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“ TAMANQUEANDO NA GEADA: REFLEXÕES SOBRE A EXPERIÊNCIA DO FANDANGO CAIÇARA (DO PARANÁ) EM SALA DE AULA. ” Solano Rodrigo dos Santos (Parfor-Música / UFPR) Introdução: O presente trabalho retrata a pesquisa, a apreciação, a apropriação e a (re)interpretação do Fandango Caiçara, na sua variante paranaense, por estudantes do Ensino Fundamental II, em atividade ligada à disciplina de Artes, da Escola Estadual Bacharel Antônio Alves, em junho de 2016. Tal estabelecimento é situado no bairro Jardim Itaú, localizado no município Itaperuçu, que pertence à Região Metropolitana de Curitiba, o que traz as influências positivas e negativas da capital paranaense, ao mesmo tempo que possui uma identidade cultural com marcas dos costumes interioranos típicos do Vale do Ribeira, região geoeconômica mais carente do Estado, o que gera um conflito de gerações, ora voltado para a intenção da preservação de suas tradições e costumes (e enfrentando sua perda), em conflito com muitos sonhos de consumo e status quo urbanos (muitas vezes, fora do alcance). A referida atividade foi planejada e realizada sob o formato de ‘oficina livre’, em meio a Semana Cultural, período previsto no calendário escolar da maior parte das instituições de ensino público do Paraná, geralmente recomendado pelas secretarias de educação dos municipais e estadual ao longo dos últimos anos. De antemão, a temática é ofertada de acordo com as possibilidades didáticas de cada professor e/ou demanda da comunidade escolar, com foco em propostas cujos conteúdos e metodologias permitam ações mais práticas e interativas junto aos alunos. Para despertar o interesse dos estudantes, o corpo docente também procurou ofertar diversas opções de atividades, a fim de verificar as predileções dos participantes em potencial, permitindo assim uma escolha em consonância com as aspirações discentes, seguido pelo planejamento, no qual se aprofunda a busca por referências de repertório e por metodologias ligadas aos assuntos escolhidos, e até a eventual aquisição de materiais. Diante disso, e levando em conta as experiências da própria formação de professor de Arte, e a potencial continuidade de aplicação do saber a ser compartilhado, no mês anterior (maio de 2016), foi disponibilizada a alternativa de se cursar a oficina de Pin Hole, (grosso modo, fotografia artesanal), de cunho visual, mediático e laboratorial, geralmente com resultado

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Page 1: TAMANQUEANDO NA GEADA: REFLEXÕES SOBRE A … · social, religioso, simbólico, dessas populações, , para depois ensinar os valores reproduzidos por elas, e não somente um punhado

“ TAMANQUEANDO NA GEADA: REFLEXÕES SOBRE A EXPERIÊNCIA DO

FANDANGO CAIÇARA (DO PARANÁ) EM SALA DE AULA. ”

Solano Rodrigo dos Santos (Parfor-Música / UFPR)

Introdução:

O presente trabalho retrata a pesquisa, a apreciação, a apropriação e a (re)interpretação

do Fandango Caiçara, na sua variante paranaense, por estudantes do Ensino Fundamental II,

em atividade ligada à disciplina de Artes, da Escola Estadual Bacharel Antônio Alves, em junho

de 2016.

Tal estabelecimento é situado no bairro Jardim Itaú, localizado no município

Itaperuçu, que pertence à Região Metropolitana de Curitiba, o que traz as influências positivas

e negativas da capital paranaense, ao mesmo tempo que possui uma identidade cultural com

marcas dos costumes interioranos típicos do Vale do Ribeira, região geoeconômica mais carente

do Estado, o que gera um conflito de gerações, ora voltado para a intenção da preservação de

suas tradições e costumes (e enfrentando sua perda), em conflito com muitos sonhos de

consumo e status quo urbanos (muitas vezes, fora do alcance).

A referida atividade foi planejada e realizada sob o formato de ‘oficina livre’, em meio

a Semana Cultural, período previsto no calendário escolar da maior parte das instituições de

ensino público do Paraná, geralmente recomendado pelas secretarias de educação dos

municipais e estadual ao longo dos últimos anos.

De antemão, a temática é ofertada de acordo com as possibilidades didáticas de cada

professor e/ou demanda da comunidade escolar, com foco em propostas cujos conteúdos e

metodologias permitam ações mais práticas e interativas junto aos alunos.

Para despertar o interesse dos estudantes, o corpo docente também procurou ofertar

diversas opções de atividades, a fim de verificar as predileções dos participantes em potencial,

permitindo assim uma escolha em consonância com as aspirações discentes, seguido pelo

planejamento, no qual se aprofunda a busca por referências de repertório e por metodologias

ligadas aos assuntos escolhidos, e até a eventual aquisição de materiais.

Diante disso, e levando em conta as experiências da própria formação de professor de

Arte, e a potencial continuidade de aplicação do saber a ser compartilhado, no mês anterior

(maio de 2016), foi disponibilizada a alternativa de se cursar a oficina de Pin Hole, (grosso

modo, fotografia artesanal), de cunho visual, mediático e laboratorial, geralmente com resultado

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autoral, e a de Fandango Caiçara, de âmbito musical e coreográfico, oriunda da Cultura Popular,

que se volta à performance coletiva, muitas vezes, aberta.

Com larga maioria, os adolescentes escolheram o Fandango, o que exigiu uma revisão

das vivências pessoais do professor proponente, em meio a essa manifestação cultural, e

fomentou um processo de investigação e reflexão teórica sobre o tema, conforme veremos a

seguir.

Fundamentação Teórica:

Se de modo geral, o termo fandango significa ‘baile’ ou ‘ajuntamento’, via de regra

bem festivo e/ou até ruidoso, e é empregado com o mesmo significado, ou em situações

similares, designando ações ligadas às danças, músicas e/ou festas populares, em diversos

países latino-americanos, várias regiões do Brasil, além da Península Ibérica (Espanha e

Portugal), desde pelo menos o século XV, contudo, para cada local, se refere a manifestações

populares distintas entre si.

Sua raiz etimológica contém controvérsias, uma vez que o vocábulo pode ter origem

do termo “fado, entendido em sentido amplo como canto lírico popular; ou de fidicinare,

traduzido como ‘tocar a lira’. Há ainda uma terceira possibilidade, menos difundida, a de que

viria do árabe funduq, termo usado na Argélia para designar o local em que se faz música”

(IPHAN, 2011, p. 32).

No tocante ao objeto de pesquisa, a vertente que foi estudada e utilizada em sala de

aula, é a que ocorre em meio às populações tradicionais localizadas no litoral sul de São Paulo,

e litoral norte do Paraná (mapa na página seguinte), que ao longo do tempo ganhou a

categorização específica de “fandango caiçara” (sobretudo em âmbito acadêmico, nos últimos

anos), sendo o elemento central de uma prática cultural cuja manifestação festiva se faz através

da dança, música, poesia e tamanqueado, que agrega famílias e comunidades, por meio de

bailes, mutirões (ou pixilhões, conforme jargão da região) e atualmente, até é o pivô para

formação de grupos que o promovem com intuito de ensaios, de modo social, educativo,

artístico e recreativo, conseguindo até dialogar com (e influenciar) as práticas religiosas locais,

como a Festa do Divino, pois também é um elemento aglutinador das pessoas que promovem

tais rituais (IPHAN, 2011, p. 09 - 10).

Apesar de no presente se situar no território atual conforme descrito acima, há relatos

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de sua abrangência no planalto de Curitiba e vilarejos dos Campos Gerais, até o século XIX,

em relatos de pesquisadores-viajantes como Saint-Hilaire, entretanto, ao longo do tempo, como

tantas outras modalidades de divertimento e expressão popular, foi alvo da perseguição por

parte de autoridades, como forma de buscar e impor novos padrões culturais de moralidade e

civilidade, sobretudo quando advindos de matrizes burguesas, (IPHAN, 2011, p. 34, 35 e 36),

em geral imitando modelos culturais europeus.

Mapa da região em que se desenvolve os Fandango Caiçara.

Segregação equivalente ocorreu no litoral, principalmente na porção continental da

costa (ou como é narrado por seus atores: as cidades), porém houve a continuidade entre muitas

famílias e comunidades na ‘ilhas’, o que gerou a configuração de múltiplas vertentes de um

mesmo gênero coreográfico-musical, com variações territoriais, ainda que tendo como eixo a

música, criada e/ou reproduzida por seus mestres cantadores, por meio de um cancioneiro e

seus versos, e acompanhada e executada pelo mesmos junto aos companheiros músicos, que

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tocam rabeca, adufe, e viola, e eventualmente o apoio de percussão com a caixa, porém, como

componente literalmente marcante, há o uso de tamancos por parte dos homens que participam

do baile, carregando assim uma função sonora e coreográfica, diante das mulheres que integram

o bailado (IPHAN, 2011, p. 50), que originalmente era ligado ao trabalho da pisa de grãos

(arroz, milho, etc.) e/ou para compactar chão batido, e como isso exigia vigor físico, a função

do tamanqueado tornou-se masculina, conforme ilustrado nas imagens a seguir:

(fotos: Associação de Cultura Popular Mandicuera – Ilha dos Valadares – Paranaguá)

A partir desses elementos, foi necessário (re)pensar quais os questionamentos

pertinentes ao universo do ‘fandango caiçara paranaense’, sobretudo diante das demandas

pedagógicas inerentes à formação de jovens conscientes e críticos de (e em) sua cultura, uma

vez que boa parte da população não o conhece, embora seja a expressão popular mais típica e

originalmente paranaense?

Inicialmente, há elementos rítmicos e coreográficos coincidentes com a linhagem

paulista, mas, no litoral de São Paulo, que por sinal detém a parte baixa do Vale do Ribeira, há

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uma frequente substituição da rabeca pela sanfona (comumente a de oito de baixos), inclusive

chamada nesse contexto de ‘pé-de-bode’, funcionando como instrumento solista melódico. No

mais, os outros instrumentos e elementos sonoros são equivalentes aos utilizados no Paraná.

Contudo, apenas uma descrição técnica e artística não seria o suficiente, fazendo com

a pesquisa docente fosse em direção de premissas sócio-antropológicas que enriquecessem o

conhecimento em torno dessa experiência.

Assim, primeiramente observamos o fenômeno pelo escopo da antropologia simbólica,

ao atentar e ressaltar no fandango seus valores, hábitos, gestos, ideias, sentimentos, memórias,

etc., propagados por gerações, e trocados entre grupos locais, já que o aprendizado e ensino do

mesmo exige “uma certa familiaridade (nunca se consegue mais do que isso) com os recursos

simbólicos (...)” visto que os indivíduos protagonistas dessa manifestação, são num só tempo

“(....) pessoas, atores, sofredores, conhecedores e juízes — em suma, para introduzir a expressão

expositiva de praxe, como participantes de uma forma de vida”, conforme preconizado pelo seu

mentor epistemológico, o antropólogo Clifford Geertz (2001).

Reforçando esse conceito, é plausível ter em mente, que a imersão, o ‘ir de encontro’

à cultura popular, e não tão somente contemplá-la, é premente como (e para o) estudo da

própria, posto que:

“A análise do senso comum e não necessariamente seu exercício, deve, portanto, iniciar-se

por um processo em que se reformule esta distinção esquecida, entre uma mera apreensão da

realidade feita casualmente – ou seja lá o que for que meramente e casualmente aprendemos

– e uma sabedoria coloquial, com os pés no chão, que julga ou avalia esta realidade”.

(GEERTZ, 2006, p.115)

Desse modo, o mesmo autor, e seus sucessores, preconizam que ao tentarmos

compreender/saber a realidade do outro, não basta a avistarmos, e sim tentarmos estar (adentrar)

na mesma, que tanto a ação de pesquisa, quanto a de ensino, deve ensejar e multiplicar o desejo

de apreensão desses conhecimentos não olhando para dos indivíduos, mas tentando fazer de seu

respectivo grupo, com objetivo de alcançar suas aspirações, receios e potências.

Outrossim, tentar alcançar a compreensão da essência simbólica do que nos cerca ou

do que buscamos (e se dispor a incentivar tal ato no campo educativo), é segundo Geertz

empreender “o alargamento do universo humano (...), como sistemas entrelaçados de signos

interpretáveis (o que (...),” o autor, “(...) chamaria símbolos, ignorando as utilizações

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provinciais (...)”, dado que:

“a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos

sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro

do qual eles podem ser descritos de forma inteligível — isto é, descritos com densidade.”

(GEERTZ, 2008, p. 10).

Igualmente, é cabível estender essas questões sob a luz da antropologia estruturalista,

ao passo que não podemos nos ater aos aspectos superficiais dessa e de qualquer outra cultura,

sob o risco de

“conceber as estruturas sociais como objetos independentes da consciência que deles têm os

homens (cuja existência regem, (...)) e como capazes de ser tão diferentes das imagens que

eles delas fazem quanto a realidade física difere da representação sensível que dela temos, e

das hipóteses que formulamos a seu respeito”. (LEVI-STRAUSS, 2008, p. 134).

Por isso, se faz premente entender e, se possível, tentar se inserir, o contexto histórico,

social, religioso, simbólico, dessas populações, , para depois ensinar os valores reproduzidos

por elas, e não somente um punhado de imagens, objetos, gestos e/ou músicas, entre outras

manifestações, associando-as (ainda) quase sempre a algo do passado um grupo social,

comumente criando uma espécie de ‘taxidermia folclórica’, ao rotular qualquer modalidade da

cultura popular, como um exemplar estático e pitoresco, em vias de extinção, meramente

apreciável para visão turística.

Refletindo sobre o dado acima, ainda podemos considerar relações entre linguagem e

identidade sob o viés do Estudos Culturais, ao mirarmos sobre a necessidade de um suposto

“resgate” da identidade cultural, devemos lembrar que ela “não é, nunca, completamente

determinada – no sentido de que se pode, sempre, “ganhá-la” ou “perdê-la”; no sentido de que

ela pode ser, sempre, sustentada ou abandonada” (STUART HALL, p. 106), desse modo, é

entendível que a prática educativa do fandango pode servir para uma

“produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não

tanto com as questões ‘quem nós somos’ ou ‘de onde nós viemos’, mas muito mais com as

questões ‘quem nós podemos nos tornar’, ‘como nós temos sido representados’ e ‘como essa

representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios’”. (STUART

HALL, p. 106).

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Nesse instante, surge e é respondido o dilema do educador: será que ao trazer uma

proposta que não pertence diretamente à comunidade escolar, podemos criar direcionamentos

estéticos e éticos de maneira arbitrária?

Não, desde que seja entendido que a maior parte do que o aluno possui em seu

repertório, nos dias de hoje, é massificado e oriundo da mídia neocolonizadora, e como adverte

Muniz Sodré:

“os novos meios de comunicação de massa são desenraizadores e transnacionalistas”, porém,

ele mesmo aponta que não podemos ignorar as hipóteses que tais meios “cumprem funções

de ‘escola paralela’.” (SODRÉ, 2010)

Sendo assim, e visto o impacto esses meios que exercem sobre as (nossas)

consciências, propor a prática do fandango é em parte libertar corpos e mentes de um

“neocolonialismo” que se faz mais cruel, incisivo e perverso, nos últimos tempos, usufruindo

paradoxalmente da tradição popular como seu oponente modernizador e progressista.

Nesse ponto, entra como elemento provocador a indagação de Néstor Garcia Canclini

a estudantes, artistas e produtores culturais residentes em Tijuana, na década de 1980, sobre

quais os locais emblemáticos daquela cidade mexicana, e sem surpresa, em sua maioria, são

citados e fotografados os lugares em que há nítida presença de imagens e letreiros de conteúdo

tipicamente consumista e estadunidense (CANCLINI, 2013, p. 318).

Tal experimento inspirou a ideia de questionar qual é o entendimento do jovem sobre

o que se conhece sobre a cultura popular paranaense, quais os principais seus artistas e se há

um deles com origem do Vale do Ribeira, ensejando diagnosticar saber pré-existentes, e

posteriormente propiciar um encontro com a cultura caiçara, ainda que ela fosse estranha aos

jovens itaperuçuenses naquele instante.

Foi inevitável lembrar das relações sociais, culturais e educativas que poderiam orbitar

ao redor do conceitos existentes no pensamento de Pierre Bourdieu no tocante a economia dos

bens simbólicos, sendo válido ainda observar que não podemos “imobilizar” as potencialidades

dessa experiência, e de qualquer outra proposição educativa, às metodologias pedagógicas e/ou

científicas, como mera reprodução e/ou adaptação de cânones advindos de uma sociedade

escolarizada conforme os interesses de uma elite (BOURDIEU, p. 204).

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Em convergência com tal propósito, também houve a utilização dos preceitos oriundos

na antropologia da performance, que ao mesmos tempo irradiam possibilidades de reverberação

de ideias de livre trânsito entre o campo das Ciências Humanas e as Linguagens Artísticas, em

especial as performativas, com intenção de assegurar uma melhor compreensão desses saberes

alheios, e até em prol do encontro de si mesmo, é cabível a experiência sensorial da

performance, e não apenas a sua observação (TURNER, 1987, p. 36).

Conectando como objeto de estudo e de potência no âmbito da educação estética, o

raciocínio acima convém salientar que abrir tal oportunidade de aprendizado sensível, resgata

o jogo de

“'corpo-a-corpo', primeiro mantido com o mundo que nos rodeia, a aventura do saber e do

conhecer humanos. Sem dúvida, há um saber sensível, inelutável, primitivo, fundador de

todos os demais conhecimentos, por mais abstratos que estes sejam; um saber direto,

corporal, anterior às representações simbólicas que permitem os nossos processos de

raciocínio e reflexão". (DUARTE JR., 2002, p. 34).

O que faz aflorar a condição (e plausível missão) de criar saber a partir do universo

palpável e afetivo do aluno, ampliando sua relação com o mundo, sobretudo

“Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos de

uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e

ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a serenidade”.

(FREIRE, 1997, p. 13)

Assim, escola pode e deve enfrentar o dilema de proporcionar a boa assimilação de

conteúdos, educar e auxiliar na construção de caráter de crianças e jovens que são inundados, e

até ‘navegam’ de modo razoável nesse ‘mar revolto’ de informação, pois se por um lado os

estímulos e necessidades atuais condicionam à aceleração ao se absorver e descartar dados, por

outro, a memória, a fruição e a reflexão, heranças cognitivas de nossa evolução biológica e

cultural, ficam ameaçadas.

Ainda é considerável, no campo estético-educativo, a antevisão de Deleuze de que “a

experimentação substituiu a interpretação” (DELEUZE, 2012, p.82), ao passo que a prática do

fandango caiçara pode ser uma via de formação de uma consciência estética mais atenta e

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engajada, e até agregar e/ou fortalecer princípios éticos nas relações humanas dentro e fora da

escola.

Considerações Finais (e alguns contrapontos inesperados):

Levando em conta, numa etapa preliminar, os argumentos teóricos que embasaram a

proposta docente da oficina livre de ‘Fandango Caiçara do Paraná’, além da vivência prática do

docente, ainda que breve, mas em contato direto com alguns de seus ‘atores reais’, é possível

afirmar que tal ação educativa obteve êxito num primeiro momento.

A princípio, inspirado nos questionamentos de Canclini, os alunos participantes foram

perguntados se havia algum gênero musical típico paranaense conhecido por eles, e em sua

unanimidade, apontaram a música sertaneja como tal, e obviamente, logo foi esclarecido que o

dado gênero também se faz presente no Paraná, mas a área de origem e localização desse estilo

é vasta, percorrendo outros estados do Brasil.

Num segundo momento, lhes foi indagado qual(is) artista(s) musical(is) paranaense(s)

eram conhecidos em território nacional, e boa parte citou, às vezes com certa dúvida, a dupla

Chitãozinho e Xororó, famosos representantes do gênero sertanejo há 30 anos, além do cantor

e sanfoneiro, Michel Teló, que faz parte do nova geração desse mesmo estilo musical. Quanto

a indicação de algum artista local, ninguém soube indicar qualquer nome.

Respondendo às perguntas, decorreu a surpresa coletiva de saber que a dupla que

primeiramente alcançou o ideal de ‘fama’, na música caipira da região, foi o casal de músicos

Nhô Belarmino e Nhá Gabriela, que na década de 1940 chegou a se apresentar nas rádios do

Rio de Janeiro e São Paulo, ombreando o espaço artístico com figuras como a dupla Tonico e

Tinoco, e até o rei do baião, o pernambucano Luiz Gonzaga. Mais surpreendente ainda, foi a

descoberta que o casal de músicos era oriundo do município de Rio Branco do Sul, do qual

Itaperuçu era comarca.

Embora não fosse o tema principal, tal informação estimulou a curiosidade e o

imaginário dos estudantes, atraindo a atenção deles, e fazendo perceber que surgiu um novo

assunto a ser abordado para o futuro.

Na sequência, adveio a temática do fandango em si, contextualizando sua história e

geografia, ligando-o inclusive ao Vale do Ribeira, e foi realizada uma pequena demonstração

de seus passos, o que aguçou nos adolescentes a vontade de participar da experiência.

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Foram programados três horários para atender de 06 a 15 alunos em cada, entretanto,

felizmente, começamos por 12 alunos, em seguida, cerca de 25, e por fim, 50 alunos, com uma

boa mistura de meninos e meninas. Como os recursos instrumentais foram inviáveis, exigindo

a reprodução das canções por CD, para compensar, foram adquiridos 16 pares de tamancos pelo

próprio docente proponente.

Com isso, os participantes demonstraram enorme envolvimento e interesse na

proposta, tanto que espontaneamente solicitaram a continuidade como grupo, tendo ensaios e

apresentações, o que aconteceu, numa escola vizinha, voltada para o Ensino Fundamental I,

como também alguns sugeriram a inserção da atividade em meio à disciplina de Artes.

Além disso, outras duas escolas da região, ambas com turmas do Ensino Fundamental

II conjugadas com do Ensino Médio, convidaram o docente para fazer oficinas, todavia, como

não houve um trabalho prévio, a adesão foi menor e a execução mais sigela e rápida, embora

fosse nítido uma maior curiosidade por parte dos alunos de 11 a 14 anos, enquanto o pessoal,

acima dessa idade, não interessou tanto, com alguns confessando que o desejo seria participar

de uma proposta que trouxesse o ‘Fandango Gaúcho, pois no imaginário deles, talvez mais

cristalizado pelas festas de igreja, que convidam equipes de CTG’s, esse seria o ideal, inclusive

por causa da ‘beleza’ do figurino empregado.

Outra surpresa insuspeita, dessas experiências em paralelo, adveio de um rapaz do

município vizinho (Rio Branco do Sul), e de uma jovem de Itaperuçu, estudantes de

estabelecimentos distintos. Segundo eles, a porção alta do Vale do Ribeira, nas imediações de

Cêrro Azul (portanto, mais ao norte), há redutos que ainda usam o baile e tamanqueado de

acordo com a tradição de música e dança para trabalho de amassar a terra das casas para formar

o piso de chão batido, em geral em chácaras e sítios de parentes, no entanto, foi descrito que o

cancioneiro segue mais a linha caipira e sertaneja.

Ou seja, de modo geral, foi perceptível que o Fandango Caiçara Paranaense, tanto no

âmbito de trabalho pedagógico, quanto na pesquisa acadêmica, necessita ter aprofundamento

de investigação nesses locais, ora como novas experiências escolares no futuro, talvez em

estabelecimentos, ora como meio mais viável para obtenção de dados, incluindo essas possíveis

variações ‘interioranas’ do gênero, ora para ampliar a análise e comparação de todas essas

informações, procurando assim contribuir para a evolução da reflexão científica e pedagógica

em torno da Educação e dos Estudos Culturais.

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Imagens da experiência didática ‘in loco’:

Ensaio inicial, apenas com integrantes masculinos, detém a responsabilidade de tamanquear,

ainda em sala de aula, com docente ministrante da oficina e alunos da E.E Bacharel Antônio Alves.

Troca de calçados comuns pelo par de tamancos som solado em madeira.

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Visão parcial do ‘baile, feito em praça vizinha à escola, devido à lotação\ ao 3º turno.

Referências Bibliográficas:

BOURDIEU, P. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.

CANCLINI, N.G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São

Paulo: Edusp, 2013, 4ª edição.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Suely

Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2012.

DUARTE JR., J.F. O sentido dos sentidos. Curitiba: Criar, 2002.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz & Terra, 1997.

GEERTZ, C. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

_______. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

_______. O saber local. Petropólis: Vozes, 2006.

SILVA, T.T.; HALL, S.; WOODWARD, K. Identidade e diferença. Petropólis: Vozes, 2000.

IPHAN; MinC; Associação Cultural Caburé. Dossiê de registro do Fandango Caiçara.

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LEVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

SODRÉ, M. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. Petrópolis:

Vozes,2010.

TURNER, V. The Anthropology of Perfomance. New York: PAJ Publications, 1987.