tcc 2014 diogo luciano

35
1 DIOGO LUCIANO ARTESUCATARIA”: UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA COM SUCATAS UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS - BACHARELADO CAMPO GRANDE MS NOVEMBRO DE 2014

Upload: acervodac

Post on 19-Jul-2015

57 views

Category:

Art & Photos


0 download

TRANSCRIPT

1

DIOGO LUCIANO

“ARTESUCATARIA”: UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA COM SUCATAS

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS - BACHARELADO

CAMPO GRANDE – MS NOVEMBRO DE 2014

1

DIOGO LUCIANO

“ARTESUCATARIA”: UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA COM

SUCATAS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais, sob a orientação da Profa. Maria Alice Portorossi. Área de Concentração: Artes Visuais.

Campo Grande – MS Novembro – 2014

2

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiro a Deus, pela oportunidade de estar vivo e com saúde;

À minha mãe e meu pai por terem me gerado, especialmente minha mãe

que de cima está olhando por mim;

À minha avó e meu tio e tias, por terem cuidado de mim e me educado;

A todos os que sempre acreditaram em mim e em meu potencial dentro

e fora de sala de aula.

A todos os professores da instituição: alguns conhecimento se

estenderam para além das salas de aula e vou levar para a vida inteira. Alguns

serão eternos amigos;

A todos os colegas de classe, em especial Lúcia e Érica;

Ao Walter por ceder seu espaço e auxiliar na confecção das peças.

A todos o meu muito obrigado.

3

RESUMO

A vida contemporânea é marcada pelo consumo e pela condição descartável de muitos materiais. A sucata representa não apenas um problema ambiental, mas também uma espécie de retrato daquilo que a vida dos indivíduos mostrou ser sem lugar e uso em sua rotina. O material descartado, por seu volume, possibilidades e sentido, representa um substrato que pode ser considerado na arte e a escultura é uma das expressões que acolhem o seu uso. Na versatilidade da escultura, este trabalho apresenta uma produção de arte e intervenção urbana com materiais contemporâneos que serviram à mobilidade e agilidade da vida, mas que foram descartados. Materiais que serviram para a caminhada e não foram mais considerados no decorrer do processo e terminaram por serem ressignificados em produtos de arte na série “Artesucataria”, que é uma reflexão sobre os caminhos e reinvenções do ser, do ter e do valer. Os olhares de descarte foram redesenhados pela arte e receberam novos contextos e sentidos para que pudessem atingir ao observador com uma nova postura, a dos descartes que retornam para promover uma reflexão sobre a existência, suas posses e desafios. As obras analisam a jornada da vida e suas reflexões, o valor do trabalho e do esforço, a solidão e os amigos e os desafios da jornada humana, em expressões subjetivas de etapas e sentimentos que formam a existência, como o amor, os sonhos, o abandono, a construção. O objetivo foi realizar uma intervenção de transformação com a sucata das antigas “mobilidades” (carros, motos, bicicletas) e posses (materiais de construção, acessórios descartados e similares), a fim de mostrar a capacidade de renovação e remodelação de tudo o que existe, tomando por referência artistas da arte moderna e contemporânea, com sua base criativa livre e pensamento / técnicas híbridas.

Palavras-chave: Arte. Escultura. Sucata.

4

LISTA DE FIGURAS

Figura 1- CALDER, Alexander. Dobradura com disco vermelho, 1973.......................................................................................

18

Figura 2- LEIRNER, Felícia. Pássaros, 1976....................................... 19

Figura 3- CRAVO JUNIOR, Mário. Sem Título, s.d.............................. 19

Figura 4- TORRES, Caciporé. A grande coluna, s.d. .......................... 20

Figura 5- ESCULTOR, Dimas. Cavalo de Ferro, 2012......................... 21

Figura 6- ESCULTOR, Dimas. Moto de sucata, 2012.......................... 21

Figura 7- Obra de Paulo Eppling, s.d. .................................................. 22

Figura 8- Obra de Vick Muniz, 2009 .................................................... 23

Figura 9- Obra Renascer Etapa I.......................................................... 25

Figura 10- Obra Renascer Etapa II ........................................................ 26

Figura 11- Obra Renascer Obra Renascer Etapa III ............................. 26

Figura 12- Caminhos da Vida ................................................................ 27

Figura 13- “Prisões” em esboço ............................................................. 28

Figura 14- “Prisões” real ........................................................................ 29

Figura 15- “Soma” – se você se unir (?), poderá se tornar o que quiser (!) ..........................................................................................

30

Figura 16- “Finitude” .............................................................................. 31

5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 6

CAPÍTULO I - A “ARTESUCATARIA” .............................................................. 7

1.1 SOLDA NA ESCULTURA ...................................................................... 13

1.1.1 A solda ............................................................................................. 13

1.1.2 O uso da solda na arte e na série “Artesucataria” ....................... 15

CAPÍTULO II - SÍMBOLOS E COMPONENTES CENTRAIS DE

ARTESUCATARIA .......................................................................................... 17

2.1 REFERÊNCIAS TÉCNICAS E DE ESTILO ............................................ 17

CAPÍTULO III - PROCESSO CRIATIVO E FINALIZAÇÃO DA SÉRIE ........... 24

3.1 A POÉTICA DE “ARTESUCATARIA” ................................................... 24

3.2 OS RESULTADOS ................................................................................. 25

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 32

REFERÊNCIAS ................................................................................................ 33

6

INTRODUÇÃO

Da presença constante em uma oficina de motos surgiu a criação:

aquelas roldanas, porcas, parafusos, correias, peças e tantas formas, em aço e

metal frio pareciam ter uma boa poética juntas em suas formas. Contudo,

aqueles materiais, peças de carros e motos principalmente, eram elementos

bastante interessantes: veículos com histórias trágicas, com histórias belas,

com interesses tão diferentes, eram recuperados e após isso, ficavam para trás

restos de suas origens que não raro terminavam descartados e esquecidos.

Então, aos poucos, aqueles resquícios passaram a ser transformados em

pequenas propostas artísticas, ou seja, esculturas.

No decorrer do tempo essa experimentação quase informal se

transformou em possibilidade de produzir esculturas para o TCC, foi então que

se tornou o eixo de desenvolvimento deste trabalho; era possível fazer minhas

obras com a reorganização da sucata daqueles veículos do passado. Eram

obras e posses do homem, descartadas pelo homem, que receberiam então

uma nova leitura de forma e conteúdo estético.

A proposta utilização das peças atribuindo a elas um novo significado,

em uma ressignificação estética se tornou a proposta de trabalho a ser

ressaltada neste estudo. A série “Artesucataria” tem este propósito, criar

esculturas.

O objetivo foi desenvolver uma série de esculturas fazendo uso de

sucatas de automóveis, para a expressão criativa dos elementos belos e

trágicos do homem em seu percurso de vida, em seu fazer e em seus

princípios. Como objetivos específicos, têm-se: i) pesquisar a escultura no

mundo contemporâneo e suas possibilidades artísticas; ii) apresenta uma das

formas possíveis de aproveitamento artístico materiais oriundos de reformas e

recuperações (sucatas) de carros e motocicletas e iii) desenvolver uma

produção artística em forma de escultura utilizando a sucata.

7

CAPÍTULO I

A “ARTESUCATARIA”

A série “Artesucataria” foi produzida mediante a poética da reconstrução,

da ressignificação, ou seja, atribuir um novo significado a elas e da

possibilidade de reinvenção da vida, expressa na linguagem a escultura de

sucata. A série de esculturas se apoderou de objetos que já fizeram parte das

“mobilidades” (carros, motos, bicicletas, etc.) da vida humana e de suas posses

(objetos de construção, acessórios descartados e afins), dando a eles nova

significação. O que foi descartado, rejeitado, refutado do cotidiano das pessoas

foi reelaborado e recebeu novos sentidos, para retornar em forma de arte e da

proposição de novas leituras reflexivas. As sucatas de aço, as peças e metais,

todos duros e frios, adquiriram novos significados ao se transformarem em

esculturas, até se tornarem propostas e possibilidades totalmente distantes da

frieza de sua função original. A leveza das novas formas e o trabalho das

texturas reconstruídas e inovadas, unidas em novos sentidos, são as bases

das intervenções.

No decorrer da vida, o ser humano passa por alterações que, em maior

ou menor grau, o levam a se reconstruir. Seja qual for a natureza das

experiências individuais, a finitude e o ciclo da renovação se apresentam como

os pontos em comum para todos. Com isso, a sucata se assemelha a uma

analogia da vida humana que, conforme o olhar criativo que venha a receber,

possibilita a continuidade daquilo que foi finito em novas formas, novos usos e

reaproveitamentos.

As obras que realizei com sucatas são também referenciadas por Beuys

(1981), para quem a arte, não raramente, pode incorporar uma série de

elementos adicionais, que estendem o seu sentido para além do campo isolado

de uma produção artística. Algumas vezes, é possível aproximar esse

significado de sentidos sociais e a arte se torna ampliada, parte da vida das

pessoas ou constituída a partir de fragmentos dela. Nesses casos, afirma-se

8

que estas produções representam sínteses sistemáticas sobre a capacidade

criadora de seus desenvolvedores. Embora todo o homem possa ser um

artista, apenas alguns conseguem desenvolver essa expressão e um número

mais reduzido ainda de pessoas atinge essa pluralidade de terrenos.

As formas, pesos e texturas dos metais foram reconstruídos em novas

leituras, em nada menos desafiadoras que qualquer outra proposta de arte,

ainda que derivassem do descarte, da sucatada, do aparentemente

inaproveitável. Unger (1991) apontou que a produção da arte não precisa vir de

materiais e suportes tradicionais. A produção artística também pode ser

extraída e produzida com elementos residuais, capazes de reconstruir e reler

aquilo que não mais era incorporado pela vida humana ou transformar essa

incorporação. Nesse sentido, sucatas, restos marcados de história e demais

objetos descartados pela sociedade gerais podem ganhar uma intensa função

discursiva em uma obra de expressão artística

O material utilizado pode ser diverso, a sua natureza não é significativa,

mas o que é determinante nessas produções de novas leituras e

aproveitamentos de sucatas e afins é que possam oferecer uma experiência

relevante para o observado. Além disso, “Artesucataria” se interessa em

promover no observador a observação sobre si, sobre sua vida e sobre seu

ciclo, ilustrando momentos-chave de decisão, solidão e finitude.

Harvey (2005) pontuou a questão da observação significativa quando

mencionou as vanguardas e suas produções inesperadas, revestidas de

surpresas e novos caminhos guardam proporções de inovação e envolvimento

para a arte. Por meio dos materiais relidos e ressignificados, a pluralidade

artística se engrandece e a criatividade nos canais oferecidos se torna um

elemento essencial. Não é necessário ser vanguardista, mas é fundamental

levar ao observador uma visão que o toque em alguma dimensão, a ponto de

trazer para aquela expressão de arte uma troca entre os eus: o eu que produz

e o eu que observa.

A escultura de sucata traria muito dessa significação e pluralidade. Ela

atinge se bem elaborada o aspecto fundamental da arte nos dias atuais: a

incompreensão, algo que é tão presente na sociedade e que pode ser

9

considerado em suas elaborações. Uma escultura de sucata, de resquícios de

vida e de passado pode ser uma obra condensada pelo descarte e pela

renovação de sentidos e de práticas. Para o bom aproveitamento, o caminho

adotado foi a total desconsideração dos sentidos e formas anteriores e o

aproveitamento da essência, a fim de criar novas possibilidades. Com isso,

obteve-se uma criatividade livre do passado da peça, que o velho com o novo

extraído daquilo que sempre foi e nunca foi percebido (TISDAL, 2008).

A exploração escolhida para a sucata segue a tendência do pensamento

de uma escultura feita com materiais plurais, confere aos elementos que utiliza

a possibilidade de serem conhecidos, vistos e interpretados fora de sua escala

comum de sentidos e significados. Para Gallwitz (1992), esse tipo de

exploração envolve não apenas a extrapolação de formas, mas também o

sentido social desse uso diversificado e o valor da ideia, do pensamento que os

reveste. Quando se coloca o pensamento e a questão social como elementos

criativos, o que se tem é a possibilidade de aportar-se de vários suportes,

matérias e formas – até mesmo o detrito, a sucata – para desenvolver arte e

novas leituras, proposta esta adotada neste trabalho.

Para Câmara (2013), embora o sentido do termo escultura envolva a

produção de um objeto tridimensional, no presente ela não se resume apenas a

esse ato produtivo e também pode conter discursos e elementos adicionais,

bem como se representar por elementos abstratos que antes não seriam

comportados dentro de sua expressão. Um bom exemplo é a voz como

escultura expressiva, no que se considera o seu volume, a sua entonação

como temáticas expressivas consideráveis. A escultura, bem mais que

expressão tridimensional estática, é um conceito e uma possibilidade em

intenso movimento.

O reaproveitamento da sucata e a abertura em muitas das obras para

que as pessoas interajam e o próprio ambiente possa dar movimento e

contexto busca formalizar a sucata como escultura social. Segundo Vicini

(2009), estas esculturas trazem comunicação entre as pessoas e, quando

advêm de um material como a sucata, conforme o modo e a proposição do

artista podem levar a reflexões que tornem a obra um canal de comunicação e

10

expressão do artista e, conforme as possibilidades da obra, também do

observador em sua experiência de fruir daquela arte.

Quanto ao conteúdo, à série apresenta obras que são hora agradáveis

horas bastante desafiadoras à reflexão. Hora de fácil interpretação, hora de

intrigante contato. Vicini (2006) mencionou que, nem sempre, nessa

proposição, as produções tendem a ser agradáveis ao olhar, ou atraentes aos

olhos. O conteúdo comunicativo é o que é importante, o que envolve, o que se

torna a essência de existência. Essas obras realizam uma espécie de

fabulação do mundo e dentro deste contexto, se desenvolvem (VICINI, 2006).

Sobre o uso da sucata e de materiais alternativos, segundo Sevcenko

(2006), foi a partir da primeira geração romântica francesa que a liberdade dos

materiais para a criação se tornou um fenômeno mais notável e praticado nas

expressões artísticas. De modo provável, seria uma situação decorrente da

expressão em arte das agitações da Revolução Francesa e, condensando os

materiais, seria uma forma de exprimir a modelagem de tudo o que houvesse

de alternativo por meio do martelo. Tudo, o que quer que fosse, poderia se

transformar em arte. Nesse momento turbulento, em que a própria identidade

do que era arte e do que não era se encontrava bastante confusa, surgiram

artistas integrados a um submundo produtivo, em várias expressões artísticas e

de comunicação. Lá era possível encontrar jornalistas, caricaturistas, artistas

em geral e indivíduos que queriam testar estes novos limites de expressão e

possibilidades. O volume destes ativistas cresceu de maneira significativa e, de

modo proporcional ao aumento do volume, ocorreu o aumento da repressão

contra o que propunham Eram artistas inadequados, que não raro eram

banidos e isso, de modo indireto, levou a difusão desses usos e radicalidades

pelo mundo. Não que em outras localidades não existisse a mesma força

expressiva, mas, era notável que o teor francês do sentido de transformação

trouxe uma leitura mais crítica e revolucionária à modelagem de materiais.

Não é raro também que s expressão de “sucata” em arte, integre o que

Michel Thévoz chamou de arte bruta, cujas obras expressam alucinações ou

frutos do caos psíquico interior. Não são ligadas ao surrealismo estas obras,

mas bebem do mesmo impulso interior envolvente de propulsão interior,

psíquica, que o surrealismo é envolto. Há um grande teor de imprevisibilidade

11

nesta arte e as expressões se elaboram de modo bastante intenso, com lógica

própria e com estrutura individual. Não raras vezes, os resultados que podem

ser visualizados nestes projetos e produções se distanciam bastante da arte

oficial. Embora a arte bruta nem sempre seja agradável à crítica, há os casos

em que ocorrem movimentos bastante contrários, com artistas que são

acolhidos pela riqueza de suas produções. A natureza bruta expressiva

costuma seguir dois extremos: ou ser muito envolvente, ou muito chocante

(GOLDSTEIN, 2008).

Além disso, é um material plural e de alta expressividade. Segundo

Barreto (2001), a sucata pode servir de suporte para uma variedade intensa de

representações. O artista Jonas Pereira dos Santos, por exemplo, condensa

em sua produção peças de sucata de oficinas e as converte em leituras que

passam trechos da história do Brasil e do mundo. Em outros momentos,

oferece a essas peças movimento e interesse, dinamismo, e apresenta a rica

cultura brasileira com capoeiristas em ação e produções autobiográficas. É

uma diversidade considerável que permite ao artista reler a sucata e dar

expressividade a seu olhar e dizer.

O trabalho proposto neste projeto envolve-se com o sentido de arte bruta

e sua relação com a cultura e com a subjetividade humana. O produto

descartável da vida capital é elaborado e transformando em exemplos do

homem em sua jornada e numa leitura positiva de sua (in)finitude: o homem e a

coisa da qual a sucata veio são finitos, mas sua essência é perene e pode ser,

conforme o olhar, renovada.

Nesse rumo, Soares (2000) apontou que a produção atual da arte é mais

aberta para a acolhida de manifestações que envolvam materiais que integrem

o cotidiano dos indivíduos e que, em uma primeira leitura não sejam ligados à

arte. A cultura pós-moderna é bastante abrangente e permite a absorção de

uma série de diferenças e proposições, inclusive de produções que em um

olhar inicial possam se apresentar contraculturais. O dito detrito, a sucata e

suas novas leituras possíveis enquadram-se nesse escopo de aproveitamento,

gerando produtos culturais da vida pós-moderna e de seus descartes, leituras

que transformam o que antes era desuso em uso imediato, em arte, em

expressão.

12

O delírio do artista ou do leitor e as capacidades de interação também

foram tratados por Soares (2000) quando os cita ligados a uma espécie de

inventários de mundo, de vazões do inconsciente. A arte, quando projeta tais

elementos o faz na única maneira possível para que esses conteúdos interiores

possam se fazer notar e elaborar na Terra. Miniaturas, maquetes, esculturas de

sucata, de detritos e uma série de outros materiais também podem ser

incorporadas a essa remodelação de mundo, a essa leitura renovada, gerando

uma arte advinda do interior do artista e que pode, conforme as oportunidades

e possibilidades do observador, também ser ambiente de vivência de seus

delírios, de suas subjetividades ou do compartilhamento desses sentimentos

em maior ou menor grau se referenciados a quem os produziu.

A escultura é resultado de uma série de interações que envolvem não

apenas a modificação do olhar e as novas dimensões interpretativas de mundo

e de quem produzem a arte. Também envolve as tecnologias pelas quais essa

produção pode ser obtida, bem como as novas técnicas e suportes para a arte.

O que antes não era acolhido, no presente pode o ser de maneira efetiva. A

linguagem escultórica trabalha inúmeros materiais e pode explorar tanto o

espaço quanto o vazio, tem a sua disposição a questão do volume e de suas

possibilidades de modo pleno, uma vez que as tecnologias que podem ser

exploradas para o trabalho com esses materiais se tornaram mais acessíveis.

Da mesma forma, a opção pelo trabalho com a rusticidade e com

ferramentas simples se manteve ativa e possível e o hibridismo é uma

característica do tempo presente (SAFAR, 2006).

Outro contributo e orientação importante que se percebe dos artistas do

presente é o uso, na escultura, da simplificação e estilização das figuras, bem

como da transformação de formas reais em elementos figurativos ou em

essência modificados, que rumam no sentido da abstração. Assim, entende-se

que nesse repertório variado, a sucata e o metal, foram adições do pós-guerra,

e que passaram a ser lidos e transformados em inúmeras produções, das mais

variadas naturezas no mundo todo (PROENÇA, 2007).

13

1.1 SOLDA NA ESCULTURA

1.1.1 A solda

Há várias possibilidades para o trabalho em arte com materiais diversos

e dentro dessas possibilidades, a solda consolida o uso de muitos deles. É o

ato de unir peças de modo definitivo, por meio de reações químicas e calor. O

uso e trabalho com a solda ocorre com o respeito às particularidades dos

materiais que aceitam a sua aplicação, permitindo a solidez e a segurança das

obras. Maidana (2014) apresentou que o eixo do trabalho é a amperagem

utilizada para a solda, valor obtido conforme o tamanho do eletrodo a ser

utilizado e a grossura do metal. A relação é proporcional: metais ou materiais

que tenham uma base mais dura, mais sólida, requerem que a solda seja mais

penetrante. Com isso, é utilizado um eletrodo mais grosso e a amperagem é

modificada. Em geral, cada grossura de eletrodo tem uma amperagem

específica, mas como padrão de referência, sabe-se que um que tenha 0,63

cm requer 250 amperes para que venha a ser trabalhado. As máquinas

caseiras suportam com frequência até o máximo de 300 amperes, o que limita

a essa dimensão de eletrodo o seu uso. As industriais, como foi o caso

utilizado neste trabalho, admitem maiores amplitudes de eletrodos. Mesmo

assim, o trabalho com a solda não requer, necessariamente, que exista maior

amperagem na máquina, uma vez que a opção mais comum é utilizar várias

passagens para que o metal mais grosso seja soldado que uma amperagem de

carga superior a 300 amperes, evitando o aquecimento excessivo da máquina

e garantindo qualidade e uniformidade no trabalho. Na série “Artesucataria”,

foram utilizados eletrodos entre 2 mm – 2,5 mm, na maioria das obras, o que

importa no uso de amperagens entre 55 a 80 amperes.

Outro aspecto: na solda com sucata deve-se ter o cuidado de limpar

completamente a peça, que fique totalmente livre de impurezas, de graxa ou de

qualquer outro tipo de elemento. No geral, é necessário apenas que se retire

óxidos e impurezas comuns, mas, quando se pretende um trabalho que tenha

uma demanda mais intensa de resistência, é aconselhável que se usem

14

respaldos, chanfros e processos de aquecimento prévio e posterior para

reforçar a qualidade final da solda. É importante observar a peça para que não

apresente porosidades em suas emendas, apresentando então problemas de

solda. Pode-se lixar ou utilizar qualquer outro tipo de alternativa para eliminar a

porosidade, a fim de que se torne uniforme e trabalhável com segurança. Por

fim, o término do cordão de solda deve ser feito no formato de caracol, com o

rápido afastamento da peça, para garantir a finalização. Embora existam

eletrodos nus, ou puros, os utilizados para esta série foram pautados no que é

mais recorrentemente utilizado no presente, ou seja, eletrodos revestidos, em

que o núcleo é de metal, mas há uma liga que se mistura a ele no momento em

o calor ativa e forma um retorno maior, uma cola, que geralmente é o silicato

de sódio ou então de potássio. O revestimento utilizado foi o rutílico, pelo bom

acabamento, por suportar chapas finas a médias, por se adequarem a

estruturas metálicas e pela menor apresentação de trincas em razão da

presença de fluorita, carbono de cálcio e de ferro liga em seu revestimento

(SENAI, 1998).

Tolosa (1997) descreveu que as esculturas em ferro e solda se

apropriam das técnicas já utilizadas para as soldas em metal, o que amplia as

chances de exploração de formatos e possibilidades. O que difere entre o ferro

e o metal é a dificuldade de trabalho com os materiais, sendo que o ferro

geralmente exige mais força e intensidade, precisa ser moldado, aquecido. O

metal, não. É mais simplificado, maleável. Para as esculturas em sucata, é

comum que sejam reaproveitados materiais como ferros, parafusos, porcas,

pregos, máquinas e partes de peças que tenham dimensões pequenas a

média. Naturalmente que a exploração de dimensões maiores é possível, mas

há um menor número de artistas que opta por isso, dadas as dificuldades de

trabalho com o material, como o transporte e investimento em estrutura e

maquinário para realizar o seu andamento. Esse tipo de escultura é válido e

acolhido nas artes, podendo tanto comportar ideias já existentes e regulares,

como estéticas nada rígidas e incomuns, sendo um material sólido mas que,

com o uso de solda e arte, possibilita a vazão criativa individual.

15

1.1.2 O uso da solda na arte e na série “Artesucataria”

A série produzida fez uso da solda como elemento de ampliação para os

limites da criação, que amplia as modelagens, esse recurso costuma reduzir a

mobilidade da obra, não permitindo que seja desmontada na maioria dos casos

(CALÁBRIA, 2011). Contudo, os artistas que utilizam esse recurso identificam a

resistência e a facilidade de trabalho que tal recurso oferece (solda) com

materiais como aço e ferro, bem como outros materiais pesados, resultando em

peças estáveis, seguras e em uma boa alternativa, de maneira especial quando

se pretende a interação ou que pessoas possam envolver-se, de algum modo,

na proposta de produção.

É um trabalho complexo que teve seu engatilhamento em sala de aula,

no momento em que, durante uma das aulas do Professor Elomar, foi solicitado

o desenvolvimento de um trabalho com o uso da sucata .Com isso, em grupo,

foi explorada a solda fora do espaço de sala de aula e foi possível começar a

conhecer as possibilidades desse recurso. A segurança e a capacidade de

explorar materiais como aço, metal, e ferro entre outros, foi bastante atrativa e,

quando o resultado final daquele trabalho foi entregue (um peixe desenvolvido

pela reciclagem de um extintor, com aplicações de porcas e parafusos), surgiu

e teve início uma exploração pessoal sobre as possibilidades criativas da solda,

que resultou no maior conhecimento de suas capacidades técnicas,

oportunidades e limitações.

Outra leitura da solda, incorporada na seleção para aplicação nas obras,

foi o sentido de união: se entre os homens, o amor que os faz permanecer

próximos e construir histórias junto aos demais, se perpetuando em sua

memória e em sua existência, é a chave de sua existência, a solda é, na série,

o amor que une as sucatas em prol de transformá-las de finitas em perenes

16

CAPÍTULO II

SÍMBOLOS E COMPONENTES CENTRAIS DE ARTESUCATARIA

Neste tópico se descreve a base de escolha e desenvolvimento do tema

proposto, para a elaboração das esculturas. É um relato da experiência criativa

e impulsionadora do artista, que conduziu à série “Artesucataria”.

Ao observar em um trabalho alternativo o grande volume de detritos e

descartes que a atividade de conserto e restauração de motocicletas e veículos

antigos acumula, foi percebida a possibilidade de que tudo o que era

descartado pudesse dar vazão e lugar a um projeto artístico. As peças, os aros,

o metal, o alumínio, o inox e o aço, em várias versões e cores, apresentavam

brilhos e texturas que eram descartados às lixeiras sem receber uma leitura ou

apreciação que permitissem a sua saída para além dos limites da sucata, um

novo significado ao que deixa de ser sucata e se transforma em objeto estético

pelas mãos do artista.

Os detritos relidos, reaproveitados, em nova vertente e leitura do que é

humano e de sua vida cotidiana é a proposição deste projeto. O processo

criativo, tema do próximo capítulo, é descrito de modo pormenorizado em sua

simplicidade, de recolher o que antes era detrito e transformar, unindo, forjando

e solidificando, em leituras de vida e do mundo atual, em humanóides sem

vida, entretanto, frutos da vida e dos desejos passados de humanos, sob a

ótica do artista – no caso, minha leitura e ressignificação.

A “Artesucataria” é uma leitura da morte, do encerramento, em novo

começo, em re-começo, no qual de detrito se torna arte, de descarte se torna

encarte, de inutilidade se torna proposição e passa a ter um novo significado.

Esse novo significado é a do objeto transformado, vivo outra vez, realocado.

17

2.1 REFERÊNCIAS TÉCNICAS E DE ESTILO

A proposição deste estudo se encaixa na proposição de estilo pós-

moderno, pela ótica de Kumar (1997), para quem essas produções podem ter

uma:

[...] mistura eclética de qualquer tradição com a do passado imediato. É tanto uma continuação do modernismo, quanto sua transcendência. Seus melhores trabalhos são, caracteristicamente, de dupla codificação e irônicos, dando destaque à amplitude de opção, conflito e descontinuidade das tradições porque tal heterogeneidade capta com a maior clareza possível o nosso pluralismo (p. 116).

Uma das prerrogativas da escultura é a capacidade de angariar e variar

materiais para a sua expressão e na modernidade e pós-modernidade, um dos

principais traços é a variedade e a experimentação. Embora a madeira e a

pedra sejam os materiais mais comuns, no presente, a sucata e a reciclagem

de outros suportes é uma realidade constante. Na própria história e dentro da

contextualização da escultura, o seu sentido pode também se modificar: era

comum na antiguidade que fossem associadas a deuses, a receptáculos de

sua presença, ou teofanias, mas no presente este sentido se modificou e há

uma diversidade de sentidos que deve sempre ser considerada (WITTKOWER,

2001).

Na Grécia, as esculturas tinham forte ligação com as tradições e a pedra

também era o suporte mais utilizado, de modo especial o mármore e quase

sempre as esculturas mostravam formas perfeitas, naturais. Não eram muito

simbólicas, e sim muito afeitas a formas reais e seu interesse era demonstrar

os deuses e servir de elementos que adereçavam os tempos. Após o

renascimento, as esculturas passaram a ter maior associação com a dignidade

humana e visavam proporção, harmonia e perfeição (PROENÇA, 2007).

A partir da industrialização, ainda segundo Proença (2007), a expressão

da arte em geral passou a ser mais variada, expandindo o interesse da

proporção e da perfeição e passou a envolver temáticas mais intensas e a

apresentar a distinção entre movimentos de modo mais claro. As técnicas de

18

escultura passaram a ter expressões como ondulações e aspereza, como

tratamento da incidência de luz e maior complexidade de texturas e volatilidade

em algumas das elaborações. Portanto, o teor imaginativo e variado se tornou

mais latente a partir deste marco.

É o período da escultura moderna, que a partir dali passou a

experimentar também impactos como as novas tecnologias e as variações de

materiais, que também incluiu os despojos das indústrias e toda a série de

possibilidades novas produzidas. A escultura a partir deste período se tornou

mais dinâmica e abstrata e conforme o interesse do artista se tornou possível

explorar sensações cinéticas, auditivas, visuais e variadas e a abstração se

tornou uma parte importante da expressão da escultura (SAFAR, 2006).

O surgimento da sucata como um material de escolha se deu após a Iª

Grande Guerra, quando inúmeros artistas começaram a realizar produções

baseadas em solda, em colagens e no aproveitamento de materiais, como

Alexander Calder. As obras também passaram a ter ainda mais expressividade

e o movimento, em vez da estática, também foi incorporado às esculturas. A

fluidez das obras se tornou uma possibilidade a partir deste marco, O uso do

vazio nas esculturas também foi um ganho e presença deste período,

explorando o inverso da matéria, a contradição do não preenchimento em algo

que se sustenta, a leveza no sólido (PROENÇA, 2007).

Figura 1 – CALDER, Alexander. Dobradura com disco vermelho, 1973.

19

Artistas contemporâneos que trabalham com a sucata, quase sempre

optam por produzir temáticas contemporâneas e também por explorar volumes

geométricos, vazados e contrapontos, como o exemplo citado acima. Boas

referências são Felícia Leirner, com suas esculturas de grande porte que

costumam se integrar de modo muito positivo com o ambiente e Mário Cravo

Júnior, que por meio de suas esculturas de materiais variados explora o

repertório cultural brasileiro de um modo muito próprio (PROENÇA, 2007).

Figura 2 – LEIRNER, Felícia. Pássaros, 1976.

Figura 3 – CRAVO JUNIOR, Mário. Sem Título, s.d.

20

A exploração geométrica é clara, mas o tamanho, a dimensão de suas

obras, idem. Caciporé Torres é outra referência que se utiliza da função do

ferro e do aço inox para criar obras de grande porte que em geral ficam em

espaços externos e que dialogam com as pessoas por sua presença imponente

e leituras possíveis variadas (PROENÇA, 2007).

Figura 4 – TORRES, Caciporé. A grande coluna, s.d.

Outra referência é um artista plural, que atua tanto em tatuagem quanto

na escultura, o artista Dimas Escultor realiza esculturas e pinturas em materiais

reciclados, e cuja suas obras são bastante objetivas e pautadas no

reaproveitamento e leitura de elementos como ferro, metais e restos de objetos

como motocicletas e bicicletas integradas ao cotidiano. Seu “Cavalo de Ferro” e

sua “Moto de Sucata” são dois referenciais importantes de um artista que,

embora sua produção não esteja engajada ou reconhecida em circuitos de arte,

21

representa uma excelente referência de estilo e de técnica para a proposição

deste trabalho.

Figura 5 – ESCULTOR, Dimas. Cavalo de Ferro, 2012.

Figura 6 – ESCULTOR, Dimas. Moto de sucata, 2012

22

Por fim, uma referência adicional são as esculturas de Paulo Eppling

que, por meio do uso de detritos, cria novas formas pautadas em obras de arte

tridimensionais. É um artista americano e suas obras podem ser vistas em

vários locais daquele país, especialmente na Baia de Tampa, na Flórida.

Figura 7 – Obra de Paulo Eppling, s.d.

Outra obra que serviu de referência para a proposição deste trabalho foi

construída mediante a observação da mídia televisiva, com a obra de Vick

Muniz que serviu de abertura da novela Passione. A sucata e sua leitura

associada ao amor, um dos sentimentos mais interessantes e abordados na

história humana, possibilitou um resultado visual muito interessante e, com um

conjunto de peças, descreveu a paixão entre duas pessoas.

23

Figura 8 – Obra de Vick Muniz, 2009.

24

CAPÍTULO III

PROCESSO CRIATIVO E FINALIZAÇÃO DA SÉRIE

1.1 A POÉTICA DE “ARTESUCATARIA”

A série “Artesucataria” se desenvolveu mediante a proposta de uma

poética de reconstrução, de reelaboração e busca por novos sentidos. O

processo que sustenta a sua criação é também parte de um processo interior

da vida, que é o resgate das vivências, das experiências e a colocação de

significados.

A sucata, aquilo que não é mais utilizado e que um dia já serviu – no

caso deste trabalho – para a mobilidade e para as posses dos indivíduos, foi

coletado, limpo e estruturado, a fim de abandonar o seu sentido original e

reproduzir peças que retornam para a vida cotidiana daqueles que as

excluíram, não mais como objetos mortos ou sem serventia, mas como arte,

beleza e chamados para a reflexão.

Os movimentos entre ir e vir, chegar e partir, ler e reler, compreender e

desistir, entre ser e não ser, ter e não ter e entre a finitude e a eternidade são

as bases da poética da obra que é sustentada pelo pilar da continuidade, das

reapresentações e das possibilidades, bastando um olhar inovador nesse

sentido, bastante o interesse de rever tudo em novas possibilidades.

A reconstrução humana e os momentos-chave em que a existência

precisa ser pensada, analisada, refletida e alterada formaram as bases para a

construção das pelas de “Artesucataria”, em uma poética que une morte e vida,

perecimento e ressurgimento. Uma nova leitura do que existia, deixou de existir

e retornou, novo, inovado.

25

1.2 OS RESULTADOS

A primeira obra é Renascer. Nela foi pretendida a retratação de uma

nova chance, de mudar caminhos e conceitos, traçar novos objetivos, esquecer

o passado e seguir em frente. No início da obra, foi feito um protótipo de

papelão, pois como era uma nova leitura humana teria que ter proporções. A

principal dificuldade foi a sustentação da possível coluna vertebral, na qual foi

utilizado um ferro para esse objetivo e uma madeira como contrapeso. Para

auxiliar nessa resolução também foi adquirida uma marionete em madeira e foi

utilizada a proporção das cabeças para esse fim. O papel deu início à obra, que

passada para o ferro. Primeiro foi cortada a cabeça e colo e depois, transposta

a envergadura da coluna. Para dar ideia de mobilidade e de juntas, foi colocada

uma corrente na qual a solda comum não permitiu a fusão dos dois materiais

diferentes. Para isso, foi utilizada a solda amarela com varetas de latão

nitrogênio e um componente químico.

A criatura que surge de coisas que eram e que ainda está no chão,

aprendendo a se sustentar é a analogia do renascimento da vida, quando se

aprende novamente a ser e a ver, tendo tudo sob nova perspectiva. Se antes

era uma perspectiva superior, passa a ser inferior e em reconstrução. Os cacos

e restos que motivaram o renascimento ali estão, relidos e reajustados, de tal

modo a representar uma nova realidade que aprender a se ajustar nesse

mundo. De uma coisa à outra, de finito a novo.

Figura 9 – Obra Renascer Etapa I

26

Figura 10 – Obra Renascer Etapa II

Figura 11 – Obra Renascer Obra Renascer Etapa III

27

A obra seguinte é Caminhos da Vida. Nela, o eixo é que muitas vezes na

vida temos de escolher o caminho que devemos seguir. Algumas escolhas

podem ser certas, outras erradas, mas sempre é preciso escolher. Algumas

vezes é possível escolher o caminho mais rápido, em razão da dificuldade do

outro caminho e nessa escolha, passar por cima de pessoas ou cometer atos

ou atitudes negativas para obter o que se deseja. O interesse da obra é

mostrar que o caminho mais longo leva ao lugar correto e o mais curto, a

nenhum lugar ou pelo menos a nenhum lugar no qual se deseje estar.

O primeiro passo foi traçar um projeto de proporções dos degraus

descrentes da escada da vida. Na circunferência, foi dividida de modo igual.

Então, pegou-se o primeiro degrau e com um cordão foi traçada a outra ponta

do degrau, apontando o local de ligação entre um e outro. As peças foram

cortadas, retiradas do papel e transpostas ao ferro. No tubo, foram feitos

espaçamentos decrescentes para dar a ideia de quanto mais perto do objetivo,

maior a dificuldade com degraus mais estreitos e mais afastados.

Figura 12 – Caminhos da Vida

A antiga metáfora de que os últimos degraus são os mais estreitos e de

que há dificuldade em se galgar um local positivo e elevado na vida, mas a

queda permanece fácil, é o centro dessa peça. A escada da vida é a

caminhada que leva acima e abaixo, tudo depende de onde a pessoa está e

aonde ela quer chegar.

28

Bem como dos fatos imprevisíveis da vida. Construída de sucatas, é

também uma analogia entre o que foi importante e se tornou a sustentação

para a caminhada e apresenta a possibilidade de caminhar e progredir,

encontrando bons destinos justamente sobre os obstáculos da vida, que muitas

vezes são os gatilhos das mudanças.

A obra Prisões retrata o que necessitamos para sobreviver. Com

grandes pássaros de ferro soltos e uma gaiola sem fundo, nela o expectador

poderá se colocar no centro (já que não tem fundo) e se questionar: os

pássaros acordam todos os dias cedo cantando e a casa deles não é de luxo.

Não usam roupas de marca e são felizes. Eles fazem o que o homem

sempre almejou que é voar! A principal mensagem da obra é permitir que o

observador interaja e que perceba a necessidade de não se apegar ao dinheiro

nem as coisas materiais: dar valor ao que realmente tem valor.

O que as prisões ilustram é a distância, não maior que as grades, entre

o que o homem deseja fazer e o que a vida lhe impõe fazer. Entre o que o

homem deseja ser e o que a vida lhe impõe ser. Entre a liberdade e a

obrigação.

A proposta desenvolvida no meu trabalho tem por intenção mostrar ao

observador que a vida pode ser aprisionadora, mas também libertadora tudo

depende se você é pássaro de dentro ou de fora da gaiola. Também por ser

toda de sucata mostra que o mesmo material e o mesmo repertório que pode

tornar uma pessoa livre, conforme a maneira que trabalha esses conceitos e

lugares, tal situação também pode torná-lo cativo.

Figura 13 – “Prisões” em esboço

29

Figura 14 – “Prisões” real

A quarta obra é Soma. Mostra que não importa o tamanho que a pessoa

assuma, a forma que tenha, quem ela seja ou como ela seja, se sozinha

sempre será como uma das porcas que constituiu a obra. Mas se por acaso se

juntar a outras, pode se tornar tudo o que quiser. Soma retrata o tripé morte

(caveira, o maior temor do homem), o espanto do acontecido (o ponto de

exclamação) e a incerteza não respondida (ponto de interrogação), a fim de

apresentar – depois de todas as transformações e remodelagens – a

transformação final, que muda a forma, mas não a essência.

A solda e a união de porcas constituem a sua formação por uma razão

poética: sozinhos, assim como sozinhas as porcas não terão um formato além

de algo comum. Unidos, podemos assumir o sentido e a forma dos maiores

mistérios. Outra mensagem que Soma passa é sobre a morte: só, na vida, o

ser humano será sempre uma peça isolada. Só, na morte, o ser humano será

um indigente. Junto, se faz outra história.

30

Figura 15 – “Soma” – se você se unir (?), poderá se tornar o que quiser (!).

31

Por fim, tem-se a última peça, Finitude. O desfecho do ciclo é a finitude.

Assim como aquilo que era não tem ideia ou semelhança com o que se torna

depois de lido de modo novo como como sucata, assim o homem não tem ideia

do que se tornará no evento de sua morte e após ela. O que é certo é o

espanto dessa hora e a incerteza. Finitude é a síntese do pensamento da

morte, da desfação do ser, do sentido de fim. Por outro lado é também a

continuidade, que mostra que mesmo desfeito o homem e a sucata não

esgotam suas possibilidades. Finitude é o término do ciclo das novas leituras, o

desmanche, o encerramento da forma, mas não o fim, dado que a essência ali

está reconstruída, com olhar criativo e renovador, que forma outro objeto do

antigo e cria outro novo ciclo, diferente, de novas formas.

Figura 16 – “Finitude”

Por fim, é importante acrescentar um detalhe que envolve a finalização

da série: em nenhuma das peças foi dado acabamento, nem acelerado o

processo de enferrujamento das peças. Essa decisão foi tomada em razão da

poética do trabalho, pois as peças – assim como as pessoas – têm um tempo

de vida útil. A aceleração da ferrugem ou um acabamento maior nesse sentido

seria adiantar, fazer acontecer antes da hora um processo, quebrando com a

sequência esperada de seu ciclo natural. Foi optado por deixar isso em aberto,

para que a ferrugem ocorresse, caso ocorra, dentro do tempo de cada obra.

32

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eu me apropriei de referências contemporâneas, modernas e urbanas

para construir uma leitura sensível a respeito dos desafios e desfechos da vida.

A sua apresentação plural consiste em não somente a leitura poética da

transformação das coisas, mas também nas possibilidades infinitas que

envolvem esse transformar.

A sucata foi um material extremamente importante para a proposição,

porque permitiu analogias importantes com os sentidos de reconstrução e de

infinitude. Embora a coisa que tenha gerado a sucata tenha encontrado o seu

fim enquanto assumia aquele papel, ela não deixou de existir e, transformada,

pode assumir novas possibilidades. Da mesma forma que o homem se

transforma pela vida e por seus desafios, continuando a existir transformado, a

sucata passa pelas mesmas diversas e novas leituras e permanece existindo:

com outras formas.

Me apropriei da sucata e de seu passado para reconstruir e dar nova

forma e sentido ao que já existia e oferecer nessa recuperação de sentidos,

novos olhares e perspectivas. O objetivo foi desenhar o fato de que como a

sucata pode se refazer, pode se modelar do velho em novo, o homem também

pode. Que assim como percurso da sucata é o fim, o do homem também é,

contudo, a finitude do ciclo depende do olhar de cada um, podendo continuar

em um espiral sem fim de possibilidades. Tudo conforme o olhar de quem

capta a história. Por essa razão a sucata foi escolhida, assim como o tema:

pela semelhança e contraposição homem / lata, metal / vida e ação / estática

que, convertidos em arte, contaram uma nova história.

Por fim, a proposta central de “Artesucataria” é poética: é a existência

sem fim, vinculada à criatividade. Nada se esgota nada se acaba. Tudo se

transforma. Assim é na arte, no mundo, na vida.

33

REFERÊNCIAS

BARRETO, Osana de Azevedo Gonçalves. Construindo com sucata. Monografia. Especialista em Arteterapia e Educação em Saúde. Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, 2001.

BEUYS, Joseph. Polentrasnport 1981: entrevista debate conduzida por Ryszard Syanislawisk. ET TOUS ILS CHANGET LE MONDE. Catálogo da, v. 2, 1981.

CÂMARA, Marina Andrade. Joseph Beuys e Giuseppe Penone: Aproximações Entre Arte e Política. PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG, v. 3, n. 6, p. 38-48, 2013.

CALÁBRIA, Querles de Paula Alves. DO MÁRMORE DE MINAS AO AÇO DO MUNDO: BREVE TRAJETÓRIA DO ESCULTOR DARLAN ROSA.Olhares & Trilhas, 2011.

FORTUNA, Marlene. Século XXI: a arte como fetiche na sociedade do pós-humano. Sem data definida. Mimeo.

GALLWITZ, Klaus. Homem com esculturas de feltro. Guia das artes São Paulo, v.20, n.6, p. 12, jun.-jul. 1992.

GOLDSTEIN, Ilana. Reflexões sobre a arte" primitiva": o caso do Musée Branly. Horizontes Antropológicos, v. 14, n. 29, p. 279-314, 2008.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. Edições Loyola, 2005.

KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-conceitual à pós-moderna. Novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

MAIDANA, Eduardo Horst. Como determinar a amperagem da solda. (2014). Disponível em: < http://www.ehow.com.br/determinar-amperagem-solda-como_19105/> Acesso em 15 ago 2014.

MORAES, Rosana Eulâmpio de. A poética da escultura: estudos do uso da argila na arte-educação. 2013.

34

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1993.

PROENÇA, Graça. História da arte. São Paulo: Àtica, 2007.

SAFAR, Gisele Hissa. Artes visuais. 2006. Disponível em: <http://ptscrib.com/doc/80800808/1/curso-artes-visuais.html> Acesso em 20 mar 2014.

SENAI. DR. PE. Tecnologia de Solda – Processo Eletrodo Revestido. Recife, SENAI.PE/DITEC/DET, 1998.

SEVCENKO, Nicolau. Configurando os anos 70: a imaginação no poder e a arte nas ruas. Anos 70: trajetórias, p. 13-24, 2006.

SILVA, Daniele Nunes Henrique; MORAES, Rodrigo. Dimensões de um tempo contemporâneo-neoliberal: modos de configuração da experiência criativa na sala de aula- a situação do Estado do Rio de Janeiro. 2007.

SOARES, Ilka de Araújo. Arthur Bispo do Rosário a arte bruta ea propagação na cultura pós-moderna. Psicologia: ciência e profissão, v. 20, n. 4, p. 38-45, 2000.

TISDALL, Caroline. Joseph Beuys. Thames and Hudson, 2008.

TOLOSA, Erasmo M. Castro. Escultura de sucata de ferro. Rev. Comum. & Artes, v. 20, n. 32, p. 87-90, set./dez., 1997.

UNGER, Nancy Mangabeira. O encantamento do humano: ecologia e espiritualidade. Edições Loyola, 1991.

VICINI, Magda. A arte de Joseph Beuys: pedagogia e hipermídia. São Paulo: Ed. Mackienzie, 2006.

VICINI, Magda Salete. Arte de Joseph Beuys: pedagogia e hipermídia.Comunicação & Educação, v. 14, n. 1, 2009.