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Tão Bons, tão fiéis e honrados vassalos” – A elite açucareira, os valores barrocos e as celebrações públicas em Pernambuco (Sécs. XVII E XVIII) Dra. Kalina Vanderlei Silva Universidade de Pernambuco Introdução – Barroco & Sociedade Entre a segunda metade do século XVII e as últimas décadas do século XVIII, o ano em núcleos urbanos açucareiros como Olinda e Recife era marcado por diversos festejos realizados em praças e ruas. Tais festejos tinham em comum o caráter dirigis- ta que lhes era imposto, sendo determinados e controlados pela Igreja Católica e pela Coroa portuguesa. Seus contemporâneos os chamavam de festas, mas seu aspecto ritualizado, e sua forte vinculação com o religioso leva-nos a defini-los como cerimô- nias. Seja como for, esses festejos cerimoniais nas vilas do açúcar tiveram importante papel na definição do imaginário dominante nas mesmas, um imaginário criado e difundido pela elite açucareira. Ao nos debruçarmos sobre as festas barrocas elaboras pela elite açucareira nas vilas da zona canavieira de Pernambuco colonial, estamos observando tal elite enquanto grupo social e sua interação com a sociedade urbana canavieira. As fes- tas públicas são entendidas, assim, como mecanismos de imposição de valores e práticas culturais da elite açucareira sobre o meio urbano como um todo. Tais festas podem ser classificadas em festas das irmandades leigas, promovi- das por diferentes grupos sociais, dependendo das irmandades, e festas e cerimô- nias públicas promovidas pelos Senados das Câmaras, dominadas pela elite açuca- reira. Presentemente trabalharemos o segundo tipo, o mais documentado, analisando a correspondência administrativa entre câmara de Olinda, câmara do Recife, bispado de Olinda e governo de Pernambuco e o Conselho Ultramarino, entre 1654 e 1790, pertencente ao acervo do Arquivo Histórico Ultramarino. 1 1 Toda a documentação manuscrita aqui citada pertence ao AHU – Arquivo Histórico Ul-

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Tão Bons, tão fiéis e honrados vassalos” – A elite açucareira, os valores barrocos

e as celebrações públicas em Pernambuco (Sécs. XVII E XVIII)

Dra. Kalina Vanderlei SilvaUniversidade de Pernambuco

Introdução – Barroco & Sociedade

Entre a segunda metade do século XVII e as últimas décadas do século XVIII, o ano em núcleos urbanos açucareiros como Olinda e Recife era marcado por diversos festejos realizados em praças e ruas. Tais festejos tinham em comum o caráter dirigis-ta que lhes era imposto, sendo determinados e controlados pela Igreja Católica e pela Coroa portuguesa. Seus contemporâneos os chamavam de festas, mas seu aspecto ritualizado, e sua forte vinculação com o religioso leva-nos a defini-los como cerimô-nias. Seja como for, esses festejos cerimoniais nas vilas do açúcar tiveram importante papel na definição do imaginário dominante nas mesmas, um imaginário criado e difundido pela elite açucareira.

Ao nos debruçarmos sobre as festas barrocas elaboras pela elite açucareira nas vilas da zona canavieira de Pernambuco colonial, estamos observando tal elite enquanto grupo social e sua interação com a sociedade urbana canavieira. As fes-tas públicas são entendidas, assim, como mecanismos de imposição de valores e práticas culturais da elite açucareira sobre o meio urbano como um todo.

Tais festas podem ser classificadas em festas das irmandades leigas, promovi-das por diferentes grupos sociais, dependendo das irmandades, e festas e cerimô-nias públicas promovidas pelos Senados das Câmaras, dominadas pela elite açuca-reira. Presentemente trabalharemos o segundo tipo, o mais documentado, analisando a correspondência administrativa entre câmara de Olinda, câmara do Recife, bispado de Olinda e governo de Pernambuco e o Conselho Ultramarino, entre 1654 e 1790, pertencente ao acervo do Arquivo Histórico Ultramarino.1

1 Toda a documentação manuscrita aqui citada pertence ao AHU – Arquivo Histórico Ul-

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Um primeiro passo para a compreensão do papel dessa elite na definição de um sistema de valores barroco através dos festejos cerimoniais é a discussão da relação entre o conceito de barroco e a sociedade colonial.

Apesar da controvérsia em torno do conceito de barroco e seu emprego como ferramenta de análise de estruturas culturais e sociais, a leitura da documentação referente à sociedade açucareira da América portuguesa entre as últimas décadas do século XVI e o século XVIII, permite-nos crer que tal conceito, apesar de sua artificialidade, possibilita uma análise diferenciada, focalizando ângulos ainda pouco percebidos, e trazendo uma compreensão mais ampla dos significados de cerimônias públicas e costumes da elite açucareira.

Nesse sentido, trabalhamos com o conceito de barroco como definido por José António Maravall para a Espanha do século XVII: um artifício que sintetiza os ele-mentos interligados das estruturas sociais, culturais, econômicas e políticas desse momento histórico específico.� E apesar de Maravall considerar sua estrutura histó-rica barroca como uma fase do desenvolvimento do Estado moderno, seu conceito integra o sistema de valores dominante na sociedade espanhola seiscentista com imaginário, economia e relações sociais.

Mas o conceito de Maravall não responde à condição histórica da sociedade açucareira colonial. A obra de Eduardo D’Oliveira França, nesse ponto, comple-menta o conceito, enfatizando especificamente a mentalidade hidalga portuguesa entre o quinhentos e o seiscentos, e a construção de um sistema de valores a partir dessa mentalidade.�

A partir desses autores, e da análise das fontes e do contexto histórico da so-ciedade açucareira colonial, construímos uma adaptação do conceito de barroco para a América portuguesa açucareira, denominado barroco mestiço, conceito com o qual recortamos um sistema de valores. Este engloba imaginário, valores, práticas e costumes, e foi elaborado pela elite açucareira em sua busca de adapta-ção ao sistema de valores da fidalguia ibérica. No barroco mestiço prepondera a reconstrução da ética, imaginário e práticas políticas da fidalguia ibérica, a partir da condição de vida colonial. Nesta, à estrutura sócio-econômica da escravidão soma-se o imaginário aristocrático e estamental do Antigo Regime, definindo assim a cultura da elite açucareira.4

tramarino, Lisboa,Portugal, mas foi consultada a partir de suas cópias existentes na UFPE. www.liber.ufpe.br/ultramar� MARAVALL, José António. A Cultura do Barroco – Análise de uma Estrutura Histórica. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial. 1996.� FRAÇA, Eduardo D’Oliveira. Portugal na Época da Restauração. São Paulo: Hucitec. 1996.4 A discussão sobre o conceito de barroco mestiço pode ser vista em SILVA, Kalina Vander-lei. O Barroco Mestiço: Sistema de Valores da Sociedade Açucareira da América Portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Mneme – Revista de Humanidades. Vol. 6, n. 7, jun/jul �005. UFRN. www.seol.com.br/mneme

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Apesar de todo o processo de mestiçagem e trocas culturais sofrido pelo imagi-nário e valores fidalgos ao serem transplantados para a sociedade açucareira, a elite açucareira insistiu em seu predomínio, travando uma luta de representações com os diversos grupos sociais, luta essa que definiu as nuances do seu sistema de valores.5

Neste artigo nosso personagem é a elite açucareira, e nossa trama a função das cerimônias e festejos públicos na definição dos valores da elite açucareira como domi-nantes na sociedade açucareira colonial.

A elite açucareira e o Barroco

A observação da elite açucareira requer uma abordagem de História Social com viés político, e de História Cultural, com ênfase em imaginário. Isso porque tal elite se constitui como um grupo social que dominou a cena política da sociedade açuca-reira colonial, através dos senados das câmaras, e participou de uma luta de repre-sentações para a definição do domínio sobre o cenário cultural, possuindo vanta-gens, visíveis em sua relação com as normas culturais impostas por Igreja e Estado.

Consideramos a elite açucareira como um grupo social bem definido. Senho-res de engenho e lavradores de cana, latifundiários monocultores de cana-de-açúcar com alinhamentos políticos coesos, que se contrapunham às tentativas de centralização de poder da Coroa portuguesa.6 Até o estabelecimento da câ-mara do Recife em 1711, esta elite dominou a participação política colonial na administração das capitanias do norte do Estado do Brasil.

A elite açucareira de Pernambuco, desde o XVI, habitava principalmente a vila de Olinda, mas também Igarassú, Serinhaém, Cabo, Tracunhaém. Nelas exerciam seu poder sobre a sociedade, impondo suas normas culturais a partir das câmaras, mas também das Irmandades do Santíssimo Sacramento e da Santa Casa de Miseri-córdia, as mais prestigiadas das confrarias, que ditavam regras às irmandades lei-gas. Nessas instituições, a elite monopolizava as festas públicas e cerimônias como o viático e Corpus Christi, transformando procissões, cerimônias e festas em veícu-los de divulgação e imposição de seus valores sobre a população.

Os dois principais pólos políticos e econômicos da sociedade açucareira, des-de fins do século XVI, eram a cidade de Salvador, na área canavieira do Recôncavo baiano, e a vila (cidade em 1676) de Olinda, no litoral pernambucano. As estrutu-ras sociais de ambas as subáreas da sociedade canavieira pouco ou nada diferiam,

5 A luta de representações é entendida aqui pela ótica de CHARTIER, Roger. História Cul-tural. Lisboa, Rio de janeiro: Difel/Bertrand Brasil. 1988; e a mestiçagem, da perspectiva GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das Letras. �001.6 Para a definição da elite açucareira Cf. ACIOLI, Vera Lúcia. Jurisdição e Conflito – Aspectos da Administração Colonial. Recife: ed. UFPE. 1997; FERLINI, Vera Lúcia. Terra, Trabalho e Poder – O Mundo dos Engenhos no Nordeste Colonial. São Paulo: Brasiliense. 1988.

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mas o alinhamento político de suas elites quedou-se bastante diferenciado ao lon-go do século XVII.

O estabelecimento de Salvador como sede do governo geral do Estado do Brasil, em 1548, permitiu a constituição de um alinhamento político da elite açu-careira do Recôncavo, com o governo geral e as representações administrativas régias. Mais tarde, a partir da segunda metade do século XVII, a migração de reinóis que passaram a exercer a função de mercadores foi aceita pela elite baiana que, através de casamentos, interligou os dois grupos sociais.

A capitania de Pernambuco, por sua vez, desde seu primeiro donatário cons-truiu práticas políticas onde a elite canavieira se opunha às representações admi-nistrativas régias. O desenvolvimento da economia açucareira em Pernambuco, no fim do século XVI, levou seu donatário a pleitear, e conseguir, maior autonomia com relação ao governo geral da Bahia. A distância política entre as duas elites aumentou com a conquista de Pernambuco pela WIC, a companhia de comércio holandesa, em 16�0. Vinte e quatro anos de governo holandês desenvolveram ainda uma intensa atividade comercial na povoação do Recife, que sobreviveria ao próprio período holandês. E diferente da elite baiana, a elite açucareira pernambu-cana não reagiu com assimilação à migração de reinóis e seu enriquecimento, mas com conflito aberto, a chamada guerra dos mascates.

Todavia, se a elite açucareira de Pernambuco sofreu um revés com a destrui-ção da vila de Olinda pela WIC na década de 16�0, o movimento revoltoso que por fim levou à retomada de Pernambuco e territórios adjacentes pela Coroa portu-guesa, encabeçado por ela, promoveu um incremento de seu poder político e de seu poder de barganha nas práticas políticas régias. E nesse contexto, a prática das coroas ibéricas de concessão de mercês por serviços militares prestados possibili-tou o aumento do prestígio da elite açucareira de Pernambuco.

As mercês pedidas quase sempre se referiam a títulos. Comprovando a prepon-derância dos valores fidalgos entre essa elite. Esse período, a segunda metade do século XVII, marca o início de nossa documentação sobre as festas barrocas cama-rárias, e o apogeu do barroco açucareiro. Nele, entre as últimas décadas do XVII e as últimas décadas do XVIII, o grande cenário para as festividades barrocas foi a cidade de Olinda, sede da elite açucareira, que só parece ter sido suplantada pelo Recife no fim do século XVIII.

A vila de Olinda foi fundada no século XVI por Duarte Coelho, e já na segun-da metade deste século conheceu um rápido crescimento urbano, visível, por exemplo, nas atividades da visitação do Santo Ofício e pelas cartas de Duarte Co-elho ao rei. Quando o padre Fernão Cardim citou a pompa dos senhores e suas damas em Olinda do século XVI, estava descrevendo um dos processos de aquisi-ção de prestígio pela elite açucareira:

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“A gente da terra é honrada: há homens muito grossos de 40, 50, e 80 mil cruzados de seu: alguns devem muito pelas grandes parcelas que têm com a escravaria de Guiné; que lhe morrem muito, e pelas demasias e gastos gran-des que têm em seu tratamento. Vestem-se, e as mulheres e filhos de toda a sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisto têm grandes exceções. As mulheres são muito senhoras, e não muito devotas, nem freqüentam as mis-sas, pregações, confissões, etc...”7

Perceptível aqui não é apenas a riqueza da elite, mas os gastos acima das pos-ses da mesma. As dívidas mencionadas, e que em períodos posteriores geraram grandes conflitos políticos, já nesse momento advinham da necessidade não ape-nas de possuir escravos, um requisito da economia local, mas da necessidade de se portar com luxo.

Com a restauração da capitania à jurisdição portuguesa, iniciou-se uma que-rela entre governadores e câmara de Olinda para definir a sede da capitania, termi-nando com a permanência da sede da capitania em Olinda, mas com o aumento do poder das elites comerciais do Recife. E foi esse crescimento, não apenas em volume de comércio, mas em população, que fomentou as disputas políticas entre Olinda e Recife entre os séculos XVII e XVIII.

Parte significativa dessa disputa girou em torno dos senados das câmaras, visto que a participação nestes garantia, entre outras coisas, acesso permanente aos meios para a manutenção do prestígio social. Não apenas pela natureza oficial do cargo em si, mas pelas possibilidades que as muitas cerimônias públicas e símbolos em torno das câmaras garantiam de tornarem mais visíveis seus portadores para um público de espectadores. As cerimônias e símbolos das câmaras municipais, nessa perspectiva, funcionavam como um palco e seus acessórios em uma peça barroca que afamava seus personagens e atores principais: os oficiais da câmara, membros da elite açucareira.

Nesse cenário, integrar as câmaras municipais era não apenas participar do comando político da região, mas ter acesso a diversas fontes seguras de aquisição de prestígio, visto inclusive que, através das câmaras, a elite estava em contato com a Coroa, podendo mostrar-se fiel e solicitar mercês.

Nesse contexto, onde era preciso demonstrar prestígio para obtê-lo, a cidade assu-mia a função de um grande palco. A elite fornecia os atores e os papéis eram selecio-nados nas câmaras, nas irmandades, nas funções públicas em geral. As procissões, as festas públicas, cerimônias de posse, missas solenes, eram os momentos privilegiados para a elite se mostrar. E a estrutura urbana, assim, apoiava tal comportamento.

7 CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil. Col. Brasiliana. São Paulo, companhia Editora nacional. 1978. p. �01.

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Celebração pública nas vilas de Pernambuco

“Oficiais da câmara da capitania de Pernambuco. Eu El Rei vos envio muito saudar; viu-se a vossa carta de 5 de julho deste ano, em que dais conta das festas que essa capitania celebrava ao nascimento da Sereníssima Infanta, minha muito amada e prezada filha. E parecia-me agradecer-vos as demons-trações de festa com que vos houveste nesta ocasião, e a [ ] pareceu de tão bons, fiéis e honrados vassalos, que não faltam a mostrar nela o vosso amor, por ser tanto gosto para esse reino e de todos os seus domínios.”�

Nesta carta régia, dirigida aos oficiais da Câmara de Olinda, a celebração de festas extraordinárias na capitania de Pernambuco aparece como um fato corri-

8 REGISTRO da Carta de S. Majestade para a câmara, de agradecimento pelas festas que fizeram no nascimento da Infanta. 1�/10/1699. Livro de registro de Cartas, Provisões e ordens régias da Câmara de Olinda. Lº 1º, fl. 95. Arquivo Público Jordão Emerenciano – Pernambuco (APEJE).

Ex-voto de ação de graças aos santos Cosme e Damião pela proteção da vila de Igarassíu contra a peste em 16�5. Pintura sobre madeira. 1729. Pinacoteca do convento franciscano de Igarassú.

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queiro nesse fim do XVII. Além disso, a fórmula empregada na carta ‘tão bons, fiéis e honrados vassalos’ nos remete à importância que a própria elite se atribuía en-quanto súditos do rei português. Importância sustentada e reafirmada pelas festas de ação de graças pela Restauração.

As cerimônias públicas realizadas pelas câmaras em Olinda, Igarassú e Recife em geral seguiam o calendário festivo do Reino, tanto para as festas anuais quanto para as extraordinárias. Havia uma marcante exceção: a festa de ação de graças pela restauração da Capitania de Pernambuco. Tal festejo, realizado em Olinda e Igaras-sú, era marcadamente regional, e tornou-se data comemorativa para a elite do açúcar desta capitania. Foi elaborado por essas elites a partir do modelo das festas cerimo-niais da monarquia, e passou a fazer parte do calendário de festas anuais de Pernam-buco, com a aprovação da Coroa. A criação de uma festa nova e específica da capi-tania, realizada nas vilas mais importantes para a ‘nobreza da terra’ demonstra o grau de adaptação do padrão festivo ibérico, e dos valores barrocos, por essa elite. Tal festa chegou a ser uma das mais significativas para a vila de Olinda.

As festas anuais, com exceção da festa da Restauração, eram celebradas com rituais religiosos, missas solenes, sermão e exposição do Santíssimo Sacramento, talvez por serem também, ou primeiramente, novamente com exceção da festa da Restauração, celebrações de datas santificadas. Eram elas a procissão de Corpus Christi, a festa do glorioso Mártir São Sebastião, e a festa do anjo custódio do Reino. Já as festas extraordinárias aparecem menos como celebrações sacras ritualizadas, e mais como festividades públicas com a participação popular permitida dentro da estrutura hierárquica barroca. Nessas comemorações, prevaleciam as luminárias, repiques de sinos, pregões públicos e mesmo danças das corporações de ofício. No período por nós estudado, festas extraordinárias foram promovidas para celebrar armistícios e casamentos régios, por exemplo.

As festas públicas camarárias tinham como função primeira a reafirmação do poder do rei sobre os distantes súditos coloniais, mas essa função foi adaptada pela elite colo-nial, e as festas passaram também a servir para a definição das hierarquias estamentais, confirmando o status de autoridades e elites, e apresentando-os ao povo espectador.

Esses festejos funcionavam como espaço onde as hierarquias socialmente vigen-tes eram confirmadas. Cada festa pública tinha sua geografia estabelecida minucio-samente. Os espaços nas procissões, nos sermões e cerimônias, nas igrejas e nas danças das corporações eram cuidadosamente arranjados de forma a que indicassem aos espectadores o status de seu ocupante. Os símbolos dessas cerimônias eram vi-tais, nesse contexto, pois o prestígio poderia ser estabelecido pelo lugar ocupado por um personagem em relação a um desses símbolos: o pálio e o Santíssimo Sacramen-to são os melhores exemplos.9

9 Um estudo mais detalhista sobre as cerimônias barrocas camarárias e seus significados simbólicos, atribuídos pelo imaginário da elite açucareira, pode ser viso em SILVA, Kalina Vanderlei. Cerimônias Públicas de Manifestação de Júbilo: Símbolos Barrocos e os Signifi-cados Políticos das Festas Públicas nas Vilas Açucareiras de Pernambuco nos séculos XVII

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Segundo Emílio Lopes, as festas públicas são momentos propícios para o estudo das representações políticas de uma sociedade, visto a interação dos sujeitos históri-cos em seu interior. Ele considera que as festas no século XVIII tinham uma função pedagógica de instituição da memória, cristalizando uma série de representações sobre o passado. Elas eram lugares propícios para o ato de ‘co-memorar’, ou seja, compartilhar memória, selecionando-se o passado que se queria recordar.10 E é nesse sentido que entendemos a festa de ação de graças pela restauração da capitania de Pernambuco. Consagrada pela elite açucareira como momento da instituição da me-mória dos feitos heróicos dessa elite, tal festejo reafirmava o status da elite, mas tam-bém constituía sua memória como a memória oficial dessa sociedade.

Os festejos ao tomarem as ruas, transformavam-nas, dando novos significados a esses espaços públicos. No caso das festas camarárias em Pernambuco, podemos ressaltar o uso intensivo das luminárias nas vias públicas, como forma de redimen-sionar simbolicamente o espaço urbano, seguindo os significados a ele atribuídos pelas câmaras e Coroa. Essa iluminação festiva das ruas, sempre presente nas festas públicas, representa o melhor exemplo da transformação da cidade em um palco barroco e do povo em espectador.

Na ilustração acima, pintura em madeira pertencente ao acervo da pinacoteca do Convento Franciscano de Igarassú, vemos representações do início do século XVIII, das vilas de Igarassú e Recife, e da cidade de Olinda. Aqui percebemos a estrutura urbana mais densa e populosa do Recife, em comparação com os dois núcleos mais antigos, da elite açucareira.

A representação de Olinda, especificamente, apesar de não assinalar os prin-cipais espaços das festividades barrocas, a Câmara e a Igreja da Sé, permite-nos ver a torre do senhor, antiga habitação de Duarte Coelho, que se destaca na cena e que assinala a área mais alta da cidade, próxima da sé e da câmara. Dessa área, no topo, partiam as procissões e cerimônias promovidas pela câmara de Olinda. Nes-sa área, o Colégio Jesuíta, o Senado da Câmara, a Igreja da Sé eram os lugares re-lacionados às cerimônias públicas e à busca de prestígio da elite.

Os documentos sobre as festas anuais, que deveriam ser comemoradas nas vilas mais importantes do Império seguindo o calendário festivo da Coroa, nos su-gerem que em torno dessas festas, e não das extraordinárias, estavam as maiores disputas pelos espaços de prestígio da sociedade açucareira em Pernambuco. A festa de Corpus Christi, por exemplo, aparece na documentação como a principal manifestação cultural das clássicas disputas políticas entre Olinda e Recife.

No século XVIII essa disputa desembocou em uma tentativa dos oficiais do Senado de Olinda de impedir que a câmara do Recife celebrasse sua própria festa de Corpo de Deus, em 17�9. Sobre isso, escreveram os oficiais recifenses ao rei:

e XVIII. In SILVA, Kalina Vanderlei (org.). Ensaios Culturais sobre a América Açucareira. Recife: GEHSCAL/Instituto Ouricuri. �006.10 LOPES, Emílio Rodrigues. Festas Públicas, Memória e Representação – Um Estudo sobre as Mani-festações Públicas na Corte do Rio de Janeiro, 1�0�-1�22. São Paulo, USP. �004. p. 14, 15.

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“Esta vila que Vossa Majestade pela sua real grandeza foi servido levantar de povoação ao nobre título de vila é separada da cidade de Olinda mais de lé-gua como já constou por medição que se fez pelo juiz eclesiástico a requeri-mento das confrarias dessa mesma vila para se isentarem de comparecer as funções a que eram chamadas pelo juízo eclesiástico a cidade de Olinda, e com efeito por virtude da medição ficaram isentas a dita comparencia [sic] por sentença, por constar estão fora de légua, e nestes termos querem estes moradores e clero, e o mesmo [ ] por honra de Deus, Serviço de Vossa Ma-jestade e consolação sua fazer a procissão de Corpo de Jesus na mesma vila no dia próprio da mesma celebridade e porque o Ilustríssimo Bispo lha pode-rá impedir que se celebre no mesmo dia que se festeja na cidade. Rogamos a Vossa Majestade em nome de todo este povo nos queira conceder esta graça fazendo-a saber ao Ilustríssimo Bispo no la empeça impida [sic].”11

Em 17�9, a vila do Recife era um núcleo urbano economicamente o centro da capitania, mas ainda dependente politicamente da cidade de Olinda, e possuidor de menos privilégios e regalias que esta. Ou seja, sua elite perdia em questões de prestígio. E nesse aspecto, tanto a Coroa quanto a Igreja ainda se mantinham favo-recendo a ‘nobreza da terra’ olindense constituída pelos senhores de engenho. Neste episódio de 17�9, o bispado, sediado em Olinda, se postou claramente a favor dessa elite, procurando inclusive impedir a realização da festa de Corpus Christi no Recife. A justificativa para tanto quem nos dá são os próprios oficiais da Câmara olindense, em 1746. Comentam eles, dirigindo-se ao rei, a solicitação dos recifenses de fazerem as procissões “no mesmo dia, em que se faz este Senado nesta cidade; como cabeça da Comarca, e onde se acha a dita Catedral”. Segundo os oficiais de Olinda, a Câmara do Recife queria fazer as procissões no mesmo dia de Olinda, para que o:

reverendíssimo bispo os não obrigar a vir naquele dia acompanhar a dita procissão a cidade e para que a lhe apresente se lhes não concedeu com atenção do prejuízo que resulta a procissão desta cidade: [em vista disso] aquele senado enviou este requerimento simulado e [subterfugiando] a fim de ter para escudo a concessão de Vossa Majestade; (....) temos em que nos pa-receu justa esta representação pela inteligência do paliado zelo, com que se pretende disfarçar a malicia introduzida naquele requerimento, não sendo a nossa intenção obstar a que se faça a dita procissão de Corpo de Deus naque-la vila em outro dia, que não seja o em que se faz nesta cidade, nem menos as outras contanto que não sejam com prejuízo deste senado e das consigna-ções concedidas por Vossa Majestade (...) porque contrario se seguira infali-

11 CARTA dos Oficiais da Câmara do Recife ao rei [D João V], sobre se realizar a procissão de Corpo de Deus no Recife devido à isenção do seu povo e clero de comparecerem à de Olinda. Arquivo Histórico Ultramarino – Lisboa. AHU_ACL_CU_015, cx. �9, D. �499. Dis-ponível no Projeto Ultramar -UFPE: www.liber.ufpe.br/ultramar.

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velmente para esta tão principal procissão um total deterioramento por não haverem nesta cidade os clérigos necessários para uma procissão (...).

Afirmavam ainda que corriam o risco de que seus moradores acudissem à procissão recifense, com expectativa de que esta fosse “mais considerável” que a olindense. Por fim, temiam os “outros muitos inconveniente que omitimos: o que posto espera este senado na real proteção de Vossa Majestade [dê] remédio para que cidade e senado não sejam privados das regalias, leis, liberdades, foros, isen-ções e honra com que se exulta e se conserva a tantos anos.”1�

Esta carta retrata uma apaixonada reclamação de Olinda, solicitando ao rei que este indeferisse o requerimento do senado do Recife para realizar a procissão de Corpos Christi seguindo o calendário festivo português. Os oficiais de Olinda alegavam que o bispo já vetara a referida festa, exatamente como o senado do Re-cife previra em 17�9, e acusava os oficiais do Recife de malícia ao procuraram a proteção real.

Caso a festa de Corpus Christi, uma das mais importantes no calendário anual, fosse realizada no Recife no dia propício, o que equivalia a ser realizada no mesmo dia da festa em Olinda, a festa olindense perderia em pompa, pois o número de participantes, os clérigos, por exemplo, diminuiriam sem os recifenses. E os pró-prios habitantes de Olinda talvez preferissem assistir à festa recifense, visto que sendo essa vila maior, poderia organizar uma festa mais vistosa.

Se a festa de Corpus Christ era uma oportunidade para os comerciantes do Recife, a festa de ação de graças pela Restauração de Pernambuco era uma cele-bração aos feitos gloriosos da elite açucareira. Promovida pela Câmara como festa anual, ela adaptava as fórmulas cerimoniais da Coroa para um evento de caráter local, com significados específicos para a região.

Os principais atores da restauração da capitania em 1654 foram a elite açuca-reira de Pernambuco, associada a outros grupos sociais, como os escravos alistados na tropa de Henrique Dias, e os terços dos potiguar sob o comando de Felipe Ca-marão. No entanto, apesar da grande importância militar de henriques e camarões, a restauração foi uma empreitada da elite açucareira, que recebeu apoio oficial da Coroa portuguesa apenas em seus momentos finais.

A menção mais antiga até agora encontrada sobre a dita festa data de 1690, e encontra-se em um requerimento feito pelo tesoureiro da Câmara de Olinda, pe-dindo aos oficiais da câmara que passassem o mandado das despesas das festas religiosas promovidas naquele ano. Mas as referências mais ricas até agora pesqui-sadas datam da década de 17�0, e representam novas querelas enfrentadas pela

1� CARTA dos oficiais da câmara de Olinda ao rei [d João v], sobre a pretensão da câmara de Recife de fazer a procissão do corpo de deus no mesmo dia em que se faz em Olinda. AHU_ACL_CU_015, cx 6�, D. 5�86. Projeto Ultramar.

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elite açucareira para manter suas prerrogativas frente ao surgimento de grupos so-ciais concorrentes.

Em julho de 17�5, o rei respondeu uma carta do governador de Pernambuco sobre reclamação feita pelos oficiais da Câmara de Olinda. Estes faziam queixa de que a festa de ação de graças pela Restauração, que se fazia todos os anos por or-dem régia, com sermão na Sé de Olinda e exposição do Santíssimo Sacramento e para a qual deveriam comparecer todas as autoridades régias na capitania, gover-nador, ministros da justiça e fazenda, além dos terços de Olinda e Recife, que de-veriam marchar na ocasião, neste ano de 17�5, contou apenas com a presença dos oficiais da câmara de Olinda.

O governador, então D. Manoel Rolim de Moura, respondeu a isso afirmando que “sempre assisti e os ditos ministros em a dita festa, como também todo o terço inteiro da cidade marcha para a sé como é estilo, e não tenho notícias que o terço do Recife se achasse também em outros anos na tal celebridade, como afirmam os ditos oficiais”.1�

E assim ficou a palavra do governador contra a dos oficiais da câmara de Olinda. Mas a questão não foi resolvida, pois em 17�6, um ano depois, a câmara de Olinda escreveu ao rei novamente sobre a questão, pedindo que, como já haviam feito seus antecessores sem sucesso, na festa da Restauração, realizada todo dia �6 de janeiro, marchassem os dois terços, o de Olinda e o de Recife, com seus mestres de campos, além do terço dos henriques com mestre de campo, e que todos recebessem pólvora para uma salva em memória do dia. Além disso, pediam que o governador, ministros e oficiais, e todas as pessoas da nobreza dentro de duas léguas da cidade de Olinda fos-sem obrigados a comparecer à festa.14

Nessas cartas podemos observar a organização da festa da Restauração: celebra-ção religiosa na Sé de Olinda, com exposição do Santíssimo Sacramento, e presença das autoridades burocráticas, além de marcha do terço de Olinda na celebração. Mas os oficiais da Câmara não se contentavam com esse cerimonial e pediam ao rei que ordenasse a obrigatoriedade da presença de todas as pessoas de maior qualidade nas proximidades da cidade, além da presença do terço do Recife e dos henriques, o que deveria dar mais pompa à cerimônia. Uma cerimônia, não esqueçamos, em memória da vitória da elite açucareira.

Interessante aqui observar que essa é a única festa pública camarária das vilas pernambucanas que menciona explicitamente a participação popular. Sabemos

1� CARTA do governador da capitania de Pernambuco ao rei sobre a ordem para que todos os ministros, oficiais de justiça e fazenda, governador, senado e todos os terços de recife e Olinda participem dos festejos da Restauração. AHU_ACL_CU_015, cx, �1, D. �849. Per-nambuco, 18 de julho de 17�5. Projeto Ultramar. 14 CARTA dos oficiais da câmara de Olinda ao rei, d. João V, sobre a ordem para que na festa de ação de graças de �7 de janeiro, marchem os terços e compareçam o governador, ministros e oficiais. AHU_ACL_CU_015, cx, ��, D �950. Projeto Ultramar.

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por documentos estudados para outros contextos,15 que as corporações de ofício costumavam participar compulsoriamente das festas régias e camarárias, mas não encontramos dados para tal em Pernambuco. Todavia, a festa de restauração da Capitania contava com a obrigatória participação dos terços burocráticos e dos homens pretos, representando grupos sociais livres de diferentes condições econô-micas e origens étnicas.16

Apesar dos problemas, a festa da restauração continuou importante pelo menos até a década de 1740. Nesse período, a Câmara de Igarassú, também da elite açucarei-ra, buscou implantar a sua versão da festa:

“Prostrados aos benignos pés de Vossa Real Majestade, que Deus guarde, como mais leiais e [ ] vassalos, damos conta a Vossa Majestade, que sendo essa vila de Santos Cosme e Damião de Igarassú a mais antiga desta capitania de Pernambuco, e fazendo na cidade de Olinda no dia vinte e sete de janeiro, anualmente ação de graças a Deus Nosso Senhor por ser o dia em que se restaurou esta terra do poder do holandês, nesta vila se não faz ato algum de lembrança, e parecendo ser necessário, fazermos a mesma ação de graças no dito dia, para lembrar aos presentes, o que fielmente obraram os nossos ante-passados; Demos conta a Vossa majestade, que sendo servido, nos mandar ordem para a podermos fazer, com a mesma despesa, que se costuma fazer nesta vila a do Anjo Custódio, paga das sobras do Concelho.” 17

Essa carta nos mostra a importância da festa da Restauração como monumen-to de construção de memória para os senhores de engenho. A década de 1740 viu o crescimento do Recife e sua elite comercial e a decadência da elite açucareira. Razão a mais para que esta intensificasse a celebração de suas glórias passadas, criando uma nova festa da Restauração, em Igarassú.

Ao observarmos as festas extraordinárias e anuais promovidas pelas Câmaras de Olinda, Recife e Igarassú, sobressaem-se suas funções enquanto construtoras de me-mória, mas também de privilégios; como mantenedoras do status quo das elites, e como momentos privilegiados para a demonstração pública desse status. Tais funções dependiam de rígidas definições nos papéis sociais de cada personagem no cerimo-

15 LARA, Silvia Hunold. Significados Cruzados: Um Reinado de Congos na Bahia Setecentis-ta. In CUNHA, Maria Clementina. Carnavais e Outras F(r)estas – Ensaios de História Social da Cultura. Campinas: Unicamp. �00�. pp. 71-100. 16 Para a inserção sócio-cultural dos militares na sociedade açucareira, ver SILVA, Kalina Vanderlei. O Miserável Soldo & A Boa Ordem da Sociedade Colonial. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife. �001. 17 CARTA dos oficiais da câmara de Igarassú ao rei, d. João V, pedindo ordem para fazer ação de graças pela Restauração da capitania de Pernambuco do poder dos holandeses, como se faz anualmente em Olinda, no dia �7 de janeiro. AHU_ACL_CU_015, cx, 59, D 5054. Projeto Ultramar.

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nial, e do estabelecimento bem definido da geografia política dos espaços de privilégio nessas festividades.

A cidade barroca, nesse contexto, existia com uma função muito específica de palco para a elite. Essa precisava se espaço para se mostrar: os valores do barroco incluíam a ostentação e o prestígio, e esse também precisava ser o mais público possível. Mesmo com a decadência de Olinda, e o crescimento do Recife, suas ruas continuam sendo usadas como palco para essa elite. Conseguindo mesmo impedir as cerimônias do Recife.

As festas e cerimônias públicas em Pernambuco, eram lugares também onde a representação que a elite açucareira possuía da sociedade açucareira colonial ficava visível. Os festejos eram totalmente hierarquizados, com a participação das autorida-des em nível decrescente, e do povo de maneira restrita e planejada. E mesmo apesar da participação popular através de das danças de corporações de ofício, e das mar-chas de terços militares, o povo era percebido/ representado pela elite como espec-tador. Se a representação que a elite construía de si, e que era visível nas cerimônias e festejos, aspirava à universalidade, e se impunha como imaginário dominante, ela não escapava da luta de representações a qual toda sociedade está submetida. As festas surgem assim, nessa perspectiva, como um mecanismo de imposição da visão de mundo da elite sobre os outros grupos sociais do espaço urbano açucareiro.