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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

Ana Carolina Oliveira Gomes

Ao educativa na priso: um estudo sobre saberes e prticas de educadores presos em duas penitencirias paulistas

Guarulhos 2011

2 Ana Carolina Oliveira Gomes

Ao educativa na priso: um estudo sobre saberes e prticas de educadores presos em duas penitencirias paulistas

Trabalho de Concluso de Curso apresentado Universidade Federal de So Paulo como requisito parcial para obteno do grau de Licenciatura em Pedagogia. Orientadora: Prof. Dra. Marieta Gouva de Oliveira Penna

Guarulhos 2011

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Gomes, Ana Carolina Oliveira Ao educativa na priso: um estudo sobre saberes e prticas de educadores presos em duas penitencirias paulistas / Ana Carolina Oliveira Gomes, 2011. 77f Trabalho de Concluso de Curso (graduao em Pedagogia) Universidade Federal de So Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, 2011. Orientadora: Prof. Dra. Marieta Gouva de Oliveira Penna. Ttulo em ingls: Educational activity in prison: a study on knowledge and practices of teachers arrested in two prisons in So Paulo 1. Educao 2. Educadores presos 3. Saberes docentes I. Ttulo

4 Ana Carolina Oliveira Gomes

Ao educativa na priso: um estudo sobre saberes e prticas de educadores presos em duas penitencirias paulistas

Guarulhos, 12 de dezembro de 2011

Prof. Dra. Marieta Gouva de Oliveira Penna Instituio: UNIFESP

Prof. Dr. Luiz Carlos Novaes Instituio UNIFESP

Prof. Me. Jos Antonio Gonalves Leme Instituio FUNAP

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Para o meu pai, em memria de seu esprito livre.

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Agradecimentos professora Marieta, pela orientao, exemplo, dedicao ao meu trabalho e at pelas broncas necessrias. minha famlia, Maria e Ramon, pela presena. Ao Rodrigo, pela pacincia e carinho. Aos funcionrios dos presdios, em especial Betnia, Igor, Cristvo e Joo, pela boa vontade. Aos educadores presos, que, ao compartilharem suas experincias, trouxeram substncia a um trabalho que se mostrava pequeno. professora Mrcia Romero, com meu respeito e admirao. Um agradecimento igualmente importante a todos os professores e professoras com os quais muito aprendi na UNIFESP. s minhas companheiras de curso, por tornarem toda a jornada mais divertida. E um agradecimento geral no menos importante a todos e todas que um dia, de maneira inexplicvel, decidiram botar f em mim.

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Mas j que todos ns nos encontramos no contexto de culpabilidade do prprio sistema, ningum estar inteiramente livre de traos de barbrie, e tudo depender de orientar esses traos contra o princpio da barbrie, em vez de permitir seu curso em direo desgraa.

Theodor W. Adorno

No todo mundo que quer entrar numa cadeia [...] Essa uma porta pra voc divulgar o nosso trabalho; atravs do seu trabalho voc t divulgando o nosso, e isso bastante importante.

Tiago/Hugo

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ResumoO tema desta monografia a escola na priso. A pesquisa buscou investigar os saberes mobilizados nas prticas pedaggicas dos educadores presos, sujeitos que, assim como seus alunos, se encontram na condio de detentos. O referencial terico utilizado diz respeito ao conceito de saberes docentes estabelecido por Tardif. Tambm, na construo da pesquisa, foram realizadas leituras sobre a temtica da educao nas prises, especialmente o livro organizado por Onofre. O levantamento dos dados foi realizado em duas penitencirias paulistas e, ao todo, foram entrevistados 12 educadores. Parte-se da hiptese de que, por no possurem formao inicial para a docncia, os educadores presos pautam as atividades escolares em reminiscncias da poca em que estudavam, aliando tais memrias formao oferecida para o exerccio da funo dentro do presdio. Essa hiptese se confirma, mas tambm se destacam as aprendizagens realizadas pelos educadores em sua prtica como docentes. Os resultados da pesquisa apontam para a configurao da escola como valor na priso, e para o questionamento, por parte dos prprios detentos, sobre a qualidade da educao que eles, enquanto professores sem formao, podem oferecer.

Palavras-chave: escola na priso; educadores presos; saberes docentes.

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AbstractThe theme of this monograph is the school in prison. The study aimed at investigating the knowledge mobilized in pedagogical practices of arrested educators, individuals who, like their pupils, are in the condition of detainees. The theoretical framework used concerns to the concept of teacher knowledge established by Tardif. Also, in the construction of the survey, there were readings on the issue of education in prisons, especially the book edited by Onofre. Data collection was conducted in two prisons in Sao Paulo and, in all, 12 educators were interviewed. It starts with the hypothesis that, because of their lack of inicial training for teaching, arrested educators guide school activities in reminiscences of the time when they were studying, combining such memories to the training offered for the exercise of the duty inside prison. This hypothesis is confirmed, but also highlight the studies undertaken by educators in their practice as teachers. The survey results point to the school's setting as a value in prison, and the questioning by the detainees themselves on the quality of education they, as untrained teachers, can offer.

Keywords: school in prison; arrested educators; teacher knowledge.

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SumrioIntroduo ....................................................................................................................... 11 Captulo 1: A priso e a escola na priso........................................................................ 171.1 O contexto prisional paulista ............................................................................................. 17 1.2 Polticas de educao para o sistema penitencirio ........................................................... 20 1.3 A escola na priso ............................................................................................................. 26

Captulo 2: O desenvolvimento da pesquisa .................................................................. 302.1 Os referenciais tericos da pesquisa............................................................................... 30 2.1.1 - A prtica pedaggica dos professores e os saberes docentes ....................................... 31 2.1.2 A formao do indivduo e a funo social da escola .................................................... 36 2.2. Os procedimentos terico-metodolgicos ........................................................................ 38 2.3 A Fundao Professor Manoel Pedro Pimentel (FUNAP) ................................................ 41 2.4 O contexto das entrevistas: os presdios pesquisados..................................................... 45 2.5 Os sujeitos da pesquisa: os educadores presos ............................................................... 45

Captulo 3: As prticas dos educadores presos ............................................................... 513.1. Prtica pedaggica dos educadores presos ....................................................................... 51 3.2 Saberes docentes e formao para a docncia ................................................................... 56 3.3 Valores atribudos escola e ao trabalho de professor...................................................... 62

Consideraes finais ....................................................................................................... 65 Referncias ..................................................................................................................... 68 Apndice ......................................................................................................................... 711. Primeiro questionrio entregue aos educadores presos ....................................................... 71 2. Roteiro das entrevistas ........................................................................................................ 72 3. Modelo de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido enviado ao Comit de tica em Pesquisa da Secretaria da Administrao Penitenciria- CEPSAP ......................................... 74

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IntroduoO presente trabalho tem por tema a escola na priso. O foco a investigao de aspectos das prticas pedaggicas dos educadores presos, sujeitos encarcerados que atuam como professores em penitencirias paulistas. O estudo se insere em projeto de pesquisa intitulado Os professores e o ensino: estudos sobre as prticas pedaggicas docentes em suas relaes com a escola, sob coordenao da Profa. Dra. Marieta Gouva de Oliveira Penna. Parto de inquietaes relacionadas ao exerccio docente, no que diz respeito a discusses sobre concepes e saberes mobilizados pelos professores em suas aes educativas; e tambm de inquietaes relativas prtica educativa escolar desenvolvida nas prises. Tais inquietaes sobre a educao nas prises decorrem de participao na Prtica Pedaggica Programada sobre essa temtica, desenvolvida pelos professores Profs. Drs. Luiz Carlos Novaes, Alexandre Filordi e Marieta G. O. Penna. Investigar as prticas pedaggicas dos educadores presos se torna instigante uma vez que tais educadores, em sua maioria, no possuem formao inicial para a docncia, posto que tal formao no pr-requisito para sua atuao, e so formados no prprio exerccio da funo. Apenas um dos educadores havia cursado Letras, sem ter se formado. Neste estudo, parto de conceito mais amplo de formao para o exerccio docente, formulado por Garcia (1999), para quem tal formao um processo que se inicia j na escolarizao bsica, antes mesmo do preparo profissional. Segundo o autor, essa formao compreende quatro fases: 1) a fase pr-treino, momento em que os futuros professores incorporam modelos e crenas sobre a docncia, quando ainda crianas; 2) fase da formao inicial para o ingresso na profisso; 3) socializao profissional, quando ocorrem as aprendizagens prticas; 4) por fim, os processos de formao continuada. De acordo com o autor, diferentes estudos tm apontado a fora de crenas e concepes adquiridas ao longo da trajetria de escolarizao dos professores, especialmente na formao bsica, e que no so rompidas nos momentos de formao inicial, compondo uma trama a partir da qual se desenvolvem as aes docentes (GARCIA, 1998). Com relao a essa questo, o autor destaca que a imagem que o professor constri sobre si mesmo, e que traz conseqncias para sua prtica pedaggica, guarda estreitas relaes com imagens sobre a escola e a docncia que

12 construiu quando era aluno, alm das relaes que estabeleceu com o conhecimento ao longo de sua trajetria de escolarizao. Trata-se de investigar qual o valor atribudo escola na priso, partindo de informaes levantadas sobre o processo de escolarizao pelos quais os educadores presos passaram, atentando para possveis modelos de atuao docente aprendidos nesse processo. Alm disso, pretende-se compreender quais saberes mobilizam no preparo de suas aulas, e onde aprenderam o que sabem sobre o exerccio docente, uma vez que no passaram pela formao inicial exigida para tal exerccio. Sobretudo, pretende-se compreender aspectos da socializao profissional ou das aprendizagens que ocorrem na prtica, e tambm o que os educadores presos conseguiram reter dos momentos de formao pelos quais passaram no exerccio da funo. Ou seja, onde e quando os educadores presos adquiriram os saberes que os guiam em suas aes relacionadas ao ensino e que, segundo o Garcia (1998), podem se referir a aprendizagens diretas, ocorridas em momentos de formao inicial ou continuada destinadas ao exerccio docente, mas tambm a aprendizagens tcitas, que ocorrem na experincia profissional e, por fim, as concepes podem se referir a aprendizagens ocorridas na famlia ou mesmo nos processos de escolarizao. De acordo com Tardif, Lessard e Lahaye (1991), existe um saber bastante distinto implicado nas aes dos professores, e necessrio compreend-lo, se queremos adentrar no universo da pesquisa sobre as prticas docentes. Para os autores, o saber docente plural, e se origina de diferentes fontes, tais como formao profissional, experincia profissional, cultura pessoal. Tardif e Raymond (2000) destacam a importncia de se atentar para os saberes adquiridos no mbito do exerccio profissional, onde os professores assimilam rotinas, prticas e competncias especficas ao fazer docente, relacionadas escola e seus modos de organizao do ensino. Nesse sentido, importa atentar para a trajetria profissional dos professores. Os autores ressaltam, ainda, a importncia de se considerar a trajetria pr-profissioanal, ou seja, as aprendizagens familiares e a socializao escolar, momentos importantes para a aquisio de crenas sobre o ensino, e que, certamente, contribuem na organizao das prticas pedaggicas dos educadores. As questes at aqui ressaltadas foram fundamentais para a elaborao desta pesquisa e estavam presentes em todos os momentos, desde a formulao das questes de pesquisa, na elaborao do instrumento de coleta de dados e na ida empiria, a fim de observar e compreender como o educador preso prepara suas aulas, se relaciona com

13 seus alunos e v sua posio dentro do presdio. Neste estudo, as crenas e concepes que os educadores presos tm sobre a escola, bem como os saberes mobilizados por eles em sua ao pedaggica so aspectos fundamentais para a compreenso das formas como organizam suas prticas pedaggicas. O fato dessas prticas pedaggicas se desenvolverem na priso necessita ser considerado. Pretende-se com esse estudo ampliar compreenso sobre as prticas educativas escolares desencadeadas na priso pelos educadores presos, bem como sobre a funo da escolarizao em ambiente de privao de liberdade, discutindo-se sua potencialidade educativa e dificuldades enfrentadas para sua efetivao. Para tal, importa atentar para os condicionantes da prtica educativa escolar presentes nas prticas docentes relacionadas ao contexto especfico em que se desenvolve, qual seja, a priso. A questo da educao escolar para sujeitos em situao de privao de liberdade no Brasil, atualmente, assume novos contornos com a publicao em 19 de maio de 2010, no Dirio Oficial da Unio (DOU de 20/5/10, MEC, pg. 20), da Resoluo da Cmara de Educao Bsica do Conselho Nacional de Educao CEB/CNE n 2, que dispe sobre as Diretrizes Nacionais para a oferta de educao para jovens e adultos em situao de privao de liberdade nos estabelecimentos penais, expressando necessidade de se estimular oportunidades de educao queles que se encontram em condio de privao de liberdade. De tal resoluo decorreu o Decreto n 57.238, de 17 de agosto de 2011, que estabelece que no Estado de So Paulo se institua o PEP (Programa de Educao nas Prises), que ser desenvolvido mediante parcerias entre as Secretarias da Administrao Penitenciria, da Educao e de Desenvolvimento Econmico, Cincia e Tecnologia. O documento pouco claro quanto s aes efetivas que se daro aps toda essa conversa entre as diversas esferas do governo, mas podemos inferir que o Ensino distncia exercer papel fundamental na formao dos educadores presos:

Artigo 8 - A educao nos estabelecimentos penais ser presencial e ministrada, preferencialmente, com metodologias baseadas no uso intensivo das tecnologias de informao e de comunicao. 1 - Os currculos do ensino fundamental e mdio tero base nacional comum e uma parte complementar voltada ao desenvolvimento da pessoa, considerando seus antecedentes de ordem social, econmica e cultural, bem assim as peculiaridades do local, nos termos da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional. 2 - A UNIVESP - Universidade Virtual do Estado de So Paulo prestar

14orientao acadmica e metodolgica, em seu campo de atuao, para a execuo do PEP. (SO PAULO/ALESP, 2011)

No estado de So Paulo, at o momento da realizao da pesquisa visto que ainda no foram implementadas as mudanas previstas no Decreto n 57.238 , a Fundao Professor Manoel Pedro Pimentel (FUNAP) responsvel pelo ensino fundamental nos estabelecimentos prisionais, de acordo com a Resoluo SJ-43, de 28 de outubro de 1987. Criada em 1976 e atualmente vinculada, unicamente, Secretaria da Administrao Penitenciria, a FUNAP tem por objetivos promover a recuperao social de homens e mulheres presos e melhorar suas condies de vida por meio do trabalho e da educao; a fundao tambm desenvolve uma srie de projetos que visam reinsero social do egresso. O programa de educao pela FUNAP coordenado responsvel pelas atividades escolares desenvolvidas nos estabelecimentos penais do estado. O quadro de educadores da FUNAP composto por monitores orientadores, que tem por funo orientar e acompanhar o trabalho pedaggico nas escolas situadas nos estabelecimentos prisionais, bem como por educadores presos, contratados para ministrar aulas nas escolas. Segundo informaes obtidas no stio da FUNAP1, o quadro docente composto por prisioneiros vem ocupando cada vez mais um espao significativo, em termos qualitativos e quantitativos. Tal ao est em fase de implantao para todas as unidades prisionais do estado, seguindo o princpio do educador popular, considerando a realidade de cada espao prisional. Para a FUNAP, o fato de o educador preso ter o domnio da linguagem e da realidade dos detentos pode ser um facilitador do processo educacional. Os educadores presos so selecionados entre a populao carcerria para ministrar aulas nas turmas de alfabetizao e nas turmas correspondentes aos anos finais do ensino fundamental e ensino mdio. So formados e acompanhados pelos monitores orientadores, uma vez que no possuem formao inicial para o exerccio docente. Alguns estudos2 apontam dificuldades enfrentadas no estabelecimento de aes educacionais nas prises, em funo das formas como essas instituies se organizam para conter os prisioneiros; em tais contextos, segurana e opresso sempre se sobrepem tarefa de reabilitar. Situao bastante ilustrativa de tal afirmao a indignao geral causada por uma rebelio e a proporcional inrcia quanto aos ndices1 2

http://www.funap.sp.gov.br/. Acesso em 02/07/2010. Ver, entre outros, Portugus (2001), Penna (2003).

15 exorbitantes de reincidncia criminal no Brasil, grande atestado de fracasso do sistema penal. No entanto, ainda que o quadro geral seja funesto, os diversos estudos apontam, tambm que, para os detentos, a escola o local mais valorizado da priso. A escola local que representa valor, e tem por suposto a promoo dos indivduos, contribuindo para a configurao de sua condio de cidadania e para a ampliao de suas possibilidades de participao no mundo contemporneo. J a priso se caracteriza por ser espao de punio e reabilitao dos prisioneiros, primando pela anulao dos sujeitos e sua adaptao vida no crcere (THOMPSON, 1976). nessa realidade tensionada por elementos antagnicos que se desenvolve a experincia escolar para alunos, educadores e funcionrios da priso. Traar esforos na busca do estabelecimento de reflexes que evidenciem o potencial formativo da educao escolar, atentando para as limitaes e constrangimentos aos quais est submetida ao se desenvolver no interior das prises, torna-se aspecto importante para sua efetiva implementao e eficcia. Alm disso, se torna relevante compreender como se concretizam as prticas pedaggicas nas escolas inseridas em prises e quais as dificuldades enfrentadas pelos educadores presos, para que se possa refletir sobre as necessidades formativas daqueles que lecionam no ambiente prisional. No que diz respeito a pesquisas sobre prticas educativas efetivadas no contexto prisional, alguns trabalhos podem ser localizados no stio da CAPES. De acordo com trabalho realizado por Fonseca (2010), no perodo de 1995 a 2009 foram publicados no Brasil 37 trabalhos com a temtica educao prisional, sendo 31 mestrados e seis doutorados. Trata-se de um nmero bastante baixo, mas provvel que o advento da nova legislao faa aumentar o nmero de trabalhos que tratam da temtica. Este estudo pretende ampliar esse espao de discusso e trazer contribuies para que se compreenda a prtica educativa dos educadores presos, e para que se possa inclusive traar estratgias para sua formao. Partindo das questes acima destacadas, so as seguintes as questes de pesquisa deste estudo: Quais so as concepes dos educadores presos sobre a escola e o trabalho de professor? Quais os saberes mobilizados por eles em suas aes pedaggicas? Onde aprenderam tais concepes e saberes? Os objetivos so: 1) Elaborar perfil dos Educadores Presos que atuam nas escolas situadas nos dois estabelecimentos penitencirios de Guarulhos, 2) Levantar informaes, por meio de entrevistas realizadas com os educadores presos, sobre aspectos dos saberes e das concepes sobre o papel da escola que mobilizam no

16 preparo e desenvolvimento de suas aulas. 3) Oferecer dados para a realizao de aes de formao junto aos educadores presos que atuam nos estabelecimentos prisionais no estado de So Paulo, em colaborao com a FUNAP. A hiptese formulada a de que os educadores presos possuem concepes sobre a escola e sobre o trabalho de professor advindas dos processos de escolarizao bsica aos quais foram submetidos, e mediante tais concepes que so pautadas as atividades educacionais por eles desenvolvidas. O trabalho est organizado em trs captulos. No Captulo 1, A priso e a escola na priso, so apresentadas leituras feitas sobre o sistema prisional e a escola inserida nesse contexto. No Captulo 2, O desenvolvimento da pesquisa, so apresentados os passos dados para a realizao deste estudo, que envolvem o referencial terico que direcionou meu olhar sobre o campo emprico investigado, a coleta dos dados e o contexto de realizao da pesquisa. No Captulo 3, As prticas dos Educadores Presos, so apresentadas as anlises feitas a partir dos relatos dos professores. importante ressaltar que a pesquisa aqui apresentada tem fins acadmicos, e de maneira alguma pretendo expor os educadores presos ou emitir julgamentos sobre suas prticas; trata-se de trabalhadores cujas atividades s podem ser avaliadas por eles prprios, cabendo a ns, pesquisadores, a to complexa tarefa de buscar entender o objeto de estudo, deixando de lado nossas concepes sobre o que seria o certo, o errado, o imoral ou o imprudente.

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Captulo 1: A priso e a escola na prisoA fim de enriquecer minha anlise referente escola na priso, foi feita uma srie de leituras sobre o sistema prisional e sobre a escola inserida neste contexto3. Tais leituras permitem destacar que a escola se configura nesse espao de forma bastante prxima ao que se observa fora dele, com prticas semelhantes, muito embora estejam marcadas pelas particularidades do ambiente prisional. E, como no poderia deixar de ser, observa-se que as contradies presentes na sociedade tambm se configuram na escola da priso. De certa forma, todo o processo violento e coercitivo existente na sociedade, que velado e busca tomar ares menos radicais na escola regular, na priso no carece de disfarces, e isso traz conseqncias para as prticas educativas realizadas este contexto. possvel perceber, no entanto, que mesmo diante de um ambiente de tamanha opresso, a escola na priso lugar valorizado pelos detentos, e desponta como possibilidade de melhorias em suas vidas, ou simplesmente como vlvula de escape ou forma de ocupar o tempo. Para se compreender a escola na priso se faz necessrio atentar para a realidade na qual ela est inserida, no caso aqui estudado, o contexto prisional paulista. nesse contexto que as escolas funcionam e as polticas educacionais sero implementadas, e tambm nele que se faz necessrio analisar as prticas pedaggicas desenvolvidas pelos educadores presos.

1.1 O contexto prisional paulista Ao se discutir o sistema penitencirio paulista importante ressaltar a importncia da Secretaria de Administrao Penitenciria (SAP), e no se esquecer das razes obscuras que desencadearam seu surgimento. So Paulo foi o estado pioneiro na criao de uma pasta exclusiva para a questo penitenciria, mas isso s se deu devido presso de organismos nacionais e internacionais como a Anistia Internacional, aps o episdio do massacre do Carandiru, em 1992. Atualmente, apenas So Paulo e Rio de Janeiro os dois estados onde a questo penitenciria apresenta quadros mais crticos possuem esta secretaria.

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Refiro-me especialmente ao livro organizado por Onofre (2007).

18 A administrao penitenciria, em So Paulo, se divide em trs rgos, basicamente: Coordenadoria dos Estabelecimentos Penitencirios (COESPE): estabelece diretrizes poltico-institucionais nas unidades. Responsvel pela segurana, disciplina, estrutura e manuteno fsica, sade etc. nas unidades. Escola de Administrao Penitenciria (EAP): cuida da capacitao do pessoal dirigente das unidades prisionais. Fundao Prof. Manuel Pedro Pimentel (FUNAP): responsvel pela educao profissional, cultural e pelas escolas nas penitencirias.

Atualmente, o sistema penitencirio paulista conta com 148 unidades prisionais, e se subdivide em: Unidades de Segurana Mxima (1), Penitencirias (75), Centros de Deteno Provisria (36), Centros de Ressocializao (22), Centros de Progresso Penitenciria (08), Instituto Penal Agrcola (1)4 . Nas Unidades de Segurana Mxima, as celas so individuais e os presos esto sob Regime Disciplinar Diferenciado. Nas Penitencirias e demais estabelecimentos penais, esto os presos j condenados, e a finalidade primordial dessas instituies punir e reabilitar os detentos, simultaneamente. As Penitencirias funcionam em regime fechado, sendo que algumas possuem Ala de Progresso Penitenciria para o regime semi-aberto. Os Centros de Ressocializao so unidades mistas, com regime fechado, semi-aberto e provisrio. So administrados em parceria com Organizaes No Governamentais (ONGs). Os Centros de Progresso Penitenciria funcionam em regime semi-aberto. Os Centros de Deteno Provisria, tambm conhecidos como cadeies, so destinados aos presos que ainda no foram processados (presos em flagrante), e tambm aos detentos que necessitam ser separados dos demais por medidas preventivas. O impasse que se apresenta que, por inflao do sistema e falta de vagas, os chamados cadeies acabam se tornando lugar de se cumprir pena, e l os presos so amontoados e vivem em condies subumanas, uma vez que este tipo de estabelecimento no est aparelhado fsica e organizadamente para a reabilitao de ningum. Thompson (1976), j afirmava a fragilidade do sistema e as condies

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Fonte: site da SAP: < http://www.sap.sp.gov.br>, acesso em 10/04/2011.

19 miserveis a que eram submetidos os detentos. De acordo com o autor, os presdios eram destinados aos presos mais difceis e que demandavam mais segurana. Aqueles que eram rus primrios ou apresentavam bom comportamento, ou seja, indivduos mais mansos estavam fadados a cumprir suas penas nas cadeias, porque eram menos difceis de administrar e no apresentavam muita resistncia queles espaos to degradantes. Todo esse contexto de superlotao e maus tratos acaba por corroborar a questo do crime organizado nas prises. Segundo Adorno e Salla (2007), as polticas pblicas referentes gesto penitenciria buscam atender, na maior parte das vezes, demanda social criao de mais penitencirias, e isso pode ser observado nas polticas de encarceramento macios implementadas pelos governos Covas e Alkmin. A questo da criminalidade organizada acaba, muitas vezes, sendo deixada de lado. Um dos aspectos mais desafiadores para se enfrentar a questo penitenciria no Brasil diz respeito s organizaes criminosas que controlam os presdios. Para os autores, a criminalidade organizada no ambiente penitencirio brasileiro deve ser compreendida por fatores intra e extramuros das prises, pois est pautada tanto na conivncia de agentes penitencirios quanto no apoio de importantes aliados dos detentos que se encontram do lado de fora do ambiente prisional. As razes da ascenso da criminalidade organizada nas prises podem ser compreendidas atravs de quatro pontos, basicamente: medo, conivncia, interesses e status. Como apontam diversos estudos disponveis, a massa carcerria brasileira composta, essencialmente, por pessoas pobres e mal instrudas. Esse fator permite que uma minoria direcione as aes dentro do ambiente prisional, impondo medo massa de manobra, mas tambm respaldando esses sujeitos tanto das arbitrariedades policiais quanto das quadrilhas inimigas. Identificar-se com algum grupo criminoso dentro das prises pode ser considerado, sob esta perspectiva, uma questo de prudncia. E por se tratar de uma organizao impregnada de conquistas e valores, a sensao de pertencimento uma faco rende certo status ao sujeito encarcerado (ADORNO; SALLA, 2007). Para Adorno e Salla (2007), as polticas pblicas que visam conteno da marginalidade organizada vm falhando no pas: a abertura de mais penitencirias e expanso de vagas acaba por adquirir efeito contrrio ao esperado. A problemtica da polcia ainda treinada nos moldes da ditadura contribui para que medidas efetivas de

20 controle das massas carcerrias no ganhem espao; a impotncia frente organizao dos presos rende mais violncia, o que em nada contribui para a soluo da questo. importante ressaltar, no entanto, que faces criminosas no tm perfil revolucionrio, embora reivindiquem justia e se coloquem contra o abuso e maus tratos cometidos nas prises; o que est em jogo so interesses em torno de negcios (ADORNO; SALLA, 2007, p. 24).

1.2 Polticas de educao para o sistema penitencirio

Em 19 de maio de 2010 foi publicada no Dirio Oficial da Unio (DOU de 20/5/10, MEC, pg. 20) a Resoluo da Cmara de Educao Bsica do Conselho Nacional de Educao CEB/CNE n 2, que dispe sobre as Diretrizes Nacionais para a oferta de educao para jovens e adultos em situao de privao de liberdade nos estabelecimentos penais, expressando necessidade de se estimular oportunidades de educao queles que se encontram nessa condio (BRASIL, 2010). As diretrizes nacionais para a oferta de educao para jovens e adultos em situao de privao de liberdade nos estabelecimentos penais constituem um diagnstico da situao da educao no contexto penitencirio, e buscam elaborar alternativas para os impasses que se apresentam. Primeiramente, o documento apresenta um panorama histrico das razes que permitiram ou impulsionaram seu surgimento, para depois adentrar na atual questo penitenciria no Brasil. As diretrizes s tomaram corpo aps amplo dilogo entre Governo Federal, entidades internacionais, pesquisadores e movimentos nacionais sobre a necessidade de se elaborar uma poltica especfica para a questo educativa dentro do ambiente prisional. Questes referentes a essa temtica ganham espao h bastante tempo em estudos acadmicos, mas apenas em 2009 foram submetidas ao Conselho Nacional de Polticas Criminais e Penitencirias (CNPCP) e ao Ministrio da Justia uma srie de sugestes de encaminhamentos, que mais tarde deram origem s Diretrizes Nacionais. preciso que esteja claro que as Diretrizes so orientaes gerais que no buscam abranger as especificidades regionais ou institucionais. Os Estados possuem autonomia para agir de acordo com as particularidades que se apresentarem, ainda que tenham como horizonte as diretrizes estipuladas no documento oficial. No entanto, as

21 diretrizes visam centralizar e normatizar as polticas de oferta de educao nas prises, uma vez que as orientaes se mostravam incertas e opacas. Um ponto importante a ser levantado o estranhamento da populao em geral a respeito daquilo que acontece dentro do ambiente prisional. A elaborao de um documento oficial, nesse sentido, serviria como um meio para impulsionar o interesse da populao civil em relao ao tratamento dado educao nas prises. Segundo o documento, a educao deve ser entendida como um direito inalienvel do ser humano e previsto em lei e, a partir deste princpio, afirma que a oferta de vagas nas prises para os sujeitos que no puderam concluir os estudos na idade prpria deveria ser garantida. Na atualidade, o que se pode observar, no entanto, a absoluta carncia de vagas, e a configurao da escola como um privilgio concedido a poucos dentro da priso. Os critrios de seleo para a conquista de uma vaga na escola da priso variam de instituio para instituio, mas esto pautados, na maior parte das vezes, no interesse, persistncia e bom comportamento do sujeito aprisionado. O texto das diretrizes cita algumas contribuies determinantes para a elaborao das orientaes propostas, como a Declarao de Hamburgo (1997), que aponta para a importncia de se pautar o trabalho escolar da priso num processo de sntese no qual so postas em evidncia as aspiraes dos prprios presos e os contedos propostos pelos educadores. As diretrizes atentam para a questo de que temas polmicos como racismo e homofobia devem estar presentes nas aulas da priso, a fim de que as discusses desencadeadas sejam reflexivas e estimulem o respeito mtuo. O documento lamenta a falta de um profissional verdadeiramente especializado na problemtica da educao dentro da priso, e aponta, inclusive, para a deficincia de discusso desta temtica em mbito acadmico. A falta de preparao para a Educao de Jovens e Adultos dentro do curso de Pedagogia um ponto levantado, assim como a inexistncia de material didtico apropriado para aqueles que no puderam concluir seus estudos durante o tempo adequado. O desinteresse de professores em trabalhar dentro da priso tambm no pode ser desconsiderado; alguns Estados chegam a oferecer gratificao dobrada para docentes que aceitam o desafio. Pensar no professor que tambm se encontra na condio de detento toma uma nova forma, quando se colocam em xeque estas questes. Em mbito legislativo, podemos observar que no h encaminhamentos direcionados educao dentro nas prises na Lei de Diretrizes e Bases para a

22 Educao, LDB, Lei n 9.394, 1996 (BRASIL, 1996), mas a questo da escolarizao dos jovens e adultos presos j aparece timidamente no Plano Nacional de Educao (PNE), em 2001, conforme explicita o documento das diretrizes para a educao nas prises:

A 17 meta prev a implantao em todas as unidades prisionais e nos estabelecimentos que atendam adolescentes e jovens em conflito com a lei, de programas de Educao de Jovens e Adultos de nvel fundamental e mdio, assim como formao profissional, contemplando para esta clientela as metas relativas ao fornecimento de material didtico-pedaggico pelo Ministrio da Educao (MEC) e oferta de programas de Educao distncia. J a meta 26 do Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos determina que os Poderes Pblicos devero apoiar a elaborao e a implementao de programas para assegurar a Educao Bsica nos sistemas penitencirios. (BRASIL, 2010, p. 13)

Compreende s Secretarias Estaduais de Educao uma parceria com os rgos responsveis pelas questes penitencirias, para que se cumpram as normas estabelecidas em mbito federal e sejam corretamente encaminhadas as problemticas encontradas. Neste sentido:

Nos convnios de cooperao tcnica, geralmente as Secretarias de Educao so responsveis pelas aes regulares, principalmente por uma proposta regular e formal de ensino: proposta pedaggica de elevao de escolaridade que, dependendo do estado, vai desde a alfabetizao at o Ensino Mdio. Neste sentido, respondem administrativamente pelo corpo tcnico das escolas, pela proposta pedaggica e pelos seus recursos materiais e pedaggicos. J a Secretaria parceira responsvel pela poltica de execuo penal no estado (Secretarias de Justia, de Administrao Penitenciria ou equivalentes), por um corpo tcnico auxiliar, desenvolve as chamadas atividades de cunho informal, no regular ou extra-classe: oficinas, workshops, palestras, cursos diversos (profissionalizantes ou no), atividades culturais e esportivas etc. Geralmente, alm de se encarregar da gesto destas aes, as Secretarias so responsveis pelo espao fsico, pela estrutura bsica e infraestrutura das escolas, assim como da segurana dos docentes e profissionais das escolas. (BRASIL, 2010, p. 20)

preciso que esteja claro, portanto, que a pena se constitui pela privao da liberdade de ir e vir, jamais pela privao dos direitos bsicos do sujeito, ainda que haja a crena geral de que a escola um privilgio que no deve ser concedido queles que se encontram em dvida com a sociedade. Um grande avano a ser citado a Lei n 12.433, de 29 de junho de 2011, que estabelece que a pena possa ser diminuda mediante o tempo estudado dentro das unidades prisionais. Tal lei foi sancionada quando nossa pesquisa j se encontrava em estgio avanado e eu j havia lamentado profundamente o fato das horas de estudo no

23 serem levadas em considerao na remio da pena; felizmente, recebemos com muita satisfao a grata notcia. O texto da lei estabelece:

1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequncia escolar - atividade de ensino fundamental, mdio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificao profissional - divididas, no mnimo, em 3 (trs) dias; II - 1 (um) dia de pena a cada 3 (trs) dias de trabalho. 2o As atividades de estudo a que se refere o 1o deste artigo podero ser desenvolvidas de forma presencial ou por metodologia de ensino a distncia e devero ser certificadas pelas autoridades educacionais competentes dos cursos frequentados. 3o Para fins de cumulao dos casos de remio, as horas dirias de trabalho e de estudo sero definidas de forma a se compatibilizarem. 4o O preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos continuar a beneficiar-se com a remio. 5o O tempo a remir em funo das horas de estudo ser acrescido de 1/3 (um tero) no caso de concluso do ensino fundamental, mdio ou superior durante o cumprimento da pena, desde que certificada pelo rgo competente do sistema de educao. 6o O condenado que cumpre pena em regime aberto ou semiaberto e o que usufrui liberdade condicional podero remir, pela frequncia a curso de ensino regular ou de educao profissional, parte do tempo de execuo da pena ou do perodo de prova, observado o disposto no inciso I do 1 o deste artigo. (BRASIL, 2011)

Alguns autores tm debatido as polticas pblicas para a educao nas prises, cotejando com a realidade educacional vivenciada nos sistemas penitencirios. JULIO (2007), ao dissertar sobre a realidade prisional brasileira, argumenta que muito tem se discutido a respeito das problemticas encontradas em especial, a do crime organizado , mas poucas solues efetivas se apresentam. Estudos aprofundados sobre a priso, em si mesma, ainda so raros, segundo o autor. Sobre a educao na priso, ento, so rarssimas as anlises, e faltam polticas pblicas. Longe de elaborar juzo moral sobre os sujeitos enclausurados ou de dizer que se trata de vtimas indefesas, Julio (2007) busca mapear a questo da educao prisional levando em conta todas as condicionantes implicadas nas prticas docentes e de aprendizagem dos sujeitos encarcerados. O autor tece algumas consideraes a respeito das diversas correntes filosficas que enfocam na funo punitiva da priso ou na funo reabilitadora da priso. Existem vises que buscam responsabilizar individualmente o sujeito e existem vises que do maior ateno s condies histrico-culturais em que se deram as relaes do sujeito encarcerado, e que o conduziram criminalidade. Julio (2007) argumenta que um

24 modelo penal reflete, diretamente, um modelo de preso que se espera manter na cadeia, e como se concebe a criminalidade. Como exemplo, destaca as penas alternativas e para quem elas se destinam, e tambm as regalias como celas individuais, e a quais camadas da sociedade elas se destinam. A justia no Brasil uma justia de classe.

por isso que as cadeias esto cheias de excludos financeira e culturalmente, pois o cdigo criado pela classe dominante que estabelece as regras a partir de sua necessidade de controle. (JULIO, 2007, p.32)

Uma vez que o capitalismo se constituiu como um sistema predatrio no qual a permanncia do poder nas mos de uma minoria s existe mediante a existncia das massas que vivem margem de uma srie de recursos essenciais para a dignidade humana, foi preciso desenvolver mecanismos para que a revolta inerente a estes processos de excluso fosse contida. A existncia da marginalidade e do sistema penal , neste sentido, condio essencial para a manuteno da sociedade tal como ela est, pois direciona o dio e o medo da populao para aquilo que se configura como a escria da sociedade a populao encarcerada , ocultando a criminalidade dos mais poderosos (FOUCAULT, 2010). Para Julio (2007), essas questes se expressam na falta de unidade nas polticas pblicas para a Educao no sistema penitencirio, que acabam por ficar a cargo de cada Estado e, na maioria das vezes, variam at de unidade penal para unidade penal. Algumas iniciativas que buscam solues, neste sentido, so as de transformao de Secretarias de Justia em Secretarias de Direitos Humanos e/ou de Administrao Penitenciria. So Paulo e Rio de Janeiro so dois estados que, tambm por sua populao encarcerada atingir nmeros exorbitantes, j vm caminhando nesse sentido. Partindo da realidade prisional brasileira (o Brasil o quarto pas que mais encarcera no mundo), o autor argumenta que uma pena que todas as aes que se apresentam a saber, construes de mais e mais presdios esto destinadas a esta pequena parcela de 5% que so considerados irrecuperveis pelo Estado. Pouco se pensa sobre a reabilitao atravs da Educao dentro do sistema. Sobre a educao, importante ressaltar:A atual legislao penal prev que a assistncia educacional compreender a instruo escolar e a formao profissional do preso e do interno penitencirio. Institui como obrigatrio o Ensino Fundamental, integrando-se no sistema escolar da unidade federativa. J o ensino profissional dever ser

25ministrado em nvel de iniciao ou de aperfeioamento tcnico. (JULIO, 2007, p. 36)

O autor lamenta que a procura maior nos presdios seja pelo trabalho que, alm de garantir algum retorno financeiro, ainda que muito pouco, tambm contribui para que a pena seja reduzida (JULIO, 2007). Felizmente, como j foi explicitado aqui, a nova legislao prev que tanto o estudo como o trabalho contribuiro pra que se diminua a pena dos sujeitos encarcerados. A escola da priso desponta, no entanto, como alternativa para duas finalidades primordiais do sistema carcerrio: tirar o interno da ociosidade e garantir oportunidade de opes profissionais para este sujeito, quando estiver em liberdade. O autor aponta, com pesar, problemas organizacionais e de estrutura que acabam por dificultar qualquer atividade educativa dentro do ambiente prisional. Os recursos materiais so escassos e inadequados, e ainda falta uma poltica nacional de unifique as diversas iniciativas e crie uma pauta comum. O autor argumenta que enquanto a escola se configurar como passatempo ou terapia educacional, ela no estar cumprindo o seu papel de resgate da cidadania e formao de cidados crticos e reflexivos. Alm da necessidade de implantao de polticas pblicas sobra a questo prisional e de se rever a forma como a escola na priso e o prprio preso so vistos pela sociedade, ao se discutir a educao nas prises preciso se considerar que essa escola funciona dentro de outra instituio, com uma administrao prpria, o que por certo marca a atividade educacional. Loureno (2007) tece algumas consideraes a respeito das particularidades das atividades educacionais em mbito prisional, considerando as relaes entre esse contexto institucional e a forma como ocorre sua administrao. Para ele, a influncia de administradores e demais funcionrios acaba por ser a condicionante final em todas as prticas que se pretende aplicar no presdio. Ainda que haja uma poltica nacional para a educao na priso, afirma que cada unidade prisional guarda suas particularidades e possui seus problemas especficos. Partindo da mxima de que se aprende e se ensina em lugares e realidades concretas, e que disso decorre um ou outro modelo de aprendizagem, o autor argumenta que o poder de deciso sobre o que ocorre em no interior da priso muitas vezes, fica a cargo da diretoria; e essa deciso reflete certa concepo de homem preso, e de justia. A este respeito, interessante observar o caso do nosso projeto, enviado ao Comit de tica da Secretaria da Administrao Penitenciria. Ao visitar a SAP em

26 busca de respostas sobre o andamento do processo, recebi a resposta: quem d a palavra final o diretor da unidade prisional. Como a imensa maioria dos diretores busca fazer com que jamais a ordem fuja de suas mos, polticas que se configuram como mais progressistas encontram uma grande barreira nestes contextos. A priso , e dificilmente deixar de ser, o espao de coero e punio que responde s demandas da sociedade. E isso incorporado pelo corpo organizacional das unidades e pelos prprios detentos.

Se, por um lado, as questes de segurana e disciplina so acentuadas em detrimento de outras atividades no interior das prises, possveis tentativas de suavizar os esquemas rgidos de controle da populao carcerria e equilibrar as relaes entre aqueles setores e o setor de segurana e disciplina podem trazer problemas administrao prisional (LOURENO, 2007, p. 61)

Afinal de contas, existem alguns eventos que volta e meia vem tona e trazem ao pensamento coletivo a funo primordial da priso: punir, conter. So estes eventos os motins, rebelies, fugas etc. A priso se encontra em permanente estado de negociao (ADORNO, 1991, p. 32), numa suposta estabilidade ou segurana que a qualquer momento pode virar de cabea para baixo. Os detentos, por sua vez, encontram na escola um espao de certa liberdade onde podem conversar sobre assuntos diversos e se esquecer, por alguns instantes, da penosa situao em que se encontram. Como me revelou um dos educadores presos:

Se eu pudesse, eu dava aula o dia todo; porque a gente nem v o dia passar, nem lembra que t preso... A gente t aqui, t dando aula, mas sofrido... No tenho visita, no tenho nada... triste demais! O que me alegra eu poder tar dando aula ainda. Acho que se eu parar de dar aula, aqui vai ficar muito mais triste pra mim... (Tadeu)

1.3 A escola na priso possvel afirmar que o dilema vivido nos processos educacionais que ocorrem na priso est pautado na tentativa de aliar punio e recuperao, sem que uma se sobreponha outra, uma vez que no Estado democrtico de direito o que possibilita o poder discricionrio de punir a finalidade de reabilitao que se atribui priso (PORTUGUES, 2001, p. 358). De acordo com o autor, no entanto, a presso social diz respeito, principalmente, punio, o que cria impasses desastrosos para a tarefa de

27 reabilitar. Todos estes pontos fazem com que a escola acabe por se configurar como uma flor de ltus dentro da priso, em meio a tantas contradies, submetida o tempo inteiro questo: possvel educar num ambiente to hostil? Ou seja, permanece sempre a pergunta: Como garantir que a finalidade da educao seja preservada nos meios prisionais e que a escola no se torne um mero espao comum onde todos os presos se encontram e podem colocar suas diferenas em dia? Ao tecer suas consideraes sobre a educao escolar tal como ela se apresenta nas prises, Portugues (2001) afirma que a escola est o tempo todo pautada nas contradies do ambiente penitencirio, e que o fato dela se configurar como um lugar de possibilidades no faz com que ela deixe de responder s normas estabelecidas dentro do sistema penal. Penna (2003), ao discorrer sobre a questo da escola dentro da priso, aponta para o fato de que, acima de qualquer variante problematizadora, sempre se reconhece a importncia do papel social da escola e do professor. Ao investigar a prtica pedaggica de monitores presos (os hoje chamados educadores presos), percebe que o exerccio da docncia para eles representa prestgio e uma vlvula de escape, dentro das poucas opes que so oferecidas na priso. Os detentos percebem esse trabalho como um espao que vai se conquistando (p. 17), uma vez que o preso que ensina na escola da priso goza de certo prestgio e tem o poder de circular em reas que so proibidas aos seus pares, como a diretoria. No entanto, mesmo marcados pela priso e suas regras de comportamento, tanto o exerccio da docncia como a escola se destacam como lugar de aprendizagens significativas para os detentos, o melhor lugar para se estar na priso. Em seu estudo, Onofre (2007a) aponta para o valor que a educao adquire dentro da priso, sob a tica dos detentos. Percebe que a escola pode ser considerada apenas como um meio para se passar o tempo ou como um lugar onde a cabea se ocupa com coisas boas (p. 19). De qualquer forma, o sujeito aprisionado, desprovido de quaisquer outras possibilidades de obteno de conhecimento, encontra na escola uma ponte para o mundo exterior, e certo consolo para o desencanto inerente ao to pesado ambiente prisional. Na priso, o detento se encontra em permanente estado de alerta. J, na escola, ele desfruta da liberdade de poder conversar com colegas de outros pavilhes e com o professor figura que inspira confiana e admirao. Junte-se a isso o fato de que ler e escrever, no ambiente prisional, so habilidades fundamentais. Significam adquirir autonomia frente a uma realidade em que no recomendvel que se deva favores a ningum. O conhecimento mnimo das letras

28 tambm possibilita ao detento o acompanhamento dos seus prprios processos criminais; a escola se configura, neste sentido, como possibilidade para o resgate da auto-estima dos detentos. Numa colocao bastante ilustrativa, um dos educadores presos argumenta:

[...] porque no mundo, na priso, principalmente na priso, funciona muito assim: eu quero algo em troca; eu fao isso se voc me der algo em troca [...] o estudo um ganho pessoal [...] a barganha que voc vai fazer com voc mesmo (Hugo)

Em sntese, a escola pode ser entendida, no ambiente prisional, tanto como espao de descontrao, quanto como meio de resistncia s duras penas que so impostas aos sujeitos condenados, alm de oferecer aos presos a possibilidade de aprendizagens dos contedos escolares, bem como de certificao. evidente que a escola no pode tudo, e acreditar que ela possa garantir melhorias para a vida do detento, quando em liberdade, seria ingenuidade. No entanto, a escola na priso, em diferentes estudos, se destaca como local de possibilidades, alm da necessidade de se compreender a educao como um direito, mesmo para quem est cumprindo pena de privao de liberdade. Alm disso, a escola oferece aos presos a possibilidade de acompanhar, minimamente, os acontecimentos do mundo exterior. Leme (2007) se coloca no lugar do cidado comum que analisa a questo penitenciria, e disserta a partir das questes presentes nas anlises mais rasas do senso comum, sempre contextualizando e buscando entender as causas mais profundas de tal ou tal tipo de pensamento. O autor parte da contradio inerente escola dentro da priso: a possibilidade de se emancipar intelectualmente sujeitos que vivem entre as grades e o dio. Um primeiro problema enfrentado pelos sujeitos que decidem estudar dentro da priso a dificuldade de se expor frente aos seus pares. Mas esse no o problema mais difcil de resolver: diversas iniciativas j mostraram que possvel fazer um trabalho dinmico e convidativo com os presos, e os resultados so surpreendentes. Leme (2007) esclarece que toda a cultura coercitiva da priso est presente nas aes mais cotidianas dos presos. Os indivduos acabam se massificando, aos poucos, e perdendo tudo aquilo que os caracteriza enquanto sujeitos. A priso impe um s modo de ser preso, e para chegar ao objetivo esperado se utiliza de mtodos muitas vezes cruis.

29 Voltando s anlises de senso comum s quais nos referimos anteriormente, Leme (2007) aponta para o paradoxo basilar (p. 119) da questo penitenciria: esperamos que a priso melhore os sujeitos, mas, ao mesmo tempo, primamos pela segurana mxima.

Um paradoxo basilar, pois queremos que essa instituio aja de forma exemplar no tocante transformao dos indivduos; ao mesmo tempo em que esperamos que castigue, almejamos que por meio do castigo ela (re)eduque, reabilite. Esperamos que a penitenciria transforme os corpos transgressores em corpos dceis, mesmo que para isso seja necessrio o uso da violncia e que, no momento de devolv-los sociedade, esses corpos, usurpados de sua identidade, mutilados em sua auto-estima, estejam reabilitados, educados (p. 119)

Para que no restem dvidas quanto ao carter exemplarmente punitivo da priso, basta se observar as sanes destinadas queles que atentaram contra o princpio da ordem e disciplina. Funcionrios so exonerados quando h rebelies, por exemplo. Agora, no que se refere reincidncia, fracasso evidente de todo o sistema e da prpria sociedade, nada feito a respeito. A priso no se preocupa em adaptar os internos vida livre. Se preocupa em adapt-los vida carcerria, de modo que os sujeitos se tornem cada vez mais passivos e fceis de manipular. Tambm a isso se deve a desvalorizao da escola pelo corpo dirigente na maioria das penitencirias. Diretores e funcionrios veem na escola uma maneira de tornar indivduos malandros, espertos e, por sua vez, mais perigosos. Leme (2007) lamenta, assim, a autonomia e m vontade das unidades frente s polticas gerais de reabilitao. Mas a resistncia do preso e da escola dentro desse contexto opressor se faz visvel. A escola continua a ser o espao em que a liberdade ainda existe; muitos presos afirmam, contentes, que s na priso descobriram que teriam a oportunidade de retomar seus estudos perdidos. Embora at judicialmente o fato do preso ter estudado muitas vezes tenha pouco valor, a escola continua a ser respeitada e valorizada pelos sujeitos encarcerados. nesse contexto que esta pesquisa analisa as prticas pedaggicas e os saberes mobilizados pelos educadores presos nas suas atividades docentes em presdios paulistas.

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Captulo 2: O desenvolvimento da pesquisaNeste captulo apresento os passos dados para a realizao da pesquisa, que envolvem o referencial terico que direcionou meu olhar sobre o campo emprico investigado, a coleta dos dados e o contexto de realizao da pesquisa.

2.1 Os referenciais tericos da pesquisa Para que entendamos como se organiza o sistema penal atual e dentro deste, a educao escolar, necessrio imergir no pensamento de Foucault (2010), autor que buscou compreender as sofisticadas novas formas de disciplinamento que a sociedade vai incorporando com o passar dos anos. Foucault d especial ateno aos processos de subjetivao pelos quais passam os sujeitos, uma vez que, na perspectiva do autor, as novas aes punitivas desviam seu foco do crime, em si, e passam a agir sobre o criminoso e as razes pelas quais ele age de tal ou qual forma. Em meados dos sculos XVIII e XIX, a manuteno da pena passa a ser assunto compartilhado por psiclogos, educadores e administradores (FOUCAULT, 2010, p. 24-25). A mudana, no entanto, no vai no sentido de qualificar ou humanizar o processo; o objetivo escusar o juiz do fardo do castigo, tornando-o aquele que procura solues para o mal. Tal mudana de enfoque do crime para o indivduo gera uma diminuio parcial do castigo fsico e a procura, por outro lado, da cura. O castigo ao qual o prisioneiro submetido no mais fsico; agora ele passa a ferir, principalmente, a alma, por meio de sofisticados mecanismos, na espera do desenvolvimento do autocontrole pelo prprio indivduo. Nesse sentido, surgem mais estudos sobre a reabilitao do sujeito preso do que sobre as formas de punir seus crimes. E a educao se configura, nesse contexto, como pea fundamental. Essa compreenso sobre o papel da pena de privao da liberdade como mecanismo de reabilitao social, e do papel desempenhado pela educao, e mesmo pela educao escolar, em tal reabilitao, so fundamentais para esta pesquisa, e nortearam todo o seu processo, desde a formulao do problema, a coleta dos dados e as anlises realizadas. Alm disso, para o desenvolvimento deste estudo, foi importante, por um lado, o estabelecimento de um referencial terico que me auxiliasse na compreenso dos saberes mobilizados pelos educadores presos em suas aes docentes, atentando para a

31 forma como adquiriram esses conhecimentos e tambm como os mobilizam em suas prticas em sala de aula. Por outro lado, se fez necessria a realizao de leituras que auxiliassem nas reflexes sobre as possibilidades formativas dos indivduos na sociedade atual, e a funo social da escola neste contexto. Assim, pude tencionar o papel de reabilitao dos detentos que cabe Fundao Professor Manuel Pedro Pimentel (FUNAP), responsvel pela educao e trabalho nas unidades prisionais.

2.1.1 - A prtica pedaggica dos professores e os saberes docentes Tardif e Raymond (2000) sinalizam os saberes envolvidos na prtica docente como um conjunto de conhecimentos plural, que se constri aos poucos, mediante o empiricismo das atividades cotidianas a ela relacionadas. Tal conjunto de conhecimentos se origina das mais diferentes fontes, como formao inicial, currculos e programas, formao continuada, conhecimento das disciplinas a serem ensinadas. Alm disso, a prtica est submetida lgica de ensino vigente e s condies materiais de trabalho do professor. Trata-se de um saber plural e necessrio diversidade de tarefas envolvidas no fazer pedaggico docente. Segundo Tardif (2002), o professor um profissional dotado de racionalidade especfica, que se v confrontado com condicionantes contingentes que caracterizam seu trabalho, ligados ao ambiente escolar, sua organizao, diferenciao e tambm ao contexto social no qual est inserido. Para o autor, ensinar perseguir conscientemente objetivos intencionais, tomar decises consequentes e organizar meios para atingir esses objetivos. O professor faz escolhas em funo de julgamentos profissionais que no se limitam a fatos, baseando-se em valores morais, normas sociais, tradies escolares e experincia vivida. O cerne da profisso diz respeito a dois condicionantes, a saber: transmisso da matria e gesto da interao com os alunos. Ao discutirem os saberes mobilizados pelos docentes em sua atuao profissional, Tardif e Raymond (2000) destacam esse saber profissional vindo de vrias fontes como, por exemplo, da histria de vida dos professores, passagem pela instituio escolar, convivncia com outros atores vinculados atividade educativa, lugares em que o professor foi formado, etc. Outro aspecto relacionado aos saberes dos professores o fato do conhecimento adquirido ser proveniente de diferentes dimenses temporais, sendo que uma parte destes saberes pertence a um tempo em que os sujeitos

32 que atuam ainda eram alunos e no possuam, portanto, a conscincia de seu carter formador. Este tipo de conhecimento denominado pelos autores de trajetria prprofissional: constitui-se de conhecimentos adquiridos ao longo da vida e que se expressam na forma de crenas, representaes e valores relacionados ao exerccio da docncia. Para os autores, as representaes podem ser buscadas na histria de vida dos professores, em experincias familiares, escolares ou sociais, em crenas relacionadas a atitudes e comportamentos que constituem a essncia do papel institucionalizado do professor; em vrios espaos em que a experincia como aluno tem papel fundamental. O outro tipo de conhecimento identificado pelos autores est relacionado s aprendizagens que ocorrem na trajetria profissional dos docentes, em que as prticas, rotinas, valores e regras referentes profisso so incorporados por meio de interaes entre os indivduos e a realidade de trabalho na escola. A dimenso subjetiva da carreira refere-se interiorizao, por parte dos indivduos, de seu novo papel a desempenhar, para que efetivamente passem a fazer parte dessa nova ocupao, o que pode variar conforme a instituio em que iro atuar sendo que esses papis tambm vo sendo modificados pela ao desses indivduos. O meio docente se caracteriza, pois, por um apanhado de saberes compartilhados, o que, na perspectiva de Tardif (2000), acarreta, portanto, uma autogesto dos conhecimentos pelo grupo (p. 7). O autor argumenta que apenas os prprios professores tm condies de avaliar o trabalho de seus pares, e que os conhecimentos profissionais so, em boa parte, pragmticos:

Embora possam basear-se em disciplinas cientficas ditas puras, os conhecimentos profissionais so essencialmente pragmticos, ou seja, so modelados e voltados para a soluo de situaes problemticas concretas, como, por exemplo, construir uma ponte, ajudar um cliente a resolver seus conflitos psicolgicos, resolver um problema jurdico, facilitar a aprendizagem de um aluno que est com dificuldades etc. (p. 6)

Compreender a realidade na qual na aplicam os diversos conhecimentos que compem o saber profissional dos professores se caracteriza, portanto, como uma forma de se compreender o trabalho docente. No caso desta pesquisa, trata-se de educadores que no receberam formao inicial para a docncia. Portanto, como fica a resoluo

33 desses problemas da prtica pelos docentes? Quais so os saberes compartilhados pelo grupo? Pretende-se evidenciar quais so as aprendizagens que norteiam a prtica dos educadores presos, e de onde elas provm. Em relao s aprendizagens para a prtica docente dos educadores presos, sero considerados nesta pesquisa os diferentes mbitos assinalados pelos autores: da histria de vida dos professores, passagem pela instituio escolar, convivncia com outros atores vinculados atividade educativa, lugares em que o professor foi formado. O conjunto das aprendizagens docentes, e dentre essas as aprendizagens que ocorrem nos momentos de formao inicial, mobilizado na prtica profissional. Ao tratarem da prtica pedaggica e dos saberes que nela so mobilizados, Tardif et al (1991) identificam quatro tipos de saberes mobilizados pelos professores: os saberes da formao profissional; os saberes da disciplina; os saberes curriculares e os saberes da experincia. Para este estudo, importa considerar os saberes da experincia, adquiridos pelos educadores presos no exerccio da docncia e nos processos de socializao. Destaca-se que os educadores presos no receberam formao inicial para o exerccio da docncia, sendo acompanhados em seu exerccio por um monitor orientador5. Outra autora que auxilia na compreenso da prtica pedaggica docente Chartier (2000) que, ao considerar as aes dos professores, destaca o docente como personagem de um constante jogo, no qual so postas numa balana suas possibilidades concretas de atuao; ou seja, o profissional se configura num campo poltico de classe, o que o faz estar submetido s condies materiais de trabalho (estrutura fsica, oramento da escola, alunos), mas no o impede de inovar suas prticas e negociar de acordo com aquilo que lhe permitido. As novas formas de atuao, no entanto, muitas vezes so deixadas de lado, seja por convico ideolgica, seja pela preguia profissional (p. 163). Ainda na perspectiva da autora, a vida do profissional pode se dividir em duas etapas, basicamente: um tempo para descobertas que tornam o exerccio docente realizvel tempo de construir bons hbitos e elaborar estratgias de sobrevivncia , e um segundo tempo, o das inovaes. O primeiro tempo diz respeito queles que esto ingressando na carreira e buscam construir seus hbitos profissionais. O segundo tempo,5

Cabe ao monitor orientador profissional contratado pela FUNAP a tarefa de acompanhar e direcionar as prticas dos educadores presos.

34 por sua vez, s possvel a partir do primeiro; as inovaes s se realizam mediante o desconcerto daquilo que j se consolidou. Ora, pensar a prtica docente na priso sob esta perspectiva torna-se absolutamente interessante. Podemos inferir que os educadores presos no passaram pela primeira fase de formao, estando submetidos apenas prtica cotidiana, formulando suas noes pedaggicas a partir daquilo que vivenciam, sem o aparato cientfico e ideolgico de uma formao acadmica. Forster e Souza (2004) apresentam alguns argumentos em defesa da plena formao docente. As autoras chamam a ateno para o fato de que o professor deve ser investigador e crtico de suas prprias prticas, que constituem um plano excepcional que no se equipara ao de nenhum outro profissional. No caso aqui estudado, isso fica comprometido. As autoras consideram, ainda, que prticas docentes esto inseridas num contexto que engloba diversos fatores, sendo que um no se sobressai ao outro. De acordo com Forster e Souza,

Hoje, dois grandes obstculos tm impedido que o ofcio de ensinar se profissionalize. De um lado, a viso que a academia tem do ofcio de ensinar, ao trabalhar saberes desvinculados do campo de atuao docente, reduzindo o que ensina a um conjunto de formalizaes idealizadas, desvinculadas do real. De outro lado, a viso de senso comum sustentando a prtica docente, reduzindo os saberes a produzidos a uma circulao restrita e particular. H, sem dvida, a necessidade de superao desses obstculos para que, de fato, o ofcio de ensinar possa se tornar uma profisso. Os saberes que so prprios do ensino no se do num vazio, mas num contexto complexo e real. No se pode atribuir exclusivamente academia ou prtica o locus privilegiado da definio e distribuio dos saberes docentes. No h propriedades nem proprietrios do conhecimento. (p. 2-3)

O contexto de realizao das prticas pedaggicas dos educadores presos bastante especfico, por estar situado no interior de um estabelecimento penitencirio. Mas, de qualquer forma, trata-se de uma escola, e as prticas de ensino so bastante semelhantes quelas que j conhecemos (SANTOS, 2007). As pesquisas realizadas pelas autoras (FORSTER; SOUZA, 2004) apontam para a influncia que o contexto scio-poltico exerce na dinmica da escola, comportamento dos alunos e prticas dos professores. O nvel de confiana, a disponibilidade para o trabalho, a crena na mudana se evidenciam mais fortemente na instituio em que isto intencionalmente valor (p. 3), e isso geralmente valor em escolas onde os

35 profissionais incorporam em suas prticas tais questes. Quais so os valores atribudos pelos educadores presos escola? Como esses valores influenciam em suas prticas pedaggicas? A pesquisa das autoras tambm evidenciou, entretanto, que a vivncia profissional, muitas vezes, no capaz de, sozinha, derrubar mitos, crenas pessoais ou saberes tradicionais que os professores trazem de suas formaes iniciais ou familiares. De qualquer forma, os saberes construdos com a prtica devem ser valorizados:

A experincia e o hbito esto intimamente relacionados e, ao serem repetidos, tornam-se regras e atividades de rotina, definindo o padro de desempenho docente em sala de aula. Por serem particulares e nicos, os saberes construdos na experincia, se reconhecidos, autorizam o professor, uma vez que ele passa a ser construtor do seu prprio saber (p. 3-4)

Mas essa prtica carregada de valores e vcios, que muitas vezes precisam ser questionados. Delegar ao professor, por outro lado, a culpa pelo fracasso escolar, colocando numa berlinda as suas prticas e crenas pessoais, se mostra igualmente equivocado. necessrio pensar a escola dentro de um sistema maior, o professor como sujeito determinado histrico e socialmente, muitas vezes limitado por sua formao ineficaz. Alm de considerarmos que a prtica docente aqui investigada se d no interior de estabelecimentos penitencirios, cabe considerar que ela se estabelece

predominantemente em uma sociedade marcada por relaes de poder e dominao. Colacioppo (2011), em referncia teoria formulada por Theodor W. Adorno, atenta para o fato de que escola atribuda uma misso que ela no pode realizar, por mais progressistas que sejam as suas prticas.

Assim, com as circunstncias develamento e de excluso dos objetivos relacionados luta pela sobrevivncia humana digna das conscincias, ocorre a manuteno da impossibilidade da reduo do sofrimento humano e, no que se refere fetichizao em pauta, a organizao da sociedade capitalista impede, tambm pela indstria cultural, pelo tolhimento da conscincia, a formao de indivduos capazes de julgar, decidir conscientemente e o conhecimento e a experincia dos mais ameaadores eventos e das ideias e teoremas crticos essenciais. (2011, p.49, grifos meus)

36 Uma educao que estimule a reflexo, no entanto, pode ser de grande valia, uma vez que, embora no d aos alunos a satisfao inatingvel que a sociedade capitalista propaga, estimula o trabalho coletivo e o distanciamento da barbrie (grosso modo, a violncia gratuita). Exploraremos tal questo no tpico abaixo: 2.1.2 A formao do indivduo.

2.1.2 A formao do indivduo e a funo social da escola Adorno (2003) considera, ao analisar o contexto alemo no Terceiro Reich, que desbarbarizar se tornou a questo mais urgente da educao. O filsofo argumenta que estando a humanidade em um grau de tecnologia muito avanado, a maior parte da populao se encontra, frequentemente, atrasada em relao a todos os avanos que se apresentam o que gera enorme frustrao. Adorno argumenta a partir da constatao de uma agressividade primitiva que pode causar a destruio do mundo inteiro, caso no seja barrada pela educao. O fenmeno da barbrie se explica a partir da competio entre os indivduos e da frustrao que a cultura dominante proporciona queles que se vem desfalcados dos bens de consumo disponveis para poucos. . Toda essa frustrao gera culpa, que por sua vez gera agresso. E a educao, longe de contribuir para que esse processo no v adiante, favorece a competio, estipula compromissos e provoca, indiretamente, a barbrie. Lutar contra o princpio da barbrie, no entanto, no significa abraar de modo aptico a situao tal como ela est; a revolta tambm indispensvel para as mudanas no sistema, e estar livre da barbrie no diz respeito aceitao mansa da ordem vigente. Adorno argumenta:

Mas j que todos ns nos encontramos no contexto de culpabilidade do prprio sistema, ningum estar inteiramente livre de traos de barbrie, e tudo depender de orientar esses traos contra o princpio da barbrie, em vez de permitir seu curso em direo desgraa. (2003, p. 158)

O autor destaca a barbrie como situao em que o uso de violncia fsica no corresponde a nenhum argumento racional. O recurso da punio, segundo o autor, se configura como um dispositivo brbaro. O uso da fora a partir de reflexes polticas coerentes e que buscam a construo de condies mais dignas para um grupo de seres

37 humanos no pode ser considerado barbrie. A causa final da barbrie a falncia da cultura. A cultura dividiu os homens e separou trabalho fsico e intelectual o que gerou a desigualdade e consequncias drsticas para a humanidade. Conclumos, pois, que, depois de tantos anos, desbarbarizar continua sendo o ponto crucial da educao, ainda que algumas escolas venham falhando miseravelmente nesse aspecto. No so raros os casos de alunos violentos na escola, que agridem professores e colegas, ou mesmo os casos de violncia contra os alunos, sejam elas fsicas ou verbais6. Acredito que Adorno tinha razo ao dizer que todo o modo como a escola se organiza favorece a barbrie, sendo o estmulo competio, muitas vezes, o fundamento das atividades educacionais desenvolvidas. A sociedade atual, catica, consumista, na qual pais e filhos no tm tempo de conviver como antigamente, acaba por massificar as pessoas, inclusive as crianas, que sentem o impulso de humilhar aqueles que so diferentes, na espera de encontrar alguma identidade prpria e superior. papel da escola, portanto, ir contra aquilo que se apresenta como natural na sociedade, apresentando aos alunos diferentes formas de pensar e encarar impasses enfrentados. Essas questes se tornam ainda mais instigantes se pensarmos na escola da priso, uma vez que se trata da educao escolar inserida em contexto que em si diz respeito anulao dos sujeitos. No entanto, a escola tem por funo propiciar o encontro dos alunos com aspectos do conhecimento produzido socialmente, e, nesse sentido, pode favorecer o desenvolvimento da autonomia e o enfrentamento da barbrie. Ao se discutir a escola como espao de promoo do contato dos indivduos com o conhecimento escolar, tornam-se instigantes as reflexes formuladas por Young (2007). De acordo com o autor, a escola lugar de trazer queles que no tiveram oportunidades fora dela o chamado conhecimento poderoso. O que seria tal conhecimento? Diferentemente do conhecimento dos poderosos, ligado quilo comumente chamado de alta cultura, o conhecimento poderoso uma ferramenta que pode ser utilizada na compreenso do mundo pelos sujeitos, o que leva o educando a refletir sobre aquilo que aprende. Young explica, sobre o conhecimento poderoso:

Esse conceito no se refere a quem tem mais acesso ao conhecimento ou quem o legitima, embora ambas sejam questes importantes, mas refere-se ao

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Sobre a questo da violncia nas escolas, ver pesquisa publicada no site da UNESCO:

38que o conhecimento pode fazer, como, por exemplo, fornecer explicaes confiveis ou novas formas de se pensar a respeito do mundo (2007, p. 1294)

O autor argumenta que a escola costuma dar maior ateno ao conhecimento tcnico, procedimental, esvaziado de sentido em si mesmo, porm importante na resoluo de problemas cotidianos (p. 1296). O conhecimento chamado poderoso universal e independente de problemas especficos a serem resolvidos; se caracteriza por estar vinculando, geralmente, s cincias; ele fornece uma base para se fazer julgamentos (p. 1296). Naturalmente, as crianas oriundas de classes menos abastadas tm maior dificuldade na aquisio de conhecimento poderoso. Em suas casas, esto acostumadas com a resoluo de problemas que exigem conhecimento prtico e menos abstrao. Mais uma vez, Adorno (2003) nos auxilia na compreenso dos processos de diviso de classe; o trabalho intelectual delegado queles cujas vidas no esto subordinadas, unicamente, s condies imediatas de existncia, restando tempo para o chamado cio criativo. A partir do presente trabalho, pretendo evidenciar as prticas pedaggicas dos educadores presos, a fim de refletir, entre outras questes, sobre em que medida tais prticas contribuem ou no para a emancipao intelectual do sujeito ou aquisio de conhecimento poderoso, ainda que todo o ambiente prisional transparea falta de liberdade e perspectiva de mudana. O questionamento sobre o real papel da escola dentro da priso foi importante para a realizao dessa pesquisa.

2.2. Os procedimentos terico-metodolgicos Para a coleta de dados sobre as prticas pedaggicas dos educadores presos elegi como procedimento metodolgico a realizao de entrevistas semiestruturadas. A escolha das entrevistas como instrumento para a coleta dos dados se deve ao fato delas permitirem maior aprofundamento sobre questes relacionadas s trajetrias educativas e s aprendizagens sobre o exerccio docente realizadas nesse processo; nos momentos de formao promovidos pelos monitores orientadores da FUNAP e nas prticas dos educadores presos (ZAGO, 2003). Segundo Laville e Dionne (1999, p. 190), a entrevista semiestruturada organizase a partir de questes chaves, agrupadas em temas, e permite que o pesquisador improvise novas questes a partir das respostas obtidas. Por ser mais flexvel, permite

39 ao entrevistado externar seu ponto de vista, transparecendo sua maneira singular de significar aes cotidianas. De acordo com Penna (2003), o uso de entrevistas pode favorecer uma aproximao maior ao universo do entrevistado, mas requer sempre rigor e uma escuta atenta e metdica. Requer tambm o estabelecimento de um canal de confiana, para que seja possvel vencer a barreira das respostas prontas, ainda mais em ambiente hostil como o caso do contexto prisional. A fim de colher os depoimentos dos educadores presos sobre os processos de escolarizao aos quais foram submetidos em suas trajetrias escolares, sobre os processos de formao para a docncia recebidos aps se tornarem educadores e tambm sobre as aprendizagens realizadas em seu exerccio prtico, elaborei o roteiro para a realizao das entrevistas a partir dos seguintes eixos: questes de ordem pessoal; questes sobre processo de escolarizao; questes sobre trabalho como educador na priso; questes sobre prtica pedaggica7. Por exigncia da Secretaria da Administrao Penitenciria, o roteiro da entrevista com os Educadores Presos foi enviado para o Comit de tica em Pesquisa da Secretaria da Administrao Penitenciria (CEPSAP). Oficializado em 18/01/2011, o Comit de tica em Pesquisa da Secretaria da Administrao Penitenciria de So Paulo, segundo o site da SAP:

visa garantir que as pesquisas cientficas realizadas junto s pessoas que cumprem penas ou quelas que trabalhem nesses locais sejam desenvolvidas sob a tica do indivduo e da coletividade e incorporem os quatro referenciais bsicos da biotica, quais sejam: autonomia, no maleficncia, beneficncia e justia (SO PAULO/SAP, 2011)

As entrevistas foram coletadas durante uma semana, mas no de maneira ininterrupta, nos dois presdios j anteriormente citados, Jos Parada Neto e Adriano Marrey. Ao todo foram entrevistados 12 sujeitos todos os educadores das unidades. Aps autorizao concedida pela SAP, entrei imediatamente em contato com os diretores das unidades, e j agendei as visitas. Entrar numa penitenciria no tarefa fcil; mesmo com o parecer favorvel da SAP em mos, fiquei esperando mais de meia hora no porto de uma das unidades, at que me deixassem entrar.

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O roteiro utilizado nas entrevistas est no Apndice 2.

40 Fui muito bem recebida, entretanto, nas duas unidades prisionais. Toda a equipe da Educao8 se mostrou disposta a ajudar no que eu precisasse, e me deixou muito vontade com os educadores presos. No primeiro dia de visita, por exemplo, fui deixada dentro da escola da priso durante um bom perodo da tarde, e pude conversar abertamente com os detentos sobre diversos assuntos. Experimentei o ch que os presos fazem no crcere, ouvi relatos dos mais variados sobre histrias de vida e maus tratos. Todos os educadores presos foram receptivos e ficaram muito lisonjeados com o meu trabalho, mostrando-se dispostos a ajudar no que fosse necessrio. No houve presso (no que eu tenha percebido) para que eles me ajudassem na pesquisa. Os educadores aceitaram ser entrevistados de bom agrado, preencheram o termo de livre consentimento e tm conscincia de que seus nomes verdadeiros foram preservados neste estudo. Para o incio de minhas anlises, concordaram em preencher um breve questionrio com perguntas simples9. Almocei no presdio em todos os dias; uma comida tambm feita pelos presos. Aps meu primeiro contato, tudo correu muito bem; pude coletar os dados sem me preocupar com o tempo, em nenhum momento houve presso para que eu terminasse o trabalho rpido. O nico entrave era o horrio de recolhimento dos presos, religiosamente s 16h da tarde. Em alguns dias, no pude ir aos presdios. Segundo o pessoal da administrao, era dia posterior ao dia de visita, e os presos ficavam o dia inteiro desfrutando do que haviam ganhado de suas mes/esposas/filhos. Segundo os prprios presos, o dia posterior ao dia de visita era dia de vistoria , no qual todas as celas eram revistadas. No geral, tudo correu bastante bem. No meu segundo dia de visitas, j pude comear as entrevistas. Tive um pouco de dificuldade para conseguir autorizao para entrar com o gravador em um dos presdios, embora o aparelho j constasse no meu projeto enviado SAP. Aps alguns trmites, tudo correu bem, e pude gravar as entrevistas sem que ocorresse qualquer tipo de constrangimento. Em uma das unidades, as entrevistas foram feitas na escola, no espao da biblioteca. Na outra, no h um espao fsico para a escola, os educadores lecionam dentro do prprio pavilho de moradia; as entrevistas foram realizadas, ento, nas salas onde a FUNAP oferece

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Existe, dentro dos presdios, um setor responsvel pela educao, que se submete a uma direo regional.9

Ver Apndices 1 e 3.

41 formao para os educadores, e onde tambm so ministrados alguns cursos por professores voluntrios da rua (msica, teatro, artes plsticas etc.). Aps a realizao das entrevistas, as respostas foram transcritas literalmente, respeitando-se a fala dos educadores. As entrevistas foram individuais e cada uma delas durou, em mdia, 20 minutos. Em praticamente todas as entrevistas pude ficar sozinha com os educadores (houve apenas uma exceo). Sem a presena de algum do presdio monitorando suas falas, os educadores se sentiram muito vontade para apontar as deficincias das suas prticas, os problemas organizacionais e a falta de recursos necessrios. Prometi a todos que voltaria aos presdios logo que terminasse o meu trabalho, e levaria uma cpia para cada uma das unidades. Ficaram todos muito contentes e interessados em responder s perguntas da melhor maneira possvel, para que o trabalho ficasse bastante claro e coerente. Muitos relataram o habitual desprezo com o qual a sociedade em geral v o homem preso, e como o meu trabalho poderia ajud-los nesse sentido, uma vez que eu mostraria a todos que na priso desenvolvida uma atividade educacional muito importante.

2.3 A Fundao Professor Manoel Pedro Pimentel (FUNAP) Os Educadores Presos sujeitos desta pesquisa so contratados pela Fundao Prof. Manoel Pedro Pimentel (FUNAP) para ministrar aulas nas escolas dos presdios paulistas. Para compreender a atuao dos monitores, foi realizada pesquisa sobre a misso e atuao da FUNAP, responsvel pelo acompanhamento pedaggico dos Educadores Presos. As informaes aqui apresentadas foram coletadas em visita realizada FUNAP no ms de maro de 2011, quando assistimos a uma apresentao sobre os programas por ela desenvolvidos com o objetivo de favorecer o processo de reinsero dos detentos. Tambm podem ser obtidas no stio da Fundao na Internet: . A FUNAP, fundao estadual de direito pblico vinculada Secretaria da Administrao Penitenciria, foi fundada em 22 de dezembro de 1976. encarregada da realizao das seguintes atividades no sistema prisional paulista: Educao e Cultura Trabalho e Qualificao Profissional Apoio ao Egresso Prisional

42 Assistncia Jurdica

Sua misso contribuir para a incluso social de presos e egressos, desenvolvendo seus potenciais como indivduos, cidados e profissionais. Como o sistema penitencirio, a FUNAP est organizada em sete Regionais: Araatuba/ Mirandpolis; Bauru; Campinas/ Sorocaba; Capital e Vale do Paraba; Grande So Paulo e Litoral; Presidente Prudente; Ribeiro Preto. Segundo dados obtidos no stio da FUNAP, a capacidade prisional do Estado de 101.174, em 172 unidades prisionais, contando em 2011 com 163.915 detentos (Censo Penitencirio 2002). O perfil dos detentos em So Paulo se caracteriza, basicamente, por: 95% homens e 5% mulheres 76% delitos leves e 24% delitos hediondos 75% possuem fundamental incompleto 6% so analfabetos 65% dos homens recebem visitas de suas companheiras 18% das mulheres recebem visitas de seus companheiros 66% dos homens possuem filhos 82% das mulheres possuem filhos

com esta populao que a FUNAP atua. Para tanto, desenvolveu os seguintes Programas de Atuao: 1. Programa Jus Apoio Jurdico ao Preso 2. Programa de Cultura 3. Programa de Profissionalizao 4. Programa de Educao Bsica 5. Programa de Trabalho e Renda 6. Programa de Assistncia ao Egresso e familiares

43 Descrio dos Programas: Programa Jus Apoio Jurdico ao Preso: tem por objetivo prestar assistncia jurdica integral aos presos carentes de recursos financeiros. Atualmente, conta com 271 advogados e 250 estagirios.

Programa de Cultura: Nesse programa, a FUNAP organiza e mantm 113 salas de leitura em diferentes estabelecimentos penitencirios, na forma de bibliotecas, que ao todo contam com acervo de 1.000 ttulos, disponveis para leitura e emprstimo. Cada sala administrada por um monitor preso, devidamente formado para exercer essa atividade.

Programa de Profissionalizao: Mediante parcerias com o sistema S e organizaes da sociedade civil, centra esforos na realizao de cursos profissionalizantes com certificao na perspectiva de formao integral (gesto, cidadania, mercado, empreendedorismo, cooperativismo, etc.), com especial nfase em profisses de exerccio autnomo.

Programa de Educao Bsica: existente desde 1979, o programa oferece escolarizao em escolas situadas no interior dos estabelecimentos prisionais. Para tanto, conta com quadro de educadores composto por Monitores Orientadores, que tm por funo orientar e acompanhar o trabalho pedaggico nas escolas situadas nos estabelecimentos prisionais, bem como por Educadores Presos, contratados para ministrar aulas nas escolas. Atualmente, o programa conta com 459 salas de aula, organizadas em 824 turmas (manh, tarde e noite), compreendendo a Alfabetizao, Ensino Fundamental, Ensino Mdio. Possui cerca de 450 Educadores Presos. O projeto poltico pedaggico, elaborado a partir de um amplo debate, estabelece como foco a formao cidad e continuada de todas as pessoas recolhidas no sistema penitencirio paulista. O Programa de Educao Bsica tem por objetivos: a) Contribuir para reduo do analfabetismo e elevao da escolaridade no Sistema Penitencirio Paulista, bem como a diminuio dos ndices de reincidncia resultantes da falta de condies prprias de vida e trabalho; b) Oferecer educao pautada na realidade adulta e articulada com as atividades culturais e de trabalho; c) Construir e implementar um programa de educao de jovens e adultos no Sistema Prisional Paulista que contribua para o desenvolvimento humano e a

44 insero do egresso na sociedade com maiores possibilidades de participao no mercado de trabalho.

Programa de Trabalho e Renda: Busca meios de insero profissional para os detentos em regime fechado ou em regime de progresso de pena, por meio de parcerias com empresas pblicas e particulares, nos mais diversos segmentos. Projetos: A) Projeto Campinas, por meio de Convnio firmado com a Prefeitura de Campinas. Participam presos do regime semi-aberto, em atividades: manuteno e limpeza de parques e jardins e restaurao do patrimnio pblico. B) Projeto Plantadores de Floresta, desenvolvido em parceria com as Secretarias do Meio Ambiente e da Agricultura para a implantao de sistemas agroflorestais em reas de preservao permanente, mediante o cultivo de lavoura, explorao de frutos de rvores nativas e de rvores exticas em propriedades onde se pratica a agricultura familiar, ao mesmo tempo em que se faz a recuperao da mata ciliar. C) Projeto Parque Fabril FUNAP, que atravs da implantao de 26 Centros no interior das unidades penais, a FUNAP promove a capacitao profissional nas reas de confeco, metalurgia, mveis escolares (novos e reformados), mveis administrativos, laminados de espuma antichama. Os produtos so comercializados para os rgos Federais, Estaduais e Municipais, alm de pessoas fsicas e jurdicas, que podem adquirir bens e contratar servios produzidos por meio de dispensa de certame licitatrio. D) Projeto Daspre: Desenvolve, por meio de criao e comercializao do artesanato, a formao educacional e qualificao profissional das mulheres presas. E) Projeto Educador Preso: Promove a seleo e formao continuada de educadores presos para docncia de aulas de alfabetizao, ensino mdio e ensino fundamental e para organizao de salas de leitura e projetos culturais e de formao profissional.

Programa de Assistncia ao Egresso e familiares: Desenvolvimento de aes de acompanhamento e encaminhamento profissional aos egressos do sistema penitencirio. A) Projeto Global Reciclagem, por meio da organizao de cooperativa social de egressos, familiares de presos e comunidade de baixa renda com a finalidade de coletar, separar e comercializar os resduos slidos. B) Projeto reciclando vidas e papis: desenvolvido em parceria com a Associao Brasileira Tcnica de Celulose e Papel ABTCP. F) Projeto Coopereso: Desenvolvido em parceria com a Prefeitura de Sorocaba, em razo do Programa Cidade Super Limpa. Proporciona qualificao,

45 trabalho e gerao de renda a 200 egressos e familiares. O programa desenvolve atividades de trabalho de reciclagem na usina, manuteno e limpeza da pista de caminhada, das ciclovias, caladas, muretas particulares, bem como do plantio de grama e pinturas.

2.4 O contexto das entrevistas: os presdios pesquisados A coleta de dados da presente pesquisa foi realizada em duas penitencirias de Guarulhos, a saber:

1 Penitenciria "Jos Parada Neto" - Guarulhos I, uma instituio para detentos do sexo masculino que funciona em regime fechado. Tem capacidade para abrigar 804 presos e hoje conta com uma populao de 1072 detentos. O Anexo do semi-aberto tem capacidade para abrigar 216 presos e abriga 413. 2 Penitenciria Desembargador Adriano Marrey Guarulhos II, para detentos do sexo masculino, funciona em regime fechado. Possui capacidade para abrigar 1200 presos e no momento conta com populao de 2154 detentos. As duas unidades prisionais so bem organizadas e independentes uma da outra. Em uma das unidades, Jos Parada Neto, existe um espao especfico para a escola, com todas as caractersticas de um espao escolar tradicional. No presdio Adriano Marrey, no existe um espao to grande para a escola, cabendo aos educadores presos a tarefa de lecionar dentro do pavilho de moradia, em literais celas de aula 10.

2.5 Os sujeitos da pesquisa: os educadores presos O perfil dos educadores varia bastante no que se refere idade, mas a escolaridade basicamente a mesma: ensino mdio completo. Dos 12 sujeitos entrevistados, trs chegaram a cursar o ensino superior, mas sem concluir (um deles cursou Letras, outro cursou Medicina e o terceiro frequentou um curso na rea de informtica). Os sujeitos esto bem divididos entre casados e solteiros, mas a maioria tem filhos. Todos os filhos citados esto na escola. No meu primeiro dia de visita,

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Expresso cunhada por Leme (2007).

46 conversei com todos os educadores e entreguei a