples sobreposições de palavras em um calidoscópio de

sentidos e leituras diversas. A expressão lingüística está para a escritura assim

como o desenho para a pintura. Apurando e experimentando traços, cores,

texturas, sensações é que a arte se concretiza nas suas diversas

manifestações.

Segundo Jean-Paul Sartre, citado por José Verissimo em Que é

literatura? e outros escriptos (1907), a Literatura pode ser entendida quando

compreendem-se três questões fundamentais: O que é escrever?; Por quê

escrever?; Para quem escrever?

Sartre define o fazer literário, o escrever como um “desnudamento” que

revela o escritor para o mundo e este para o escritor. Há que se considerar que

o fazer literário é uma constante epifania do escritor para o mundo, do mundo

para o escritor, do escritor para os leitores e dos leitores para si mesmos como

homens em sua essência. É essa revelação proporcionada pela escritura que

será a principal razão pela qual o escritor se debruçará sobre seu ofício. Quem

escreve tem por finalidade revelar algo, criar significados para a realidade. A

realidade continuará existindo independente do trabalho do escritor, mas este a

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recria, deslocando muito da realidade factual para a realidade ficcional. Dessa

forma, escreve-se para que o outro (o leitor) possa compartilhar esse fazer

literário e que por meio da revelação da escritura, ele possa transformar o

mundo e sua própria realidade. Assim, a realidade criada na literatura tem

como objetivo ser exibida no mundo real como forma de transformar as

estruturas sociais e políticas da sociedade.

É, portanto, a literatura uma manifestação artística feita pelo homem e

para o homem e fonte reveladora capaz de transformar a sociedade; é por

meio dela que diversos temas que fazem parte da realidade factual são

discutidos. De acordo com Mikhail Bakhtin, citado por Márcia Viana de Lima e

Silva em A gênese em Incidente em Antares (2000):

...qualquer elaboração discursiva é, ao mesmo tempo, individual e social. Para a criação literária, por exemplo, operam os mecanismos pessoais e coletivos, com os quais o autor cria um discurso em que aparecem a palavra do eu e a do outro, colocando a nu as relações sociais através das marcas lingüísticas. (p.41)

Segundo Bakhtin, nenhum texto ou discurso é constituído isoladamente,

mas sim a partir de outros: é o individual e o social que se mesclam para a

construção do novo. É essa relação entre o escritor (eu) e o leitor (outro) que

possibilitarão o que Bakhtin chamará de “dialogismo” e “polifonia”, questões

fundamentais na gênese literária. O dialogismo é o ato de comunicação verbal

em si. Para que um diálogo aconteça, não é necessário que um locutor e um

interlocutor estejam frente a frente, ou que produzam comunicação verbal em

voz alta, mas o diálogo pode ocorrer por meio da palavra escrita, da literatura

(escritor/personagem/leitor). Essa troca entre autor e leitor é que constitui o

diálogo dentro da obra literária e é por meio dessa troca que a obra se

perpetua, pois o diálogo que cada leitor terá com uma mesma obra será

sempre diferente e particular:

... A seleção lingüística do autor manifesta sua consciência individual, sua visão de mundo, seu posicionamento ideológico, mas igualmente o dos outros membros do corpo social a que pertence, já que toda palavra é carregada de intencionalidade relacional. (ibid, p. 43-44).

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Podemos considerar o leitor como um co-autor da obra literária a partir

do momento em que este estabelece um diálogo entre a obra e a sociedade

em que está inserido. É por meio dessa “consciência individual” do autor que o

leitor tem condições de articular as suas idéias com as do autor e, assim,

garantir a existência da literatura enquanto instrumento transformador da

sociedade. A literatura só se constrói quando existe essa cooperação entre

leitor e autor em um processo de produção, recepção (ou co-produção) e

disseminação do texto.

A polifonia, por sua vez, define-se como as vozes polêmicas que estão

inseridas dentro do discurso. O dialogismo mantém-se no nível da linguagem

enquanto a polifonia encontra-se no do discurso. Serão essas vozes as

responsáveis pela efetivação do diálogo entre escritor e obra, entre o individual

e o social, entre homem e literatura.

Esse processo de “desnudamento” do escritor e das relações sociais

que Sartre menciona e Bakhtin sugere serão fundamentos inprescindíveis na

gênese da literatura e na integração desta com o homem. Márcia Viana de

Lima e Silva aborda essa questão quando propõe que:

... A palavra possui ubiqüidade social, pois penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos. Ela é o material intermediário no qual as pessoas interagem em sociedade e indica com maior grau de sensibilidade as transformações sociais. (ibid, p. 42)

Portanto, a palavra não é apenas matéria concreta justaposta em

algumas páginas, mas é constituinte de identidade, é construtora de sentidos, é

instrumento de interação entre homem e sociedade. É por meio desse caráter

transformador da palavra que a literatura pode ser considerada veículo pelo

qual o homem dialoga com o meio em que vive. A partir do momento em que

ele dá vida e cria significados para aquilo que lê, estabelece a interação entre

texto e mundo, entre o particular e o coletivo, entre literatura e sociedade.

1.1 A presença da Sociologia na Literatura

Para que entendamos melhor a questão social da literatura, é pertinente

abordar algumas questões referentes à sociologia e verificar como esta se

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manifesta na literatura. A sociologia vem auxiliar-nos a explicar a vida social,

atendendo a uma necessidade que surgiu após o desenvolvimento das

ciências naturais e sociais. Podemos pontuar historicamente o seu

aparecimento no período de transição entre a decadência da sociedade feudal

e a consolidação da sociedade capitalista (século XVII). Nessa época,

começou a haver uma preocupação em discutir o novo momento econômico,

político e cultural pelo qual o mundo estava passando e que refletia na

sociedade. Com as revoluções industrial e francesa, que consolidaram de vez o

capitalismo, a classe proletária marcou território firmando o seu papel histórico

de classe atuante dentro da sociedade. Houve, então, a necessidade de

discutir as questões sociais em uma instância bastante significativa como forma

de resposta às novas condições que a sociedade apresentava, como a

situação social dos trabalhadores, sua condição de trabalho, o surgimento das

cidades industriais, divisão de classes, direitos políticos.

Buscando essas respostas é que a sociologia na literatura apresenta um

papel importante: verificar o caráter social transformador por entre as linhas. Há

que se ler mais do que está escrito, parafraseando Luis de Camões. É de

fundamental importância que entendamos a realidade econômica, política e

social em que vivemos para que possamos mais do que ler, dialogar com o

texto literário. É por meio desse diálogo que a literatura transforma-se em um

elemento de mudança e não apenas de denúncia. A denúncia é passiva a partir

do momento em que não se faz nada para que ela tenha potência e rompa os

limites da palavra, configurando-se em ações transformadoras na sociedade.

Discutimos, mesmo que brevemente, sobre a atuação assaz importante

da sociologia na literatura. A seguir, cabe-nos verificar qual o papel da política

(objeto de estudo de nosso trabalho) no fazer literário. Como a própria

Sociologia afirma, não é possível dissociar fatores da sociedade factual com os

da produção literária.

1.2 Política e Arte

Com referência à política, esta mantém uma relação polêmica com a

literatura. Quando pensamos em política, logo nos vêm à mente organizações

partidárias específicas, ideologias com caráter massificante, idéia de persuadir

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o interlocutor a todo custo. De fato, levando em conta essa concepção de

política, nada mais natural pensar que, na literatura, ela se comporte como um

veneno que coloca o escritor em fôrmas específicas de acordo com os dogmas

que possa vir a ter como corretos e imutáveis.

Há, portanto, que tomar outra concepção de política para podermos

entendê-la na literatura. Segundo Hanna Arendt, “o sentido da política é a

liberdade” (1999, p.38), uma liberdade de ser do indivíduo que permite que este

expresse suas idéias, manifeste suas vontades e lute por seus ideais. Falamos

de política como engajamento, como condição inerente ao homem, já que

ninguém é totalmente apolítico, porque mesmo os que tomam essa posição

têm como princípio uma ideologia política para pensar dessa forma. O escritor

que se refugia em sua “torre de marfim” não está imune às transformações

políticas da sociedade, principalmente em situações de crise que o afetarão

direta ou indiretamente, já que a literatura é influenciada pela sociedade. O

escritor não consegue excluir totalmente de seu discurso traços que exponham

sua visão de mundo, retratando, mesmo que inconscientemente, a sociedade

na qual está inserido. Segundo Daniel Fresnot, em O Pensamento Político de

Érico Veríssimo, o escritor deve ser “um político para seres humanos, e não

para esquemas preestabelecidos.” (1977, p.84) É partindo dessa concepção e

de que o escritor não pode fugir de sua realidade que a literatura será veículo

de difusão política.

Se olharmos para a história política do Brasil, veremos que ela foi

determinante na produção artística do país. No final da década de 1930 e início

da de 1940, para estreitar os laços entre Brasil e Estados Unidos, com a

chamada “Política da Boa Vizinhança”, a cantora e atriz Carmen Miranda foi

usada como intrumento para unir as duas nações que faziam acordos políticos

para unificar as Américas enquanto a Europa enfrentava a segunda grande

guerra:

Carmen Miranda foi nossa primeira e única estrela a brilhar em Hollywood [...] sua viagem aos EUA (no momento em que o prólogo da II Guerra já estava destinado a colocar definitivamente o Brasil no âmbito das influências sócio-econômicas dos EUA) deu início ao ciclo das excursões de artistas brasileiros àquele país, numa campanha de propaganda preparatória à ‘Política da Boa Vizinhança’, do Presidente Roosevelt. A campanha predispunha o espírito do povo norte-americano a aceitar e curtir as novidades do Terceiro Mundo: terras desconhecidas e exóticas, com coqueirais,

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bananeiras, abacaxis, balangandãs, pois o presidente desejava adesão total dos latino-americanos, único mercado potencialmente forte que a guerra deixou disponível ao país. (SAIA, 1984, p.7-8)

No final da década de 1950 e início da de 1960, a Bossa Nova surgiu em

consonância com o espírito de modernidade que Juscelino Kubitschek

pretendia imprimir ao país nessa época – “o sonho da modernidade brasileira

tinha encontrado a sua trilha sonora” (NAPOLITANO, 2004, p.32). “Bossa

Nova” tornou-se uma expressão popular que se relacionava a tudo o que fosse

novo e moderno: “havia automóvel bossa-nova, geladeira bossa-nova, moda

bossa-nova e até o presidente [...] passou a ser chamado de presidente bossa-

nova.” (ibid, 2004, p.30) O menestrel do Brasil, Juca Chaves, imbuído dessa

atmosfera bossa novista, compôs a canção Presidente Bossa Nova, que foi

grande sucesso nos anos 1960, cujo foco principal era satirizar o espírito de

modernidade do presidente Juscelino Kubitschek, que inebriou o país nessa

época. A canção traduz bem o clima do governo de JK como contraponto entre

os governos de Getúlio Vargas que culminou no seu suicídio, e de Jânio

Quadros que saiu do poder por meio de uma tresloucada renúncia:

Bossa Nova mesmo é ser presidente/ Desta terra descoberta por Cabral./ Para tanto basta ser tão simplesmente/ Simpático, risonho, original./ E depois desfrutar da maravilha/ De ser o presidente do Brasil./ Voar da Velhacap pra Brasília,/ Ver a alvorada e voar de volta ao Rio.// Voar, voar, voar/ Voar, voar pra bem distante/ Até Versailles, onde duas mineirinhas,/ Valsinhas dançam como debutantes/ Interessante.// Mandar parente a jato pro dentista Almoçar com tenista campeã/ Também poder ser um bom artista, Exclusivista,/ Tomando com o Dilermando/ Umas aulinhas de violão. Isso é viver como se aprova/ É ser um presidente Bossa Nova,/ Bossa Nova, muito nova/ Nova mesmo, ultranova! (Disponível em: <http://letras.terra.com.br/juca-chaves/370096/>)

A letra de Presidente Bossa Nova satiriza a maneira risonha e sempre

simpática com a qual Juscelino Kubitschek comportava-se. Juca Chaves critica

as viagens freqüentes do presidente, do Rio de Janeiro (capital do Brasil, na

época – a Velhacap) à futura capital, Brasília (Novacap), que foi construída em

um local totalmente desconhecido para a maioria dos brasileiros, elevando-a,

de um momento ao outro, à capital do país. A canção faz uma crítica bastante

evidente com relação ao uso de dinheiro público para suprir necessidades de

familiares do presidente – “mandar parente a jato pro dentista” – apesar de

toda a confiança que ele tentava transparecer por meio de sua simpatia e

Page 19: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

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carisma. O marketing que Juscelino Kubitschek fazia para mostrar-se

sintonizado com o Brasil que estava em processo de modernização acelerada

também é mostrado na canção quando Juca Chaves sugere o almoço do

presidente Juscelino com Maria Esther Bueno, tenista campeã do torneio de

Wimbledon, na Inglaterra, em 1959; com as aulas de violão que tinha, para

acompanhar a modernidade musical que chegava com a Bossa Nova, com o

violonista Dilermando Reis (também professor de sua filha, Maristela

Kubitschek) e que, em razão da amizade com o presidente, compôs a primeira

canção em homenagem à nova capital do Brasil, em parceria com José

Fortuna, intitulada Sob o Céu de Brasília.

Em 1964, com o Golpe Militar, “a cultura passou a ser supervalorizada,

até porque, bem ou mal, era um dos únicos espaços de atuação da esquerda

politicamente derrotada” (ibid, 2004, p.49). Com a tomada do poder pelos

militares, as manifestações artísticas como um todo uniram-se em prol da

liberdade de expressão, indo contra a censura artística imposta pelos militares.

O que fosse considerado subversivo às leis do governo era banido e sofria

conseqüências. Daí o surgimento de espetáculos como o Opinião, escrito por

Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes e Armando Costa, que teve como

protagonistas Nara Leão (substituída por Maria Bethânia, em 1965), Zé Keti e

João do Vale, que estreou em 11 de dezembro de 1964, e “...destacou-se por

ter assumido a necessidade de se colocar os problemas socioculturais do país

numa perspectiva mais popular que ‘nacional’ [...]” (ibid, 2004, p.52); Arena

conta Zumbi e Liberdade, liberdade, que seguiam a mesma proposta

contestadora. O grito de liberdade dos artistas manifestava-se por meio das

músicas nos espetáculos teatrais, como fica explícito no programa-manifesto

do espetáculo Opinião: “A música popular é tanto mais expressiva quando tem

uma opinião, quando se alia ao povo na captação de novos sentimentos e

valores necessários para a evolução social.” (ibid, 2004, p.50), como também

nos Festivais da Canção que ocorreram no final de década de 1960,

submetendo as canções concorrentes à fiscalização de uma equipe do governo

para analisar o conteúdo da letra e verificar se esta não continha nenhum

indício que fosse contra os princípios vigentes. Nessa época, “consagrou-se o

termo Música Popular Brasileira (MPB), sigla que se tornou sinônimo de música

comprometida com a realidade brasileira, crítica ao regime militar [...]” (ibid,

Page 20: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

19

2004, p.57). A cantora Cynara Faria, integrante do grupo vocal Quarteto em Cy,

que participou ativamente da difusão da MPB nesse período, relatou-nos, em

entrevista exclusiva realizada em 23/04/2008, como a censura tolheu a

liberdade de expressão dos artistas da época:

Numa das vezes, fomos até Brasília para pedir pro Ministro da Justiça (da época) Armando Falcão, que nos liberasse para fazer o programa do Chacrinha, na Globo, pois fomos proibidas de atuar no programa dele por sermos amigas do Chico [Buarque] e, na época, estarmos com o sucesso Pedro Pedreiro [canção de autoria de Chico Buarque] nas paradas. O tal do Ministro nos fez voltar pro Rio e fazer uma carta pro Ministério nos explicando e dizendo que não éramos subversivas [...] Só para lembrar também, a nossa gravação de “Tamandaré”, do Chico [Buarque], no comecinho da carreira, em 1966, foi proibida e só em 1991, no CD Chico em Cy nós pudemos resgatá-la.

Cynara ainda revela como os artistas faziam para expressar o seu desgosto em

relação à repressão militar não usando palavras, pois eram proibidos, mas

utilizando-se de outros artifícios:

Em outra ocasião, fomos proibidas de cantar “O Ronco da Cuíca” de [João] Bosco e [Aldir] Blanc, no nosso show Resistindo, em 1976, literalmente proibidas. Aí, na hora que tínhamos de cantar a música, nós virávamos as costas pro público e cruzávamos os braços para trás, como se estivéssemos algemadas. A banda tocava a música sem a letra e o público veio abaixo de tanto aplaudir.

Na literatura não foi diferente. Feliz Ano Novo (lançado em 1975), de Rubem

Fonseca, por exemplo, teve sua publicação e circulação proibidas pelo

Departamento da Polícia Federal, por ter sido considerado um livro que

continha cenas pornográficas e de violência.

Por esses exemplos que acabamos de apresentar, fica clara a presença

da política nas artes e na maneira de pensar de toda uma sociedade. É,

portanto, imprescindível considerar a política como parte integrante e

fundamental para a concepção da literatura. Política e sociologia, juntas,

funcionam como estruturas sólidas para a criação de uma realidade ficcional

comprometida com a factual.

1.3 Recursos literários

Page 21: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

20

Segundo Mikhail Bakhtin, citado por Maria Ivana de Lima e Silva em A

gênese de Incidente em Antares, toda a realidade vivenciada pelo autor revela-

se nas entrelinhas do seu próprio discurso, intencionalmente ou não: “... o

escritor se vale do contexto social e político em que está submerso e coloca,

dentro de seu texto, os discursos que o cercam, [...]” (BAKHTIN apud SILVA,

2000, p. 52-53).

A partir desse momento, podemos explicitar alguns recursos que os

escritores utilizam para a criação de uma realidade ficcional (suprarealidade),

tendo como ponto de partida a sua realidade factual.

O intertexto ou intertextualidade (conceito estabelecido por Julia Kristeva

nos anos 1960, baseado em estudos de Mikhail Bakhtin) é um desses

recursos. Como o próprio termo sugere, a intertextualidade refere-se à relação

entre textos - grande tecido de significações que unem o homem e o texto em

si. Podemos considerar que o intertexto é um aspecto inerente ao homem, já

que este (direta ou indiretamente) utiliza o que já foi criado para que possa

produzir a sua própria obra. O intertexto funciona como uma espécie de “troca

de olhares” entre texto e leitor a partir do momento em que a significação do

texto dar-se-á se o leitor perceber e compreender as pistas que o texto

apresenta para essa produção de sentidos. Reiteramos aqui a idéia discutida

anteriormente em relação ao leitor como sendo participante do texto literário,

como um co-autor. O leitor é participante ativo no processo de significação do

texto tanto quanto o autor. Kristeva, que divulgou os estudos de Bakhtin sobre

intertextualidade, propõe que o texto é um “mosaico de citações”, é um

enredado polifônico de vozes escondidas que devem ser desvendadas pelo

leitor.

Para exemplificar o conceito de intertextualidade, utilizaremos trechos da

primeira quintilha do poema pertencente à lírica camoniana Sôbolos Rios, que

dialoga com o salmo 136, Super flumina Babylonis identificados no texto

Sôbolos Rios: uma estética arquitectónica (sic) (1980), de Maria Vitalina Leal de

Matos: “Sôbolos Rios: ‘Sôbolos rios que vão/ por Babilónia, me achei,/ Onde

sentado chorei/ as lembranças de Sião/ e quanto nela passei.’ Super flumina

Babylonis: ‘Junto dos rios de Babilônia,/ ali nos assentamos a chorar,

/lembrando-nos de Sião.’” (MATOS, 1980, p.31) É evidente que Camões

utilizou o salmo 136 como glosa para seu poema, pois no salmo, os judeus que

Page 22: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

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saíram da Babilônia choram, à margem dos rios da Babilônia, por lembrar da

sua terra de origem enquanto que no poema camoniano, a voz poética chora, à

margem de um rio, pelo tempo passado e o seu mal presente.

A intertextualidade dá-se também por meio de paráfrases e paródias,

conceitos opostos que revelam as vozes intertextuais. O termo paródia,

segundo Affonso Romano de Sant’Anna em Paródia, Paráfrase & Cia (2003),

vem do grego para-ode que “significa uma ode que perverte o sentido de outra

ode” e “se define através de um jogo intertextual.” (p.12) Já a paráfrase, do

grego para-phrasis significa “continuidade ou repetição de um sentença.”

(p.17). Portanto, a paródia tem como objetivo dar novos sentidos a um sentido

já estabelecido, de forma que este primeiro corrompe o segundo. Para ficar

mais clara esta idéia, tomemos como texto original a primeira estrofe da

Canção do Exílio de Gonçalves Dias (1847): “Minha terra tem palmeiras/ Onde

canta o sabiá,/ As aves que aqui gorjeiam/ Não gorjeiam como lá.” (DIAS,

1950, p.65). O sentido que Gonçalves Dias imprime em seus versos serão

pervertidos por Oswald de Andrade em Canto de regresso à pátria (escrito na

metade do século XX): “Minha terra tem palmares/ onde gorjeia o mar/ os

passarinhos daqui/ não cantam como os de lá.” (ANDRADE, 1966, p.130) O

deslocamento de sentidos é bastante evidente, já que no texto de Gonçalves

Dias existe a intencionalidade da exaltação da pátria da qual a voz poética

sente saudades por estar exilado. Já na paródia de Oswald de Andrade, o

sentido modifica-se adaptando-se às propostas modernistas de contrariar a

estética tradicional, por isso os “passarinhos daqui” (os modernistas) “não

cantam como os de lá” (românticos, como Gonçalves Dias).

Ainda tendo como texto original a Canção do Exílio, explicitaremos o

conceito de paráfrase. Carlos Drummond de Andrade escreve o poema

Europa, França e Bahia, do qual utilizaremos a primeira estrofe: “Meus olhos

brasileiros se fecham saudosos/ Minha boca procura a ‘Canção do Exílio’./

Como era mesmo a ‘Canção do Exílio’?/ Eu tão esquecido de minha terra.../ Ai

terra que tem palmeiras/ onde canta o sabiá!” (ANDRADE, 2000, p.20) Como é

possível verificar, Drummond retoma os versos de Gonçalves Dias tal qual eles

são, sem dar novo sentido a eles, ao contrário de Oswald.

Outro conceito relativo à intertextualidade é a intratextualidade ou

“autotextualidade”, como nomeia Affonso Romano de Sant’Anna. A

Page 23: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

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intratextualidade acontece “quando o poeta se reescreve a si mesmo. Ele se

apropria de si mesmo, parafrasicamente.” (SANT’ANNA, 2003, p.62) Na

intratextualidade há um “cruzamento de textos” do mesmo autor como uma

espécie de recorte que ele próprio faz de suas obras com a finalidade de não

apenas estabelecer um diálogo entre elas, mas de inseri-las em um contexto

diverso. A intratextualidade pode ocorrer por meio da reescritura, de forma

parafrásica, de trecho de uma dada obra do mesmo autor e pode ocorrer

também por meio da retomada de personagens que são levadas a integrarem

uma outra realidade ficcional.

Para exemplificarmos a apropriação de si mesmo feita de forma

parafrásica pelo autor, aproximaremos dois poemas de Carlos Drummond de

Andrade. O primeiro, No meio do caminho, é retomado parafrasicamente pelo

segundo, Consideração do poema, como podemos verificar: “No meio do

caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma

pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra.” (ANDRADE, 2000, p.34) e “Uma

pedra no meio do caminho/ ou apenas um rastro, não importa./ Estes poetas

são meus.” (ANDRADE, 2000, p.9) Fica evidente a retomada que Drummond

faz do poema No meio do caminho em Consideração do poema quando utiliza

o segundo verso “tinha uma pedra no meio do caminho” do primeiro poema no

início da segunda estrofe do segundo poema “uma pedra no meio do caminho”.

Não houve a intenção por parte do autor em alterar o sentido do verso, por isso

podemos considerar que ocorreu uma retomada parafrásica que constitui a

intratextualidade.

Outro caso de intratextualidade fica explícito ao aproximarmos dois

romances de Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e

Quincas Borba (1891). A intratextualidade acontece por meio da personagem

Quincas Borba que, nos dois romances, aparece como um filósofo, criador da

teoria do Humanitismo, que ficou conhecida pela frase “ao vencedor as

batatas” – para que alguém sobreviva é preciso que haja sacrifício por parte de

outrem. O primeiro trecho que selecionamos é de Memórias Póstumas de Brás

Cubas, em que o escritor póstumo, Brás Cubas, e Quincas Borba assistem a

uma briga de cães durante um passeio:

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Daí a pouco demos com uma briga de cães; fato que aos olhos de um homem vulgar não teria valor. Quincas Borba fez-me parar e observar os cães. Eram dois. Notou que ao pé deles estava um osso, motivo da guerra, e não deixou de chamar a minha atenção para a circunstância de que o osso não tinha carne. Um simples osso nu. Os cães mordiam-se, rosnavam, com o furor nos olhos... Quincas Borba meteu a bengala debaixo do braço, e parecia em êxtase. [...] Quis arrancá-lo dali, mas não pude; ele estava arraigado ao chão, e só continuou a andar quando a briga cessou inteiramente, e um dos cães, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte. (ASSIS, 1997, p.215)

O segundo trecho é de Quincas Borba, em que a personagem homônima

discorre sobre sua teoria humanitista em um outro contexto:

Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas. (ASSIS, 1992, p.25-26)

Quincas Borba, portanto, é o elemento de intratextualidade entre os dois

romances já que Machado de Assis retoma a personagem sem modificar a sua

essência, de uma forma parafrásica.

É, portanto, esse diálogo entre os textos que acontece por meio da

intertextualidade que possibilita ao escritor dialogar consigo próprio e com o

leitor por meio da retomada de uma produção literária já estabelecida. É o

diálogo entre os textos que chama o leitor a imprimir também a sua voz dentro

do texto, fazendo assim que o leitor também tenha voz ativa para dialogar com

as demais vozes que aparecem dentro do texto.

Por outro lado, a verossimilhança pode ser definida, em linhas gerais,

como “aquilo que parece verdadeiro”, verossímil, estabelecendo uma relação

ambígua entre imagem e idéia. O conceito de verossimilhança foi estabelecido

por Aristóteles em seu livro Poética, que responsabiliza a verossimilhança pela

distinção entre a obra do poeta e do historiador. A verossimilhança não é o que

aconteceu, mas o que poderia acontecer, ou seja, o possível:

Page 25: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

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... Tanto na representação dos caracteres como no entrecho das ações, importa procurar sempre a verossimilhança e a necessidade; por isso, as palavras e os atos de uma personagem de certo caráter devem justificar-se por sua verossimilhança e necessidade, tal como nos mitos os sucessos de ação para ação. (ARISTÓTELES, p. 214).

Na literatura, a verossimilhança remete à idéia de que aquilo que está

sendo narrado assemelha-se à realidade, ou seja, a realidade ficcional aparece

tão bem retratada pelo autor da narrativa que, muitas vezes, confunde o leitor,

fazendo com que este se questione sobre o que está lendo. O texto torna-se

verossímil quando este questionamento vem à tona pelo leitor; a realidade

factual e ficcional misturam-se de tal forma que se torna quase impossível, em

uma leitura superficial, distingui-las na narrativa. A escolha das palavras para o

enriquecimento de um texto literário é primordial, mas o uso da verossimilhança

preenche as lacunas que estas palavras possam apresentar e fazem uma

referência do real no texto ficcional.

Seguindo os conceitos apresentados pela Teoria da Literatura, faremos

agora um avanço cronológico e iremos de Aristóteles a Mikhail Bakhtin para

abordarmos os conceitos de dialogismo e polifonia. Segundo Bakhtin, “o

diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das

formas, é verdade que uma das mais importantes, da interação verbal (...).”

(BAKHTIN, 1992, p. 123). O diálogo entre uma ou mais pessoas necessita da

interação verbal entre elas para que possa ocorrer. Este diálogo, interno ou

externo, escrito ou falado, acontece por meio do uso da linguagem. A ação que

ocorre entre os interlocutores apresenta-se sempre variável, independente do

local ou o tempo ocorrido, esse diálogo sempre apresentará variações de

contexto. Bakhtin define como dialogismo este processo de interação entre os

textos, já que o texto nunca é visto isoladamente, sempre há diálogos entre o

texto e o leitor e o texto e outros textos. Na visão bakhtiniana:

... a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações.(ibid, p. 123).

Apesar dos termos serem bem próximos, dialogismo e polifonia são dois

conceitos distintos que não devem ser confundidos. Sendo o primeiro o

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princípio do diálogo entre interlocutores, o termo polifonia caracteriza-se por

vozes polêmicas em um discurso, onde cada personagem com sua ‘voz’

apresenta sua visão de mundo dentro do texto, com suas opiniões e ideais a

serem defendidos. Para Bakhtin, o gênero romance é polifônico por natureza,

por apresentar diferentes vozes que se chocam entre si, manifestando suas

diferentes idéias e suas diferentes concepções sobre a realidade na qual estão

inseridas. O vocábulo polifonia vem do grego e significa “muitas vozes”,

reforçando o conceito proposto por Bakhtin. O texto apresenta-se como um

emaranhado de vozes; cada qual defende seus propósitos mostrando ao leitor

suas visões de mundo e tentando persuadi-lo.

O diálogo apresenta-se por trás de uma única voz que se faz

predominante no texto, que dissimula as outras vozes. Na polifonia isto não

ocorre; cada voz surge em um momento adequado para expor sua concepção

de mundo sobre um determinado objeto.

Os conceitos de dialogismo e polifonia remetem a um outro que teve sua

gênese no âmbito musical, mas que foi adaptado à literatura: o contraponto. Na

música, o contraponto significa os vários tipos de sons que são executados ao

mesmo tempo, contrariando as regras de harmonia musical; na verdade, uma

polifonia musical. Na literatura, este termo foi usado, pela primeira vez por

Aldous Huxley, escritor inglês, que, em 1928, escreveu o livro Point

Counterpoint (Contraponto). A técnica do contraponto que Huxley explora em

seu livro consiste em contar histórias que ocorrem paralelamente e que podem

ou não se cruzar, como define o escritor Philip Quarles, personagem de

Contraponto: “O que precisamos é de um número suficiente de personagens e

intrigas paralelas, contrapontísticas.” (HUXLEY, 1971, p.302). Em seu livro,

Huxley justapõe as situações vividas por personagens diferentes, fazendo com

que cada história aconteça simultaneamente. Em Contraponto, a técnica

homônima desenvolve-se por meio das sensações das personagens que

pertencem à classe aristocrática em relação à falência das instituições sociais –

casamento, família, religião, etc. – no período entre as duas grandes guerras.

Além disso, os conflitos existenciais agravam-se no romance, pois as

personagens vivem um momento de crescimento tecnológico e intelectual

excessivos, que passam a ser inúteis já que esse avanço inviabiliza as

relações interpessoais e deixa de lado os valores humanos nas sociedades.

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Philip Quarles e Mark Hampion, personagens do livro de Huxley, mostram essa

preocupação em relação ao momento de transformação em que vivem,

evidenciando a técnica do contraponto, já que têm pensamentos parecidos,

mas vivem histórias diferentes:

... Philip acreditava realmente na selvageria nobre; convencia-se de que o intelecto orgulhosamente consciente devia humilhar-se um pouco e admitir as reivindicações do coração - sim, e das entranhas, dos rins, dos ossos, da pele e dos músculos - a uma parte razoável da vida. O coração de novo! (HUXLEY, 1971, p.201) Rampion queixou-se a mim de que ambos os filhos tinham a paixão das máquinas – autos, trens, aviões, rádios. - É contagioso, como a varicela. O amor da morte anda no ar. Eles o respiram, ficam contaminados. Tento persuadi-los a amar outra coisa. Mas eles não querem ouvir nada. A mecânica é a única coisa que os seduz. [...] Dir-se-ia que os moços estão absolutamente determinados a levar o mundo para um fim – a mecanizá-lo primeiro até a loucura e depois até o assassínio puro e simples. [...] é terrivelmente humilhante que os seres humanos tenham dessa maneira semeado a desorganização por toda a parte. (ibid, p.325)

Outro recurso muito empregado na literatura é a ironia, que de acordo

com Beth Brait contém:

... traços que reiteram a ambivalência de significação, a dupla isotopia1, a confluência enunciativa, enfim a maneira de um discurso lidar com outros para colocá-los em evidência. (BRAIT, 1996, p. 107).

Este conceito que basicamente consiste em dizer o contrário do que se pensa,

é uma ferramenta que trabalha por diferentes prismas, podendo denunciar,

satirizar, criticar ou censurar fatos, atitudes ou até mesmo pessoas. Um

exemplo de ironia fica evidente no poema “Os Sapos” de Manuel Bandeira

onde o enunciado afirma um tipo de fazer poético e a enunciação nega:

... O sapo-tanoeiro2,/Parnasiano aguado,/Diz: - "Meu cancioneiro/É bem martelado./Vede como primo/Em comer os hiatos!/Que arte! E nunca rimo/Os termos cognatos./O meu verso é bom/Frumento3 sem joio4./Faço rimas com/Consoantes de apoio./Vai por cinqüenta anos Que lhes dei a norma:/Reduzi sem danos/As formas a forma./Clame

1 Isotopia é uma propriedade que têm os enunciados de serem substituídos por equivalentes no plano do conteúdo, embora sejam diferentes no plano da expressão. 2 O que faz ou conserta vasilhas de aduela (barris, cubas, pipas, etc.). 3 A melhor espécie de trigo. 4 Planta gramínea que nasce entre o trigo e o danifica, no sentido figurado: coisa de má qualidade que prejudica as que são boas.

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a saparia/Em críticas céticas: /Não há mais poesia,/Mas há artes poéticas...” (BANDEIRA, 1993, p. 80);

A ironia é uma constante neste poema, pois critica a poesia parnasiana e o seu

fazer poético. A própria metáfora da figura dos sapos remete a um humor

irônico, denunciador e proposital. Manuel Bandeira chama de sapos os poetas

parnasianos que somente aceitavam a poesia rimada, formal, como os

sonetos. Bandeira ironiza as reclamações dos parnasianos comparando-as

com o coaxar dos sapos no rio. Todo o poema é uma crítica aos conceitos do

parnasianismo que vigorou nas décadas finais do século XIX e no início do XX.

Outro recurso aplicado à Teoria da Literatura refere-se a construção da

personagem. Esta, por sua vez, é de caráter fundamental em muitos textos,

porque é por meio dela que alguns autores chegam à essência de sua

narrativa. A proximidade entre os seres humanos e as personagens fictícias é

enorme fazendo com que estas tornem-se quase reais. Para Antonio Candido:

A personagem é complexa e múltipla porque o romancista pode combinar com perícia os elementos de caracterização, cujo número é sempre limitado se os compararmos com o máximo de traços humanos que pululam5, a cada instante, no modo-de-ser das pessoas. (CANDIDO, 1968, p.59-60).

Em O Cortiço, de Aluísio Azevedo, pode-se notar esta perspicácia de

que fala Antonio Cândido. O cortiço é o protagonista da trama, é o lugar onde

vivem muitas personagens com suas histórias, retratando uma visão coletiva

da época. O autor traça um painel sobre a sordidez e os vícios humanos. São

as minúcias das personagens que fazem com que o leitor identifique o

momento e entenda suas ações.

... A comida arranjava-lha, mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego, residente em Juiz de Fora e amigada com um português que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade. (AZEVEDO, 1999, p. 13).

... Comprou-a um tal de Miranda, negociante português, estabelecido na Rua do Hospício com uma loja de fazendas por atacado. Corrida uma limpeza geral no casarão, mudar-se-ia ele para lá com a família, pois que a mulher, D. Estela, senhora pretensiosa e com fumaças de

5 Multiplicam, germinam.

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nobreza, já não podia suportar a residência no centro da cidade, como também a sua menina, a Zulmirinha, crescia muito pálida e precisava de largueza para enrijar e tomar corpo. (ibid, p. 16).

Antonio Candido ainda enfatiza a questão da proximidade com o ser

humano, causando no leitor uma ambivalência entre o factual e o ficcional:

... a personagem deve dar a impressão de que vive, de que é como um ser vivo. Para tanto, deve lembrar um ser vivo, isto é, manter certas relações com a realidade do mundo, participando de um universo de ação e de sensibilidade que se possa equiparar ao que conhecemos na vida. (CANDIDO, 1968, p. 64-65).

Estes recursos apresentados são freqüentemente empregados por

muitos escritores da nossa literatura. Vamos nos ater, contudo, ao romance

Incidente em Antares, de Erico Verissimo, para verificar como podem

estabelecer intersecções entre a realidade e a ficção, estabelecendo maior

atenção à questão histórica e política da narrativa verissiana.

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CAPÍTULO 2: O ROMANCE INCIDENTE EM ANTARES

... alguém em sã razão acredita que sete defuntos podem erguer-se de seus esquifes e descer para a praça principal de sua cidade e instalar-se num coreto para dali discutir suas diferenças com os vivos? Pois isso aconteceu na cidade de Antares. Na sexta-feira 13 de dezembro de 1963. Palavra de honra!

Erico Verissimo

Convidado a escrever a sinopse de Incidente em Antares para a primeira

publicação do livro pela Editora Globo, em 1971, Erico Verissimo jocosamente

rejeitou o convite dizendo que era melhor não fazê-lo a aceitar o desafio e

arruinar a publicação como fez um tradutor, segundo anedota popular, que ao

traduzir uma novela policial deu-lhe o título de “Misterioso Crime Cujo Culpado

Foi o Próprio Mordomo”.

Incidente em Antares pode ser visto como um dos livros mais diferentes

e por que não dizer “estranhos” de toda a sua obra. Considerado um romance

político, Incidente em Antares assume um papel crítico dentro do momento

histórico em que o Brasil atravessava: a ditadura militar. E agregada à ditadura,

a censura era determinante no seu trabalho de calar toda e qualquer

manifestação artística que fosse contra os dogmas do governo, como

verificamos no capítulo anterior. Não podemos deixar de registrar que depois

de dois meses do lançamento do livro, este foi censurado e recolhido das

livrarias. Mas como o próprio Erico disse quando Incidente em Antares foi

publicado “... abri a veia da sátira e deixei seu sangue escorrer livre e

abundantemente.”

A pequena e imaginária cidade gaúcha de Antares, localizada às

margens do Rio Uruguai e ao norte de São Borja – mais precisamente na

fronteira do Brasil com a Argentina - carrega o nome da estrela da constelação

de Escorpião, mas seus primeiros habitantes não sabiam se de fato a cidade

recebera esse nome por causa da estrela ou porque era o lugar onde existiam

muitas antas. A primeira parte do livro, denominada “Antares”, apresenta,

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então, todo esse cenário histórico, político e social de Antares, seus costumes,

crenças, mentiras e verdades que preparam o ambiente para o fatídico

episódio de 13 de dezembro de 1963.

A narrativa tem seu início na Era Pré-Histórica da região, com seus

gliptodontes6 e megatérios7 fossilizados. Mas para trazer à tona as origens da

formação social de Antares, a narrativa avança um milhão de anos, chegando

ao século XIX, especificamente a 1831. O leitor é convidado a conhecer as

duas famílias que detêm e disputam o poder político, social e econômico

antarense durante cerca de setenta anos: Vacarianos e Campolargos. Serão os

descendentes dessas duas oligarquias antarenses os protagonistas e

coadjuvantes do macabro incidente. A guerra entre estes dois clãs permeia

todo o romance e funciona como uma grande metáfora dos entraves entre os

partidos liberal e conservador que travaram grandes conflitos no Brasil,

principalmente nas décadas de 1960 e 1970. Erico escreve sobre as oscilações

ocorridas no sistema político do país, sem perder o viés ficcional de seu texto:

Homem de algumas letras, Anacleto Campolargo organizou na vila o Partido Conservador, o que bastou para que Chico Vacariano, até então um tanto indiferente em matéria de política, tratasse de organizar o Partido Liberal. Assim, Antares passou a ter dois senhores igualmente poderosos. (Incidente em Antares, p.11)

Erico Verissimo utiliza em sua narrativa fatos reais e os entrelaça com a

ficção para dar veracidade ao seu texto. A narrativa lembra o gênero novela,

principalmente nesta primeira parte, já que há a narração de um século de

existência antes do trágico incidente e essa narração funciona como

valorização para um evento principal, no caso o incidente.

A segunda parte, intitulada “O Incidente”, que é menor

cronologicamente, mas maior em número de páginas, conta o que de fato

aconteceu no dia do “incidente” (e suas conseqüências) depois que os coveiros

da cidade, que estavam em greve, recusaram-se a sepultar sete mortos. A

partir deste acontecimento, os problemas de Antares são discutidos de forma

6 “...animal antediluviano, que, segundo as reconstituições gráficas da Paleontologia, era uma espécie de tatu gigante dotado duma carapaça inteiriça e fixa [...] afora o formidável rabo à feição de tacape riçado de espigões pontiagudos.” (VERISSIMO, 1971, p.1) 7 Assemelham-se aos gliptodontes. São da família dos mamíferos, desdentados e de porte grande. Fósseis encontrados nas Américas, principalmente na do Sul.

Page 32: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

31

direta e a verdadeira identidade de seus personagens é revelada como no fim

de um baile de máscaras. O “incidente” revela toda uma sociedade por trás do

que pode ser visto, ou seja, Erico Verissimo denuncia uma sociedade auxiliado

pelo recurso do fantástico. O toque sobrenatural dado à trama confere à

narrativa um tom particular e bastante perspicaz, já que é por meio dele que as

personagens ganham liberdade para criticar a sociedade hipócrita em que

vivem.

Incidente em Antares possui um caráter panorâmico que conta com uma

vasta vitrine de tipos simbólicos, inclusive a própria cidade de Antares.

Panorâmico porque por meio da dinâmica da cidade, de sua sociedade,

conceitos, valores e tradições, vemos uma espécie de maquete representativa

do Brasil. Vários assuntos, temas e problemas discutidos dentro do

microcosmo que Antares representa são os mesmos que o macrocosmo, no

caso o país, enfrentava na época em que o livro foi lançado, sendo difícil

distinguir, muitas vezes, se estamos diante de uma realidade ficcional ou

factual. Tanto é que Erico Verissimo, em nota que abre o livro, adverte:

Neste romance as personagens e localidades imaginárias aparecem disfarçadas sob nomes fictícios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade existem ou existiram, são designados pelos seus nomes verdadeiros.

Dessa forma, Incidente em Antares é um convite à reflexão sobre o país

nas décadas de 1960-1970 e uma instigante provocação à sociedade

contemporânea que esconde sua verdadeira face por detrás da máscara das

convenções e conveniências. Basta o leitor aceitar o convite e despir-se por

completo de suas máscaras sociais diante das páginas reveladoras de Erico

Verissimo.

2.1 Os recursos literários na relação entre realidade e ficção em

Incidente em Antares

Observa Lygia Fagundes Telles em O Contador de Histórias (1978) que:

O bom romancista é ao mesmo tempo um anjo e um cavalão, trabalha com as asas (as coisas mais finas, mais espirituais, mais belas) e com as patas, isto é, o trabalho braçal, a resistência física e,

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[...] a paciência cavalar. Mas confio acima de tudo no instinto. Que o anjo trabalhe montado no cavalo. E que no fim desapareça de todo a marca das patas e fique apenas a luz das asas. (p.21)

O romancista, em outras palavras, é como um artesão que, ao mesmo

tempo em que trabalha com a matéria bruta, lança mão de toda a sua

capacidade artística para imprimir em sua obra a delicadeza e poesia de seu

talento. Erico Verissimo pode ser considerado esse romancista-artesão, já que

por meio dos instrumentos que a literatura lhe apresentava pôde montar em

seu cavalo – como bom gaúcho – e construir seus textos.

Incidente em Antares foi concebido por um Erico Verissimo montado no

cavalo da tradição de seu povo, carregado de historicidade e de luta por

expressão em uma época em que esta era considerada ultraje diante das

políticas vigentes. Mas, mesmo assim, contrariando seu tempo e impulsionado

pelos ventos de seu compromisso literário, o escritor usou traços mais firmes

para questionar o momento em que vivia:

... em Incidente em Antares procurei fazer uma crítica à nossa sociedade burguesa contemporânea. Em outros livros eu tentara o mesmo, mas timidamente, usando o lápis em traços leves. No romance que estamos comentando, recorri à tinta nanquim. Tive por vezes de segurar o satirista que me habita, para que ele não cometesse excessos que poderiam transformar o Incidente num panfleto de caráter primário. Sim, trata-se, sem a menor dúvida, de um livro de natureza política, econômica e social. Confesso que escrevi esse livro ‘macabro’ com grande prazer. É um dos meus romances prediletos. (FURLAN, 1977, p.56)

Foi com essa tinta nanquim que Erico Verissimo desenhou uma cidade,

até então desconhecida de seu público, que tem na etimologia de seu nome o

que podemos chamar de “destino traçado”:

... a palavra ‘Antares’ é de etimologia grega e compõe-se do prefixo ‘anti’, contra, e ‘Ares’, guerra, batalha, assassinato, destruição, peste. ‘Ares’ é o nome mitológico que os gregos davam ao deus da guerra, assim como os romanos lhe atribuíam o nome de ‘Marte’.” (ibid, 1977, p.71)

Devemos atentar ao fato de que Antares é ao mesmo tempo cenário e

personagem já que será em sua praça principal que ocorrerá o incidente que

divulgará o seu nome para todo o mundo. O evento macabro que constitui o

Page 34: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

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incidente já está subentendido em parte do nome da cidade que significa peste,

destruição. Mas temos o prefixo anti-, negando essa carga de significação. Ou

seja, o nome da cidade gaúcha que Erico Verissimo criou, na verdade, tem

caráter pacificador a partir do momento em que Antares significa “anti-

guerra/batalha/destruição”. A narrativa, mesmo antes de iniciar-se, já mostra a

que veio, o que combate, o que critica. Para tal, o autor utiliza-se da ironia com

o intuito de denúncia, crítica e, em algumas partes, o próprio escárnio. A ironia

como recurso literário que está presente no nome da cidade faz-se presente a

partir do momento em que cumpre seu papel de “dizer [...] o contrário do que

se pensa ou do que se quer que se pense” (FONTANIER apud

MAINGUENEAU, 2001, p.94) Este recurso de caráter polifônico, que possibilita

ouvir outras vozes por trás de uma idéia, confere ao nome da cidade gaúcha a

possibilidade de evidenciarmos toda a ideologia por trás do romance. A

denúncia de um cenário de violência, da hipocrisia humana, das desigualdades

sociais, do falso moralismo são combatidos na trama sob o véu irônico que

cobre toda a narrativa. O ponto de partida para o desenvolvimento dessa ironia

dá-se justamente pelo nome da cidade e sua significação e, como veremos

mais à frente, por meio dos nomes das personagens e de suas falas.

Ainda sobre o nome “Antares”, fica registrado no romance que as

personagens não têm o conhecimento da etimologia do nome da cidade e,

portanto, desse “destino traçado” que o nome lhe confere. O Professor Martim

Francisco Terra, personagem de Incidente em Antares, docente ficcional da

Universidade do Rio Grande do Sul (U.R.G.S.) e autor do livro fictício sobre a

cidade de Antares Anatomia duma cidade gaúcha de fronteira, escreve em seu

diário:

Antares. O nome me encanta e intriga. Como se explica que, nesta região onde outrora foram as reduções jesuíticas, encontra-se hoje uma cidade com nome de estrela e não de santo? Na opinião do Pe. Gerôncio, o velho vigário da Matriz local, a denominação deste lugar vem possivelmente de terem existido aqui antigamente muitas antas, que vinham beber água no rio, e a semelhança entre o nome deste lugar e o da estrela da constelação de Escorpião é pura coincidência. A explicação não me convence. Acho que por aqui passou ou aqui viveu há mais de cem anos alguém, talvez algum estrangeiro, que tinha noções de astronomia.’ (Incidente em Antares, p.149)

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Dessa forma, as personagens desconhecem a verdadeira identidade da

cidade, como desconhecem também a verdadeira face dos habitantes de

Antares. Apesar de acharem que conhecem bem uns aos outros, os

antarenses não se conhecem a si próprios, já que não tiram as suas máscaras

sociais em nenhum momento. É preciso que um fato surpreendente (o

incidente) aconteça para que a verdadeira identidade da cidade e dos

antarenses seja revelada.

Antonio Cândido em Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história

literária (1985) comenta que para interpretar uma obra literária não se pode

permitir que haja a dissociação entre texto e contexto, entre fatores externos e

internos; deve existir a combinação entre esses elementos para que haja um

processo interpretativo pleno. Dessa forma, tendo como primeiro elemento

importante o significado do nome “Antares”, podemos verificar que o livro tem

caráter crítico a todo e qualquer tipo de violência. Logo no início de Incidente

em Antares, verificamos exatamente que uma das características principais do

gaúcho retratado na trama é o da violência e que esta passa de geração para

geração como um atributo hereditário:

... parte do rebanho de gado que o Sr. Vacariano hoje possui é formado de descendentes dos bois e vacas que o seu pai roubou na Argentina, aproveitando a confusão de tempos de desordens e lutas intestinas no país vizinho. O guia me pediu discrição absoluta, quanto a essas informações, pois, ao que diz, o Sr. Vacariano é um homem violento e vingativo. (Incidente em Antares, p.4)

O mesmo clima de violência que se apresenta em Incidente em Antares

mostra-se no momento em que o autor escreve o livro, final da década de 1960

e início da de 1970, em que o país passou por sucessivos regimes militares.

Ora, se a violência hereditária da população antarense, de certa forma, remete-

nos aos sucessivos regimes militares e seus esquemas de tortura, temos aí

uma voz dominante que aparece por meio do nome “Antares” combatendo

esse cenário. Erico aproveita este ambiente conflituoso e emprega, com mérito,

a ironia, partindo da escolha do nome da cidade “Antares”. Tendo o nome um

caráter ambíguo, Erico continua em seu trabalho selecionando os nomes de

suas personagens com o cunho de crítica social. Percebe-se, no decorrer do

romance, que os nomes escolhidos pelo autor não foram selecionados

Page 36: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

35

aleatoriamente, todos apresentam uma explicação na sua etimologia ou até

mesmo na história e auxiliam na construção de suas características físicas,

psicológicas e sociais.

O texto, antes mesmo de seu início, simplesmente pelo título, já dialoga

com o leitor atento às minúcias que permearão toda a narrativa, como afirma

Wilson Martins no artigo Érico Veríssimo em Ciclos (1968) sobre a obra do

autor: “... uma obra cuja aparente simplicidade esconde maiores finuras [...]”. O

caráter dialógico do livro é intenso em toda a sua extensão. Vemos esse

recurso como a alavanca para que outros recursos literários possam

efetivamente manifestar-se.

Recorrendo à tinta nanquim, como confidenciou Erico Verissimo, o autor,

após esquematizar todo o cenário da cidade de Antares e dar ao leitor pistas

sobre os acontecimentos do povoado por meio da significação de seu nome,

prepara a caneta para construir as personagens da trama. As personagens de

Incidente em Antares, mais do que tipos humanos criados a partir de

estereótipos, são vozes distintas dentro de uma sociedade marcada pela

hipocrisia e convenções sociais. É por meio delas que o leitor pode dialogar

com o momento histórico em que estão inseridas e compreender melhor seus

papéis dentro da situação ficcional como uma forma de ligação entre texto e

contexto, entre o interno e o externo.

A construção das personagens de Incidente em Antares vai além do

conceito aristotélico de mimesis, por muitos traduzido como “imitação do real”:

...como os imitadores imitam homens que praticam alguma ação, e estes, necessariamente, são indivíduos de elevada ou de baixa índole [...] necessariamente também sucederá que os poetas imitam homens melhores, piores ou iguais a nós, como fazem os pintores. (ARISTÓTELES, 1987, p.202)

Esta concepção de personagem que se baseava na mimesis foi

substituída por outro conceito que surgiu a partir da segunda metade do século

XVIII: “uma visão psicologizante que entende personagem como a

representação do universo psicológico de seu criador.” (BRAIT, 2002, p.37) A

isso, soma-se a nova forma de abordagem do romance que surgiu no mesmo

século: “...o romance entrega-se à análise das paixões e dos sentimentos

humanos, à sátira social e política e também a narrativas de intenções

Page 37: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

36

filosóficas.” (ibid, p. 37) Assim sendo, a personagem passa de “imitação do

real” para recurso literário por meio do qual o escritor pode fazer uma análise e

uma crítica do momento em que vive. O século XX trouxe contribuições a essa

concepção de personagem do século XVIII, principalmente por György Lukács

e sua Teoria do Romance (1920), em que “... a personagem continua sujeita ao

modelo humano” (LUKÁCS apud BRAIT, 2002, p.39) e, dessa forma, está

sujeita também às influências das estruturas sociais.

É de fácil percepção o grande número de personagens nos romances de

Erico Verissimo, o mesmo ocorrendo em Incidente em Antares. Apesar de

muitas, vê-se que há uma primorosa construção em todas elas. Suas

características físicas e psicológicas, seus trajes e costumes e, principalmente

seus discursos são elaborados de tal forma que o leitor consegue visualizá-las.

Este trabalho de construção da personagem é fruto de uma literatura de

excelência.

No romance, ela é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor que, delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim, que é, na vida, do outro [...] que pode consistir numa escolha de gestos, de frases, de objetos significativos marcando a personagem para a identificação do leitor, sem com isso diminuir a impressão de complexidade e riqueza. (CANDIDO, 1981, p. 58).

As personagens de Incidente em Antares são minuciosamente

construídas tendo-se uma preocupação voltada à verossimilhança. As

características das personagens funcionam como uma prévia do

comportamento das mesmas, antecipando ao leitor, suas personalidades e

suas ideologias. A figura do padre, por exemplo, espelha uma luta do bem

contra o mal; a do coronel, uma autoridade sem limites e assim

sucessivamente em todas as personagens no decorrer da narrativa.

Pouco a pouco Anacleto Campolargo foi conquistando amigos e impondo-se ao respeito e à estima de boa parte da população antarense. [...] Agressivo, opiniático, autoritário, o patriarca do clã dos Vacariano era um sujeito sem tato. Suas palavras em geral soavam como chicotadas. O maioral dos Campolargos, porém, sinuoso e macio, cultivava o murmúrio, sabia “manipular” suas emoções e modular o tom da voz de acordo com a sua conveniência e os seus propósitos. (Incidente em Antares, p. 11).

[...]

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37

Aos quarenta e dois anos, era Tibério Vacariano um homem alto e corpulento, de cabeça leonina, cara larga dum moreno claro, olhos meio enviesados e escuros, denunciando antepassados bugres, denúncia essa confirmada pelos malares um pouco salientes e pela basta cabeleira negra e lisa. (ibid, p. 48).

Partindo desses conceitos é que as personagens centrais do romance

de Erico Verissimo são construídas. Assim como o topônimo8 de Antares, os

antropônimos9 das personagens mais expressivas da trama são significativos,

pois mesmo antes de o leitor conhecê-las por meio de suas ações elas lhe dão

indícios de como será seu comportamento por meio de seus nomes. O estudo

dos antropônimos feito por Oswaldo Antônio Furlan em Estética e crítica social

de Incidente em Antares (1977) servirá como uma das fontes para verificarmos

que, de fato, os nomes das personagens antarenses são decisivos para

caracterizá-las dentro da trama. A significação dos antropônimos das

personagens centrais do romance será ratificada por trechos do romance em si

para que a compreensão da ideologia dos nomes seja plena:

CORONEL TIBÉRIO VACARIANO:

...alguém que, à semelhança de Tibério, imperador do vasto império romano, detém, em Antares, vasto poder econômico (é latifundiário) e que, através desse poder, exerce grande influência social e política [...] (FURLAN, 1977, p.66) [...] ninguém nunca ficou sabendo ao certo por que o velho Xisto dera ao seu primogênito o nome dum imperador romano de tão equivocada fama. (Incidente em Antares, p.38) A rica figura do chefão do vasto clã dos Vacarianos, fundadores da cidade, e que se chama Tibério. (Seu pai não devia conhecer muito bem a biografia dos imperadores de Roma) (ibid, p.150) Agora acima de Deus, acima da Pátria, acima da Família, o nosso Tibério, imperador de Antares, adora a Propriedade, e é capaz de matar e até de arriscar-se a morrer para defender suas propriedades, aumentando-as à custa da propriedade alheia. [...] (ibid, p.355)

O Coronel Tibério Vacariano carrega em seu nome heranças da

ancestralidade de sua família, marcada pelo sobrenome “Vacariano”, motivo de

8 Nome próprio de um lugar. Do grego topos (lugar) + onyma (nome). 9 Nome próprio de pessoas. Do grego antrophos (homem/pessoa) + onyma (nome)

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orgulho e tradição, mas em contrapartida, leva o nome de “Tibério”, segundo

imperador romano da dinastia Julio-Claudiana, conhecido por ter uma vida

pessoal de comportamentos duvidosos. Segundo o escritor latino Gaius

Suetonius Tranquillus, o imperador Tibério era pedófilo e recrutava crianças

para cerimônias obscuras. O Coronel Tibério Vacariano, por sua vez, mantém

um comportamento duvidoso que chega ao conhecimento de todos por meio

das acusações feitas pelos sete defuntos no dia do incidente, mas este

comportamento refere-se aos seus casos amorosos com mulheres do

prostíbulo da cidade e negociatas ilegais. Verificamos, por meio do nome e das

ações do Coronel Tibério Vacariano, uma crítica à burguesia recalcada no

moralismo social, mas que cultiva intimamente a hipocrisia humana.

MAJOR VIVALDINO BRAZÃO:

O nome do Prefeito, ‘Vivaldino’, exprime o que ele realmente é: velhaco, trapaceiro, astuto. O próprio narrador parece insinuar tal sentido ao atentar para o seu ‘par de olhos vivos’ (p.153) [...] ‘Brazão’, provável cacografia10 de ‘Brasão’, caracteriza-o como nobre, pois ‘brasão’ significa escudo heráldico; insígnia de fidalguia; título de nobreza e glória. (FURLAN, 1977, p.66-67) ...Vivaldino acabou eleito deputado estadual pelo P.S.D. de Antares, sob a proteção do Cel. Tibério Vacariano – “e hoje, o amigo vê, tenho a minha casa, a minha posição e, afinal de contas, modéstia à parte, ser prefeito de Antares não é tão pouca coisa...”. (Incidente em Antares, p.155) Sabe usar com oportunidade – já notei – o que eu chamaria de “a sua risada de galpão” – uma risada de garganta, em hê aspirado, franca, cascateante, espécie de chocalho folgazão, com um certo quê de debochado [...] (ibid, p.155)

O prefeito de Antares, como o seu próprio nome faz-nos evidenciar, é

um homem “vivo” no sentido de esperto, alerta para todas as situações que o

circundam. No primeiro trecho selecionado de Incidente em Antares, é possível

perceber essa característica de sua personalidade já que ele consegue entrar

para a política sob “proteção” do Coronel Tibério Vacariano. Ou seja, os seus

méritos, a sua nobreza, o seu “brasão” são de fachada. Essa nobreza de

fachada está explícita em seu sobrenome “Brazão” que, como sugere Furlan, é

uma cacografia de “brasão”. O equívoco ortográfico proposital confere à

10 Erro ortográfico. Do grego kakós (mau) + graph (escrever).

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personagem um tom irônico que prenuncia as suas atitudes dentro do

romance. Apesar de ser a autoridade máxima da cidade, sua glória só foi

conseguida por meio de eleição forjada, “protegida”. É por meio da trapaça que

consegue o seu brasão. É interessante verificar que a classe política sofre

crítica por meio de Vivaldino Brazão: político trapaceiro que se apaixona pela

política pelo que ela lhe pode dar em troca, pelo título e não como uma

ferramenta de auxílio à população. Intensifica-se, portanto, a crítica se

levarmos em conta como eram feitas as escolhas políticas no período da

ditadura. Nomes eram indicados e escolhidos de acordo com a conveniência

dos militares, era uma escolha sob “proteção”.

DELEGADO INOCÊNCIO PIGARÇO:

...ele é o responsável pela morte do inocente João Paz e pelas torturas [...] o que lhe acarreta a acusação de ‘assassino perverso’. Essa contradição flagrante entre o nome e os atos permite afirmar que o narrador se valeu da denominação para tornar mais sensível a insânia das torturas políticas por ele perpetradas. (FURLAN, 1977, p.67) ...o delegado de Antares, Inocêncio Pigarço, que é um homem cruel, um torturador de prisioneiros políticos, costuma dizer que o Jango e o Brizola estão cutucando o dragão com vara curta. (Incidente em Antares, p.186)

Inocêncio Pigarço não escapa da ironia por trás de seu nome. Apesar da

personagem não ter como característica de personalidade a inocência, seu

nome é preenchido por esse significado. Podemos ver na imagem da

personagem o estereótipo dos delegados torturadores do período de ditadura

militar brasileira. Sem escrúpulos, matavam inocentes e não tinham nenhum

respeito em relação ao ser humano. Inocêncio Pigarço manda matar João Paz,

suspeito de participar de um grupo comunista antarense cuja existência era

desconhecida. Vê-se, nesse ponto, o quão subjetivo era o julgamento que se

fazia de possíveis transgressores das leis – as perseguições a determinadas

pessoas eram feitas, geralmente, mediante suspeita sem fundamento e sem

provas concretas de real envolvimento desses indivíduos em ações contra o

governo. Além de torturar João Paz, o delegado manda torturar a esposa do

rapaz, Rita Paz, que estava grávida, para tentar conseguir as informações que

desejava. Intensifica-se aí o caráter insano, como pontua Furlan, das torturas

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políticas e a “não-inocência” de Inocêncio Pigarço em relação a esses atos,

uma vez que ele comandava as sessões de tortura dentro de sua própria

delegacia. Verificamos o externo dialogando com o interno da trama no

momento em que o cenário de tortura política do período de ditadura militar no

Brasil assemelhava-se a essa realidade ficcional.

QUINTILIANO DO VALE, MIRABEAU DA SILVA E DR. LÁZARO

BERTIOGA:

O narrador vale-se do nome do famoso reitor latino, espírito clássico e judicioso, autor de Institutiones Oratoriae, ‘Quintiliano’, para identificar o Juiz QUINTILIANO DO VALE. O Promotor de Justiça é designado pelo nome de MIRABEAU DA SILVA, que lembra o do sábio e orador francês, partidário da monarquia constitucional [...] O médico é chamado pelo nome bíblico de ‘Lázaro’, LÁZARO BERTIOGA [...] Os três são acusados de terem sido cúmplices do falseamento da causa mortis do torturado João Paz [...] bem como de serem hipócritas e farsantes [...] (FURLAN, 1977, p.67, grifo do autor) O Dr. Quintiliano [...] não se entregou: “Pois se a coisa é assim [...] bastaria então que o lema dos Legionários da Cruz se falasse apenas em Deus, pois a idéia de Deus, na sua universalidade incomensurável, abrange tudo: Ele próprio, as suas leis, a sua ordem cósmica e moral, a Pátria, a Família, a Humanidade.” (Incidente em Antares, p.180) Dr. Mirabeau da Silva, promotor público – um moço de cabelos louros e crespos, rosto carnudo e rosado, lembrando um anjo [...] que tivesse atingido desastrosamente a idade adulta. (ibid, p.307) ...o Dr. Lázaro, um homenzinho baixo, calvo, com cabelos grisalhos. [...] Um sujeito amável, desses de quem se costuma dizer que são “serviçais” [...] Ele próprio parece carregar com um certo orgulho satisfeito esse halo de santidade. É proprietário do maior hospital da cidade, o Salvator Mundi [...] (ibid, p.152)

Essas três personagens, que aparentemente são “acima de qualquer

suspeita”, são acusados, no dia do incidente, de serem responsáveis por forjar

documentos, a pedido do Delegado Inocêncio Pigarço, mentindo sobre a morte

de João Paz.

Dr. Quintiliano do Vale faz jus ao seu nome, já que era afeito a grandes

discursos e discussões inflamadas, como o professor de retórica, advogado,

escritor e conhecido orador latino Marcus Fabius Quintilianus. O Juiz de Direito

Quintiliano do Vale usava da retórica para driblar situações embaraçosas e

para não ser inquirido por alguns atos obscuros de que era acusado, como no

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caso da morte de João Paz. Ele foi o responsável por arquivar o processo de

investigação da morte do rapaz para que ninguém pudesse descobrir que foi a

tortura feita pelo delegado de Antares que o matara e não uma embolia

pulmonar, como foi atestado na causa mortis. Verificamos por meio dessa

personagem o diálogo entre a realidade ficcional e a factual, já que no período

da ditadura militar, muitos processos eram arquivados para que não se

pudessem concluir as investigações e viessem à tona as ilegalidades que os

representantes da lei encobriam.

Já o Dr. Mirabeau da Silva recebe o mesmo nome do Conde de

Mirabeau, jornalista, escritor, político e orador francês que recebeu a alcunha

de “O orador do povo” (L'orateur du peuple). O Promotor Mirabeau da Silva, no

trecho selecionado referente a sua descrição, é caracterizado fisicamente como

um anjo. Mas essa era a máscara social por ele usada, pois, na verdade, o

promotor infringiu as leis para falsificar documentos no caso João Paz.

Interessante perceber que o sobrenome “Silva” é, dentro da cultura brasileira,

muito comum. Apesar de ter um nome de origem francesa, portanto

aristocrática e elitista, tinha suas raízes fincadas em solo popular, sem pompa,

sem rodeios.

Dr. Lázaro Bertioga tem o mesmo nome de Lázaro, a personagem

bíblica, que fica curado de uma enfermidade por um milagre divino. Sendo

médico, esse nome o definiria muito bem, principalmente por ele ser conhecido

na cidade como um médico zeloso e que fazia caridade, tratando de pacientes

pobres. Porém, sua reputação é maculada a partir do momento em que atesta

que João Paz não morreu por causa das agressões sofridas a mando do

delegado, mas sim de embolia pulmonar.

O nome de seu hospital também é bastante significativo e irônico, já que

se chama “Salvator Mundi”, significando “Salvador do Mundo”. Na verdade, o

nome do hospital do Dr. Bertioga não está de acordo com as ações de médico

da personagem. Além de falsificar a causa mortis do atestado de óbito de João

Paz, o médico também foi envolvido no caso da morte da prostituta Erotildes,

que, por ser pobre, foi esquecida no leito para indigentes de seu hospital.

Poderia ser salva caso o doutor trouxesse antibiótico contra a tísica, doença

que levou a óbito a prostituta. Assim, nem o médico e nem seu hospital

assumem o compromisso de “salvar o mundo” e sim de levar seus pacientes a

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óbito. As ações do médico em vez de curar acabam por matar, invertendo

assim o papel social do médico na personagem em questão, cuja preocupação

é manter o seu bom convívio com os próceres de Antares – atendendo aos

seus pedidos ilegais - no lugar de desempenhar honestamente seu ofício. A

aura de “santo” do médico, de “salvador do mundo" era, na verdade, a máscara

social que ele usava perante a sociedade para que a sua verdadeira identidade

não fosse descoberta.

DR. CÍCERO SOEIRO BRANCO:

Seu nome, homônimo do mais famoso advogado e orador romano chamado Cícero, está a qualificá-lo como o exímio orador e causídico que é. Se a cor branca é símbolo universal da pureza, então o sobrenome ‘Branco’ traz a conotação da pureza moral e da santidade que não podem faltar em quem exerce uma função semelhante à do Supremo Juiz. (FURLAN, 1977, p.69) - Seja como for, o Inocêncio Pigarço não teve outra alternativa senão recorrer aos seus “métodos especiais”. - Por que não diz a palavra exata: tortura? - Ora, como advogado, cultivo quando me convém o hábito do eufemismo11. (Incidente em Antares, p.247)

O advogado Cícero Branco, conhecido por sua oratória bem articulada,

carrega essa característica em seu primeiro nome, que alude ao orador romano

Marcus Tullius Cicero. Ao poder da oratória é somado o último sobrenome do

advogado, “Branco”. Como Furlan demonstra, a cor branca simboliza a pureza

e a paz. Dessa forma, podemos verificar o caráter irônico do nome do

advogado, já que são qualidades de que ele é totalmente desprovido. Além do

envolvimento com o caso João Paz, o próprio Cícero Branco confessa, depois

de morto, que participou de um esquema ilegal de falsificação de notas fiscais

em que o Coronel Tibério Vacariano e o Prefeito Vivaldino Brazão também

estavam envolvidos. Assim, a pureza da personagem concentra-se apenas no

nome e de forma bastante irônica já que mesmo depois de morrer Cícero

continua a fraudar documentos, agora em benefício dos defuntos. Uma das

primeiras providências que toma, depois de sair de seu esquife no fatídico dia

11 Figura de estilo que tem por finalidade empregar termos mais “agradáveis” para suavizar uma expressão. Ex.: “Diabo: Ao porto de Lúcifer. Parvo: Hã? Diabo: Ao inferno! [...]” (GIL VICENTE, 2002, p.30, grifo nosso)

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43

do incidente em Antares, é ir ao cartório e pedir ao tabelião, Aristarco

Belaguarda, que altere um documento, modificando a data e reconhecendo a

firma, para que ele pudesse denunciar o esquema de que fazia parte quando

vivo. A morte não consegue apagar, ou trazer a “pureza” à vida de Cícero

Branco. Ele continua defendendo de forma ilegal o que lhe convém e imune a

qualquer tipo de julgamento, já que não é regido mais pelas leis humanas: “... a

morte me confere todas as imunidades. Estou completamente fora do alcance

da lei dos homens.” (Incidente em Antares, p.347). O advogado possui uma

face dupla, pois apesar de ser um profissional eficiente “... está sempre agindo

em defesa das in-justiças sociais.” (ALVES, 2006, p.208).

JOÃO PAZ:

‘João’ significa, em hebraico, ‘cheio de graça, Javé é misericordioso’. Pode lembrar o nome de João Batista, que, segundo informações evangélicas, também foi preso e morto pela polícia de Herodes. O leitor também poderia associá-lo com o nome de João Evangelista, apóstolo da paz e do amor. (FURLAN, 1977, p.68-69) - Este é o João Paz, jovem inteligente e idealista. Levou muito a sério o sobrenome e tornou-se um pacifista ardoroso. Organizou em Antares um comício contra a participação dos Estados Unidos na tentativa de invasão de Cuba. A polícia dissolveu-o a pauladas. Joãozinho foi preso, passou uma semana na cadeia, foi solto... tornou a ser preso. Bom, é uma estória muito comprida. (Incidente em Antares, p.237-238) - Fui torturado e assassinado na cadeia municipal pelos carrascos do delegado Inocêncio Pigarço. (ibid, p.238)

João Paz foi vítima da tortura – ação comum no período de ditadura

militar. Depois de ser acusado de participar de um grupo comunista que, na

verdade, não existia, foi preso e na cadeia foi obrigado a confessar a

participação nesse “grupo”. Como não deu nenhuma informação relevante ao

delegado, foi espancado até a morte. O assassinato foi camuflado por um

atestado de óbito falso que acusava a causa mortis como embolia pulmonar.

Com a ajuda do Dr. Lázaro Bertioga, do juiz Quintiliano do Vale, do promotor

Mirabeau da Silva e do advogado Dr. Cícero Branco, a verdadeira causa da

morte de João Paz foi abafada. O nome da personagem evidencia a sua

missão na trama: lutar pela paz. Mas, lutar pela paz significava ir contra alguns

dogmas estabelecidos na cidade, ou seja, a personagem era considerada

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comunista. É a repressão ditatorial que se faz presente novamente dentro da

obra. João Paz, portanto, possui a voz dos oprimidos pelo regime militar, dos

inocentes e idealistas:

...talvez [...] represente todas as pessoas que morrem em busca de seus ideais, ou mais especificamente, todos aqueles que morreram na época da ditadura militar no Brasil, ou ainda, todas as que lutam pela paz e pelas nobres causas do ser humano na terra. (ALVES, 2006, p.208-209).

Já Cícero Branco é seu oposto - a voz do abuso de poder, da corrupção, das

mentiras que como advogado encoberta.

PROFESSOR MARTIM FRANCISCO TERRA:

...o cunho espanhol do nome ‘Martim Francisco’ lembra ao leitor a imagem dos primitivos colonizadores espanhóis do planalto dos Sete Povos das Missões12. O sobrenome ‘Terra’ identifica o mais jovem descendente de Ana e Pedro Terra, pioneiros do sangue e da saga rio-grandenses, segundo O Tempo e o Vento. [...] Ele encarna a figura do gaúcho autêntico, nobre, culto, virtuoso, que chegou a tornar-se professor da U.F.R.S13., e que é portador de uma ideologia humanitária, liberal e socializante. (FURLAN, 1977, p.68, grifo do autor) - E dizer-se que lhe corre nas veias o sangue dos Terras de Santa Fé! [...] Um dia esse moço me visitou e eu lhe mostrei a árvore genealógica dos Terras Cambarás, fundadores de Santa Fé. O Prof. Martim Francisco vem a ser tataraneto de Horácio Terra [...] (Incidente em Antares, p.141)

Por meio da personagem Professor Martim Francisco Terra, as obras de

Erico Verissimo O Tempo e o Vento e Incidente em Antares dialogam entre si.

O intratexto, retomada de um texto por outro do mesmo autor, faz-se presente

por meio dessa personagem que segue o rumo de sua família, já que é o

responsável por defender e inserir no cenário nacional as cidades interioranas

do Rio Grande do Sul. Ele é o responsável por escrever o livro fictício Anatomia

12 A segunda fase das Reduções Jesuíticas (conflitos entre missionários jesuítas e colonos), a partir de 1862, era denominada de Sete Povos. Essa segunda fase foi marcada por conflitos entre missionários Jesuítas e Guaranis cuja finalidade era deter o avanço português em direção ao litoral sul. Para tal, o governo espanhol determinou a fundação de povoados a partir do Uruguai, ocupando as terras com estâncias e lavouras. 13 “...o professor de Sociologia Martim Francisco Terra da U.R.G.S.” (Incidente em Antares, p.125). Oswaldo Antônio Furlan emprega a sigla U.F.R.S. para denominar a mesma instituição. Consideraremos como certa a sigla que aparece no livro de Erico Verissimo.

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45

duma cidade gaúcha de fronteira, em que ao mesmo tempo em que mapeia a

parte física de uma cidade de fronteira do Rio Grande do Sul, no caso Antares,

levanta várias questões sociais para reflexão das próprias personagens do

romance quanto do leitor. O Professor Terra, além de representante da

tradicional família gaúcha Terra-Cambará, dentro do âmbito político é grande

ativista. Ele representa o novo em oposição ao velho, ou seja, ele não luta pela

conquista de terras do Rio Grande do Sul, mas pelo povo dessas terras, que

vive à margem da sociedade. É por meio dele que as injustiças sociais são

evidenciadas, já que toma conhecimento da comunidade pobre de Antares –

Babilônia -, apresentada a ele pelo Padre Pedro-Paulo, e traz à tona assuntos

que até hoje assolam o país, como a miséria, falta de saneamento básico,

condições subumanas de vida, fome, as favelas. Essa personagem é a voz da

consciência, do despertar para a verdade, para o mundo sem máscaras. Ele

mostra o avesso do que os políticos (tanto no romance quanto na sociedade

factual) tentam vender com seus discursos estrategicamente elaborados.

Vemos nele a voz de combate contra as imposições e hipocrisias do regime

militar que não tinha políticas públicas que beneficiassem as regiões mais

pobres do país. Tanto que quem se preocupava com essas questões era

considerado comunista, como veremos por meio da personagem do Padre

Pedro-Paulo, a seguir.

PADRE PEDRO-PAULO:

O jovem padre, promotor social dos favelados e oprimidos, defensor da justiça social, leva o nome dos dois apóstolos mais famosos de Cristo: Pedro e Paulo. (FURLAN, 1977, p.68) O importante é ser cristão. Mas dum cristianismo militante e não apenas teórico, “simpatizante”. Sempre digo ao vigário da Matriz de Antares: “Padre, continue rezando pelos seus mortos que eu continuarei lutando pelos nossos vivos. Nossa Igreja é também deste mundo.” (Incidente em Antares, p.188)

Interessante verificarmos que o nome do padre é a junção dos nomes

dos dois apóstolos de Cristo, Pedro e Paulo. Os nomes unem-se por um hífen,

fazendo com que dois nomes transformem-se em um único. A personagem

bíblica de Pedro vivenciou a famosa passagem da pesca milagrosa em que

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depois de muitas horas de pescaria, Pedro e seus companheiros não

conseguiram pescar nenhum peixe. Cristo apareceu para os pescadores às

margens do lago em que estavam e operou um milagre. Ao lançarem a rede no

lago, pescaram tantos peixes que quase não cabiam em sua embarcação.

Depois desse episódio, Pedro torna-se um dos apóstolos mais devotos de

Cristo. Já o apóstolo Paulo, em sua juventude, era perseguidor dos cristãos em

Jerusalém. Na verdade, podemos dizer que ele tinha um ímpeto missionário às

avessas. Depois de ter uma visão de Deus e Este dar-lhe a missão de pregar

aos gentios, Paulo converteu-se, por volta dos 33 anos.

O Padre Pedro-Paulo, portanto, possui em seu nome tanto o amor de

Pedro pelo Cristianismo como o ódio inicial de Paulo pela religião. Interessante

essa dicotomia já que o Padre vê-se muitas vezes em dúvida sobre a sua

missão como missionário da Igreja Católica, uma vez que ele apaixona-se pela

esposa do Juiz Quintiliano do Vale, Valentina do Vale. O Padre entra em

conflitos internos sobre se prossegue ou não em sua vida religiosa. Porém, as

questões políticas e sociais falam mais alto. Podemos relacionar a militância da

personagem com a Doutrina Social da Igreja e a Teologia da Libertação, que

discutem a relação da Igreja Católica com os assuntos sociais e políticos. A

Doutrina Social da Igreja tem como principais lutas a defesa da verdade,

liberdade e justiça, valores fundamentais que devem presidir a vida social.

Segundo essa doutrina, o homem deve trabalhar pelo bem comum, já que para

isso ele foi criado. A Teologia da Libertação, por sua vez, que foi gestada na

América Latina durante os regimes militares da década de 1970 e que no Brasil

foi difundida pelo teólogo Leonardo Boff, acreditava que com o método Ver –

Julgar – Agir conseguir-se-ia chegar à compreensão crítica da realidade e

impulsionar uma ação social transformadora. Foi o engajamento dos grupos

cristãos na política socialista que deu origem a essa Teologia. O conflito pelo

qual o Padre Pedro-Paulo passa simboliza o conflito gerado dentro da Igreja

Católica Latina no período militar.

O Padre sabe que se desistir da vida religiosa, a Vila Operária de

Antares, que compreende a favela da Babilônia, será esquecida pelos políticos

antarenses. Dessa forma, ele prefere seguir em frente com sua militância social

e política para defender a região. Os políticos e pessoas importantes de

Antares vêem o trabalho do Padre como uma manifestação comunista, já que

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ele apóia a greve dos trabalhadores e luta pelos pobres. Mais uma vez

verificamos o julgamento subjetivo por parte da elite de uma sociedade a

pessoas que, de certa forma, transgridem as regras impostas. Mais um indício

de que existe o diálogo entre texto e condições de produção do autor.

Outras personagens também possuem antropônimos significativos,

porém Oswaldo Antônio Furlan, em seu livro, dá destaque a essas, pois são as

mais relevantes no romance de Erico Verissimo, mas vale lembrar algumas

outras personagens, tamanha importância por seus antropônimos dentro da

trama.

D. Quitéria Campolargo, matriarca da tradicional família gaúcha dos

Campolargos, traz no nome a sua missão de vida e de morte: quitar as

diferenças entre as classes sociais, entre vivos e mortos, entre aparência e

essência. Em Erico Verissimo: Provinciano e Universal (2006), organizado pelo

escritor José Edil de Lima Alves, a sua luta em vida e a sua importância à

frente da família são evidenciadas indo de encontro a sociedade machista de

Antares:

...dona Quitéria, a mulher gaúcha, que conserva a força de Ana Terra, ocupa o lugar destinado ao homem (coronel), porém esse homem gaúcho é desmistificado: o fraco e doente Zózimo cede lugar à esposa cuja personalidade predomina na luta contra os trabalhadores, contra grevistas e contra a política democrática e socialista. (ALVES, 2006, p.206).

Segundo o dicionário de nomes próprios, o nome da matriarca dos Campolargo

origina-se de uma mártir e virgem espanhola que defendia os pobres e em

grego tem o significado de uma Santa da Igreja Católica que lutava pelos

fracos e oprimidos. Novamente é vista uma ideologia por trás dos nomes na

construção das personagens de Erico Verissimo. Nota-se isso nas atitudes e

no próprio discurso de Dona Quitéria:

A conselho de Tibério Vacariano, o candidato foi à mansão dos Campolargo apresentar seus respeitos a D. Quitéria, que estava de luto fechado, e manifestar seu pesar por não lhe ter conhecido o marido, de quem todos diziam tão belas coisas. Referindo-se ao símbolo da campanha de Jânio Quadros, a viúva disse: - Doutor, o que este país precisa mesmo é de ser varrido de toda a sua sujeira. Use a sua vassoura sem piedade. Nós estaremos aqui na retranca, apoiando o seu governo. (Incidente em Antares, p. 108).

Page 49: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

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A personagem, depois de morta, continua com sua militância a favor da justiça

social e da igualdade de classes. Quando o advogado Cícero Branco alerta-a

de que os outros defuntos não pertencem à mesma classe social que ela, D.

Quitéria responde: “- Bobagem! Morto não tem classe.” (p.234) Ela, tanto em

vida quanto em morte, tenta “quitar” as dívidas que sua família tradicional

gaúcha tem com o povo. Verificamos um papel social importante dentro da

trama por meio dessa personagem. Não é porque ela é de uma casta de

pessoas tradicionais que pré-julga as outras pessoas ou que se mantém inerte

às situações político-sociais. D. Quitéria é mulher militante em favor das causas

sociais, indo contra os estereótipos da burguesia. Até mesmo a morte de D.

Quitéria encobre a ideologia na construção da personagem, pois “sofre um

‘ataque do coração’, por não suportar a ‘anarquia’ e desmando das idéias

trabalhistas [...]” (ALVES, 2006, p. 207). Após sua morte, D. Quitéria volta à sua

casa e presencia a briga de seus familiares por suas jóias e, ficando indignada

com o ocorrido, joga sua fortuna nas águas do Rio Uruguai.

– O mau cheiro – diz a velha Quita – é muito do meu cadáver, mas é mais dos pensamentos de vocês, seus trapaceiros ordinários! Pedi para ser enterrada com estas jóias e vocês não cumpriram a minha ordem. (Incidente em Antares, p. 268). A defunta aproxima-se da mesa e vai pondo as jóias uma a uma dentro do escrínio14, depois põe a caixa debaixo do braço, dirige-se para o lavabo social, despeja todo o seu conteúdo no vaso sanitário, puxa a corrente da descarga, longamente, muitas vezes, depois volta para a sala e exclama: - Pronto! A divisão está feita. O Rio Uruguai herdou minhas jóias. (ibid, p. 268).

A crítica social contra os paradigmas da família em uma sociedade

conservadora aparece nesta cena do romance. Os familiares não se

preocupam com a morte de D. Quitéria e sim com a divisão de seus bens,

denunciando a transformação que ocorria em algumas famílias conservadoras

da época.

Mesmo depois de sua morte, D. Quitéria continua exercendo o seu papel

de “quitar” as diferenças entre as classes, já que convive, de forma amistosa,

com personagens marginalizados, em vida, como uma prostituta ou um

bêbado. D. Quitéria descobre valores e princípios a que em vida não dava

14 Estojo, guarda-jóias.

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atenção, como aceitar as idéias contrárias às suas, aceitar amistosamente a

convivência entre classes sociais diferentes, por exemplo.

O nome do marido de D. Quitéria, Zózimo, apresenta uma possível

leitura com caráter irônico, já que Zósimo (grafado com “s”), de acordo com

dicionário de significação de nomes, é aquele cheio de vida, oposto à

personagem que aparece na maior parte da narrativa como um ser humano

adoentado, que precisa de alguém para ajudá-lo sempre. Para tal, seria ele a

personagem que deveria liderar o clã dos Campolargo, por ser o primogênito

de Benjamim Campolargo, mas cede apenas o nome, porque quem lidera

política e socialmente a família é sua esposa, D. Quitéria Campolargo:

Quitéria, uma Campolargo tanto por parte de pai como de mãe, era uma criatura enérgica e inteligente, senhora de razoáveis leituras, e até de uma certa astúcia política, de maneira que, depois da morte do velho Benjamim, embora Zózimo empunhasse, sem o menor garbo, o cetro de patriarca, D. Quita [...] passar a ser [...] “o poder por trás do trono”. (Incidente em Antares, p.38-39)

Foi neste ponto da conversação que o Cel. Vacariano percebeu a palidez e o desânimo de Zózimo, que estava de pé ao lado da cadeira da esposa, sempre na sua atitude de príncipe consorte. (ibid, p.93). Fez-se um silêncio. De cabeça caída sobre o peito, Zózimo agora cochilava, e de sua boca entreaberta saía um leve ronco rascante. Tibério olhou para o amigo e pensou: “Aposto como esse não vai longe... (ibid, p.95).

Na concepção de José Edil de Lima Alves (2006):

Os nomes são signos que remetem à ideologia social, quando interpretados, apontam o tipo que “fala” a sua voz representada, onde se lê a recusa do autor à ordem estabelecida, pela sátira. (p. 205).

Os nomes dentro do romance de Erico Verissimo confirmam essa tese, porque

configuram-se em um código que ao ser decifrado explicita as personalidades

ou as escolhas das personagens.

Erotildes da Conceição, que quando jovem trabalhava como prostituta

no bordel da cafetina Venusta (antropônimo significativo também, já que

designa “muito formosa” ou “graciosa” e confere certa delicadeza à

personagem que atua em uma profissão marginalizada), morre vítima de tísica,

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pois não recebeu o tratamento adequado para curar a doença no hospital do

Dr. Lázaro Bertioga, já que era muito pobre. Erico Verissimo: Provinciano e

Universal (2006) atenta para a etimologia do nome da personagem: “Erotildes,

cujo nome se origina de Eros – amor, sexo, vida – é a prostituta, velha e feia,

que morrera de tuberculose15.” (p.207). Eros, deus da mitologia grega, filho de

Vênus (deusa da beleza), é conhecido como deus do amor. Apesar da

etimologia de seu nome, Erotildes não lida com o amor, mas apenas com as

relações carnais, é seu trabalho, ela ganha dinheiro por dar um “amor falso”

aos outros. Essa característica é apontada em Erico Verissimo: Provinciano e

Universal (2006): “Na personagem, não existe, portanto, o sentido de ‘Eros’

como Amor sensual. Possui o sentido de ‘Tanatos16’, pois que lembra a morte

de tudo que passa na existência humana.” (p.207). Devemos levar em conta

também outro detalhe interessante. Quando a personagem estava na fase

jovem, requisitada por muitos homens, era ela conhecida como Erotildes da

Conceição. A presença do segundo nome conferia-lhe uma importância maior,

já que marcava as suas origens como pessoa; ela possuía uma história familiar

ao levar o nome de família “da Conceição”. Depois que essa fase de êxitos da

personagem passa e ela “... caiu tanto de categoria que aos quarenta anos

andava pelas ruas caçando homens, vendendo o corpo a qualquer preço...”

(Incidente em Antares, p.237) a personagem é chamada na cidade por

“Erotildes de Tal”. A tradição familiar é esquecida, por causa da supressão do

sobrenome da personagem, portanto sua história pessoal também; ela

transforma-se em uma indigente e é dessa forma que é tratada até o fim de sua

vida.

Outro representante da classe mais baixa da sociedade é a personagem

Pudim de Cachaça. Seu nome é ignorado pelas outras personagens e pelo

leitor, que só conhecem o apelido “Pudim de Cachaça” como seu nome. Ele

restringe-se a um ser comum, uma vez que é conhecido por uma expressão

popular e não por um nome próprio, fazendo com que a sua importância social

15 No romance de Erico Verissimo, a palavra tísica (tuberculose pulmonar) é usada em lugar de tuberculose - empregada no trecho selecionado do livro organizado por José Edil de Lima Alves - para determinar a causa mortis da personagem Erotildes: “- De que foi que essa mulher morreu? - Tísica.” (Incidente em Antares, p.237) 16 Termo relativo à psicanálise. Usado por Freud para agrupar aquilo a que chamou o instinto de morte e o instinto de destruição.

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seja quase nula, pois ele não possui nada na vida, sequer um nome que o

individualize:

- Santo Deus! – exclama D. Quitéria – Que é “isso”!? - O maior beberrão de Antares – diz o advogado – o nosso famoso Pudim de Cachaça. (Incidente em Antares, p.238)

Em Erico Verissimo: Provinciano e Universal (2006), seu nome é destacado por

ser ele a imagem do bêbado que “representa a fraqueza dos que não

conseguem controlar os próprios vícios e se culpam por não consegui-lo.”

(p.207-208). A própria personagem corrobora essa idéia, já que, mesmo depois

de saber que a esposa o tinha envenenado, ele a perdoa e justifica o ato da

mulher, dizendo que era “uma peste” e que não merecia consideração, como

fica claro no diálogo em que o advogado Cícero Branco esclarece o motivo que

levou Pudim de Cachaça à morte:

- [...] Quem foi que me matou? - A tua mulher. - A Natalina? Não acredito. O senhor está brincado comigo, doutor. Minha mulher não é capaz de matar nem uma mosca. - Talvez, mas botou na tua comida uma dose de veneno que dava para liquidar um cavalo.

[...]

- Declarou ao delegado que estava cansada de te agüentar [...] além de trabalhar como uma escrava pra te sustentar, tu às vezes chegavas em casa alta da madrugada, embriagado, e batias nela.

[...]

- [...] Sempre fui uma peste. Pobre da Natalina! Tomara que não botem ela na cadeia. (Incidente em Antares, p.238-239)

Dessa forma, Pudim de Cachaça representa uma classe social e não um

indivíduo – por isso ele não possui um nome próprio. É a voz dos

marginalizados pela sociedade que são ouvidos no romance por meio dessa

personagem.

Outra personagem que merece citação é José Ruiz, mais conhecido por

Barcelona: “é um sapateiro de origem espanhola, o qual possui ideologia

comunista [...] Seu discurso demonstra a pura ideologia de esquerda radical

[...].” (ALVES, 2006, p.208). Com um papel político e social bem marcado

dentro do romance, o sapateiro luta contra todo tipo de injustiça, tanto que ele é

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o responsável por dar a idéia de não sepultar os mortos até que os pedidos dos

grevistas fossem atendidos:

- Na véspera da minha morte, tomei parte na assembléia geral dos industriários (com direito de voz e não de voto) e discutimos todos os meios de pressionar os patrões e as autoridades para conseguirmos os objetivos dos grevistas. Pedi a palavra e sugeri que metessem os coveiros na greve geral e que não permitissem nenhum sepultamento no cemitério enquanto os patrões não dessem ganho de causa aos operários. (Incidente em Antares, p.240)

Nesse ínterim, Barcelona morre e é vítima de sua própria manifestação. É por

meio dele que a voz dos que lutavam contra a repressão de idéias e a censura

do período militar ganha espaço na trama.

A ironia permeia também o nome do Professor Libindo Olivares, diretor

do Ginásio Nacional de Antares, que é um charlatão, pois mente dizendo que

conhece escritores franceses famosos e outras personalidades e tem com eles

uma relação de amizade bastante sólida:

...se trata dum mitômano17 cujas mentiras tendem sempre a um auto-engrandecimento social e principalmente cultural. Gosta que os outros acreditem que é íntimo de celebridades mundiais. Afirma ter correspondência com Jean-Paul Sartre de quem – faz questão de afirmar – diverge política e filosoficamente [...] (Incidente em Antares, p.172)

Mas a gênese de seu nome sugere a verdadeira identidade da personagem:

“... tem como radical do nome, o mesmo que o da palavra ‘libido’. Só durante o

‘incidente’ é que a cidade fica sabendo que o professor é homossexual.”

(ALVES, 2006, p.212). Essa personagem é a voz daqueles que, por vários

motivos, escondem suas características consideradas pela sociedade como

fora do comum e alvo de preconceitos. O professor gaba-se por seu vasto

conhecimento e esse conhecimento serve como um escudo de proteção para

que ninguém adentre a sua intimidade e o descubra tal como é.

Outra personagem representativa de uma classe específica é o

Professor Menandro Olinda – professor de piano e pianista frustrado, chamado

pela população de Antares de “maestro”. A história dessa personagem é

marcada por uma grande frustração quando jovem. Seu primeiro significativo

17 Pessoa que tende à mitomania; à mentira.

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recital no Teatro São Pedro, de Porto Alegre, foi um grande desastre, pois o

“maestro” fracassa ao executar Appassionata, obra de Ludwig van Beethoven:

Menandro ataca a Appassionata. Sente, porém, que suas mãos estão agora paralisadas, que seus dedos não obedecem ao seu cérebro. Ergue-se de súbito, derrubando a banqueta, e sai quase a correr do palco e no camarim põe-se a chorar, a soluçar e a dizer incoerências. (Incidente em Antares, p.165)

Esse episódio fica marcado em sua vida de tal forma que ele não consegue

mais reerguer-se na profissão. Torna-se professor de piano e morre sem antes

conseguir tocar com êxito Appassionata. Nesta personagem está contida a voz

de “...pessoas que, pelos mesmos motivos, nunca conseguem chegar aos seus

objetivos na vida.” (ALVES, 2006, p.211). São as fraquezas humanas postas

em xeque de forma a mostrar a face defeituosa e não a aparência envernizada

do ser humano.

Por meio da análise etimológica dos antropônimos das personagens

mais significativas de Incidente em Antares, constatamos que as personagens

são recursos importantíssimos que possibilitam ao escritor inserir críticas e

dialogar com o externo do texto. O escritor, ao criar as personagens de sua

narrativa, comporta-se como uma espécie de “bruxo que vai dosando poções

que se misturam num mágico caldeirão” (BRAIT, 2002, p.52). Suas

personagens podem ser “tiradas de sua vivência real ou imaginária, [...] ou das

mesquinharias do cotidiano” e “a materialidade desses seres só pode ser

atingida por meio de um jogo de linguagem que torne tangível a sua presença e

sensíveis os seus movimentos.” (BRAIT, 2002, p.52) A linguagem, portanto, é

determinante para que as personagens cumpram seus papéis dentro da

narrativa e é por meio dessa linguagem que o leitor decifra os códigos para

penetrar na essência de cada uma delas.

A personagem, em Incidente em Antares, é o recurso literário mais

importante e expressivo do romance, já que é por meio dele que os outros

recursos literários se manifestarão. Como vimos, a ironia está presente não só

nos nomes das personagens, mas também na fala delas, na sua maneira de

agir e lidar com as mais variadas situações na trama. O diálogo que existe

entre o interno e o externo do romance também é estabelecido por meio das

personagens, nas classes sociais a que representam e por meio de sua

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posição política e ideológica. Não é a toa que Incidente em Antares possui um

carrossel de tipos sociais vasto que em números ultrapassa a marca de cem

personagens de grande importância no romance.

Além das personagens fictícias do livro, Erico Verissimo deu espaço

para que personagens factuais recriadas ficcionalmente, a maioria conhecida

dos leitores, tivessem voz em seu romance. Getúlio Vargas, Borges de

Medeiros, Júlio de Castilhos, Jânio Quadros, João Goulart e Juscelino

Kubitschek configuram essas personagens, estabelecendo assim o diálogo

existente entre o interno e o externo do texto. O pensamento político das

personagens ficcionais da trama é construído graças à herança política que

essas personagens factuais deixaram ao povo de Antares. Durante toda a

narrativa, o leitor acompanha a trajetória política totalitarista de Júlio de

Castilhos e Borges de Madeiros, passando pelas conseqüências trazidas à

região pela Segunda Guerra Mundial, além do crescimento político de Getúlio

Vargas e João Goulart ao longo dos anos, da construção de Brasília por

Juscelino e da campanha para varrer toda a corrupção com a vassoura da

justiça e honestidade de Jânio Quadros.

Essas personagens factuais são, na verdade, o elo entre texto e leitor,

uma vez que a história política brasileira está em diálogo estreito com a história

de Antares, pois esta se configura como um microcosmo representativo do

macrocosmo brasileiro. Essas figuras políticas dialogam com as personagens

fictícias da trama, tornando-se, assim, pertencentes ao interno e ao externo do

texto simultaneamente. Benjamim Campolargo, por exemplo, mantinha

ficcionalmente um laço de amizade com Júlio de Castilhos e conheceu Borges

de Medeiros, como verificamos a seguir:

Castilhos faleceu em 1903, durante a operação de garganta a que fora submetido. Benjamim Campolargo, acompanhado de dois de seus filhos, embarcou às pressas para Porto Alegre, a fim de assistir às exéquias de seu chefe e amigo. Chegou tarde, mas aproveitou a oportunidade para visitar o Dr. Borges de Medeiros, que ainda não conhecia pessoalmente. Achou-o seco, formal, mas digno. Ouviu, de várias pessoas importantes da capital, os maiores elogios ao caráter do presidente. (Incidente em Antares, p.27, grifo nosso)

Borges de Medeiros, depois do falecimento de Júlio de Castilhos,

assume o cargo de Presidente do Estado do Rio Grande do Sul e, além disso,

Page 56: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

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era chefe do Partido Republicano Gaúcho. Os fatos externos à trama afetam a

narrativa de forma direta já que as personagens ficcionais não se restringem

apenas aos limites do texto, elas ultrapassam esses limites, o que possibilita,

por exemplo, a amizade entre Benjamim Campolargo e Júlio de Castilhos.

A interferência dessas personagens factuais na trama, muitas vezes,

atingiu proporções tão grandes que foram decisivas para que ações muito

difíceis de acontecer pudessem de fato realizar-se. Getúlio Vargas, por

exemplo, foi o responsável por unir dois dos maiores inimigos de Antares,

dando assim, um rumo inesperado à narrativa:

Usou de artimanhas tais, que naquele dia conseguiu reunir Xisto Vacariano e Benjamim Campolargo na casa dum amigo comum, homem apolítico e geralmente benquisto na cidade.

[...] Olhavam para Getúlio Vargas com uma expressão de censura em que se mesclavam surpresa e zanga.

[...] - Perdoem-me pela “traição” – disse ele. – Quando os fins são bons, às vezes temos de fechar os olhos à natureza dos meios. Foi essa a única maneira que encontrei para juntar numa mesma sala dois antigos adversários pessoais e políticos. (Incidente em Antares, p.34-35)

Ao mesmo tempo que Getúlio Vargas é personagem atuante do romance, ele

não deixa de ser o personagem político factual, alvo de críticas pelo povo

brasileiro, que é representado pela população antarense. Essa voz dominante

e representativa ecoa ao longo de toda a narrativa, fazendo com que o

dialogismo proposto por Bakhtin faça-se presente e seja um dos recursos

literários viabilizados por outro recurso literário – a personagem. Lendo mais

atentamente a última fala de Getúlio Vargas, verificamos outro recurso literário

viabilizado pela fala da personagem: o intertexto. A célebre frase “os fins

justificam os meios” de O Príncipe, de Maquiavel, é retomada pela fala do

presidente Vargas de forma deturpada. Maquiavel, na verdade, não chegou a

escrever a frase tal e qual conhecemos. Ela foi uma síntese feita pela censura

jesuítica que serviu como uma síntese do pensamento maquiavélico tornando-

se uma de suas máximas mais conhecidas. Maquiavel demonstra que os

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objetivos de conservar e manter seguro o poder do Estado justificam todas as

ações do príncipe mesmo que para isso seja necessário transgredir as leis da

moral. Porém, Maquiavel determina que isso só é válido quando existe o

comprometimento de defesa do povo e da nação já que o príncipe é um

servidor do Estado. Em O Príncipe esse princípio pode ser entendido pelo

trecho a seguir:

Francisco [Sforza], pelos meios devidos e com grande virtude, de privado tornou-se Duque de Milão; e aquilo que com mil esforços tinha conquistado, com pouco trabalho manteve. Por outro lado, César Bórgia, pelo povo chamado Duque Valentino, adquiriu o Estado com a fortuna do pai e, juntamente com aquela, o perdeu [...] (MAQUIAVEL, 1985, p.40)

Interessante relacionar esse trecho à nota do tradutor Roberto Grassi para

deixar mais claro o princípio maquiavélico:

Machiavelli quer significar aqui grandes esforços, valor pessoal para superar as dificuldades, meios próprios. A expressão “meios devidos” não exprime apreciação moral ou aprovação dos atos praticados por César Bórgia, mas sim, apenas, o emprego de meios adequados à consecução do fim colimado. (ibid, 1985, p.45)

Existe, portanto, o diálogo entre o texto de Maquiavel e o de Erico Verissimo,

porém a leitura feita da frase de Maquiavel por Getúlio Vargas em Incidente em

Antares, acontece em um tom paródico, uma vez que o sentido original da

frase é modificado. Para Getúlio Vargas, como é retratado no romance de Erico

Verissimo, assim como para os próceres antarenses, os interesses pessoais do

grupo de governantes de Antares era mais importante do que os interesses da

coletividade, subvertendo, portanto a máxima de Maquiavel.

O diálogo existente entre o factual e o ficcional pode ser verificado,

ainda, por meio da fala do Coronel Tibério Vacariano sobre a carta-testamento

de Getúlio Vargas e da sucessão presidencial de João Goulart (Jango) que se

acercava:

– Estão vendo? – disse. – O Getúlio com essa carta varre a sua testada, salva-se como homem e como estadista, encontra uma saída honrosa para uma situação pessoal difícil, apresenta-se como mártir do povo, candidata-se à História, vinga-se dos inimigos atirando nos ombros e na consciência deles o seu próprio cadáver, e ao mesmo tempo (prestem bem atenção ao que estou dizendo!), ao mesmo tempo entrega ao João Goulart e ao P.T.B. um programa político e uma bandeira de guerra. E como têm força essas bandeira ensangüentadas! Já pensaram como o Jango vai explorar daqui por

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diante, em seu proveito, esse testamento? Porque podem dizer o que quiserem do herdeiro político do velho Getúlio, mas burro ele não é. É um zorro que aprendeu as artimanhas políticas de seu mestre e protetor. (Incidente em Antares, p.91)

É perceptível o chamado que a personagem faz ao leitor quando diz “prestem

bem atenção ao que estou dizendo!”, como se ficcionalmente chamasse o leitor

para a realidade factual. É bastante interessante a forma como Erico Verissimo

trabalha a questão do dialogismo, uma vez que ele amarra ficção, realidade e

reflexão sobre o momento político da época por meio desse recurso, fazendo

com que o leitor reflita e tire também as suas próprias conclusões sobre o

assunto.

Assim como as personagens factuais interferem no rumo da narrativa do

romance, o inverso também acontece. As personagens ficcionais também

tentam interferir nas ações e decisões das personagens factuais. Verificamos

essa questão por meio do diálogo entre o Coronel Tibério Vacariano e o

Presidente Jânio Quadros:

- Vamos dar nome aos bois. Não caia nas garras do P.T.B. Não se mete com os socialistas, com essa cambada de esquerda. Jânio sorriu enigmaticamente. - Meu caro Cel. Vacariano, o senhor ouviu o meu discurso. Se eleito, pretendo cumprir à risca tudo quanto tenho prometido ao povo durante esta campanha memorável. - Pois é, mas as pessoas quando chegam “lá em cima” em geral mudam, esquecem as promessas feitas nos discursos e nas entrevistas. Noutras palavras, tenho medo de que o senhor atire a sua vassoura para um canto e não varra a casa. - Pois, coronel, se o senhor pensa assim vai ter uma surpresa. Pretendo usar a vassoura, e com muito vigor. (Incidente em Antares, p.110-111)

A relação entre as personagens ficcionais e factuais é tão intensa que

são possíveis algumas descrições com detalhes de situações que remetem ao

externo do texto. Podemos ratificar essa questão por meio da fala do Coronel

Tibério Vacariano em conversa com D. Quitéria Campolargo e Zózimo

Campolargo sobre a visita que fez a Getúlio Vargas a respeito de um

determinado requerimento. Antes de encontrar o presidente, de fato, cruzou

com Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas:

Entrei no palácio, me meti por uns corredores meus velhos conhecidos e de repente, sem saber como, me vi na sala onde o Gregório costuma dar as suas audiências... E que vejo? Lá estava o

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crioulo como um potentado africano, sentado numa cadeira, com uma tolha amarrada ao pescoço, um barbeiro escanhoando o rosto dele, uma manicura ao lado polindo as suas unhas... [...] Quando me viu entrar, nem se dignou a me dar bom dia. Também fingi que não tinha visto ele e fiz meia volta. [...] antes de sair, ouvi o Gregório dizer em voz alta, com um ar de superioridade: “O Jango é um premário!” (Incidente em Antares, p.75)

Verificamos novamente que o externo e o interno mesclam-se no tecido

narrativo da trama. Enquanto o Coronel Tibério Vacariano narra um episódio

vivido por ele ficcionalmente, este mesmo episódio tem como protagonista

Gregório Fortunato. Interessante a cena narrada por Tibério em que Gregório

Fortunato aparece fazendo a barba e as unhas, pois era o próprio Gregório que

cortava os cabelos e fazia a barba de Getúlio Vargas por motivos de

segurança. Tanto é que ele era conhecido como “o anjo negro de Getúlio”.

Essa relação entre as personagens ficcionais e factuais que discutimos,

em muitos momentos da narrativa, perpassa por diferenças de ideologias

políticas entre as personagens e por reflexões sobre a honestidade de

determinados políticos, como, por exemplo, Juscelino Kubitschek. Para o

conservador Tibério Vacariano, a plataforma de governo de Juscelino era

alarmante, assim como a moderna construção de Brasília:

Quando, porém, Juscelino Kubitschek começou a pôr em prática o slogan – plataforma de sua campanha eleitoral – “Cinqüenta anos de desenvolvimento em cinco” – Tibério, arraigado conservador, ficou alarmado. Passou o resto daquele qüinqüênio a criticar o Presidente. [...] Falar mal de Juscelino Kubitschek e dos seus ministros e colaboradores passou a ser para o velho político antarense uma espécie de pão nosso de cada dia [...] (Incidente em Antares, p.96) - [...] Sou contra Brasília. Essa “inauguração” foi fraudulenta como quase tudo quanto o Juscelino tem feito. A cidade não está e nem nunca ficará pronta. [...] Nenhum Presidente poderá governar o país daquele cafundó... (ibid., p.101)

Assim, podemos verificar não só os conflitos existentes entre a ideologia do

Coronel Tibério Vacariano em relação ao governo de Juscelino Kubitschek,

mas a voz dominante de uma classe conservadora diante da modernidade do

governo de J.K. A reação do Cel. Vacariano traduz a reação de muitos

brasileiros diante de tão inovadora plataforma política que, de fato, foi alvo de

muitas críticas e desconfianças na época.

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Vemos que a política assume um papel fundamental em textos literários,

pois direta (como é o caso de Incidente em Antares) como indiretamente, far-

se-á presente e será material primário para muitos outros temas. Por isso

podemos afirmar que um discurso nunca é totalmente desvinculado de

ideologia política, pois o ser humano não possui a capacidade de isolar-se por

completo da sociedade em que vive e fechar-se para os assuntos que o

cercam. E sendo a literatura uma ferramenta de comunicação que é feita pelo

homem e para o homem, cuja finalidade é transmitir os conhecimentos e

cultura de determinado povo em determinado período, esta não pode dissociar-

se da política. Por isso a relação entre personagens ficcionais e factuais ser

verossímil em Incidente em Antares.

Verificamos que no romance de Erico Verissimo o dialogismo exerce um

papel importante, já que é por meio dessa voz dominante que o pensamento do

povo brasileiro ganha espaço e voz dentro de um regime de ditadura militar e

repressão. Tratamos, até agora, de alguns momentos dialógicos no texto, mas

existe uma voz única e dominante em Incidente em Antares, que revela o

anseio latente nesse período de opressão: a liberdade. Daniel Fresnot, em O

pensamento político de Érico Veríssimo (1977) defende essa questão:

... o autor usou do microscópio para descobrir e estudar as personagens, instituições, mentalidades, leis gerais existentes e aplicáveis a todo o seu país. E aqui reside o impacto político do livro, pois o que parte de Antares é um estupendo anseio de liberdade. (FRESNOT, 1977, p.62)

Esse anseio de liberdade de que Fresnot fala é o anseio de liberdade vivido

pelas personagens do romance, protótipo do povo brasileiro. A liberdade de

expressão e de pensamento foram o combustível para as lutas entre povo e

governo militar e que Erico Verissimo traduz em situações ficcionais de seu

texto. A cena final de Incidente em Antares pode-se dizer que é um resumo do

livro enquanto ideologia social e política:

...às vezes vultos furtivos andam escrevendo nos seus muros e paredes palavras e frases politicamente subversivas, quando não pornográficas.

[...]

Numa dessas últimas madrugadas, abriram fogo contra um estudante que, com broxa e piche, tinha começado a pintar um

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palavrão num muro da Rua Voluntários da Pátria. Na calçada, no lugar em que o rapaz caiu, ficou uma larga mancha de sangue enegrecido na qual a imaginação popular [...] julgou ver a configuração do Brasil.

[...]

Aconteceu passar por ali nessa hora um modesto funcionário público que levava para a escola, pela mão, o seu filho de sete anos. O menino parou, olhou para o muro e perguntou: - Que é que está escrito, pai? -Nada. [...] O pequeno [...] que já sabia ler, olhou para a palavra de piche e começou a soletrá-la em voz muito alta: “Li-ber...”. - Cala a boca, bobalhão! – exclamou o pai, quase em pânico. (Incidente em Antares, p.484-485)

A palavra “liberdade” era considerada subversiva e como um palavrão

na época da repressão política, como é mostrado pelo trecho do romance de

Erico Verissimo. O sangue do pichador que escorre pelo chão desenhando o

mapa do Brasil é bastante sugestivo. Esse pichador ficcional traduz em palavra

a aspiração maior das personagens do romance (que só tiveram o seu

momento de liberdade de expressão ao ser inserido na obra um elemento

fantástico sobre o qual trataremos posteriormente) e de todo o povo brasileiro.

Esse mapa do Brasil esboçado a sangue alude a todos que morreram lutando

pela liberdade de expressão e pensamento. Interessante atentarmos ao fato de

que o que na verdade era reprimido era a simbologia da palavra liberdade e

não a palavra em si, ou seja, a ideologia por trás da palavra é que era

censurada, como foi censurado o romance Incidente em Antares pela ideologia

que ele trazia e não por causa da história propriamente dita.

Somente uma criança que ainda não tem consciência de ideologia não

possui a censura para ler, em voz alta, a palavra escrita no muro. Para ela era

apenas uma palavra escrita em um muro o que para os adultos era uma

bandeira política. Por isso a criança foi censurada pelo pai e nesta censura

existia a censura embutida do regime militar, ou seja, podemos afirmar que o

pai representava, de certa forma, a voz desse regime. Para o menino, ler

aquela palavra não passava de pura decodificação de letras e uma satisfação

pessoal de conseguir perceber que elas constituíam uma palavra.

Assim, essa voz dominante que anseia por liberdade fica evidente em

Incidente em Antares e mais do que traduzir as aspirações de um povo, ela

traduz a voz de um momento histórico, político e social brasileiro.

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Essa questão da denúncia em relação à repressão que exercia o regime

militar na sociedade ganha maior representatividade em Incidente em Antares

se atentarmos ao fato de que existe uma similitude entre a data em que

acontece o incidente com os mortos em Antares e a instauração do Ato

Institucional nº 5 (AI-5) no Brasil. O AI-5, que entrou em vigor em 13 de

dezembro de 1968 (em uma sexta-feira) durante o governo do General Costa e

Silva e vigorou até 1978, estabeleceu medidas repressivas, a saber:

Além da cassação generalizada de parlamentares e cidadãos, o AI-5 suspendia o habeas-corpus de presos políticos, reforçava a centralização do poder no Executivo federal (diminuindo a força política dos governadores), permitia a decretação de estado de sítio, sem prévia autorização do Congresso. Em 1969, o governo regulamentou a censura prévia sobre os meios de comunicação e sobre os produtos culturais como um todo. (NAPOLITANO, 1998, p.33)

Se considerarmos que o incidente aconteceu em uma sexta-feira, 13 de

dezembro de 1963, perceberemos que existe um claro diálogo entre o evento

ocorrido em Antares e o decreto do AI-5. A marca da sexta-feira 13, na cultura

popular, como sendo uma data de mau agouro e má sorte, também confere

uma carga de significado muito importante aos dois fatos, já que eles

aconteceram nessa data e foram eventos que trouxeram um impacto negativo

muito forte para as sociedades factual e ficcional, mudando as suas rotinas. O

incidente com os mortos em Antares é a ruptura, o grito de liberdade possível

na literatura, mas repreendido pela realidade factual da sociedade brasileira por

meio do desmascaramento da sociedade hipócrita de Antares. Erico Verissimo,

como respondendo a esse momento político do Brasil, coloca na voz dos

defuntos, que já não eram mais pertencentes ao mundo dos vivos e por isso

não podiam ser repreendidos, todos os anseios do povo neste período de

silêncio do país. Importante ressaltar que Erico Verissimo, apesar de localizar o

incidente no ano de 1963, escreveu Incidente em Antares no período em que o

AI-5 foi instaurado, já que a publicação do romance deu-se em 1971. Dessa

forma foi possível fazer a crítica a esse momento da política nacional.

Como uma grande denúncia a esse momento do Brasil, em tom

paródico, Incidente em Antares evidencia os reflexos do AI-5 na sociedade

brasileira. Além da liberdade de expressão tolhida, os presos políticos eram

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torturados e não lhes era garantido nenhum direito de defesa (a tortura sofrida

por João Paz tendo como mandante o Delegado Inocêncio Pigarço, no

romance) e a centralização do poder era crucial para efetivar essas medidas

(as oligarquias dos Vacarianos e Campolargos, que mandavam e

desmandavam em Antares). Podemos ainda atentar, em uma possível leitura,

chegando às minúcias do texto de Erico Verissimo, que a abreviatura de Ato

Institucional, AI, é a mesma de Incidente em Antares, IA, só que invertida.

Consideramos que esse detalhe que se revela nas filigranas do texto é mais

um fator que representa a recriação do factual por meio do ficcional do texto

literário. O fato de haver essa inversão na ordem das abreviaturas dá

credibilidade à denúncia contra a repressão no romance de Erico Verissimo

uma vez que é como se o autor imprimisse em seu texto a vontade da

coletividade de ir contra, de inverter a situação do período repressivo de

ditadura militar. Assim, evidenciamos que o texto literário necessita do factual

para a construção dos elementos ficcionais da trama para que o texto possa

dialogar com o leitor e este, por sua vez, possa aguçar o seu olhar crítico para

o mundo que o cerca.

A intertextualidade é outro recurso recorrente no romance de Erico

Verissimo e que também é viabilizado pelas personagens antarenses. Vimos

que o diálogo existente entre externo e interno do texto é bastante forte em

Incidente em Antares para a construção da atmosfera política do livro.

Veremos, agora, como o diálogo entre textos também contribui para essa

construção. Vale ressaltar que abordaremos os casos de intertextualidade mais

expressivos no romance para essa construção da atmosfera política do texto.

Como se pode notar na constituição da própria palavra, intertextualidade

significa a relação entre textos, ou ainda um diálogo entre os textos. De acordo

com Julia Kristeva, “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo

texto é absorção e transformação de um outro texto.” (KRISTEVA, 1974, p. 64).

Para tanto, é de fácil entendimento quando tratamos do romance de Erico

Verissimo, que trabalha muito bem este conceito, principalmente em suas

personagens.

Já no início do romance, percebe-se um intertexto com a própria história

do país, intertexto este que permeia todo o romance. Incidente em Antares

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reconta a História do Brasil e do Rio Grande do Sul e o autor recorre a fatos

reais para criar o clima verossímil da narrativa.

Quando o Brasil entrou em guerra com o Paraguai, Vacarianos e Campolargos enrolaram os seus estandartes tribais e, à sombra da bandeira do Império, lutaram juntos contra a ‘indiada de Solano Lopes’. (Incidente em Antares, p.12).

Esse modo de reler o discurso histórico é marca do escritor gaúcho.

Erico reescreve os fatos históricos, descreve características físicas e

psicológicas de presidentes e governadores, imprimindo, assim, a

verossimilhança ao seu romance. Tudo isso sem perder o viés irônico da

narrativa:

Em Incidente em Antares, [...] a visão do escritor dessacraliza a História, porque o humor contamina e desconstrói o discurso sério, pela sátira aos homens que detêm o poder no Rio Grande do Sul. [...] O compromisso político do discurso emerge para condenar posições conservadoras, a repressão e a falta de moral. (ALVES, 2006, p. 199).

Um dos traços da personalidade do Coronel Tibério Vacariano é

construído por meio de um intertexto: a releitura da lenda gaúcha registrada por

Simões Lopes Neto18, “a Salamanca do Jarau19”:

Era a teiniaguá20, de cabeça de pedra luzente, por sem dúvida; dela já tinha ouvido ao padre superior a história contada dum encontradiço que quase cegou de teimar em agarrá-la. [...] De olhos apertados, piscando, para me não atordoar dum golpe de cegueira, assentei no chão a guampa e preparando o bote, num repente, entre susto e coragem, segurei a teiniaguá e meti-a para dentro dela! (LOPES NETO, 1996, p. 44).

No trecho acima, o conto de tradição oral conta a história de um sacristão que

se viu tentado por uma linda princesa moura que por fugir de seu reduto foi

transformada pelo demônio dos índios em uma salamandra, a Teiniaguá. Por

seu pecado, o sacristão foi condenado à morte, porém a princesa salva-o do

terrível destino, mas os dois ficam confinados em uma caverna no Cerro do

Jarau e só poderiam de lá sair se aparecesse alguém que quebrasse o

encantamento.

18 Simões Lopes Neto foi escritor regionalista do Rio Grande do Sul. 19 Salamanca do Jarau é uma lenda gaúcha originária da tradição oral. 20 De acordo com a lenda gaúcha, teiniaguá é uma princesa moura transformada em lagartixa pelo Diabo Vermelho.

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Faz duzentos anos que aqui estou; aprendi sabedorias árabes e tenho tornado contentes alguns raros homens que bem sabem que a alma é um peso entre o mandar e o ser mandado... Nunca mais dormi; nunca mais nem fome, nem sede, nem dor, nem riso [...] O encantamento que me aprisiona consente que eu acompanhe os homens de alma forte e coração sereno que quiserem contratar a sorte nesta salamanca21 que eu tornei famosa, do Jarau. (LOPES NETO, 1996, p.54-55).

Em seu romance, Erico retoma esta lenda gaúcha, mas com um tom irônico

que faz de Tibério o sacristão da lenda e de Cléo, a teiniaguá.

- Nunca ouviste a estória da Salamanca do Jarau? - Nunca. - Pois era uma vez um campeiro, de nome Blau22 Nunes. Tinha aprendido com o fantasma dum padre renegado o caminho da furna do Jarau, onde existia um tesouro escondido, e guardado pelos bichos e assombrações mais horríveis... - E os dedos de Tibério – antes, as pernas de Blau Nunes – penetram no capão e encontram a boca da furna. ‘Ai!’ – suspira ela. – ‘Ai!’. Blau Nunes está alucinado. [...] (Incidente em Antares, p. 69).

Percebe-se o tom malicioso e humorístico do diálogo entre Tibério e sua

amante Cléo, recontando a lenda gaúcha. A tradição oral gaúcha na narrativa é

o palco para traçar a parte promíscua da personalidade do coronel Vacariano.

A lenda regional, criada pelo povo do Rio Grande do Sul, que narra a

superstição de um povo, é empregada como um jogo de sedução. Segundo

José Edil de Lima Alves, “[...] No discurso satírico, durante o ‘incidente’, o

coronel seria chamado de ‘corno’ em praça pública.” (2006, p.201).

A intertextualidade ainda é encontrada por meio do diálogo do romance

de Erico Verissimo com o texto bíblico. Esse diálogo é muito importante, pois

retoma a questão do compromisso com o bem comum e com a integridade

social contra as injustiças do regime militar que enfrenta o Padre Pedro-Paulo.

Oswaldo Antonio Furlan demonstra essa relação em seu estudo Estética e

crítica social em Incidente em Antares (1977):

... o Pe. Pedro registra, em seu diário, como ele, qual José conduzindo Maria e o Menino para o Egito, ‘contrabandeou’ Rita para a Argentina e como, no meio do Uruguai, lhe veio à mente o episódio bíblico: ‘Ocorreu-me um símile que o Pe. Gerôncio acharia profano: a

21 Furna encantada; provém a denominação da cidade de Salamanca, na Espanha, onde existia, de acordo com lendas espanholas, uma escola de magia, no tempo dos Mouros. 22 Blau é o nome da personagem da lenda da Salamanca do Jarau que salvou o casal de seu cruel destino.

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fuga da Virgem Maria com o Menino para o Egito’ (p.435) (FURLAN, 1977, p.127)

Neste episódio em que o Padre Pedro-Paulo ajuda Rita Paz a fugir para a

Argentina para que ela não fosse morta pelos torturadores que mataram seu

marido, João Paz, existe uma denúncia contra a repressão que levava muitas

pessoas a fugirem do Brasil e a viverem uma vida clandestina em outro e,

ainda mesmo, àquelas que foram exiladas em outros países pelo regime

militar. Veremos, então, como essa intertextualidade com o texto bíblico

acontece:

Texto Bíblico Deus confia a Moisés a missão de libertar do cativeiro do Egito os israelitas e de conduzi-los para a Palestina, dizendo: ‘Eu sou aquele que é.’ O Anjo do Senhor disse a José: ‘Toma o menino e sua mãe e foge para o Egito.’ Deus disse a Eva: ‘Darás à luz com dor os teus filhos.’ Deus disse a Adão: ‘Comerás o teu pão com o suor do teu rosto.’ A multidão dos Anjos dizia: ‘Paz na terra aos homens de boa vontade!’

Texto do Incidente João confia a Rita a missão de salvar o filho, mediante a fuga para a Argentina, dizendo: ‘Sou eu, teu marido e companheiro, quem te delega essa missão.' João disse à esposa: ‘Irás em exílio para a Argentina.’ João disse a Rita: ‘E lá terás o nosso filho.’ João disse à esposa: ‘E depois o criarás com o suor do teu rosto.’ João disse a Rita: ‘Farás dele um homem para que ele um dia possa ajudar as criaturas de boa vontade a criar um mundo melhor.’ (FURLAN, 1977, p.127-128)

Assim, comprova-se que o texto bíblico dialoga com Incidente em Antares por

meio da personagem do Padre Pedro-Paulo. O Padre simboliza a salvação não

por meio da religião, mas de suas ações em benefício da sociedade. Neste

ponto a questão religiosa é discutida uma vez que a prática religiosa acontece

quando existe a preocupação com o próximo e quando existe a tentativa de

ajuda a esse próximo e não uma aparente prática religiosa que se restringe

apenas a ida à igreja, como em um evento social sem conteúdo espiritual.

O intratexto (retomada de um texto por outro texto sendo esses dois do

mesmo autor) assim como a intertextualidade, também é recurso importante no

romance. O nome Campolargo aparece pela primeira vez dentro da obra

verissiana em Os devaneios do General, conto de Erico Verissimo e que depois

é retomado em Incidente em Antares. Este conto narra a história de um general

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aposentado, Chicuta Campolargo, que vive na casa da neta à espera da morte.

O General Campolargo orgulha-se por ter participado das grandes revoluções

em Jacarecanga, sua cidade natal, e de ser respeitado por seu poder social e

político, já que era intendente municipal e chefe político:

O general contempla os telhados de Jacarecanga. Tudo isso já lhe pertenceu... Aqui ele mandava e desmandava. Elegia sempre os seus candidatos: derrubava urnas, anulava eleições. Conforme a sua conveniência, condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar uma sova num promotor público que não lhe obedeceu a ordem de ser brando na acusação. Doutra feita correu a relho da cidade um juiz que tece o caradurismo de assumir ares de integridade e de opor resistência a uma ordem sua. (VERISSIMO, 1991, p.30)

O intratexto retoma não só o clã dos Campolargo, enquanto nome familiar,

como também seu comportamento simbólico por meio de suas ideologias.

Chicuta Campolargo participa da Revolta Federalista (1893-1895), que levou a

combate republicanos e federalistas. Essa Revolta envolveu as principais

facções políticas do Rio Grande do Sul, sendo os republicanos a favor do

governo centralizador de Júlio de Castilhos e os federalistas contra esse

governo. Dessa forma, podemos verificar que a linhagem dos Campolargo

tendia ao totalitarismo, a uma visão política mais conservadora. Essa ideologia

política se manterá em Incidente em Antares, já que os Campolargo, na figura

de Anacleto Campolargo, serão os fundadores do Partido Conservador em

Antares, enquanto os Vacarianos, fundadores do Partido Liberal. O intratexto,

portanto, não retoma apenas uma família por meio do nome dela, mas uma

ideologia política conservadora que contribui para o entendimento da

construção da visão política das personagens no romance de Erico Verissimo.

Além de o intratexto retomar a herança ideológica contida no nome da

família Campolargo, a cidade em que reside o Coronel Chicuta Campolargo é

outro intratexto bastante significativo. Jacarecanga, pequena cidade do interior

do Rio Grande do Sul, foi cenário de outro romance de Erico Verissimo, Um

lugar ao sol (1936). Como afirma Flávio Loureiro Chaves em O Realismo Social

de Erico Verissimo (1974): “torna-se evidente que, em romances como [...] Um

lugar ao sol, forma-se uma crítica explícita à sociedade rio-grandense e à

tradição patriarcal sacramentada na história oficial da província.” (CHAVES,

1974, p.8). Jacarecanga é palco dessa crítica assim como Antares. E esse

símbolo da tradição patriarcal, alvo de crítica em Um lugar ao sol é feita pela

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figura de um coronel proveniente da família dos Campolargo, o Coronel

Campolargo. O tecido narrativo de Incidente em Antares é trabalhado nas

filigranas da obra de Erico Verissimo. Este diálogo entre os textos verissianos é

tão profundo que nas páginas iniciais de Um lugar ao sol já existe o mote no

qual Incidente em Antares se construirá, como afirma Chaves (1974):

Essa crítica à má tradição da violência caudilhesca está sintetizada na caricatura impiedosa do Coronel Campolargo, antigo ditador de Jacarecanga, cuja decadência física coincide com o momento histórico da decadência social de sua classe: “... era agora uma peça de museu. Uns falavam nele ainda com vago orgulho; outros, com vago temor. E todos sabiam que o velho se finava aos poucos, em meio, decerto, de visões pavorosas. Ou talvez não conhecesse o remorso. Os poucos amigos que o visitavam contavam que ele parecia um leão velho e pesteado, em que todos os burros agora davam coices. Narravam minúcias de seu sofrimento, da sua lenta dissolução. O bandido não morria – afirmavam – apodrecia em vida.” Esse texto colocado em 1936 na páginas iniciais de Um lugar ao sol, terá sido uma passagem premonitória da farsa macabra em que se envolvem os mortos-vivos do Incidente em Antares em 1971, onde significativamente ressurge o nome Campolargo? (CHAVES, 1974, p.8)

Constatamos que Incidente em Antares encontra suas raízes em outros livros

de Erico Verissimo uma vez que este é seu último romance, uma espécie de

retomada de sua obra completa. Ao intratexto com Um lugar ao sol podemos

somar o intratexto existente com O Tempo e o Vento. O fator natural que

intitula este romance, o vento, está presente também em Incidente em Antares,

com o mesmo sentido em que aparece em O Tempo e o Vento, sempre

prenunciando uma situação fúnebre, de mau agouro.

... E em certas noites, sentada junto do fogo ou da mesa, após o jantar, Ana Terra lembrava-se de coisas de sua vida passada. E quando um novo inverno chegou e o minuano começou a soprar, ela o recebeu como a um velho amigo resmungão que gemendo cruzava por seu rancho sem parar e seguia campo fora. Ana Terra estava de tal maneira habituada ao vento que até parecia entender o que ele dizia. E nas noites de ventania ela pensava principalmente em sepulturas e naqueles que tinham ido para o outro mundo. [...] Era por isso que muito mais tarde, sendo já mulher feita, Bibiana ouvia a avó dizer quando ventava: “Noite de vento noite dos mortos ...”. (O Tempo e o Vento: o continente, 1974, p.151-152). Naquele exato instante um freguês entrou na farmácia e pediu um vidro de elixir paregórico23. O sino da Matriz começou a dobrar

23 Poção calmante para suavizar as dores do estômago e intestino.

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68

finados. Quem teria morrido? [...] E continuaram a discutir o destino de Getúlio Vargas. E quando de novo se fez silêncio, ouviu-se o uivo triste e agourento do vento de agosto. (Incidente em Antares, p. 81).

Temos em Incidente em Antares indícios de que existe o diálogo entre esses

textos verissianos. O Professor Martim Francisco Terra, personagem do

Incidente, é descendente, apesar de não saber, de Ana Terra, segunda

geração da família Terra de O Tempo e o Vento. Quem atenta a esse fato é o

Pe. Gerôncio que deixa claro em sua fala essa questão:

O Prof. Martim Francisco vem a ser tataraneto de Horácio Terra, que em fins do século XVIII afastou-se do tronco da família, estabeleceu-se em Rio Pardo, casou-se com uma moça da vila e lá formou um forte e frutuoso ramo das árvores dos Terras. Contei tudo isso ao professor e ele não me pareceu muito entusiasmado. Nunca ouviu falar na velha Ana Terra, que até hoje é venerada em Santa Fé, a cidade que ela ajudou a fundar. Era pioneira na acepção exata do termo, mulher corajosa, de virtudes altíssimas. (Incidente em Antares, p.141)

Apesar de termos abordado superficialmente a questão do intratexto

entre o Prof. Martim Francisco Terra e a linhagem dos Terra, de O Tempo e o

Vento, quando abordamos a questão da origem do nome do Professor, vale

ressaltar aqui a ideologia por trás desse nome e a carga de significação do

Professor na narrativa de Incidente em Antares. Apesar de ser um descendente

distante da família Terra, de Santa Fé, o Professor Terra não dá importância a

esse fato diferentemente do que acontece com o clã dos Campolargo. Para os

Campolargo, assim como para os Vacarianos, o nome de família representa

um bem material muito importante; é como se fosse uma propriedade que

ficaria de herança para as gerações posteriores. Para os Terra, o nome é

motivo de orgulho na essência do termo, já que apesar de serem uma família

sem grandes posses materiais, eram possuidores de uma coragem e de uma

força muito grandes para lutar por seu povo. Por isso, o Professor Terra não se

importa com o nome que leva, porque o importante para ele é denunciar as

injustiças que as classes mais baixas da sociedade sofrem. Tanto que o fato de

ele não dar importância a seu nome familiar causa espanto ao Pe. Gerôncio,

representante da Igreja Católica em Antares, símbolo do conservadorismo e da

valorização do nome como propriedade familiar.

Page 70: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

69

O Tempo e o Vento ainda é retomado por meio de uma cena que se dá

no final do Incidente, quando a cidade é invadida por ratos devido à podridão

dos defuntos insepultos. Rodrigo Celente em artigo para o Jornal Zero Hora de

Porto Alegre, intitulado Erico e o vento intertextual da história (2005), afirma

que:

Em uma passagem de O Tempo e o Vento, a filha de Licurgo e Alice, Aurora, nasce morta e é enterrada no porão. Alice teme os ratos. A mesma imagem Erico Verissimo irá colocar em Incidente em Antares (a cidade cheia de ratos após o tão esperado enterro de seus mortos) e que, por certo, também se pode buscar em outra narrativa de outro autor gaúcho, Os Ratos, de Dyonélio Machado. (CELENTE, 2005)

A questão dos ratos em Incidente em Antares retoma, portanto, O tempo e o

Vento em uma relação intratextual entre seus textos. Mas, a simbologia dos

ratos, com significado de doença, contaminação, sujeira é aparente no referido

texto de Dyonélio Machado. O protagonista de Os Ratos, de Dyonélio

Machado, Naziazeno Barbosa, depois de conseguir o dinheiro necessário para

pagar uma dívida, sonha que os ratos estão roendo seu dinheiro e que, assim,

ele não consegue saldar a dívida. O mesmo acontece com Aurora, de O

Tempo e o Vento. Em um momento de descontrole emocional, depois da morte

da filha recém-nascida, ela sonha que os ratos estão comendo o cadáver da

menina e desespera-se de tal forma que fica doente. Em Incidente em Antares

acontece o mesmo. Os ratos invadem a cidade por causa dos cadáveres que

estão no coreto da praça à espera de seus sepultamentos. Com a Operação

Borracha, medida criada pelos próceres de Antares para que o incidente com

os mortos fosse esquecido pela população, a questão dos mortos é colocada

em dúvida se de fato houve ou não houve a volta à vida de sete defuntos.

Portanto todas as conseqüências desse fato também são colocadas em dúvida,

inclusive a invasão dos ratos na cidade. Logo que aparecem os ratos em

Antares, cria-se uma atmosfera de desespero entre o povo que se fecha em

casa. A partir do momento em que é oferecida uma retribuição àquelas

pessoas que conseguissem matar um maior número de ratos, elas começam a

sair de seus lares. Os ratos, portanto, tanto no texto de Dyonélio Machado

quanto nos textos verissianos, estão relacionados à insanidade humana, ao

desespero exacerbado de perda material. Em O Tempo e o Vento, a perda está

relacionada à materialidade do ser humano, à aniquilação do homem. Em Os

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Ratos e em Incidente em Antares, esta perda relaciona-se mais à questão do

dinheiro, da verdadeira contaminação humana não por meio das doenças que

os ratos podem transmitir, mas da doença que o consumismo, que a ganância

gera.

Assim, comprovamos que o intratexto é recurso literário importantíssimo

na construção da atmosfera política de Incidente em Antares, já que por meio

desse recurso a ideologia política das personagens antarenses pode ser

compreendida evidenciando assim que a obra literária de um autor é um

organismo cujos elementos nutrem-se na relação existente entre eles. Quando

isso acontece, estamos diante de um projeto literário com verdadeiro

compromisso com a literatura.

A ironia é uma forte característica em Incidente em Antares, visto que

esta narrativa tem um caráter de literatura engajada, por denunciar

acontecimentos da época da ditadura militar no Brasil e que segundo Beth

Brait:

... para haver ironia há necessariamente a opacificação do discurso, ou seja, um enunciador produz um enunciado de tal forma a chamar a atenção não apenas para o que está dito, mas para a forma de dizer e para as contradições existentes entre as duas dimensões. (BRAIT, 1996, p. 106).

Em boa parte de seu texto, Erico Verissimo deixa traços com tom de ironia

como uma estratégia de iludir o leitor ou até mesmo de convencê-lo para

determinado fato. Muitas vezes, a ironia é utilizada para uma denúncia, para

um desabafo do autor na voz de algum personagem ou até mesmo para efeito

cômico.

Em 1940 estava já funcionando a máquina que ele montara para ganhar dinheiro. Associado a um primo seu e amigo íntimo, formado em Direito, Tibério abrira um escritório de advocacia administrativa e começara a vender a mais curiosamente abstrata das mercadorias: influência. (Incidente em Antares, p. 47). [...] - Queres que te fale com franqueza? As coisas estão de tal modo confusas que já não sei mais a quantas andamos. Depois que li nos jornais que o governo dos Estados Unidos permitiu que as tropas russas chegassem a Berlim primeiro que as deles, e depois que vi numa fotografia soldados soviéticos e americanos confraternizando... bom, não duvido de mais nada. Se me disserem que Deus Nosso

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71

Senhor deu uma guinada para a esquerda, eu acredito ... (ibid, p. 53). [...] De súbito, mudando o tom de voz, Tibério Vacariano disse: - O Pe. Gerôncio me disse que a Matriz anda precisando duns consertos e duma pinturinha. - O Brasil também, Tibé, o Brasil também. (ibid, p. 57).

Outro recurso muito utilizado por Erico Verissimo em seu romance é o

fantástico. Neste discurso, com que destrói a narrativa tradicional e incorpora o

pensamento de crise do ser humano contemporâneo, Erico levanta um

questionamento sobre a conduta social do regime militar brasileiro. Segundo

Todorov, “o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece

as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural.”

(TODOROV, 1992, p.31). Esta hesitação inicia-se a partir do começo do

incidente, visto que o próprio nome do capítulo gera uma dúvida misturada a

uma ansiedade do leitor em saber o que acontecerá, o que gera “a suscitação

da curiosidade do leitor para um incidente estranho”, como afirma Maria da

Glória Bordini em Incidente em Antares: a falência do maravilhoso (1974).

Porém desde a primeira parte do romance, o autor deixa indícios de que o

incidente é permeado por um elemento sobrenatural, diferente, estranho:

Tão insólitos24, lúridos25 e tétricos26 – e estes adjetivos foram catados no artigo alusivo àquele dia aziago27, escrito pelo jornalista Lucas Faia para o seu diário A Verdade, porém jamais publicado, por motivos que oportunamente serão revelados – tão fantásticos foram esses acontecimentos, que o Pe. Gerôncio chegou a exclamar, dentro de seu templo, que aquilo era o começo do Juízo Final. (Incidente em Antares, p.2).

Após o incidente, o leitor continua incerto sobre o que é real, titubeia em sua

interpretação sobre o acontecido, porém aceita o fato e continua a leitura. Isso

ocorre porque segundo Maria da Glória Bordini há “um esforço sistemático para

a acentuação do caráter realístico dos fatos que estão sendo narrados”. Esta é

24 Extraordinário, desacostumado, desusado, incrível. 25 Pálido, lívido. 26 Muito triste, medonho, fúnebre, ameaçador. 27 Funesto, nefasto, de mau agouro, que traz desgraça.

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outra característica do gênero fantástico, definida por Tzvetan Todorov, em

Introdução à literatura fantástica (1992):

O fantástico, como vimos, dura apenas o tempo de uma hesitação: hesitação comum ao leitor e à personagem, que devem decidir se o que percebem depende ou não da “realidade”, tal qual existe na opinião comum. No fim da história, o leitor, quando não a personagem, toma contudo uma decisão, opta por uma ou outra solução, saindo desse modo do fantástico. (TODOROV, 1992, p.48).

O leitor de Incidente em Antares diante do elemento fantástico aguça a sua

curiosidade para compreender o evento, mas depara-se com o fato de não

saber o que pensar, no exato momento em que os mortos levantam de seus

esquifes e postam-se no coreto da praça de Antares à espera de seus

sepultamentos. Naquele momento, nem a população de Antares, nem os

próprios defuntos entendem o que está ocorrendo, o porquê de eles terem

voltado à vida, se realmente estavam mortos ou não, reforçando o conceito de

Todorov. Após este fato, a narrativa evolui, como se não fosse encontrada

qualquer explicação ou como se simplesmente o leitor aguardasse o desfecho

para tentar entender o fato macabro:

Numa relutância supersticiosa focou o rosto do cadáver da dama e estremeceu. Os olhos dela estavam abertos, seus lábios começaram a mover-se e deles saiu primeiro um ronco e depois estas palavras, nítidas: “Senhor, em vossas mãos entrego a minha alma”. O ladrão, soltou um grito abafado, ergueu-se rápido, deixou cair a lanterna acesa e o pé-de-cabra, e rompeu a correr na direção dos campos desertos [...] (Incidente em Antares, p.229-230).

Até o fato do “incidente”, a narrativa é bastante verossímil e possui um

grande teor de realismo. Erico utiliza o fantástico sem perder o viés realista, já

que as personagens comentam sobre a podridão, o cheiro nauseante que

exalam, sobre as moscas que voam ao redor delas e até pelas formigas que

percorrem seus corpos. Ou seja, mesmo mortos, os sete defuntos ainda

possuíam consciência das leis humanas. As pessoas vivas também se

manifestam frente a esse acontecimento reforçando o caráter realista da

narrativa. Algumas se assustam, desmaiam, sentem o cheiro de podridão que

exala dos defuntos, percebem que os mortos não têm sombra e um chega a

tentar matá-los com tiros, sem que os corpos sejam atingidos pelos projéteis,

Page 74: TCC - Andrezza Ribeiro Bichiarov e Beatriz Badim de Campos

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pois apesar de os defuntos terem consciência, a sua matéria está em processo

de decomposição. É como se o leitor estivesse presente à cena, impactado

pela estranha e descabida visão dos defuntos atuando como se estivessem

vivos:

Ao reconhecer naquelas faces cadavéricas as fisionomias de sua freguesa Quitéria Campolargo e do Dr. Cícero Branco [...] santo Deus! – D. Clementina abre a boca, solta um vagido, sente que o mundo se vai aos poucos apagando, deixa cair o vaso, que se parte em cacos contra o soalho, suas pernas se vergam e ela tomba, primeiro de joelhos e depois de borco28. (Incidente em Antares, p. 256). ... o auto sobe na calçada e esbarra com violência e estrondo contra a parede dum prédio. O padeiro solta um urro, a respiração bruscamente cortada, duas costelas quebradas, e ali encurvado sobre o guidão, resfolgando forte, salivando sangue, o pavor nos olhos, enquanto pelas suas narinas entra um cheiro adocicado de carne humana decomposta. (Ibid, p.257).

Os sete defuntos representam as diferentes classes sociais da

sociedade antarense em representação da sociedade brasileira e cada um

pode ser analisado como um símbolo representando uma voz dentro da

narrativa. Por estarem insepultos, podem acusar os vivos e denunciar as

mazelas da sociedade sem temer as conseqüências, já que não fazem mais

parte do mundo dos vivos e, portanto, não têm compromisso com a moral, com

a aparência, com o fingimento dos seres humanos.

Em uma interpretação de ângulo sociológico, prevalece a condição

social de cada defunto insepulto. No topo está D. Quitéria Campolargo,

representando a elite latifundiária e logo abaixo dela a classe do executivo que

opera esquemas ilícitos, Dr. Cícero Branco. Erico Verissimo representa nas

personagens de Barcelona e do professor de música Menandro Olinda os

setores médios da sociedade por meio das profissões de sapateiro e professor.

E para fechar esta “hierarquia”, o autor simboliza em João Paz, Pudim de

Cachaça e Erotildes o grupo dos injustiçados econômicos e políticos. Esta

ordem entre os mortos descreve-se desde o momento em que estes levantam

de seus esquifes até o cortejo rumo à cidade:

28 De boca para baixo; de bruços com a face para baixo.

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- Avante! – comanda o advogado. Oferece o braço à matriarca dos Campolargo, que o recusa, altiva, pondo-se a caminhar lentamente, lançando o pânico entre as formigas, cujas fileiras disciplinadas ela varre com a fímbria do vestido. Cícero Branco marcha um passo atrás dela. Joãozinho e Barcelona ladeiam o maestro, como um guarda de honra. Erotildes e Pudim de Cachaça deixam-se ficar naturalmente para trás, fechando a marcha. (Incidente em Antares, p.255).

A decomposição de seus corpos é comparada à podridão da vida na

cidade de Antares e reforça o efeito do fantástico na narrativa, causando horror

ou curiosidade ao leitor. O autor gera um suspense na narrativa permeado por

um clima de denúncia, visto que os mortos direcionam-se ao coreto da praça

para denunciar a podridão da moral da população antarense. Como dissemos

anteriormente, D. Quitéria Campolargo é a matriarca e líder política de Antares,

mas existe outra mulher de muita importância no romance, Erotildes, a

prostituta mais conhecida da cidade, que teve seus tempos de glória, porém

está velha e doente e acaba por ser abandonada no hospital como indigente e

enterrada como tal, morrendo de uma doença já erradicada na época,

simplesmente por descaso médico:

- Essa é a Erotildes, que entre 1925 e 1945, por sua graça e beleza, foi uma das prostitutas mais famosas de Antares. Era a fêmea mais procurada do bordel da Venusta, a carne mais cara daquele perfumado açougue humano. Erotildes virou a cabeça de muita gente na nossa cidade, até de homens casados, senhores considerados virtuosos. D. Quita, seu amigo Tibério Vacariano teve Erotildes como amante exclusiva durante quatro anos [...] (Incidente em Antares, p.236-237).

Na fala de Cícero Branco, evidencia-se uma crítica à prostituição das mulheres

e, ao mesmo tempo, o quanto a sociedade marginaliza esta classe,

desrespeitando e tratando-a como se não tivessem um papel social importante.

Erotildes está no núcleo das personagens que são abandonadas e esquecidas

por uma sociedade que devia ampará-las. Unem-se a ela o bêbado Pudim de

Cachaça e o jovem João Paz, representantes de classes menosprezadas pelo

governo de Antares.

O narrador, ora o jornalista Lucas Faia, ora o Padre Pedro-Paulo, ora o

Professor Martim Francisco Terra corroboram o conceito sobre o elemento

fantástico, que precisa da confiança do leitor para que os acontecimentos

sobrenaturais na narrativa não sejam contestados, mas causem um

estranhamento. O uso do diário do Padre Pedro-Paulo é um recurso utilizado

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75

pelo autor para tornar a narrativa verossímil e fazer com que o leitor permaneça

envolvido na trama, identificando-se com ela, já que o narrador do diário é uma

personagem e ao mesmo tempo, uma figura que representa a Igreja, unidade

que concebe crédito da maioria dos leitores:

... os acontecimentos inexplicáveis serem contados por alguém que é ao mesmo tempo um dos heróis da história e o narrador: trata-se de um homem como os outros, sua palavra é duplamente digna de confiança; em outros termos, os acontecimentos são sobrenaturais, o narrador é natural: excelentes condições para que o fantástico apareça. (TODOROV, 1992, p.92). ... não duvidamos do testemunho do narrador; antes procuramos, com ele, uma explicação racional para estes fatos bizarros. (Ibid, p. 93). Como prometi a João Paz, levei hoje Rita para o outro lado do rio. Geminiano emprestou-me o seu jipe para a primeira parte dessa operação de ‘contrabando’. [...] Quando muito moço, eu me sentia uma personagem que tinha entrado por engano numa peça a cujo elenco não pertencia. [...] Um dia, mais velho, decidi olhar a morte cara a cara ou, melhor, cara a caveira, e daí por diante passei a me sentir uma pessoa, um indivíduo real, concreto, pertinente e até cheguei a pensar com saudável petulância: se a morte é a única coisa absoluta na vida, por que não hei de fazer da minha existência também um fato absoluto? (Incidente em Antares, p.435-437).

A voz do Padre Pedro-Paulo pode ser entendida como a voz do próprio leitor

que deve tirar suas conclusões sobre o elemento fantástico da narrativa para

dar significação a ele.

O recurso fantástico possibilita a denúncia à conduta hipócrita da

sociedade antarense como representação da hipocrisia que assolava a

sociedade que vivia um regime militar pautado na repressão. Como os seres

que morrem não têm mais compromisso com a sociedade, pois não fazem

mais parte dela, eles podem expressar suas idéias livremente sem que sejam

repreendidos por isso, o que confirma a fala de Cícero Branco:

- Pergunteis com razão como é que conheço tão bem as patifarias desses dois próceres da nossa comuna, e eu responderei que é porque, quando vivo, pertenci à quadrilha! Sim, também fui um chicanista29, um peculatário30, em suma, um ladrão!

[...]

29 Aquele que é dado a chicanas (tramóias) forenses. 30 Aquele que comete algum tipo de desfalque.

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- O senhor está se incriminando a si mesmo em público! - Ora, ora, meu caro magistrado, a morte me confere todas as imunidades. Estou completamente fora do alcance da lei dos homens. (Incidente em Antares, p.347)

Não existe, nas leis humanas, repreensão para seres que já morreram,

portanto eles funcionam como a voz abafada das pessoas que viram a sua

liberdade de expressão ser roubada pelo regime militar. Tanto é que depois da

prestação de contas entre mortos e vivos na praça de Antares e posteriormente

ao devido sepultamento dos defuntos, os próceres antarenses tentam criar uma

forma de apagar o fato macabro que trouxe a público a verdade por trás das

máscaras sociais. Foi criada pelo Professor Libindo Olivares, então, a

Operação Borracha cuja finalidade era apagar todo e qualquer resquício do

evento da sexta-feira, 13 de dezembro de 1963:

- Eis o que proponho [...] Organizar uma campanha muito hábil, sutilíssima, no sentido de apagar esse fato não só dos anais de Antares como também da memória de seus habitantes. Sugiro (aqui entre nós) um nome para esse movimento: Operação Borracha. (Incidente em Antares, p.461)

Assim, o elemento fantástico chega ao fim não só pelo sepultamento dos

mortos, mas pelo sepultamento das lembranças do evento. Mais do que um

problema de ordem material, o que se queria enterrar eram os problemas de

ordem social. Maria da Glória Bordini (1974) comenta que o elemento

fantástico tem fim na trama por meio dos próprios mortos “que se reconhecem

incapazes de fazer frente a hostilidade de seus concidadãos.” (p.13) Esse fato

configura o comportamento simbólico do período militar brasileiro, uma vez que

a liberdade de expressão era controlada por governantes que se diziam

defensores da moral e bons costumes, mas que eram os mesmos

responsáveis por torturarem e, em alguns casos, levarem inocentes à morte.

Esses momentos de tortura passaram, com o decorrer do tempo, por uma

“Operação Borracha” moral, já que se tornaram apenas cicatrizes de um dado

momento político brasileiro.

A título de curiosidade e possível gênese da escolha de sete defuntos

por Erico Verissimo para representarem o recurso fantástico no romance, Maria

da Glória Bordini comenta:

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...a greve descrita em Incidente tem por fonte uma foto que o autor encontra numa revista norte-americana. [...] A imagem mostrava 10 ou 12 féretros a jazer diante de um cemitério por causa de uma greve de coveiros. Ampliando a imagem para uma greve geral de operários de um pólo industrial de uma cidade interiorana, o autor passa a inquietar-se com o tema fantástico e com a concentração parodística que fará da história do Rio Grande do Sul e do Brasil [...] (BORDINI, 1974, p.13)

Por essa fala de Bordini, podemos ratificar, mais uma vez, que é imprescindível

o diálogo entre o interno e o externo do texto para que a literatura possa

estabelecer uma verdadeira relação entre leitor e texto. Dessa forma, o leitor

não será passivo diante do texto, mas um co-autor do mesmo, pois terá como

inferir por meio do diálogo que pode estabelecer com ele.

Outro recurso literário, o contraponto pode ser entendido como uma

composição em polifonia, de acordo com Aldous Huxley que, fazendo uma

transposição do contraponto musical, criou analogamente o contraponto

literário. Este recurso foi largamente usado por Erico Verissimo em toda a sua

obra, com maior ou menor intensidade, já que foi ele o responsável pela

tradução do livro Point Counter Point de Huxley para o Português. Como define

Rodrigo Celente em Erico e o vento intertextual da história (2005), para o

Jornal Zero Hora de Porto Alegre: “A técnica criada por Huxley consiste em

contar histórias paralelas, com idas e vindas temporais (recuos e avanços) que

ora se tocam, se entrecruzam até chegar num núcleo comum.” Em Incidente

em Antares o contraponto é um recurso sutil que dá à narrativa uma dinâmica

bastante interessante. Incidente em Antares constitui-se de duas partes

distintas: a primeira, que fornece dados históricos sobre o povo antarense e a

constituição de sua sociedade e a segunda, que narra o incidente com os

defuntos insepultos. Na segunda parte, existem momentos de recuo temporal,

que acontecem por meio das lembranças das personagens, para a retomada

de fatos que explicam a conduta das personagens envolvidas no incidente. No

momento da prestação de contas entre mortos e vivos, as histórias das

personagens, que até então não tinham relação entre si, revelam uma ligação

forte por meio da fala dos mortos:

- [...] Tinha quinze anos quando o meu padrasto se passou comigo. Não houve nada, mas minha mãe, muito ciumenta, me botou pra fora de casa e então eu vim pra cidade. Como não sabia ler e não queria

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ser copeira ou cozinheira nem pedir esmola, caí na vida. Fui pra cama com o primeiro homem que me prometeu dinheiro... - E você se lembra de quem foi esse homem? - ‘Naturalmentes’. - [...] Você o enxerga aqui do coreto? Erotildes aponta numa direção.

[...]

- Foi aquele ali... o homem da ‘estauta’ – diz.

[...]

- O Com. Leoverildo! [...] - Esse mesmo. Me levou pra casa dele. [...] Por sinal foi numa sexta-feira santa. O ano? Deixem ver... 1926?... 1927? Por aí... Na placa de bronze , embutida na coluna que sustenta o busto lê-se em caracteres salientes: Ao humanitário Comendador Leoverildo Grave, digníssimo chefe de família, cidadão benemérito, exemplo para os pósteros – a cidade agradecida.” (Incidente em Antares, p.363-364)

A história até então desconhecida da prostituta Erotildes cruza-se com a

história do Comendador Leoverildo Grave, que ganhou um busto de bronze na

praça principal de Antares por sua integridade moral e coragem na defesa na

cidade e do povo antarense. Verificamos que a técnica do contraponto é

importante na narrativa para dar significação às histórias das personagens e

com isso desmascarar a conduta hipócrita de outras. Por meio desse recurso,

as verdadeiras identidades são reveladas e a questão da aparência versus

verdade que assola as sociedades em geral é discutida. Consideramos esse

recurso bastante pertinente para a denúncia de condutas dentro de um regime

militar em que de um lado havia a defesa da moral por parte dos militares, mas

por outro eles eram os mandantes de torturas cruéis a suspeitos de

envolvimento em ações contra o regime militar.

Consideramos, assim, que os recursos literários são ferramentas que

possibilitam ao autor um diálogo com um dado momento histórico, político e

social e conseqüentemente, por meio disso, um diálogo com o seu leitor, uma

vez que este pode refletir sobre esse momento de produção do escritor.

Verificamos que o regime militar brasileiro foi determinante para uma literatura

engajada e comprometida com as questões sociais e políticas, uma ferramenta

de luta contra as injustiças deste período. Em Incidente em Antares, ficou

retratado que a verdade não era conveniente para os próceres de Antares que

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preferiram continuar atuando no baile de máscaras sociais e lacrar os caixões,

enterrando a verdade com os sete mortos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os homens estão cada vez mais incrédulos e prosaicos. Já não crêem em milagres, aparições ou sortilégios. Demarcam arbitrariamente os domínios do verossímil, esquecendo as lições que a vida a todo o instante lhes está dando.

Erico Verissimo

Buscaremos apresentar neste capítulo os resultados obtidos ao longo de

nosso estudo sobre a questão da literatura estar em constante diálogo com o

factual, proporcionando ao leitor, assim, uma possibilidade de reflexão sobre

essa realidade em que está inserido.

No primeiro capítulo, verificamos que os aspectos sociais e políticos são

deveras importantes para a construção da obra literária, já que é impossível

desvincular da literatura questões como as condições de produção do autor, a

sociedade em que ele está inserido, os momentos social, histórico e político

que influenciarão sua produção literária. Por esse motivo é que Bakhtin propõe

que o discurso é ao mesmo tempo individual e social, uma vez que o escritor

em um ato individual de escrita, consciente ou inconscientemente, deixa

marcas da coletividade impregnadas em seu texto, já que ele é um elemento

constituinte do organismo social a que pertence. Assim, o escritor cria

significados para a realidade de acordo com a sua experiência social,

revelando, dessa maneira, o caráter dialógico da literatura. Por ter esse caráter

dialógico é que a literatura perpetua-se, pois admite inúmeras leituras de

acordo com as vivências de seu leitor.

Verificamos, também, que política e arte caminham lado a lado já que

ambos manifestam-se por meio das ideologias que representam. De acordo

com nossa pesquisa, nos regimes políticos ditatorias, a presença de uma arte

contestadora, cuja palavra de ordem fosse a liberdade, era muito forte. A

criação artística, para manifestar essa ideologia, teve de criar meios para que

pudesse de fato expressar-se dentro de um regime em que não havia liberdade

de expressão. E quando essa arte subvertia os dogmas políticos, era

brutalmente repreendida. Na literatura, observamos que os recursos literários

utilizados pelo escritor possibilitam a criação de uma realidade ficcional em que

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se pode refletir sobre questões da realidade factual. Ou seja, a arte é uma

poderosa ferramenta de luta e voz social.

No segundo capítulo, voltado para a literatura, verificamos como, de fato,

os recursos literários dão ao texto possibilidades de diálogos com o factual de

uma forma sutil, mas eficaz. Por meio do romance Incidente em Antares, de

Erico Verissimo, que foi concebido durante um período de repressão militar e

censurado logo após o seu lançamento, ratificamos que os recursos literários

mais expressivos na narrativa foram determinantes para que as questões

sociais, históricas e principalmente políticas fossem discutidas e criticadas.

Longe de ser partidarista de uma ou outra ideologia, o romance de Erico

Verissimo recria a história do país e do Rio Grande do Sul por meio da

produção literária, dando ênfase a fatos de conhecimento nacional, como por

exemplo, a dinâmica da sucessão presidencial em um período de ditadura

militar e como o povo se manifestava em relação a essa sucessão; bem como

a fatos regionais como o comportamento simbólico do povo gaúcho. Assim,

Erico Verissimo cria situações ficcionais de tal forma consoantes com a

realidade factual que é possível estabelecer relações entre o interno e o

externo do texto.

O recontar da História nacional e gaúcha por meio de uma narrativa

ficcional não só é consonante com o pensamento do povo do Rio Grande do

Sul, mas com o pensamento de todos os brasileiros, já que o macrocosmo de

Incidente em Antares é o Brasil, tendo como foco os problemas sociais,

históricos e principalmente políticos que assolaram o país em momentos

pontuais de sua História. Erico Verissimo cumpre seu papel como exímio

romancista já que ele reconstrói a realidade factual em seu texto literário de tal

forma que possibilita ao leitor debater questões e tentar encontrar soluções

para a sociedade a que pertence.

Surge, nesse segundo capítulo, uma conclusão de fundamental

importância: o interno de um texto literário sempre dialoga com o externo dele e

os dois mantêm entre si uma relação dialógica. É esse dialogismo que instigará

o leitor a formar o seu olhar crítico sobre a realidade em que está inserido e

questionar-se sobre seu papel social, histórico e político dentro dessa

realidade. Consideramos, então, que a Literatura cumpre o seu caráter

transformador quando compreendida dessa forma.

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A obra literária de um autor de fato está comprometida com o caráter

transformador da Literatura quando percebemos que este autor assume a

responsabilidade de fazer de sua obra um verdadeiro instrumento de ação

social por meio da observação crítica que ela possibilita. O escritor fornece ao

seu leitor, por meio da Literatura, as armas mais eficazes para que este possa

desempenhar seu papel de cidadão atuante na sociedade. Dessa forma, cria-

se um vínculo de cumplicidade entre autor e leitor já que este último

transforma-se em co-autor do projeto literário do primeiro. Baseadas nisso,

podemos afirmar que o texto não se encerra nas páginas amarelecidas dos

livros, pois o texto literário não possui fronteiras uma vez que está em

constante diálogo com o leitor que, por sua vez, multiplicará os múltiplos

sentidos desse texto quando por meio dele apurar o seu olhar crítico sobre o

mundo.

Acreditamos, assim, terem sido alcançadas nossas proposições iniciais.

O nosso desejo em relação aos leitores é que tenhamos mostrado a eles as

ferramentas que o texto literário coloca em nossas mãos para podermos

alcançar o prazer da descoberta deste mundo sem limites. Ao leitor de Erico

Verissimo, deixamos uma pequena, mas sincera leitura de um de seus

romances, que poderá contribuir para expandir os horizontes de novas leituras.

E, dando por findo este nosso estudo, a Erico Verissimo nossa

admiração maior:

Erico revive em nossos pensamentos. Guia os nossos passos às bibliotecas repletas de suas obras, Certamente deseja que sejamos persistentes. Que os obstáculos sejam removidos, E ninguém melhor do que ele para comandar a luta, Uma luta de pensamentos escritos e vigílias filosóficas, Uma andança fugidia entre o Tempo e o Vento. O Tempo passando acelerado pelas veredas do calendário. O Vento soprando impiedoso sobre as coxilhas da vida. E em memória de Erico, ergue-se uma cruz. Uma cruz gigante entre gigantes ciprestes. [...] Uma Cruz Alta. (ALFONSIN, 1975)

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