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Taiguara Libano Soares e Souza A Era do Grande Encarceramento Tortura e Superlotação Prisional no Rio de Janeiro Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Direito. Orientador: Prof. João Ricardo Wanderley Dornelles Volume I Rio de Janeiro Setembro de 2015

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Page 1: Taiguara Libano Soares e Souza A Era do Grande ... · Tortura e Superlotação Prisional no Rio de Janeiro Tese de Doutorado ... Badaró, Newvone Costa ... Juarez Tavares, Juarez

Taiguara Libano Soares e Souza

A Era do Grande EncarceramentoTortura e Superlotação Prisional no Rio de Janeiro

Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Direito. Orientador: Prof. João Ricardo Wanderley Dornelles

Volume I

Rio de JaneiroSetembro de 2015

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Taiguara Líbano Soares e Souza

A Era do Grande Encarceramento: Tortura e Superlotação Prisional no Rio de Janeiro

Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. João Ricardo Wanderley Dornelles Orientador

Departamento de Direito – PUC-Rio

Profª. Victoria-Amália de Barros Carvalho Gozdawa de Sulocki Co-orientadora

Universidade de Brasília - UnB

Prof. Salo de Carvalho UFRJ

Prof. Nilo Batista UFRJ

Profª. Vera Malaguti de Souza Weglinski Batista UCAM

Profª. Monica Herz Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro de

Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 11 de setembro de 2015.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Taiguara Libano Soares e Souza

Graduou-se Bacharel em Direito pela UFF (Universidade Federal Fluminense) em 2008. Mestre em Direito pela PUC-Rio em 2010. Integrou o Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio. Participou de diversos congressos e seminários de Direito e áreas afins. Atuou como perito do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, de 2011 a 2015. É professor de Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito IBMEC-RJ e da UFF (Universidade Federal Fluminense) e Consultor do Instituto de Defensores de Direito Humanos.

Ficha Catalográfica

Souza, Taiguara Libano Soares e A Era do Grande Encarceramento: Tortura e

Superlotação Prisional no Rio de Janeiro / Taiguara Libano Soares e Souza; Orientador: João Ricardo Wanderley Dornelles – Rio de Janeiro PUC, Departamento de Direito, 2015.

1. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito. 2 v. 375 fl; 29,7 cm. Inclui referências bibliográficas.

1. Direito – teses. 2. Sistema Penitenciário. 3.

Neoliberalismo. 4. Estado de penal. 5. Estado de exceção. 6. Superlotação prisional. 7. Tortura. 8. Rio de Janeiro. I. Dornelles, J. R. W. (João Ricardo Wanderley). II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.

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Dedico esta tese às milhões de pessoas privadas de liberdade, nos calabouços contemporâneos. Invisibilizados, silenciados, torturados, aniquilados e sequestrados nas prisões da miséria e na segregação punitiva dos cárceres.

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Agradecimentos

Todo "chegar até aqui" é um junção de fatores que, como um rio que corre

jamais se repete. Manifesto primeiramente minha gratidão a Deus, em todas as

suas formas, por ter me proporcionado tão bons encontros ao longo desta breve

caminhada e por demonstrar a cada momento, mesmo diante de tantas mazelas, a

afirmação do amor e da vida.

Aos meus pais, pelo amor incondicional, por ensinar a arte de perseguir os

sonhos, por tudo que sou. Aos meus irmãos e irmã pela experiência do conviver

igualitário, pela comunhão e pela fraternidade. Ao meu irmão Apoena, pelo

maravilhoso exemplo que nos deixou e por permanecer vivo em meus sonhos e

em meu coração. Ao meu amor Vanessa, por todas as infindáveis revisões e por

partilhar ao meu lado o amor e as lutas. A todos os meus familiares por todos os

momentos maravilhosos que proporcionaram e proporcionam em minha vida.

Aos queridos companheir@s do movimento estudantil por manterem viva

a chama do socialismo democrático. Aos eternos amigos Thiago Melo, Flávio

Sueth, Carlos Eduardo, Alexandre Franco, Flávio Serafini, Carlos Lucio, Vinicius

Almeida, Vinicius Codeço e Gustavo Dantas, parceiros na luta por uma sociedade

mais justa, fraterna e igualitária. Aos estimados amigos João e Ednéia Tancredo,

por tudo que vivemos juntos. Aos companheiros do Instituto de Defensores de

Direitos Humanos.

Aos amigos na luta contra a tortura e pela afirmação dos direitos humanos,

valorosos combatentes em meio à ofensiva da barbárie punitiva. Em especial

Fabio Simas, Renata Lira, Vera Lucia Alves, Patricia Oliveira, Antonio Pedro

Soares e Isabel Mansur (companheiros no Mecanismo Estadual de Prevenção e

Combate à Tortura), Camila Freiras, Tomas Ramos, Marcelo Freixo, Débora

Rodrigues, Henrique Guelber, Tiago Joffily, Victoira Grabois, Fábio Amado,

Sandra Carvalho, Fernanda Vieira, Márcia Badaró, Newvone Costa, Felipe

Almeida, Helena Hespanhol (companheiros do Comitê Estadual de Prevenção e

Combate à Tortura), Gorete Marques, Tânia Kolker, Luciano Mariz Maia, Sylvia

Dias, Jose de Jesus Filho, Mario Coriolano, Walter Suntinger, Margarida

Pressburger, Maira Fernandes, companheiros decisivos na luta contra a tortura no

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Brasil e no mundo. Aos egressos do sistema prisional que lutam contra as mazelas

das masmorras prisionais, José Carlos Brasileiro e Greg Andrade.

Aos caros amigos da trincheira da resistência na academia, Antonio Pedro

Melchior, André Nicolitt, Rubens Casara, Marcia Fernandes e Jadir Brito. Aos

amigos queridos amigos que foram decisivos com conselhos e ouvidos no

processo de preparação desta tese, Enzo Bello, Pedro Avzaradel, Clecio Lemos e

Mauricio Dieter. À amiga Camila pela atenciosa revisão. Agradeço especialmente

à minha querida amiga Roberta Pedrinha, por toda a parceria na academia e nas

luta pela contenção do poder punitivo. Aos meus queridos alunos do IBMEC que

contribuíram com esta pesquisa.

Aos queridos mestres que iluminam os tortuosos caminhos dos tempos de

barbárie em que vivemos. Vera Malaguti, Nilo Batista, Juarez Tavares, Juarez

Cirino dos Santos, Miguel Baldez, João Luiz Duboc Pinaud, Eugênio Raul

Zaffaroni e Gabriel Anitua.

Aos professores do doutorado na PUC-Rio, Adriano Pilatti, Bethânia Assy,

Adrian Sgarbi, Chico Guimarãens, José Ribas Vieira, Gisele Citadino, José Maria

Gòmez, Carlos Plastino e Mauricio Rocha, pelo inestimável amadurecimento

teórico que me ofertaram e por aliar criticidade e excelência em sua prática

docente. Aos meus queridos orientador e co-orientadora João Ricardo Dornelles e

Victoria Sulocki, pelas inestimáveis lições e incentivos à elaboração deste

trabalho.

Ao Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Rio, pela seriedade e

excelência do ensino e por cultivar o espírito público, mesmo em uma instituição

privada. Agradeço ainda especialmente aos funcionários Anderson e Carmem, por

todo carinho, paciência e atenção. Ao CNPq, pelo suporte imprescindível à

elaboração desta pesquisa.

A todos os que resistem aos massacres perpetrados nos cárceres e lutam

em defesa da liberdade, da vida e da dignidade humana.

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Resumo

Souza, Taiguara Libano Soares e; Dornelles, João Ricardo Wanderley. A Era do Grande Encarceramento: Tortura e Superlotação Prisional no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015. 375p. Tese de Doutorado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A presente tese tem por objetivo central analisar os impactos do modelo

econômico neoliberal sobre o sistema penal a partir da década de 1990, atentando

para o hiperencarceramento levado a cabo no Rio de Janeiro, bem como seus

reflexos nas eventuais violações de direitos das pessoas privadas de liberdade. A

partir de relatórios de visitas, elaborados pelo Mecanismo Estadual de Prevenção

e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, pretende-se identificar um panorama das

condições de detenção neste estado entre os anos de 2004 e 2014, avaliando em

que medida podem ser enquadradas como situação de tortura. Esta reflexão parte

da constatação da crise de legitimidade do sistema penal evidenciada, desde a

gênese da prisão, passando pelos modelos penitenciários implementados e pelas

inúmeras teorias penalógicas legitimantes. Neste sentido, à luz da Criminologia

Crítica, sobretudo dos trabalhos de Loic Wacquant, e de contribuições de Michel

Foucault e Giorgio Agamben, busca-se refletir acerca da relação entre o sistema

penal e as estruturas sociais, diante da ascensão do capitalismo neoliberal, dando

ensejo à edificação do Estado penal nos Estados Unidos e sua incorporação no

Brasil, marcado por permanências autoritárias. Deste modo, voltamos as lentes

para analisar as evidências de superlotação e tortura no sistema prisional do Rio

de Janeiro. Por fim, propõe-se apontar estratégias político-criminais, que

poderiam representar um ‘dique de contenção’ do poder punitivo na Era do

Grande Encarceramento.

Palavras Chave

Sistema Penitenciário; Neoliberalismo; Estado Penal; Estado de Exceção; Superlotação Prisional; Tortura; Rio de Janeiro.

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Abstract

Souza, Taiguara Libano Soares e; Dornelles, João Ricardo Wanderley(Advisor). The Age of Mass Incarceration: Torture and Prison Overcrowding in Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015. 375p. Doctoral. Thesis – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

This thesis is mainly aimed to analyze the impacts of the neoliberal

economic model on the penal system from the 1990s, noting the prison

overcrowding carried out in Rio de Janeiro, as well as their reflections on possible

violations of rights of persons deprived of freedom. Based on visit reports made

by the Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro

it’s intended to identify a panorama of detention conditions in this state between

2004 and 2014, checking if they can be classified as torture situation. For this

reflection, we starts from the perception of the criminal system crisis of

legitimacy that is evidenced since the genesis of the prison, and is present in the

prison implemented models and the many legitimizing theories of punishment. In

this sense, from the Critical Criminology, especially the work of Loic Wacquant

and contributions from Michel Foucault and Giorgio Agamben, we seek to reflect

on the relationship between the criminal justice system and social structures, in

the rise of neoliberal capitalism, enabling the establishment of Penal State in the

United States and its incorporation in Brazil, marked by authoritarian continuities.

Thus, we turn the lens to analyze the evidences of overcrowding and torture in

Rio de Janeiro’s prison system. Finally, it is proposed to examine criminal policy

strategies that could serve as a 'dike of contention' of punitive power in the Age of

Mass Incarceration.

Keywords

Penitentiary System; Neoliberalism; Penal State; State of Exception; Prison Overcrowding; Torture; Rio de Janeiro.

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Sumário

1 Introdução 18

2 A (Des)Legitimidade do Sistema Penal: crise dos modelos e

fundamentos

26

2.1. O horizonte de projeção do Sistema Penal 28

2.1.1Sistema Penal e Controle Social 28

2.1.2. Discurso e operacionalidade do Sistema Penal: (i)legalidade e

(des)legitimidade

31

2.2. Gênese e crise da prisão 38

2.2.1. Beccaria e o iluminismo jurídico-penal 39

2.2.2. Howard e a reforma penitenciária 40

2.2.3. O panóptico de Bentham 41

2.2.4. Fracasso dos movimentos de reforma e crise do projeto

ressocializador

43

2.3. Modelos de Sistema Penitenciário 45

2.3.1. Sistema filadélfico (solitary system) 46

2.3.2. Sistema auburniano (silent system) 48

2.3.3. Sistemas progressivos (mark system) 50

2.4. Fundamentos da pena: teorias acerca das (dis)funções do

sistema penal

53

2.4.1. Discursos legitimantes 56

2.4.1.1. Teorias absolutas 56

2.4.1.2. Teorias preventivas 60

2.4.1.3. Teorias mistas 67

2.4.2. Discursos deslegitimantes 69

2.4.2.1. A Criminologia Crítica como chave interpretativa 70

2.4.2.1.1 Abolicionismo penal 74

2.4.2.1.2 Minimalismo penal radical 76

2.4.2.1.3 Teoria dialética da pena 78

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2.4.2.1.4 Teoria agnóstica da pena 79

3 A Era do Grande Encarceramento: Neoliberalismo, Sistema

Penitenciário e Contenção Punitiva da Pobreza

83

3.1. A economia política da penalidade: as (inter)faces dos sistemas

penais e econômicos

87

3.1.1. Punição e estrutura social: âmbito econômico-político 88

3.1.2. Vigiar e punir: âmbito disciplinar e político-ideológico 93

3.1.3. Cárcere e fábrica: âmbitos político-econômico e ideológico-

disciplinar

95

3.2. O advento do estado penal: neoliberalismo e sistema penal 99

3.2.1. A gênese do campo burocrático neoliberal 99

3.2.2. Do Estado de Bem Estar Social ao Estado penal 104

3.2.3. O Leviatã neoliberal: o grande encarceramento nos EUA 110

3.3. A globalização do Estado penal: biopolítica e sociedade de

controle

120

3.4 Estado penal no Brasil: o controle biopolítico da pobreza no

capitalismo periférico

127

3.4.1. As permanências autoritárias 128

3.4.1.1. Do genocídio colonial ao autoritarismo imperial 129

3.4.1.2. O entulho autoritário da ditadura civil-militar de 1964 131

3.4.1.3. Desenvolvimento econômico nos marcos do capitalismo

tardio

133

3.4.2. O empreendimento neoliberal no Brasil 134

3.4.3. Forjando o Estado penal brasileiro 139

3.4.3.1. Bolsa Família: dispositivo de workfare? 141

3.4.3.2. Política criminal com derramamento de sangue 144

3.4.3.3. O grande encarceramento no Brasil 148

4 Nas Entranhas do Leviatã Prisional: Análise do Encarceramento

Massivo no Rio De Janeiro

156

4.1 A trajetória histórica da prisão no Rio de Janeiro: os caminhos da

dor

157

4.2 O Rio de Janeiro como laboratório biopolítico da penalidade

neoliberal

167

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4.3 Cartografia do Sistema Penitenciário fluminense: abrindo a

caixa de pandora

172

4.3.1 Superlotação prisional 173

4.3.2 O perfil da população privada de liberdade 177

4.3.2.1 A seletividade punitiva 177

4.3.2.2 A banalização da prisão cautelar 184

4.3.3 Regime e classificação 187

4.3.3.1Panorama das unidades prisionais 187

4.3.3.2 Regimes prisionais 191

4.3.3.3 Classificação dos internos 193

4.3.4 Agentes e técnicos penitenciário 194

4.3.5 Assistência e direitos do preso 197

4.3.5.1 Assistência à saúde 197

4.3.5.2 Assistência material 200

4.3.5.3 Assistência familiar 205

4.3.5.4 Assistência jurídica 209

4.3.6 Atividades no cárcere 210

4.3.6.1 Atividades laborativas 210

4.3.6.2 Atividades educacionais 213

4.3.6.3 Banho de sol e outras atividades 216

4.3.7 Castigos e violência no cárcere 217

4.3.7.1 Sanções disciplinares 217

4.3.7.2 Tortura e maus tratos 220

5 Tortura e Sistema Penitenciário: O Cárcere Como Exceção

Permanente

226

5.1 Direitos Humanos e Sistema Penitenciário 229

5.1.1 Parâmetros Protetivos Internacionais 229

5.1.1.1 Instrumentos Universais 229

5.1.1.2 Instrumentos Regionais 232

5.1.1.3 Padrões Internacionais Não-vinculantes 233

5.1.2 Parâmetros Protetivos Nacionais 236

5.1.3 O divórcio entre o binômio normatividade-realidade no Sistema

Penal

239

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5.2 Tortura e pena privativa de liberdade 241

5.2.1 O enfrentamento à tortura 243

5.2.2 Definindo o conceito de tortura 245

5.2.3 Ampliando o conceito de tortura 247

5.2.4 A tortura no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro 251

5.3 Prisão e exceção permanente 258

5.3.1 A prisão no paradigma do campo 259

5.3.2 O preso como homo sacer 262

5.3.3 O modelo penitenciário na Era do Grande Encarceramento 265

5.3.4 As (dis)funções da pena na Era do Grande Encarceramento 270

6 Estratégias de Contenção do Grande Encarceramento:

Contribuições da Criminologia Cautelar

276

6.1 Por uma Criminologia Cautelar 278

6.2 Estratégias de contenção do Encarceramento Massivo 280

6.2.1 Mecanismos de Prevenção À Tortura 280

6.2.2 A tese do Estado de Coisas Inconstitucional 288

6.2.3 Responsabilidade civil do Estado por superlotação e

Condições degradantes de encarceramento

295

6.2.4 Audiência de Custódia 301

6.2.5 Penas alternativas e alternativas penais 307

6.2.6 Outros dispositivos redutores do hiperencarceramento 314

6.3 Entre o Minimalismo e o Abolicionismo Penal: sobre a

controvérsia tática-estratégia

322

7 Conclusão 328

8 Referências Bibliográficas 333

 

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Listas de Figuras

Figura 1: População Prisional EUA (1920-2006) 113

Figura 2: Comparativo Internacional de Letalidade Policial (2008) 147

Figura 3: População Prisional Brasil (1990-2014) 150

Figura 4: População Prisional EUA (1990-2014) 151

Figura 5: Comparativo entre as 4 maiores populações prisionais do

mundo (1995-2014)

152

Figura 6: População Prisional - Rio de Janeiro-Nova Iorque (2005-

2014)

175

Figura 7: Total de Presos por Gênero no Rio de Janeiro (2009-

2014)

178

Figura 8: Comparativo de população presa e livre por cor, raça e

etnia 2014

179

Figura 9: Total de presos por faixa etária - Rio de Janeiro e Brasil

(2014)

180

Figura 10: Total de presos por nível de escolaridade - Rio de

Janeiro e Brasil (2014)

182

Figura 11: Total de Presos por Tipo Penal (Brasil - 2014) 183

Figura 12: Presos Provisórios - Rio de Janeiro e Brasil (2004-2014) 185

Figura 13: Presos por regime e natureza da privação da liberdade -

RJ (2009-2014)

192

Figura 14: Presos em Atividades Laborativas (RJ - 2004/2014) 211

Figura 15: Presos em Atividades Educacionais (RJ - 2004/2014) 214

Figura 16: Comparativo entre o crescimento do número de Penas

e Medidas Alternativas e População Prisional no Brasil (1995-

2009)

309

Figura 17: Presos por tráfico no Brasil (2006-2012) 320

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Lista de Tabelas

Tabela 1: Autos de Resistência lavrados no Rio de Janeiro –

(2000-2014)

146

Tabela 2: Dados acerca das 10 maiores populações prisionais do

mundo (2014)

148

Tabela 3: Dados sobre População Prisional (Rio de Janeiro e Brasil

– 2014)

173

Tabela 4: Crescimento da População Prisional – Rio de Janeiro e

Brasil (2004-2014)

173

Tabela 5: População Prisional do Rio de Janeiro por Cor, Raça ou

Etnia (2009-2014)

178

Tabela 6: População Prisional do Rio de Janeiro por Faixa Etária

(2009-2014)

179

Tabela 7: População Prisional do Rio de Janeiro por Nível de

Escolaridade (2009-2014)

181

Tabela 8: Total de Presos Provisórios no Rio de Janeiro (2009-

2014)

184

Tabela 9: Unidades Isoladas - Sistema Prisional do Rio de Janeiro

(2014)

188

Tabela 10: Unidades de Niterói e Interior - Sistema Prisional do Rio

de Janeiro (2014)

188

Tabela 11: Unidades do Complexo de Gericinó - Sistema Prisional

do Rio de Janeiro (2014)

189

Tabela 12: Técnicos Penitenciários (Rio de Janeiro – 2014) 195

Tabela 13: Profissionais de Saúde no Sistema Prisional do Rio de

Janeiro (1995-2015)

196

Tabela 14: Quadro comparativo dos Modelos Punitivos 269

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LISTA DE SIGLAS

ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

ALERJ - Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro

ASSAP - Associação dos Servidores de Saúde no Sistema Penitenciário

APT - Associação para a Prevenção à Tortura

CEJIL - Centro pela Justiça e o Direito Internacional

CPP - Código de Processo Penal

CP - Código Penal

CEPAL - Comissão Económica para a América Latina e o Caribe

CAT - Comitê da ONU Contra a Tortura

CNPCT - Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura

CNJ - Conselho Nacional de Justiça

CNPCP - Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária

CF - Constituição Federal

CEDH - Corte Europeia de Direitos Humanos

DESIPE - Departamento do Sistema Penitenciário

DEPEN - Departamento Penitenciário Nacional

ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente

FIFA - Federação Internacional de Futebol

FMI - Fundo Monetário Internacional

ISAP - Inspetor de segurança e administração penitenciária

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

IPVP - Instituto Penal Vicente Piragibe

IPPSC - Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho

ICPS - International Centre for Prison Studies

LGBTT - Lésbicas, gays, travestis, transexuais e transgêneros

LEP - Lei de Execução Penal

MEPCT/RJ - Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura

MNPCT - Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura

MPN - Mecanismos de Prevenção Nacionais

OAB - Ordem dos Advogados do Brasil

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ONU - Organização das Nações Unidas

OEA - Organização dos Estados Americanos

PIDCP - Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos

PIDESC - Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira

PT - Partido dos Trabalhadores

PSOL - Partido Socialismo e Liberdade

PMAs - Penas e medidas alternativas

PROER - Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do

Sistema Financeiro

PL - Projeto de Lei

PLS - Projeto de Lei do Senado

OPCAT - Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas Contra a

Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou

Degradantes

RDD - Regime Disciplinar Diferenciado

SEAP - Secretaria de Estado de Administração Penitenciária

SOE - Serviço de Operações Especiais

SNPCT - Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura

SPT - Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura

STJ - Superior Tribunal de Justiça

STF - Supremo Tribunal Federal

TJ/RJ – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

UPP - Unidades de Polícia Pacificadora

UPA - Unidade de Pronto Atendimento

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Uma última consideração confronta fortemente a crescente confiança no aparelho carcerário para controlar as sequelas da marginalidade e da desordem urbana exacerbadas no Brasil logo após a desregulamentação neoliberal: o pavoroso Estado dos cárceres, prisões e cadeias do país, que mais parecem campos de concentração para os despossuídos ou empreendimentos públicos para a reciclagem industrial dos restos sociais e estão bem longe da imagem de instituições judiciais voltadas a alguma proposta penal identificável – seja a dissuasão, a neutralização ou a retribuição, deixando de lado a reabilitação. O sistema penitenciário do Brasil efetivamente ostenta os defeitos das piores cadeias do Terceiro Mundo, numa escala digna do Primeiro Mundo, devido a seu tamanho absoluto, a seu enraizamento urbano e à persistente indiferença dos políticos e do público, que, entretanto,o demonstra reiteradas vezes ser favorável aos crescentes excessos no campo correcional. Pelos padrões ocidentais contemporâneos, os estabelecimentos carcerários do Brasil padecem de doenças que lembram os calabouços feudais.

(Loic Wacquant)

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1 Introdução

Ao longo dos últimos dois séculos, desde sua gênese, a questão

penitenciária se apresenta como uma grave problemática global. Na atualidade

organismos internacionais, gestores públicos, organizações não governamentais e

estudiosos do mundo inteiro apontam a crise da instituição prisional, em uma

crescente realidade de superlotação e condições desumanas de aprisionamento.

A invenção da prisão coincide com a ascensão do modo de produção

capitalista, substituindo o sistema penal do medievo. A edificação deste

empreendimento punitivo será acompanhada de distintos modelos prisionais e

teorias fundamentadoras da pena, até seu atual panorama. O criminólogo Loic

Wacquant, ao refletir sobre o crescimento da prisão a partir do final do século XX,

com a implementação do modelo econômico neoliberal nos Estados Unidos,

afirma que estamos diante do “Grande Encarceramento”1.

Esta expressão é tributária do termo “Grande Internação”, cunhado por

Michel Foucault para referir-se ao expressivo crescimento das instituições de

internação de loucos no século XVII2. Na obra A Indústria do Controle do Crime,

Nils Christie3 faz um paralelo entre a grande internação descrita por Foucault,

com o fenômeno do grande encarceramento ocorrido nos Estados Unidos a partir

de 1970, pois apesar da distância histórica, em ambos os contextos os alvos da

segregação são os mesmos, os segmentos populacionais mais pauperizados.

Essa onda punitiva na atualidade, expressa na hiperinflação da população

carcerária, também será verificada em diversos países, sobretudo no Ocidente. No

caso brasileiro, o histórico de autoritarismo, presente no colonialismo, na

escravidão, nas ditaduras e na violência institucional generalizada delineia um

sistema prisional peculiar. Como será observado, a partir da década de 1990

1 WACQUANT, L., Punir os pobres, p. 55. 2 “E sabido que o século XVII criou vastas casas de internamento; não é muito sabido que mais de um habitante em cada cem da cidade de Paris viu-se fechado numa delas, por alguns meses. É bem sabido que o poder absoluto fez uso das cartas régias e de medidas de prisão arbitrárias; é menos sabido qual a consciência jurídica que poderia animar essas práticas.” FOUCAULT, M., A História da Loucura na Idade Clássica, p. 55. Na página 67 o autor utiliza a expressão “A Grande Internação”. 3 CHRISTIE, N., A Indústria do Controle do Crime.

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assiste-se a um encarceramento massivo no país, agravando as já precárias

condições de detenção.

Neste sentido, em visita realizada ao Brasil em agosto de 2015, o Relator

Especial sobre Tortura das Nações Unidas, Juan E. Méndez, após inspecionar

inúmeras unidades prisionais instou as autoridades federais e estaduais brasileiras

a responderem urgentemente à questão da superlotação das prisões no país e

mostrar “um compromisso genuíno para implementar medidas contra a tortura”.

Através dessas visitas, o especialista independente observou como a grave

superlotação gera tensão e uma atmosfera violenta, no qual maus-tratos físicos e

psicológicos são corriqueiros.

Muitas das instalações visitadas estão seriamente superlotadas – em alguns casos, com quase três vezes mais que sua capacidade (...) Isso leva a condições caóticas dentro das instalações, com grande impacto para as condições de vida dos detentos e seu acesso à assistência jurídica, cuidados de saúde, apoio psicossocial, oportunidades de trabalho e estudo, bem como ao sol, ar fresco e recreação4.

Nesta tese pretendemos analisar o fenômeno da hipertrofia da população

prisional no estado do Rio de Janeiro, sobretudo se debruçando sobre o período de

2004 a 2014. Este recorte cronológico justifica-se, pois não há indicadores sobre

as unidades prisionais sistematizados pela Secretaria de Estado de Administração

Penitenciária (SEAP) nos anos antecedentes. Partimos da hipótese que a

implementação do modelo econômico neoliberal produz como consequência o

recrudescimento das políticas criminais, acentuando-se nas últimas décadas o

fenômeno do “grande encarceramento”.

A hipótese que se busca colocar em análise considera que o Rio de Janeiro

tem servido como um laboratório vivo das políticas criminais repressivas,

refletindo-se no crescimento exponencial de sua população prisional. Em meio ao

quadro crônico de superpopulação, o cárcere constitui-se um terreno fértil para

violações de direitos humanos das pessoas privadas de liberdade. A exceção à

norma torna-se regra na prisão, de modo a delinear um panorama sistêmico de

tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. Desta maneira, o ideal

4 Disponível em: http://nacoesunidas.org/especialista-da-onu-insta-brasil-a-resolver-superlotacao-das-prisoes-e-agir-contra-tortura/. Acessado em: 15/08/2015.

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ressocializador torna-se inalcançável diante das mazelas do sistema penitenciário.

A pena privativa de liberdade passa a cumprir eminentemente a função de

neutralização de uma parcela das classes populares, historicamente alijada de seus

direitos fundamentais.

Neste sentido, a presente pesquisa tem por objetivos específicos perceber

as interfaces entre o modelo econômico neoliberal e a dinâmica operativa dor

sistema penal, comparando a ascensão do Estado penal nos EUA com a eventual

enunciação deste processo no Brasil, refletindo suas peculiaridades de um país de

capitalismo periférico. Nesta esteira, busca-se examinar a relação entre o

crescimento da população prisional no Brasil, em especial no estado do Rio de

Janeiro, identificado os impactos na garantia de direitos das pessoas privadas de

liberdade, bem como as possíveis evidências da seletividade deste

hiperencarceramento, identificando, entre outras coisas, o perfil da população

prisional. Ademais, pretende-se avaliar se as condições de encarceramento podem

ser reconhecidas enquanto situação perene de tortura. Por fim, busca-se identificar

as alternativas que se apresentam como eventuais medidas redutoras da

hiperinflação carcerária.

Esta pesquisa é fruto da continuidade das reflexões iniciadas na elaboração

da dissertação de mestrado, cursado no Programa de Pós-graduação em Direito da

PUC-Rio, cujo título foi Constituição, Segurança Pública e Estado de Exceção

Permanente: a Biopolítica dos Autos de Resistência. Na dissertação realizamos

uma abordagem teórica acerca da categoria “estado de exceção” segundo Giorgio

Agamben, a fim de refletir sobre a política criminal de segurança pública vigente

no Estado do Rio de Janeiro e suas tensões com os direitos fundamentais,

notadamente no que se refere à letalidade policial amparada pelos autos de

resistência. Na referida pesquisa, importantes conclusões foram alcançadas dando

ensejo ao aprofundamento da investigação no curso de doutorado em vistas a

perscrutar, neste momento, outra dimensão do poder punitivo: as mazelas que

assolam o sistema penitenciário brasileiro.

Outro fator fundamental para esta pesquisa decorre de minha atuação junto

ao Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro

(MEPCT/RJ), primeiro órgão desta natureza em atividade no Brasil, criado pela

Lei nº 5.778/2010 a qual atribui competência para monitorar os espaços de

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privação de liberdade com o intuito de buscar a observância dos parâmetros legais

nacionais e internacionais. Deste modo, esta experiência salutar nos possibilitou

conhecer a fundo a realidade prisional fluminense intra-muros, bem como

propiciou acesso a documentação relevante, autoridades públicas competentes,

instituições da sociedade civil, presos e seus familiares.

A justificativa para esta abordagem guarda ainda relações com inequívoca

relevância social, uma vez que se trata de problemática que atinge direta e

indiretamente toda a sociedade, e, em especial, a dignidade humana do exército de

pessoas privadas de liberdade no cárcere. É extremamente emblemático que ao

serem completados 30 anos de promulgação da Lei de Execução Penal (Lei nº

7.210/84) e da Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e Outros

Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 2014, assista-se ao

panorama sombrio que permeia o sistema prisional. Nesse mesmo ano, o Brasil,

pela primeira vez, rompe a casa dos 600 mil presos, ademais, relatórios indicam

que se trata de uma das populações prisionais que mais cresce no mundo5.

Consideramos ainda sua relevância teórica, uma vez que se propõe à

empreitada de pensar a ascensão do Estado penal no Brasil. A literatura

criminológica carece de mais produções teóricas que se detenham sobre os efeitos

do grande encarceramento no país, em especial no Rio de Janeiro. Neste sentido,

consideramos se tratar de uma possibilidade de contribuir com o pensamento

crítico direcionado à contenção do poder punitivo e ao respeito aos direitos e

garantias essenciais das pessoas encarceradas.

Por fim, destacamos também sua relevância metodológica, visto que nos

debruçamos sobre a análise de unidades prisionais do Rio de Janeiro, com

relevante base empírica e dados de difícil acesso, alcançados, sobretudo, a partir

dos trabalhos do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura.

O trabalho é desenvolvido com base em metodologia caracterizada por

raciocínio dedutivo, partindo da análise da crise de legitimidade do sistema penal

desde o surgimento da prisão, passando pela reflexão sobre o lugar do cárcere nos

marcos do neoliberalismo, no plano internacional e nacional, para após, examinar

5 BRASIL. Ministério da Justiça, Relatório de Informações Penitenciárias - Infopen 2014.

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os impactos do encarceramento massivo nas unidades prisionais do Rio de

Janeiro, notadamente entre 2004 a 2014.

A pesquisa orienta-se por viés quantitativo e qualitativo. Utilizaremos a

técnica da análise documental, tendo por fonte primária relatórios do Mecanismo

Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, no que se refere às informações sobre

o sistema prisional do Rio de Janeiro, (com relação aos indicadores sobre as

condições de aprisionamento, serão utilizados relatórios de 29 unidades prisionais,

do total de 50 existentes no estado); do Departamento Penitenciário Nacional, em

relação a indicadores nacionais e de outros estados da Federação; e do

International Centre for Prison Studies, tratando-se de indicadores internacionais.

Dentre as fontes primárias, serão utilizados ainda dispositivos legais

nacionais e internacionais (Constituição Federal de 1988, Código Penal de 1940

Lei de Execução Penal, bem como leis penais extravagantes, além de tratados e

convenções de direito humanos relativos aos direitos das pessoas privadas de

liberdade), bem como audiências públicas (realizadas pela Comissão de Direitos

Humanos da Câmara de Deputados e pela Comissão de Cidadania e Direitos

Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro), relatórios

emitidos por órgãos públicos e organismos internacionais (Conselho Nacional de

Justiça, Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Subcomitê da

ONU para a Prevenção à Tortura) e por organizações não-governamentais,

nacionais e internacionais, acerca da política criminal penitenciária, em especial

no Rio de Janeiro (Anistia Internacional, Associação para a Prevenção à Tortura,

Human Rights Watch e Pastoral Carcerária).

Além disso, o trabalho se utiliza da técnica de revisão bibliográfica, no

campo jurídico-sociológico, através de abordagem essencialmente interdisciplinar,

mobilizando diversos campos do saber como Direito Penal, Execução Penal,

Criminologia, Sociologia, Direitos Humanos, Filosofia Política, Ciência Política e

História, para a compreensão de tema marcado pela complexidade e atualidade,

como o encarceramento massivo e seus efeitos perniciosos.

Cabe ainda destacar que se trata de pesquisa ancorada no método

materialista-histórico dialético. Trata-se de método de análise desenvolvido pelo

filósofo alemão Karl Marx, que se propõe à interpretação da realidade a partir da

materialidade e concreticidade, desta forma, propondo a reinterpretação da

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dialética de Hegel. Para Marx, Hegel trata a dialética idealmente no plano do

espírito, das ideias, enquanto o mundo dos homens exige sua materialização. É

com esta preocupação que Marx deu o caráter material (os homens se organizam

na sociedade para a produção e a reprodução da vida) e o caráter histórico (como

eles vêm se organizando através de sua história).

Esta perspectiva téorica considera que somos influenciados pelas relações

sociais de produção. “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é

o seu ser social que, inversamente, determina sua consciência” 6 Porém, não há o

determinismo absoluto, o homem tanto cria suas relações sociais quanto é por elas

criado. Na concepção de Marx: “As circunstâncias fazem os homens da mesma

forma que os homens fazem as circunstâncias”7. Nesta perspectiva, o real é

também dialético, visto que o processo histórico é movido por contradições

sociais.

A partir destas preocupações, Marx desenvolve uma metodologia própria

para interpretação da realidade8. O método materialista histórico dialético será o

norteador da análise da dinâmica de funcionamento do sistema penal e suas

interfaces com o sistema econômico.

Vale dizer que esta tese não se propõe a um estudo neutro ideologicamente

e puro cientificamente. Pretende-se desenvolvê-la nos marcos da pesquisa-

intervenção. Como afirma Regina Benevides de Barros:

Na pesquisa-intervenção, conforme entendemos, teoria e prática são práticas. Práticas que abandonam sua vontade de verdade e mergulham nas linhas que cartografam os movimentos dos fluxos. Seguem-nas em seus devires contagiantes que fazem ruir a separação sujeito-objeto9.

Nesta esteira, parafraseando Darcy Ribeiro10, o que se pretende é o

desenvolvimento desta tese como obra participante, fruto não apenas de acúmulo

6 MARX, K. e ENGELS, F., A ideologia alemã, p. 56. 7 Ibid. 8 Podemos encontrar elementos para a compreensão do Método nos primeiros escritos de Marx como na Ideologia Alemã e nos Manuscritos Econômicos Filosóficos, por exemplo, mas é em O Capital, sua mais importante obra, que encontraremos, não uma exposição do Método, mas sua aplicação nas análises econômicas ali empreendidas. A Contribuição à Critica da Economia Política, texto introdutório de O Capital, talvez seja o texto de Marx que mais se aproxima de uma sistematização do Método. 9 Ver em: Barros, R.D. Benevides de, Grupo: afirmação de um simulacro. 10 RIBEIRO, D., O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil, p. 17.

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teórico, mas, sobretudo prático, em virtude da atuação junto ao Mecanismo

Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, possibilitando a experiência com a

realidade do cárcere e dos atores sociais que o envolvem.

O referencial teórico que norteia este trabalho centra-se na Escola da

Criminologia Crítica, notadamente a partir dos trabalhos de Alessandro Baratta,

Nilo Batista, Eugênio Raúl Zaffaroni, Vera Malaguti, e Loic Wacquant. O enfoque

criminológico-crítico será a chave de leitura à pesquisa, para compreender as

relações entre o sistema penal e o sistema econômico, e suas implicações na

dinâmica do cárcere.

Além disso, pretende-se agregar à elaboração da tese o arcabouço teórico

do “paradigma da biopolítico”, valendo-se da contribuição de pensadores como

Michel Foucault, Gilles Deleuze e Giorgio Agamben para trabalhar conceitos

centrais como Estado de exceção, biopolítica, homo sacer, campo e cartografia.

Deste modo, esta tese busca não pautar-se pela dicotomia presente em

alguns círculos acadêmicos, entre a produção teórica de Marx e Foucault. Aliando

estes dois campos teóricos, pretende-se tanto a compreensão da dimensão

econômico-politica e da dimensão microfísica do poder (das disciplinas à

biopolitica) no que se refere ao cárcere.

Nesta esteira, a tese será desenvolvida em cinco momentos distintos:

1. Histórico-cronológico: No primeiro capítulo do trabalho coloca-se em

análise a (des)legitimidade do sistema penal. Busca-se verificar a discrepância

entre o discurso jurídico-penal e sua materialidade. Deste modo, percorrendo o

olhar sobre a gênese da prisão, bem como sobre os modelos penitenciários e as

teorias justificantes da pena ao longo da história, para apresentar um panorama

sobre a crise atual que acomete a instituição carcerária.

2. Econômico-político: Em um segundo momento, passamos a analisar o

sistema penal contemporâneo, diante das inflexões do modelo econômico

neoliberal. Para tanto, será necessário, primeiramente, descortinar as interfaces

dos modelos punitivos e dos sistemas econômicos. Já no seio do capitalismo pós-

industrial, cabe se debruçar sobre o sistema penal nos EUA, naquilo que Loic

Wacquant irá denominar de Estado penal, dando ensejo ao grande

encarceramento. É imprescindível perceber de que maneira se processa a

expansão monumental do sistema punitivo, que passa a ser exportada como

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modelo a ser seguido. Neste sentido, é preciso verificar o delineamento do Estado

penal no Brasil e suas peculiaridades que irão desembocar no encarceramento

massivo.

3. Analítico-cartográfico: Já o terceiro capítulo, propõe-se a realizar uma

cartografia do cárcere no Rio de Janeiro, percorrendo a travessia pelas entranhas

do sistema penitenciário diante dos perniciosos efeitos da penalidade neoliberal.

Assim, buscamos identificar os reflexos do hiperencaceramento, a partir de

relatórios sobre visitas in loco às unidades prisionais realizadas pelo MEPCT/RJ,

examinando em que medida a superlotação impacta a realidade prisional na forma

de violações de direitos das pessoas encarceradas.

4. Analítico e teórico: No capítulo quatro, pretende-se aferir em que

medida a realidade de superlotação e as precárias condições carcerárias podem ser

identificados como situação de tortura, ou tratamentos cruéis, desumanos ou

degradantes. Para tanto, se faz necessário compreender o conceito de tortura, sua

ampliação na atualidade e suas conexões com o sistema penitenciário.

5. Propositivo: Por fim, o quinto capítulo objetiva indagar sobre as

possíveis estratégias de contenção do grande encarceramento. Partindo do

conceito de criminologia cautelar de Zaffaroni, busca-se apontar um panorama de

medidas que poderiam representar um dique de contenção à expansão do sistema

penal. Ao final, serão apresentadas as conclusões parciais desta pesquisa e seus

desdobramentos.

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2 A (des)legitimidade do Sistema Penal: crise dos modelos e fundamentos

Costuma-se dizer que ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de suas prisões. Uma Nação não deve ser julgada pela forma como lida com os seus cidadãos privilegiados, mas pela maneira como trata os mais humildes.

(Nelson Mandela)11

O projeto político gestado na modernidade se constitui com suposta

afirmação da civilização em detrimento da barbárie12. Este ideal civilizatório é

compreendido no bojo dos postulados iluministas de racionalidade, emancipação e

liberdade. Representaria o antagonismo do estado de natureza e da

irracionalidade.

Os fundamentos modernos do direito de punir encontram-se justamente na

criação da figura do Estado, em tese, imbuídos deste escopo civilizatório13. Neste

sentido, o criminólogo John Pratt afirma que:

quanto mais uma sociedade castiga a seus delinquentes, mais ela é considerada ‘civilizada’, avançada, socialmente justa, etecetera; deste modo, a ‘civilização’ ajuda a estabelecer os parâmetros culturais do castigo14.

Entretanto, como aponta o jurista italiano Luigi Ferrajoli, um olhar atento

ao passado nos revela que “a história das penas é mais sangrenta do que a história

dos crimes”15. Os modelos de punição, que a priori deveriam representar o triunfo

da razão e da civilização, passam a promover irracionalidade e barbárie16.

11 MANDELA, N., Longo caminho para a liberdade. 12 Para Menegat, à luz dos estudos da Escola de Frankfurt, a categoria barbárie não deve ser compreendida como antagônica à noção de civilização, mas sim como excesso de civilização. MENEGAT, M., Depois do fim do mundo: a crise da modernidade e a barbárie. 13 Antônio Moniz Sodré de Aragão, jurista brasileiro do início do século XX, afirmara que “o Direito Penal é o produto da civilização dos povos, através da longa evolução histórica”. ARAGÃO, A. M. S. de, As três escolas penais: clássica, antropológica e crítica. 14 PRATT, J., Castigo y civilizacion: uma lectura crítica sobre las prisiones y los regimes

carcelarios, p. 16. 15 FERRAJOLI, L. Direito e Razão, p. 365. 16 PRATT, J., op. cit., p. 26-27.

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Zygmunt Bauman, na obra Modernidade e Holocausto, ao explicar a

barbárie dos métodos de punição na Alemanha nazista salienta que:

Se estabeleceu uma extraordinária capacidade de coabitação pacífica e harmoniosa dos modos civilizados com o extermínio em massa (...). Estes mecanismos necessitam do código civilizado de conduta para coordenar ações criminais de tal modo que raramente colidiram com a confiança no próprio caráter dos violadores. (...) A maioria dos observadores reagiam conforme as normas civilizadas frente a coisas desagradáveis e bárbaras: desviavam o olhar17.

Desta forma, percebe-se que historicamente, o sistema punitivo opera em

uma racionalidade fincada em um discurso jurídico-penal completamente

dissociado de sua materialidade. Em nome da razão e da civilização, promove-se

violência, arbítrio e sofrimento.

Esta contradição parece se expressar claramente na prisão, principal

manifestação punitiva contemporânea, ao naturalizar as condições desumanas e

degradantes de detenção, torturas, superlotação, promiscuidade, ruptura de laços

afetivos, e outras tantas privações aniquiladoras da subjetividade dos

aprisionados.

A partir deste paradoxo entre o discurso jurídico-penal, ancorado nos

ideais de racionalidade e civilização, e sua realidade prática, promotora de

irracionalidade e barbárie, neste primeiro capítulo iremos abordar a

(des)legitimidade do sistema penal em face da crise que lhe acomete.

Deste modo, compartilhamos o entendimento de Eugênio Raúl Zaffaroni,

para quem o ponto de partida para uma reflexão sobre o sistema penal é a

constatação de sua crise. A negação desta, muitas vezes observada nos discursos

dos gestores públicos, revela-se como sintoma da própria crise. Em suas palavras:

como em qualquer emergência, à medida que a situação vai se tornando insustentável, começa a operar-se a evasão mediante mecanismos negadores que, em nosso caso, aparentam conservar a antiga segurança de resposta. Embora reconheçam-se “problemas” que costumam ser deixados de lado, através de uma delimitação discursiva arbitrária que evita confrontar a crise.18

17 BAUMAN, Z., Modernidade e Holocausto, p. 110. 18 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 12.

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Nesta esteira, pretendemos neste capítulo primeiramente, abordar os

conceitos de controle social e sistema penal, com base, sobretudo, na contribuição

teórica de Zaffaroni, verificando as incongruências entre seu discurso e sua

operacionalidade.

Em segundo plano, será trazida a lume a gênese da prisão, identificando

seu marco inicial na modernidade, passando pelas contribuições dos principais

idealizadores do movimento de reforma prisional, chegando à constatação de sua

permanente crise.

No terceiro item, serão analisados os modelos penitenciários, abordando as

principais experiências implementadas no Ocidente e as razões para seu flagrante

insucesso na redução da violência e da criminalidade.

Posteriormente, o quarto item se propõe a descortinar os fundamentos da

pena, visualizando, de um lado, as teorias penalógicas legitimantes, de outro, os

discursos deslegitimantes que apontam as falácias do discurso oficial da pena, à

luz da Criminologia Crítica.

2.1 O horizonte de projeção do sistema penal

2.1.1 Sistema penal e controle social

Os conflitos, no interior de uma determinada sociedade são medidos

segundo uma dinâmica que vai configurando a estrutura de poder existente

conforme estratégias de controle social. A acepção de controle social está

intrinsecamente associada ao modelo de estado no qual está inserido, sendo

muitas vezes utilizada para justificar massacres e atrocidades cometidas através do

aparato repressivo do Estado19.

Na obra Visions of the Social Control, o sociólogo norte-americano

Stanley Cohen define controle social como:

19 Zaffaroni aponta que em estados autoritários, que denomina de estado de polícia, as estratégias de controle social assumem condão repressivo. Ao contrário, no Estado de Direito, o controle social deve respeitar as garantias penais e processuais penais. O autor lembra ainda que “o estado de polícia não está morto num estado de direito real, senão encapsulado em seu interior e na medida em que este se debilita o perfura e pode fazê-lo estalar”. ZAFFARONI, E. R., Estructura básica del derecho penal, p. 30-31.

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um conjunto de formas organizadas através do qual uma sociedade responde a comportamentos de grupos sociais e até mesmo pessoas que se qualificam como desviante, perturbador, ameaçador, criminosos, indesejáveis , etc. Aos quais trata de induzir à conformidade com a ordem social.20

Cohen aponta ainda que "controle social é, por um lado, o aparelho de

Estado coercitivo, ou um elemento oculto em qualquer política social”21. Assim,

se manifesta a ação dos grupos dominantes para orientar a cooptação ou

neutralização das formas de contestação à ordem posta22.

Como salientam Nilo Batista e Zaffaroni, “todas as sociedades

contemporâneas que institucionalizam ou formalizam o poder (estado) selecionam

um reduzido número de pessoas que submetem à sua coação com o fim de impor-

lhes uma pena”23. Este controle social exercido pelo poder do estado de punir -

o jus puniendi - impregnado de ideologias de uma classe dominante, pretende

justificar seus meios e induzir a sujeição das classes dominadas, manifestando-se

como resultado da gestão de um conjunto de agências24 que constituem o

chamado sistema penal. Vale verificar a defnição de Zaffaroni e Pierangli a este

respeito:

Chamamos “sistema penal” ao controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define até que se impõe e executa uma pena, pressupondo, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação. Esta é a ideia geral de "sistema penal" em um sentido limitado, englobando a atividade do

20 COHEN, S., Visions of social control: crime, punishment and classification, p. 15. 21 Ibid., p. 16. 22“En suma, el control social y específicamente el control penal que se atribuye la posibilidad de ser una 'solucion al problema de la delincuencia' se despliega en el nuevo escenario de la economía de mercado, la competencia y el utilitarismo no solidario; su estrategia no es tanto para corregir los problemas del orden social referido, sino de su mantenimiento y reproducción; para ello utiliza como nuevas herramientas del control social, políticas sociales neutralizadoras e incapacitadoras de gran parte de la población, por acción u omisión, y el aumento de formas represivas por medio dela acción policial”. PEGORARO, J. S. Inseguridad y violencia en el marco del control social, p. 349. 23 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 43. 24 “A referência aos entes gestores da criminalização como agências tem como objetivo evitar outros substantivos mais valorados, equívocos ou inclusive pejorativos (tais como corporações, burocracias, instituições, etc.). Agência (do latim agens, particípio do verbo agere, fazer) é empregada aqui no sentido amplo e, dentro da possibilidade, neutro de entes ativos (que atuam)”. Ibid., p. 43.

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legislador, do público, da polícia, dos juízes, promotores e funcionários e da execução penal.25

Neste sentido, o sistema penal divide-se em três segmentos: policial,

judicial e executivo. Segundo Nilo Batista, este compõe-se pela instituição

policial, instituição judiciária e instituição penitenciária26. Esse grupo de

instituições seria o responsável pela materialização do Direito Penal e, ainda,

seguindo o raciocínio do autor, essas instituições se revelam em três nítidos

estágios: a polícia como responsável pela investigação dos crimes, o promotor

representando a justiça pública, o juiz no papel de “aplicador da lei”, e no último

estágio, se condenado o réu a uma medida privativa de liberdade, a instituição

penitenciária27.

Zaffaroni e Pierangeli irão incluir também, como componentes do sistema

penal o Poder Legislativo e a sociedade. Os legisladores atuando na criação da

norma penal incriminadora e a sociedade com a faculdade de colocá-la em

funcionamento através da comunicação do fato criminoso28. Além da dimensão do

controle social institucionalizado, ou controle social formal29 - percebido no

sistema penal - há ainda o controle social difuso, ou controle social informal,

constituído por agentes como a família, a escola, e a mídia:

Os agentes de controle social informal tratam de condicionar o indivíduo, de discipliná-lo através de um largo e sutil processo (...) Quando as instancias informais do controle social fracassam, entram em funcionamento as instâncias formais, que atuam de modo coercitivo e impõem sanções qualitativamente distintas das sanções sociais: são sanções estigmatizantes que atribuem ao infrator um singular status (de desviados, perigoso ou delinquente).30

25 ZAFFARONI, E. R.; PIERANGELI, J. H., Manual de Direito Penal brasileiro, p. 69 et. seq. 26 BATISTA, N. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro, p. 25. 27 Em que pese normalmente esses grupos dividirem-se por etapas, não obedecem necessariamente uma ordem cronológica, nem são totalmente independentes entre si, eis que podem atuar e/ou interferir em diversos momentos uns nos outros. Assim, conforme explicam Zaffaroni e Pierangeli “o judicial pode controlar a execução, o executivo ter a seu cargo a custódia do preso durante o processo, o policial ocupar-se das transferências de presos condenados”. ZAFFARONI, E. R.; PIERANGELI, J. H., Manual de Direito Penal brasileiro, p. 70 et. seq. 28 Ibid., p. 71. 29 Nilo Batista e Zaffaroni optam pela distinção entre Controle Social Institucionalizado, onde está compreendido o sistema penal, e Controle Social Difuso, que se constitui a partir do conjunto de agências que exercem o controle social fora do aparato estatal. Por sua vez, adeptos da Escola Científica Moderna, adotam a distinção entre Controle Social Formal e Informal. MOLINA, A. G.; GOMES, L. F., Criminologia, 134. 30 MOLINA, A. G.; GOMES, L. F., Criminologia, p. 134.

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Na lição de Zaffaroni, o Estado caracteriza-se por utilizar como meio a

"punição institucionalizada", assim entendida como "imposição de uma cota de

dor ou privação legalmente prevista, ainda que nem sempre demonstradas como

tais pela mesma lei, que pode assinalar-lhe fins diferentes"31. Dessa forma,

encontra-se o controle social punitivo institucionalizado como punitivo,

identificado no sistema penal composto por um conjunto de órgãos estatais

(agências policiais, judiciárias e penitenciárias), e um controle social punitivo

institucionalizado como não punitivo, por exemplo, através de políticas de

assistência, terapia, trabalho.

O sistema punitivo se notabiliza por uma seletividade estrutural32, sendo

exercido de modo profundamente desigual ao conferir privilégios aos detentores

de poder e deixar à mercê os excluídos. Conforme Nilo Batista e Zaffaroni:

Assim como a seleção criminalizante resulta da dinâmica de poder das agências, também a vitimização é um processo seletivo que corresponde à mesma fonte e reconhece uma etapa primária. Na sociedade há sempre pessoas que exercem poder mais ou menos arbitrário sobre as outras, seja de forma brutal ou violenta, seja de forma sutil e encoberta.33

Deste modo, evidencia-se uma latente disparidade entre o discurso que

autoriza o poder punitivo e a sua operacionalidade. Este descompasso estrutural

revela a tentativa de revestir a realidade do sistema penal de uma pseudo-

legitimidade, como verificaremos no próximo tópico.

2.1.2 Discurso e operacionalidade do sistema penal: (i)legalidade e (des)legitimidade

Falar de legitimidade do sistema penal é falar de algo ainda não realizado,

quiçá de uma utopia, uma promessa inalcançável. Zaffaroni, em sua obra clássica

Em Busca das Penas Perdidas - diálogo com outro clássico da literatura

criminológica, Penas Perdidas de Louk Hulsman -, faz uma detida abordagem

sobre a questão, afirmando que “por legitimidade do sistema penal entendemos a

31 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 15. 32 BARATA, A. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p. 102. 33 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p 53.

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característica outorgada por sua racionalidade”34. Ou seja, Hulsman, aponta que o

sistema penal almeja evidenciar-se como um exercício de poder racionalmente

planejado.

Assim, se o sistema penal operasse em consonância com o discurso

jurídico-penal (a Ciência Penal, ou também se poderia denominar Saber Penal),

seria provido de legitimidade. Neste sentido, verifica-se um descompasso abissal

entre a previsão abstrata do saber e o exercício material do poder na questão

criminal. Desta forma, a análise sobre a (des)legitimidade do sistema penal centra-

se, sobretudo, na tensão presente entre o binômio saber/poder, temática esta

considerada decisiva para Michel Foucault35.

A legitimidade do sistema penal estaria condicionada, na ótica de

Zaffaroni, à sua racionalidade, entendendo esta como a junção de duas

características: a) “coerência interna do discurso jurídico-penal”; b) “seu valor de

verdade quanto à nova operatividade social” 36.

A coerência interna, historicamente estaria comprometida pelo positivismo

jurídico-penal e pelo decisionismo37 que marcam o exercício do poder punitivo,

delineando o fracasso de uma pretensa legitimação racional do sistema penal.

Entretanto, a racionalidade do discurso jurídico-penal não estaria limitada

à sua coerência interna. Conforme leciona o jurista argentino, para que o discurso

jurídico-penal saia do texto legal (âmbito do “dever ser”) para a realidade concreta

(âmbito do “ser”), são necessários dois níveis de “verdade social” 38.

Primeiramente, um nível abstrato, segundo o qual o programa

criminalizante (criminalização primária) pode ser considerado um meio eficaz

para alcançar os fins propostos pelo sistema penal. Em segundo lugar, um nível

concreto, que deve exigir que os indivíduos convivessem em coletividade em

34 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p 16. 35 A temática do saber/poder é trabalhada por Foucault em diversas obras, estabelecendo a relação entre o surgimento de novos saberes e novas tecnologias de poder, manifestas no tratamento da loucura, no controle da sexualidade e na prisão. FOUCAULT, M., História da loucura na Idade Clássica; id., Vigiar e punir. 36 ZAFFARONI, E. R., op. cit., p. 17. 37 O Positivismo jurídico coloniza o saber penal, reduzindo-o a meras análises dogmáticas, dissociadas de uma compreensão crítica e transdisciplinar. Por sua vez, o decisionismo traduz-se no arbítrio reinante na aplicação e na execução da Lei Penal. 38 ZAFFARONI, E. R., op. cit., p 17.

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consonância com a ordem jurídico-penal. Se o discurso jurídico-penal não atende

a estes dois níveis de verdade social, empiricamente revela-se como falácia.

Assim, o discurso jurídico-penal não pode encastelar-se no “dever ser”,

dissociando-se do “ser”, caminho que o conduz à irracionalidade. Hans Kelsen

salienta que a distinção entre “ser” e “dever ser” serve para diferenciar entre o

reino dos fatos, relacionado ao ser, e o reino das normas, relacionado ao dever-ser.

Nesta linha, o discurso jurídico-penal estaria restrito ao reino das normas, ao

passo que a realidade do sistema penal estaria compreendida no reino dos fatos39.

A irracionalidade do discurso jurídico-penal traz consigo a crise de

legitimidade do poder punitivo estatal, verificável, na periferia do capitalismo, de

modo ainda mais impactante do que nos países centrais. Neste particular, segundo

Mathiesen:

em diversos países ocidentais existem provavelmente grandes variações quanto ao nível de legitimação. (...) A crise de legitimidade se reflete no processo de tomada de decisão nos poderes legislativos e nos tribunais. Mais precisamente em ambas as instituições a crise de legitimidade se percebe como uma nova e maior necessidade de disciplina em determinados segmentos e grupos da população.40

O autor apresenta densa análise empírica sobre a deslegitimação do

sistema penal tanto na Europa Ocidental, como nos EUA. Por sua vez, Zaffaroni,

ao propor uma leitura da criminologia a partir da história da periferia colonial, que

denomina de Realismo Marginal41, destaca que a crise é ainda mais abissal na

América Latina, nossa região marginal.

Vale dizer que a noção de legitimidade não se confunde com a de

legalidade. No âmbito da legalidade, há uma conformidade do estado de coisas

com a ordem jurídica vigente. Por sua vez, no que se refere à legitimidade, requer-

se uma adequação do fato aos princípios e valores fundantes de determinada

sociedade.

39 KELSEN, H., Teoria Pura do Direito. 40 MATHIESEN, T., Juicio a la prision, p. 52 et. seq. 41“Desse modo, fui sentindo que também na dogmática jurídica havia algo que não encaixava. Não demorei muito para advertir que a chave estava na política criminológica e em sua estreita dependência da política geral, em perceber que a dogmática jurídico-penal é um imenso esforço de racionalização de uma programação irrealizável e que a criminologia tradicional ou etiológica é um discurso de poder de origem racista e sempre colonialista.” ZAFFARONI, E. R., Criminologia: aproximación desde una margen, p. 11.

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No que tange à ponderação acerca da legalidade do sistema penal, esta

reside na avaliação sobre a sua conformidade com o ordenamento jurídico.42

Entretanto, não apenas a materialidade do exercício do poder no sistema penal,

como o próprio saber penal, afasta-se da observância do princípio da legalidade,

tanto em âmbito penal, como processual penal.

Na ótica de Zaffaroni, em sua operacionalidade o sistema penal não é

limitado pela legalidade:

o discurso jurídico-penal exclui de seus requisitos de legalidade o exercício do poder de sequestro e estigmatização que (...) fica a cargo de órgãos executivos, sem intervenção efetiva dos órgãos judiciais. A lei permite, deste modo, enormes esferas de exercício arbitrário do poder (...) que se exercem cotidiana e amplamente à margem de qualquer “legalidade” punitiva contemplada no discurso jurídico-penal.43

Em apenas uma análise superficial, logo nota-se que a realidade do sistema

penal não se encaixa aos moldes desse discurso. Como bem diz Zaffaroni

“achamo-nos, em verdade, frente a um discurso que se desarma ao mais leve

toque com a realidade”44. Nilo Batista também aborda a falsa operacionalidade do

sistema penal, referindo-se à seletividade, à repressividade e à estigmatização

como características nucleares do sistema penal, atingindo mais

significativamente determinadas pessoas integrantes de certos grupos sociais mais

vulneráveis ao poder punitivo. Há uma clara contradição entre as linhas

programáticas legais e o real funcionamento das instituições que as executam:

Assim, o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas (...). O Sistema penal é também apresentado como justo, na medida em que buscaria prevenir o delito, restringindo sua intervenção aos limites da necessidade (...) quando de fato seu desempenho é repressivo, seja pela frustração de suas linhas preventivas, seja pela incapacidade de regular a intensidade das respostas penais, legais ou ilegais. Por fim, o sistema penal se apresenta comprometido com a proteção da dignidade humana (...) quando na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação na figura social de sua clientela.45

42 Neste âmbito, compreende-se o princípio da legalidade, tido como alicerce do Estado de Direito (ao mesmo tempo governo sub lege, ou seja, submetido às leis, e governo per leges, isto é, governo pautado por leis gerais e abstratas. FERRAJOLI, L., Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 789. 43 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p 22. 44 Ibid., p. 12. 45 BATISTA, N., Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro, p. 25 et. seq.

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Não sem motivo, Loic Wacquant irá apontar que a prisão é uma instituição

fora da legalidade46. A arbitrariedade do exercício do poder punitivo reflete-se na

seletividade estrutural do sistema penal. Reforça-se assim a incerteza e a injustiça,

como elementos constitutivos do sistema penal, antípodas da certeza, e da busca

do ideal de justiça, que deveriam delinear um modelo penal racional - na

concepção de Luigi Ferrajoli, único modelo legítimo em um regime político

democrático47.

A própria realidade do sistema penitenciário, marcada por brutal violência

institucional, é evidência fática da ausência de legitimidade. Mortes, torturas,

corrupção, aniquilação de subjetividades, extorsões, prisões ilegais e demais

violações de direitos compõem um cenário sombrio onde a legalidade é relegada a

mera ficção.

2.2 Gênese e crise da prisão

Para traçar uma genealogia da prisão como dispositivo de punição, é

necessário ter por referência a obra de Michel Foucault. Seu objetivo, em Vigiar e

Punir é analisar a história do poder de punir através do surgimento da prisão, que

transfigura o modelo punitivo, dos suplícios do corpo no medievo, para a

introjeção de disciplina e controle no “arquipélago carcerário” do capitalismo

moderno.

Nas palavras de Juarez Cirino:

No estudo da prisão, a originalidade de FOUCAULT consiste em abandonar o critério tradicional dos efeitos negativos de repressão da criminalidade, definido pelas formas jurídicas e delimitado pelas consequências da aplicação da lei penal, para pesquisar os efeitos positivos da prisão, como tática política de dominação orientada pelo saber científico, que define a moderna tecnologia do poder de

46 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos. 47 Ferrajoli identifica que ao contrário da racionalidade e certeza preconizadas pelo modelo do direito penal mínimo, “o modelo do direito penal máximo, quer dizer, incondicionado e ilimitado, é o que se caracteriza, além de sua excessiva severidade, pela incerteza e imprevisibilidade das condenações e das penas (...)”. FERRAJOLI, L., Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 102.

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punir, caracterizada pelo investimento do corpo por relações de poder, a matriz comum das ciências sociais contemporâneas.48

Durante a Idade Média, a despeito de sua existência, a prisão não consistia

em privação de liberdade como sanção penal49. O modelo penal do Ancien

Régime, alicerçado nas torturas, penas corporais e de morte, pressupunha o

cárcere com finalidade primordialmente de contenção e custódia do réu que

aguardava a execução da pena.

Carcer enim ad continendos homines non ad puniendos haberi debet (As prisões existem apenas para prender os homens e não para puni-los) (Justinian. Digest, 48.19.8). Este é o princípio dominante por toda a Idade Média e o início da Idade Moderna. Até o século XVIII, as grades foram simplesmente o lugar de detenção antes do julgamento, onde os réus quase sempre perdiam meses ou anos até que o caso chegasse ao fim.50

Na passagem do século XVI para o XVII, no bojo da Reforma Protestante,

ocorre o que o criminólogo italiano Dario Melossi descreve como um encontro

entre a pena eclesiástica (embasada na penitência e isolamento em celas) e outra

invenção: a manufatura. Segundo o autor, o desenvolvimento da forma originária

dos cárceres (casas de trabalho e casas de correção) teria ocorrido

simultaneamente ao início do desenvolvimento de formas protocapitalistas e do

protestantismo51.

Nesse contexto, são concebidas a prisão de Estado e a prisão eclesiástica.

Na primeira, eram recolhidos os inimigos que tivessem cometido delitos de

traição, ou os adversários políticos52. A prisão eclesiástica, por sua vez, regulada

pelo Direito Penal Canônico, destinava-se aos clérigos desviantes, utilizando o

isolamento como penitência e meditação para a expiação do pecado53.

48 CIRINO DOS SANTOS, J., 30 anos de Vigiar e Punir. 49 BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 8. 50 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 88. 51 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 52 et. seq. 52 “A prisão de Estado apresentava-se sob duas modalidades: a prisão-custódia, onde ficavam os réus à espera da execução da verdadeira pena a ser aplicada, ou a detenção perpétua ou temporal (até receberam o perdão real). Os exemplos mais conhecidos são a ‘Torre de Londres’, a ‘Bastilha de Paris’, ‘Los Plomos’, etc”. BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 9. 53 Segundo Melossi, o regime penitenciário canônico compreendia diversas modalidades de execução de pena: “à privação da liberdade se acrescentaram sofrimentos de ordem física, outras vezes o isolamento celular (...) e sobretudo a obrigação do silêncio”. Segundo ele, a pena do cárcere canônico era um isolamento pelo tempo necessário à purificação e arrependimento, à correção diante de Deus. MELOSSI, D; PAVARINI, M., op. cit., p. 24 et. seq. A este respeito, ver

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Com a transição do medievo para a modernidade, a privação de liberdade

observará a transformação da prisão-custódia (meio) para a prisão-pena (fim). Por

esta perspectiva, Foucault, assevera que a prisão é menos recente do que a sua

formalização jurídica. A “forma-prisão” preexiste à sua previsão nas leis penais. A

constituição dessa engrenagem voltada à produção de indivíduos dóceis e úteis,

através do controle de seu corpo e da extração de suas forças, criou a prisão antes

de sua existência legal enquanto punição54.

O controle das ilegalidades através do cárcere data da passagem do século

XVIII ao século XIX, mas sua experiência enquanto mecanismo de coerção é

pretérita, baseando-se em instituições austeras que a originaram. Foucault destaca

a união da técnica de tratamento dos leprosos com a de tratamento da peste como

fato histórico imprescindível neste processo, tendo por base a medicina social e

seus efeitos sobre “as disciplinas dos corpos”55. Sobretudo no século XVII, em

França, foram criadas inúmeras casas de internamento, que abrigavam os

considerados insanos e os marginalizados, deixando um legado retomado no

limiar da modernidade como gênese da prisão. Neste particular, Gabriel Anitua

atenta que na realidade o leproso é apenas:

un tipo ideal de la gran mayoría de población marginada consitituida por otros enfermo y en particular por discapacitados, locos, mendigos, y por los acusados de cometer delitos o de practicar otra fe o simplemente por ser un colonizado, o parte de un género, el femenino, que debía construirse también para excluirlo y dominarlo.56

Na segunda metade do século XVI já havia se iniciado a criação e

construção de prisões organizadas, para a correção dos apenados, visando à

reforma dos delinquentes por meio do trabalho e da disciplina. Surgem na

Inglaterra as houses of correction ou bridwells, e sob similares orientações as

chamadas workhouses.

Entretanto, é com o século XVIII que eclode a grande crise da economia

dos castigos do Antigo Regime, abrindo a necessidade de uma nova forma de

também BITENCOURT, C. R., op. cit., p. 12: “A prisão canônica era mais humana e mais suave que os suplícios e as mutilações do direito laico. O direito canônico serviu consideravelmente ao surgimento da prisão moderna, especialmente no que se refere à reforma do infrator”. 54 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 195. 55 Id., História da loucura na Idade Clássica, v. 1 e 2. 56 ANITUA, G., Castigo, cárceles y controles, p. 29.

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controle social, partindo da premissa discursiva de que o castigo deve ter a

“humanidade como medida”57, passando a prisão a adquirir o status de principal

forma de punição.

Foucault afirma que se fosse necessário delimitar uma data na qual se

completa a formação do sistema carcerário, não seria com o Código Penal Francês

de 1810, tampouco em 1844, com a lei que estabelece o isolamento celular. O

momentum crucial seria 22 de janeiro de 1840, com a abertura oficial de Mettray,

uma importante colônia penal francesa para jovens58.

Mettray seria o símbolo do poder disciplinar em sua dimensão mais

intensa, abarcando distintas tecnologias coercitivas do comportamento. Sua

organização interna apresentava cinco modelos de referência: família, exército,

oficina, escola, e por fim, o modelo judiciário. A mínima desobediência era

castigada. Considerava-se o isolamento como a melhor sanção para atuar sobre a

moral das crianças. O auge do controle nesta instituição parapenal encontrava-se

no apelo religioso para a disciplina, com a inscrição nas celas: “Deus o vê”.

Em meados do século XVIII tem início a reforma humanitária do sistema

penal. O modelo penal medieval era marcado por penas cruéis e draconianas,

julgamentos arbitrários, rituais públicos de imposição de sofrimento, sem dispor

de qualquer limite ao poder punitivo.

A violência do sistema penal na Europa gerava por um lado temor e

obediência à parcela da sociedade, por outro, passou a alimentar levantes e

rebeliões populares. O sistema punitivo passa, então, a ser objeto de crítica de

diversos pensadores, filósofos e juristas.

O Iluminismo e as correntes humanitárias em ascensão atingem seu ápice

com a Revolução Francesa e a derrocada do Absolutismo. No bojo de sua pretensa

preocupação com a razão, o progresso e a humanidade, os iluministas passam a

conceber uma reforma do sistema penal, estabelecendo limites ao poder punitivo

57 Ibid. 58 O autor destaca especialmente o episódio no qual uma criança ex-interna da colônia, ao sair havia declarado “que pena ter que deixar tão cedo a colônia”. Outro egresso do estabelecimento teria elogiado a nova política punitiva: “Preferiríamos as pancadas, mas a cela é melhor para nós”. FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 243.

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estatal em proteção ao ser humano59. Dentre os principais ideólogos reformadores,

sobressaem-se Cesare Beccaria, John Howard e Jeremy Bentham60.

2.2.1 Beccaria e o iluminismo jurídico-penal

Cesare Bonessana (1738-1794), o Marquês de Beccaria, filósofo

contratualista imbuído dos princípios apregoados por Rousseau e Montesquieu,

publicou em 1764 a obra Dei Delitti e Delle Pene, que se tornou o símbolo da

reação liberal ao tirânico modelo penal então vigente. É um dos principais

defensores da pena de prisão como humanização do sistema penal61.

A principal contribuição da obra de Beccaria foi a utilização de uma

linguagem clara e direcionada ao grande público, permitindo a difusão dos ideais

da reforma rechaçados por juristas conservadores, pela magistratura e pela Igreja:

os dolorosos gemidos do fraco, sacrificado à ignorância cruel e aos opulentos covardes; os tormentos atrozes que a barbárie inflige por crimes sem provas, ou por delitos quiméricos; o aspecto abominável dos xadrezes e das masmorras, cujo horror é ainda aumentado pelo suplício mais insuportável para os infelizes, a incerteza; tantos métodos odiosos, espalhados por toda parte, deveriam ter despertado a atenção dos filósofos, essa espécie de magistrados que dirigem as opiniões humanas.62 Beccaria, principal expoente da Escola Clássica, traçou os delineamentos

da defesa social, adotando como lema o pensamento "é melhor prevenir o crime

59 Nesse contexto, apregoa-se a humanização das penas, dando ensejo, paradoxalmente, à implantação da guilhotina como pena de morte não cruel. BECCARIA, C., Dos delitos e das penas. 60 Dentre os ideólogos da reforma penal no século XVIII, Foucault ainda faz menção a Servan, Dupaty, Lacretelle, Duport, Pastoret, Target, Bergasse; os redatores dos Cahiers e os Constituintes. FOUCAULT, M., op. cit., p. 64. Anitua acrescenta ainda outros inúmeros representantes do penalismo ilustrado ou clássico, em França (Marat, Babeuf, Turgot, Gabriel Bonnot, Vermeil, Lois de Saint-Fargeau), na Itália (Pellegrino Rossi, di Natale, Antonio Genovesi, Filangieri, Romagnosi e Carmignani), na Inglaterra (William Blackstone, Samuel Romilly, William Eden, Godwin, além de Adam Smith, Thomas Paine e Edmund Burke), Estados Unidos (Edward Livingston), Alemanha (Karl Hommel, Karl Grolmann, além de Kant e Feuerbach), Áustria (von Sonnenfels), Espanha (Manuel de Lardizábal y Uribe, Pablo de Olavide, Foronda e Jovellanos) e Portugal (Mello Freire, Pedro e Alexandre Verri). ANITUA, G., Historia dos pensamentos criminológicos, p. 164 passim. 61 Seu legado marca o surgimento da Escola Clássica, da Criminologia e do Direito Penal. É um dos principais defensores da pena de prisão como humanização do sistema penal. Muitos princípios limitadores do poder punitivo preconizados por Beccaria foram incorporados pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1791. Cf. ANITUA, G., ibid., p. 164; e BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 32. 62 BECCARIA, C., Dos delitos e das penas, p. 24.

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do que castigá-lo". Destacou-se como um dos precursores na defesa dos direitos

humanos, antes mesmo da publicação da Declaração de Direitos do Homem e do

Cidadão. Assim conclui Dos delitos e das penas:

De tudo o que acaba de ser exposto pode deduzir-se um teorema geral utilíssimo, mas pouco conforme ao uso, que é o legislador ordinário das nações. E que para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente pública, pronta e necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei.63 Sem dúvida, Beccaria, representou um divisor de águas, constituindo-se

referência necessária nos estudos das ciências criminais. Como preleciona

Zaffaroni:

consideramo-lo um claro expoente do pensamento iluminista e sua importância, mais que filosófica e teórica, consideramo-la política, tendo sido decisiva, esse ponto de vista, como autor da pedra angular de todas as reformas penais que permitiram o posterior desenvolvimento de nossa disciplina na forma que apresenta contemporaneamente.64

Seu legado demarcou a emergência do Direito Penal Liberal e da

Criminologia Clássica, resultando na reforma humanitária que arrefeceu a

repressão penal do Antigo Regime, caracterizada pelos castigos físicos mais

atrozes e pela imposição da pena de morte.

2.2.2 Howard e a reforma penitenciária

John Howard (1726-1790), filantropo inglês, xerife do condado de

Bedfordshire, foi o principal representante do movimento iluminista na Inglaterra,

tendo importante papel no processo de humanização e racionalização das penas,

preocupando-se com as péssimas condições das prisões inglesas65. Em 1777

escreve o livro The State of Prisons in England and Wales, com um impactante

relato da realidade prisional da época. Muitos consideram Howard como o pai da

Ciência Penitenciária.

63 Ibid., p. 45. 64 ZAFFARONI, E. R.; PIERANGELI, J. H., Manual de Direito Penal brasileiro, p. 88. 65 BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 40.

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Defendia uma atitude filantrópica com relação ao cárcere, inspirando uma

corrente penitenciarista preocupada em construir estabelecimentos apropriados

para o cumprimento da pena privativa de liberdade. Embora não tenha conseguido

grandes transformações insistiu na necessidade de se construírem

estabelecimentos prisionais adequados, proporcionando um regime higiênico,

alimentar e de assistência médica que permitisse cobrir as necessidades

elementares na prisão. Para Melossi e Pavarini:

essa reação, contudo, não levará a um retorno das formas punitivas pré-carcerárias, mas sim a um endurecimento e a uma intensificação da função punitiva do próprio cárcere. Por outro lado, ao prescindir da racionalização e da introdução de uma maior decência e dignidade que o movimento iluminista impôs à reforma carcerária, esse processo estabelece uma continuidade com a situação dominante no século XVIII.66

O autor acreditava que o trabalho obrigatório, inclusive penoso, serviria de

meio adequado para a regeneração moral do delinquente. Defendia que a religião

seria o meio mais eficiente para obter a transformação do preso, servindo o

isolamento como suposto instrumento para propiciar reflexão e arrependimento, e,

ainda, como forma de combate à promiscuidade.

Deve-se observar que Howard acabou, inclusive, estimulando algumas

reformas legislativas, lutando pela eliminação do direito de carceragem, que era,

justamente, uma importância que os encarcerados deviam pagar a título de aluguel

aos donos dos locais de encarceramento. Na verdade, foi justamente com Howard

que nasceu o penitenciarismo67, marcando sua obra o início da luta interminável

para alcançar a suposta “humanização” das prisões.

2.2.3 O panóptico de Bentham

Jeremy Bentham (1748-1832) foi outro importante pensador e reformador

inglês. Exerceu grande influência na arquitetura penitenciária com o impacto de

66 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 69. 67 NEUMAN, E., Evolución de la pena privativa de libertad y regímenes carcelarios, p. 73.

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sua famosa obra The Panopticon, publicada em 1780, na qual, em suas próprias

palavras, estuda “racionalmente” o sistema penitenciário68.

Bentham preconiza uma arquitetura prisional na qual um observador

central poderia vigiar todos os locais onde houvesse presos, projeto este utilizado

na maioria das prisões na primeira metade do século XIX. O panóptico é ao

mesmo tempo um projeto arquitetônico e a materialização da ideologia de

controle e vigilância69. O autor considerava que o fim principal da pena era,

realmente, prevenir delitos:

O negócio passado não é mais problema, mas o futuro é infinito: o delito passado não afeta mais que a um individuo, mas os delitos futuros podem afetar a todos. Em muitos casos é impossível remediar o mal cometido, mas sempre se pode tirar a vontade de fazer mal, porque, por maior que seja o proveito de um delito, sempre pode ser maior o mal da pena.70

Na ótica de Melossi e Pavarini, o projeto benthaminiano, a despeito do fato

de não ter sido verdadeiramente implementado, possui influência decisiva nos

sistemas prisionais:

o cárcere se apresenta já numa fase intermediária em que a vocação produtivista – própria das primeiras experiências e depois retomada pelo Iluminismo – começa a se sobrepor ao objetivo intimidatório e de puro controle (...). O Panopticon de Bentham é uma tentativa ingênua e nunca concretizada de coordenar um exasperante sistema punitivo e de controle com a eficiência produtiva, tentativa que já revela a decidida tendência dos anos seguintes de privilegiar o primeiro aspecto.71

O panoptismo, na concepção crítica de Foucault, mais do que uma mera

arquitetura prisional, representava uma tecnologia de poder típica da Sociedade

Disciplinar. Seu advento, no início do século XIX, coincide com a disseminação

68 BENTHAM, J., O panóptico. 69 “O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens; um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça”. Cf. FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 169. 70 BENTHAM, J., Principios de la legislación y jurisprudência, p. 30. 71 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 70.

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sistemática de dispositivos disciplinares (na escola, na fábrica e outras

instituições) que galgavam vigilância e controle social cada vez mais intensos.72

O panóptico seria uma verdadeira máquina arquitetônica que serviria de

maneira perfeita à função de criar e manter uma relação de poder,

independentemente de quem o exercesse, pois aumentaria substancialmente a

eficácia no exercício do controle, evitando que os vigiados pudessem fugir do

olhar dominador e vigilante73.

Em verdade, o projeto panóptico não chegou a desenvolver-se plenamente

como imaginado por Bentham. Entretanto, tais ideias revelam-se em alguma

medida ainda atuais, tanto do ponto de vista da doutrina penitenciária, como do

plano arquitetônico.

2.2.4 Fracasso dos movimentos de reforma e crise do projeto ressocializador

Contrariando a leitura comumente observada acerca do movimento de

reforma prisional, Foucault considera, em síntese, que seu objetivo primordial é:

fazer da punição e repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir.74

Desta forma, o contexto no qual se insere a reforma não simboliza o

advento de uma nova sensibilidade e respeito pela humanidade dos condenados,

mas de uma nova forma de controle das ilegalidades. Esta transição aponta que o

direito de punir deslocou-se da vingança do soberano para a defesa da sociedade.

Entretanto, a arte de punir foi aprimorada, tornando-se mais temível e eficiente.

72 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 209. O tema do Panóptico - ao mesmo tempo vigilância e observação, segurança e saber, individualização e totalização, isolamento e transparência - encontrou na prisão seu local privilegiado de realização. Se é verdade que os processos panópticos, como formas concretas de exercício do poder, tiveram, pelo menos em estado disperso, larga difusão, foi só nas instituições penitenciárias que a utopia de Bentham pôde, num bloco, tomar forma material. 73 Ibid., p.169. 74 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 70.

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Esta nova economia das ilegalidades se estrutura com o desenvolvimento

do modelo econômico capitalista75. Para o capitalismo em ascensão, a imposição

da lógica do trabalho no seio da sociedade europeia irá valer-se de instituições

disciplinares, com o condão de gerar “corpos obedientes e dóceis”76.

Tal fato revela a extrema solidez da prisão, “essa pequena invenção

desacreditada desde o nascimento”77. Se tivesse sido criada apenas como um

dispositivo para eliminar delinquentes, teria sido mais facilmente confrontada e

substituída por outro mecanismo de controle. No entanto, o fato de ser entrelaçada

a vários dispositivos e estratégias de controle, gera grande dificuldade para quem

queira superá-la ou transformá-la78. Neste sentido, Foucault sustenta que:

a “reforma” da prisão é mais ou menos contemporânea da própria prisão. Ela é como que seu programa. A prisão se encontrou desde o início engajada numa série de mecanismos de acompanhamento que aparentemente devem corrigi-la, mas que parecem fazer parte de seu próprio funcionamento, de tal modo que têm estado ligados a sua existência em todo o decorrer de sua história.79

Precisamente, situa que “a crítica da prisão e de seus métodos aparece

muito cedo, nesses mesmos anos de 1820-1845; ela, aliás se fixa num certo

número de formulações que – a não ser pelos números – se repetem até hoje sem

quase nenhuma mudança”80.

A prisão não pode ser compreendida como uma instituição inerte, que seria

submetida a movimentos de reforma esporadicamente. Em verdade, a prisão

sempre esteve acompanhada de vasto conjunto de projetos, experiências,

discursos teóricos, testemunhos, inquéritos e remanejamentos.

75 Ibid., p. 74. Ver também KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social. 76 Segundo Foucault, seriam elas a prisão, como também a escola, o exército, o manicômio, o hospital, o convento, a oficina. Cada qual cumprindo a função estratégica de introjetar a disciplinarização dos corpos. FOUCAULT, M., op. cit., p. 118. Para Goffman, são as denominadas “instituições totais”, que, segundo o autor, pode ser definida como “um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”. GOFFMAN, E., Manicômios, prisões e conventos, p. 13. 77 FOUCAULT, M., op. cit., p. 252 78 Ibid., p. 252: “quando se pretende modificar o regime de encarceramento, as dificuldades não vêm só da instituição judiciária; o que resiste não é a prisão-sanção penal, mas a prisão com todas as suas determinações, ligações e efeitos extrajudiciários; é a prisão como recurso de recuperação na rede geral das disciplinas e das vigilâncias; a prisão, tal como funciona num regime panoptico”. 79 Ibid., p. 197. 80 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 221.

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Os sucessivos movimentos de reforma inócuos levam Foucault a concluir

que “conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa

quando não inútil. E, entretanto, não vemos o que pôr em seu lugar. Ela é a

detestável solução de que não se pode abrir mão”81.

Desta forma, percebe-se que o histórico quadro de crise permanente da

prisão, ao invés de servir à sua superação enquanto modelo punitivo tem atuado

como leitmotiv para sua perpetuação com estratégia de controle social símbolo da

sociedade capitalista.

2.3 Modelos de sistema penitenciário

A passagem dos suplícios, com seus rituais de sofrimento para a pena de

prisão, oculta nos cárceres sombrios, constitui uma transfiguração da arte de punir.

A conformação do modelo penal moderno, com base precípua na pena de prisão

vai delineando um aparelho disciplinar exaustivo. Busca controlar o indivíduo na

sua totalidade. Seu comportamento cotidiano, sua aptidão para o trabalho, sua

atitude moral, sua distribuição no espaço, seu tempo e suas implicações

judiciárias.

Foucault assevera que os princípios fundamentais da prisão residem em

“sete máximas universais da boa condição penitenciária”82, inalteradas há quase

dois séculos:

a) Princípio da Correção: a prisão deve ter por função essencial a transformação

do comportamento do indivíduo;

b) Princípio da Classificação: Os detentos devem ser isolados e classificados de

acordo com a gravidade de seu delito, além de repartidos segundo a idade,

técnicas de correção e fases do cumprimento da pena;

c) Princípio da Modulação das Penas: O cumprimento das penas deve poder ser

modificado conforme a individualidade do condenado, os resultados obtidos, o

seu comportamento carcerário;

d) Princípio do Trabalho como obrigação e como direito: O trabalho penal deve

ser instrumento crucial para a socialização progressiva do preso; 81 Ibid., p. 196. 82 Ibid., p. 224.

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e) Princípio da Educação Penitenciária: A educação do preso deve ser ao mesmo

uma medida indispensável para a sociedade e uma obrigação para o detento;

f) Princípio do Controle Técnico da Detenção: A execução penal deve ser

controlada por pessoal especializado que possua “capacidades morais e técnicas”

de garantir a boa formação dos internos;

g) Princípio das Instituições Anexas: O encarceramento deve ser associado a

medidas de controle e assistência até garantir a readaptação definitiva do preso.

Tais princípios acompanham a prisão como componentes de uma reforma

sempre inalcançada e fracassada. Como expectativa de superação de suas

vicissitudes, com o tempo, estratégias de disciplina e controle, modelos de gestão

do cárcere, vão sendo implementados.

Embora a prisão seja um fenômeno surgido na Europa, os primeiros

sistemas penitenciários são gestados nos Estados Unidos, com claras influências

dos postulados de Beccaria, Howard e Bentham. Antecedentes importantes

haviam surgido em estabelecimentos como nas Rasp-huis de Amsterdan, nos

Bridwells e workhouses na Inglaterra, e outros estabelecimentos prisionais na

Alemanha e na Suíça83.

Dessa forma, ao longo desse período de institucionalização da pena

privativa de liberdade, surgem os primeiros Sistemas Penitenciários, dentre os

quais analisaremos os que mais se destacaram: os sistemas filadélfico, auburniano

e os progressivos84.

2.3.1 Sistema filadélfico (solitary system)

O sistema pensilvânico ou filadélfico, também conhecido como sistema

belga ou celular, foi inaugurado em 1790 na prisão de Walnut Street, construída

em 1776, e, em seguida, implantado nas prisões de Pittsburgh e Cherry Hill. Os

principais precursores foram Benjamin Franklin e Willian Bradford, influentes

83 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 33 et. seq. BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 57. KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 61 passim. 84 Também merecem destaque o Sistema de Elmira, Sistema de Montesinos e o Sistema Borstal. Ver LEAL, C. B., Execução Penal na América Latina à luz dos Direitos Humanos, p. 76-80; GRECO, R., Direitos Humanos, sistema prisional e alternativas à privação da liberdade, p. 173. Para o Sistema de Montesinos ver BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 88.

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integrantes de sociedades Quakers, vertente do protestantismo que se instala nos

Estados Unidos.

Os Quakers e membros das classes dominantes do estado da Filadélfia,

representados pela Philadelphia Society for Alleviating the Miseries of Public

Prison, fizeram com que as autoridades iniciassem a organização de uma

instituição na qual o isolamento em uma cela, a oração e a abstinência total de

bebidas alcoólicas seriam meios adequados para “salvar tantas criaturas

perdidas”85.

Baseado no isolamento celular absoluto (solitary system), este sistema é

influenciado por convicções religiosas, pelo Direito Canônico, bem como os

ideais de Beccaria e Howard, para estabelecer uma finalidade e forma de execução

penal. Tinha por objetivo reduzir a violência, a promiscuidade e a corrupção no

cárcere.

O preso deveria permanecer isolado em uma cela, autorizado tão-somente

a passeios inconstantes no pátio da prisão. Não havia direito ao trabalho, à

educação ou ao recebimento de visitas, sendo vedado todo e qualquer contato com

o meio exterior, cabendo ao preso permanecer em silêncio, meditação e oração.

Incentivava-se a leitura da Bíblia, almejando a expiação da culpa e a correção dos

condenados, para que lograssem o perdão de sua conduta reprovável perante a

sociedade e o Estado. Sobre os malefícios do sistema filadélfico, Bittencourt

afirma que:

já não se trataria de um sistema penitenciário criado para melhorar as prisões e conseguir a recuperação do delinquente, mas de um eficiente instrumento de dominação servindo, por sua vez, como modelo para outro tipo de relações sociais.86

Nas palavras de Foucault, “no isolamento absoluto - como em Filadélfia -

não se pede a requalificação do criminoso ao exercício de uma lei comum, mas a

relação do indivíduo com sua própria consciência e com aquilo que pode iluminá-

lo de dentro”87.

85 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 169. 86 BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 61. 87 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 201.

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A despeito do discurso de que representaria uma salvaguarda à integridade

física do interno, o isolamento celular se constituía objetivamente como um

instrumento de tortura, incapaz de contribuir para a reabilitação do criminoso, tão

somente conferindo à pena um caráter retributivo e expiatório. Seus efeitos,

segundo von Hentig permitiam inferir que

depois da dureza dos trabalhos forçados declarou-se, sem horror, como novo procedimento coativo a forçosa ociosidade. A tortura se refina e desaparece aos olhos do mundo, mas continua sendo uma sevícia insuportável, embora ninguém toque no apenado. O repouso e a ordem são os estados iniciais da desolação e da morte.88

A combinação de isolamento e silêncio na execução penal foi duramente

criticada, alegando-se que a prática da separação absoluta e da proibição de

comunicação entre os presos ocasionava insanidade. Até mesmo representantes do

positivismo criminológico denunciaram as violações à dignidade humana

advindas do isolamento celular.

A prisão celular é desumana porque elimina ou atrofia o instinto social, já fortemente atrofiado nos criminosos e porque torna inevitável entre os presos a loucura ou a extenuação (por onanismo, por insuficiência de movimento, de ar, etc.)... A Psiquiatria tem notado, igualmente, uma forma especial de alienação que chama loucura penitenciária, assim como a clínica médica conhece a tuberculose das prisões. (...) O sistema celular é, além disso, ineficaz porque aquele isolamento moral, propriamente, que é um dos seus fins principais, não pode ser alcançado. (...) Por último, o sistema celular é muito caro para ser mantido.89

No entanto, apesar das críticas, o referido sistema foi implementado nos

Estados Unidos, e, com algumas modificações, também em diversos países da

Europa, durante o século XIX: Inglaterra em 1835, Bélgica em 1838, Suécia em

1840, Dinamarca em 1846, Noruega e Holanda em 1851, além da Rússia, também

na segunda metade do século XIX.

2.3.2 Sistema auburniano (silent system)

O sistema penitenciário auburniano tem origem com a construção da

penitenciária na cidade de Auburn, Nova Iorque, em 1818, na gestão do diretor 88 HENTIG, H. V., La pena, p. 225. 89 FERRI, E., Sociologia criminal, p. 317 et. seq.

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Elam Lynds. Constitui-se a partir da necessidade de superação das vicissitudes do

regime filadélfico. Menos gravoso que o sistema antecessor, permitia o trabalho

na prisão, inicialmente nas celas, e posteriormente em espaços comuns da unidade

prisional.

Cezar R. Bitencourt aponta que este sistema deixou de lado o isolamento

absoluto do preso por volta do ano de 1824, “a partir de então se estendeu a

política de permitir o trabalho em comum dos reclusos, sob absoluto silêncio e

confinamento solitário durante a noite”90. Tal exigência de silêncio entre os

condenados fez com que fosse denominado de silent system. Não era permitida

sequer a comunicação entre os presos, com o objetivo de alcançar o silêncio

absoluto.

Para Melossi e Pavarini, a imposição da atividade laboral na prisão

cumpriria sempre a função de formar um operário disciplinado e subordinado ao

poder econômico industrial91. Por sua vez, Foucault, ao analisar o sistema

penitenciário de Auburn, afirma que se trata de:

Referência clara tomada ao modelo monástico; referência também tomada à disciplina de oficina. A prisão deve ser um microcosmo de uma sociedade perfeita onde os indivíduos estão isolados em sua existência moral, mas onde sua reunião se efetua num enquadramento hierárquico estrito, sem relacionamento lateral, só se podendo fazer comunicação no sentido vertical. Vantagem do sistema auburniano segundo seus partidários: é uma repetição da própria sociedade.92

O principal traço distintivo entre o sistema filadélfico e o sistema

auburniano, consistia no isolamento. No primeiro, o preso era mantido segregado

diuturnamente, no segundo, era possível o trabalho coletivo por algumas horas,

com o isolamento celular noturno.

O modelo do solitary system objetiva, com a segregação, sobretudo ‘evitar

a contaminação moral entre presos e promover a reflexão e o arrependimento’,

restando como preocupação menor a obtenção de lucro através do trabalho

prisional. Por sua vez, o modelo auburniano, embora mantivesse a preocupação

90 BITENCOURT, C. R., Tratado de Direito Penal, p. 95. 91 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 175. 92 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 200.

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com a correção dos condenados, aparentemente atribuía prevalência à necessidade

de assegurar o lucro através das atividades laborativas no cárcere93.

Manoel Pedro Pimentel aponta as falhas que levaram ao fracasso do

sistema auburniano:

O ponto vulnerável desse sistema era a regra desumana do silêncio. Teria origem nessa regra o costume dos presos se comunicarem com as mãos, formando uma espécie de alfabeto, prática que até hoje se observa nas prisões de segurança máxima, onde a disciplina é mais rígida. (...). Falhava também o sistema pela proibição de visitas, mesmo dos familiares, com a abolição do lazer e dos exercícios físicos, bem como uma notória indiferença quanto à instrução e ao aprendizado ministrado aos presos.94

Segundo von Hentig, “apesar de utilizar métodos disciplinares draconianos

e cruéis, era espantosa a desordem na prisão de San Quentin, local em que se

desenvolveu o silent system”95. Trata-se de um indicador que permite colocar em

questão a eficiência dos procedimentos disciplinares para assegurar a ordem do

cárcere e a “recuperação dos condenados”.

2.3.3 Sistemas progressivos (mark system)

O sistema progressivo emerge com a consolidação do modelo penal

moderno e a difusão das ideologias “re” na administração penitenciária, com o

foco na suposta ressocialização do condenado. Bitencourt considera que o apogeu

da pena privativa de liberdade coincide com o abandono dos regimes celular e

auburniano, e a adoção do regime progressivo96.

Sua origem é inglesa, prevalecendo o registro de que teria sido

inicialmente desenvolvido por Alexander Maconochie, Capitão da Marinha Real,

93 A respeito da distinção entre os modelos filadélfico e auburniano, Foucault esclarece: “Nessa cela fechada, sepulcro provisório, facilmente crescem os mitos da ressurreição. Depois da noite e do silêncio, a vida regenerada. Auburn era a própria vida renovada em seus vigores essenciais. Cherry Hill, a vida aniquilada e recomeçada. (...) Na oposição entre esses dois modelos, veio se fixar toda uma série de conflitos diferentes: religioso (deve a conversão ser a peça principal da correção?), médico (o isolamento completo enlouquece?), económico (onde está o menor custo?), arquitetural e administrativo (qual é a forma que garante a melhor vigilância?)”. Ibid., p. 201. 94 PIMENTEL, M. P., O crime e a pena na atualidade, p. 138. 95 HENTIG, H. V., La pena, p. 229. 96 Bitencourt identifica o apogeu da pena privativa de liberdade no período que coincide com o abandono dos regimes celular e auburniano, e adoção do regime progressivo. BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 82.

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em 1840, na Ilha Norfolk, na Austrália, e após na Inglaterra. A partir do final do

século XIX disseminou-se por vários países da Europa Ocidental. No entanto, há

quem defenda que seu surgimento é tributário do Coronel Montesinos e Molina,

administrador do presídio de Valência em 183497.

A grande distinção para com os sistemas filadélfico e auburniano residia

no fato de que estes centravam-se na disciplina e correção do preso em uma

perspectiva intra-muros. Por sua vez, os sistemas progressivos buscam obter o

bom comportamento do apenado como condição para seu regresso ao convívio

social. Baseava-se, sobretudo, em um controle moralizante da execução penal,

calcado no senso de responsabilidade do apenado.

a) Sistema Progressivo Inglês

A essência do sistema progressivo inglês de Maconochie, também

denominado mark system, residia na avaliação do comportamento e

aproveitamento do preso, verificados pela boa conduta e pelo trabalho. Conforme

atendesse às condições estabelecidas, o preso recebia um determinado número de

marcas ou vales. Ao acumular um número proporcional, variável de acordo com a

gravidade do crime cometido, o preso passava a uma etapa menos gravosa da

execução penal.

O sistema pressupunha três etapas: primeiramente, mediante isolamento

celular durante dia e noite, com o intuito de permitir a correção do condenado

através da reflexão sobre o mal causado decorrente de seu delito. A segunda etapa

consistia nos moldes do sistema auburniano, com trabalho diurno, em silêncio, e

isolamento noturno. Ao final, surgia uma nova figura, a liberdade condicional, que

assegurava ao condenado cumprir o restante da pena em liberdade, tendo que

observar determinadas restrições. Passado o período de prova, se não houvesse

revogação, o apenado estaria livre para o convívio social em definitivo98.

b) Sistema Progressivo Irlandês

97 Ibid., p. 83. 98 PIMENTEL, M. P., O crime e a pena na atualidade, p. 140.

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O sistema progressivo assumiu distintas vertentes. O modelo inglês, em

que pese ter sido considerado bem sucedido, apresentava esforços ainda

incipientes. Em 1854, Water Crofton introduz o sistema progressivo nas prisões da

Irlanda. Busca aprimorar o sistema inglês, estabelecendo uma nova etapa,

chamada de prisão intermediária. Tratava-se de um momento da execução penal,

após o isolamento e anterior à liberdade condicional, com o objetivo de preparar o

apenado para a “vida digna” extra-muros.

Desta forma, o sistema irlandês era composto de quatro etapas: 1ª)

Isolamento celular diurno e noturno; 2ª) Isolamento celular noturno e trabalho

diurno em coletivo; 3ª) Período intermediário; 4ª) Liberdade condicional. Como

leciona Roberto Lyra:

o sistema irlandês de Water Crofton concilia os anteriores, baseando-se no rigor da segregação absoluta no primeiro período, e progressiva emancipação, segundo os resultados da emenda.99

No decorrer do período intermediário, a pena era cumprida em

estabelecimentos especiais, com trabalho ao ar livre, especialmente em colônias

agrícolas ou industriais. Nesta fase, o regime incorporava uma série de medidas

menos gravosas, como não obrigatoriedade de uniformes, contato com o mundo

externo, e não utilização de castigos corporais100. Na concepção de Elias Neuman:

A finalidade altamente moralizadora e humanitária do regime ficou comprovada ao fazer o recluso compreender que a sociedade que o condenou está disposta a recebê-lo sem reticências, sempre que demonstre encontrar-se em recuperação.101

O sistema irlandês acabou sendo adotado em inúmeros países. Observou-

se, no contexto inicial de implantação do sistema progressivo, um conceito

intermediário de ressocialização que se colocava entre a noção de correção, de

inspiração religiosa e cunho retributivo, e a ideia de reintegração social, de

inspiração positivista.

A despeito do fato de preservar a segregação celular como ponto de partida

da execução penal, contribuindo sobremaneira para a aniquilação da subjetividade

99 LYRA, R., Comentários ao código penal, v. 2, p. 91. 100 BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 88. 101 NEUMAN, E., Evolución de la pena privativa de libertad y regímenes carcelarios, p. 135.

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do apenado, o sistema progressivo é reconhecido como o menos danoso.

Entretanto, não está ileso à crise de legitimidade que assola o sistema

penitenciário de modo crescente. A distância abissal entre o ser e o dever-ser no

cárcere torna o arrefecimento punitivo, previsto no regime progressivo,

praticamente inócuo. A realidade de superlotação, corrupção, condições

degradantes de infra-estrutura, compreendem toda sorte de violação de direitos

humanos, resultando na inefetividade de seu condão corretivo e ressocializador.

2.4 Fundamentos da pena: as teorias sobre as (dis)funções do sistema penal

Paripassu ao desenvolvimento dos modelos de sistema penitenciário

assiste-se às transformações das teorias sobre a pena e suas finalidades.

Desenvolvem-se teorias com o impulso de responder basicamente qual é a

justificativa teórica para a imposição dos castigos.

Tobias Barreto, à frente de seu tempo, alertava que “quem procura o

fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o

fundamento jurídico da guerra”102. Compreende-se assim o fundamento da

punição como um tema eminentemente político, que transborda para além dos

limites do jurídico. O poder punitivo é como o exercício da guerra em tempos de

paz103.

Por este prisma, há quem defenda que a rigor, não há fundamentação

jurídica e racional do poder punitivo. Zaffaroni afirma que a pena é um exercício

de poder desprovido de legitimidade. Não se trata de um ente jurídico, mas de um

fato da realidade. Não emerge do direito, mas da política, do exercício do

poder104.

Mesmo assim, a dogmática jurídico-penal hegemônica aborda a temática

apresentando um rol de teorias penalógicas, reunidas basicamente em três campos,

102 BARRETO, T., Fundamentos do direito de punir, p. 650. 103 Neste sentido, cabe lembrar que à famosa proposição do estrategista prussiano Clausewitz: “a guerra é a política continuada por outros meios”, Foucault emenda: “a política (le pouvoir) é a guerra, é a guerra continuada por outros meios”. FOUCAULT, M., Em defesa da sociedade, p. 22. Ver QUEIROZ, P., Curso de Direito Penal. Parte Geral, v. 1, p. 393. 104 Ver CARVALHO, S. de, Antimanual de criminologia, p. 139; e ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas.

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quais sejam as funções de retribuição, prevenção geral e prevenção especial.

Resume-se a narrar os discursos que ao longo da história apresentam distintos

matizes de legitimação do poder punitivo105.

Não obstante, serem tributárias, sobretudo, da reforma humanitária

ensejada pelo Iluminismo, as teorias penalógicas que expressam o discurso oficial,

ou seja, as funções declaradas da pena, acabam por alinhar-se às trincheiras da

ideologia de Defesa Social106. Neste sentido, Salo de Carvalho aponta que:

Se existiu uma falha congênita no pensamento liberal clássico, decorrente da presença de resíduos inquisitoriais e autoritários em seu seio identificada na estrutura do pensamento ideológico defensivista, agora ela retorna no impacto deste modelo sobre a sociedade via justificação penalógica – teoria da pena.107

Por outro lado, doutrinadores referenciados na Criminologia Crítica,

compreendem a teoria penalógica enquanto tema controvertido e decisivo para a

análise do sistema penal em sua complexidade. Desta forma, percebem a

existência de dois pólos discursivos que sustentam do ponto de vista teórico a

imposição ou negação da pena criminal. Na perspectiva tradicional, apresentam-se

os discursos penalógicos legitimantes, através de distintas justificações teóricas

que almejam emprestar suposta legitimação e racionalidade ao poder de punir do

estado (Teorias Absolutas, Relativas e Mistas). Em uma segunda visão, emergem

os discursos deslegitimantes do poder punitivo108, analisando criticamente a

105 A abordagem restrita aos discursos legitimantes pode ser identificada em boa parte dos manuais de Direito Penal, a exemplo de BRUNO, A., Direito Penal. Tomo 3, p. 44 et. seq.; CAPEZ, F., Curso de Direito Penal. Parte Geral, v. 1, p. 364; BITENCOURT, C. R., Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1, p. 130 et. seq.; GRECO, R., Curso de Direito Penal. Parte Geral, p. 465 et. seq.; PRADO, L. R., Curso de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 501 et. seq.; JESUS, D. E. de, Direito Penal. 106 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 114. Acerca da ideologia de Defesa Social, ver também ANCEL, M. A., A nova Defesa Social: um movimento de política criminal humanista; GRAMATICA, F., Princípios de Defensa Social; e SANTOS, B. M. de M., Defesa Social: uma visão crítica. 107 CARVALHO, S. de, Teoria agnóstica da pena: o modelo garantista de limitação do poder punitivo, p. 4. O autor adenda que “os ideais defensivistas – da segurança nacional às teorias da nova (e novíssima) defesa social – correspondem ao que Ferrajoli denomina vício ideológico e meta-ético das doutrinas de justificação. Vícios dogmáticos que produzem um discurso centrado na cisão irreal entre o modelo teórico-normativo (científico) e a efetividade (política) da sanção”, ibid., p. 4. 108 A menção aos discursos deslegitimantes é percebida, sobretudo, nos doutrinadores adeptos da Criminologia Crítica. Neste sentido, BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 97 et. seq.; CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 240 passim; CARVALHO, S. de, Penas e medidas de segurança, p. 141 passim; e QUEIROZ, P., Curso de Direito Penal. Parte Geral, v. 1, p. 397 passim. Os discursos penalógicos deslegitimantes fazem-se

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contradição fundamental entre as funções declaradas e as funções latentes da pena

(Abolicionismo Penal e Minimalismo Penal Radical).

Para Nilo Batista e Zaffaroni, as teorias acerca do poder punitivo devem

ser necessariamente analisadas, por duas razões:

a) Em primeiro lugar, porque conservam vigência, apesar de não serem atualmente enunciados em forma pura ou originária (...). A rigor, não há novos discursos legitimantes, mas sim novas combinações e formulações dos tradicionais. b) De sua visão conjunta resulta uma clara disparidade – que nunca é de detalhe, mas dos próprios fundamentos -, razão pela dá lugar a construções diversas e completamente incompatíveis. Isso evidencia escassa solidez fundamentadora e crise permanente no discurso.109

Portanto, consideram que, apesar da inconsistência fundamentadora, tais

discursos possuem vigência, de modo que é necessária sua contraposição crítica.

No mesmo sentido, destaca Juarez Cirino dos Santos:

a análise da pena criminal não pode se limitar ao estudo das funções atribuídas pelo discurso oficial, definidas como funções declaradas ou manifestas da pena criminal; ao contrário, esse estudo deve rasgar o véu da aparência das funções declaradas da ideologia jurídica oficial, para identificar as funções reais ou latentes da pena criminal, que podem explicar sua existência, aplicação e execução nas sociedades de classes sociais antagônicas (...).110

Esta contraposição de distintas teorias acerca da fundamentação dos

castigos denota que há projetos político-criminais em disputa111. Não há um

argumento universal de legitimação ou deslegitimação da razão punitiva. Os

variados discursos em torno da teoria da pena criminal representam visões

conflitantes sobre o modelo de Estado que se busca delinear. De modo que um

estado autoritário amolda-se mais precisamente à ampla legitimação do jus

puniendi, ao passo que um estado democrático requer a devida contenção do

poder punitivo.

presentes ainda na obra de GALVÃO, F., Direito Penal. Parte Geral, p. 99 passim; e BUSATO, P. C., Direito Penal. Parte Geral, p. 790 passim. 109 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 114. 110 CIRINO DOS SANTOS, J., op. cit., p. 240. 111 “A discussão em torno das funções do Direito Penal está intrinsecamente conectado ao programa de política criminal oficial instituído pela dogmática penal. A partir das funções atribuídas denotam-se as funções declaradas da pena, como resposta oficial do sistema de justiça criminal (polícia, judiciário e instituições prisionais) para o fato punível”. DIETER, M., A função simbólica da pena no Brasil: breve crítica à função de prevenção geral positiva da pena criminal em jakobs, p. 4.

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2.4.1 Discursos legitimantes

O discurso oficial da teoria jurídica da pena ancora-se em distintas

justificações da imposição da sanção penal: de um lado, as teorias absolutas,

ligadas essencialmente às doutrinas da retribuição ou da expiação; de outro lado,

as teorias relativas, dando ensejo às perspectivas preventivistas; e por fim, as

teorias mistas ou unificadoras.

Segundo Nilo Batista e Zaffaroni, “todas essas teorias se classificam de

modo análogo desde 1830, e legitimam o confisco do conflito: tratam de

racionalizar a exclusão da vítima do modelo punitivo”112. Desta forma, buscam,

em verdade, defender um ente que a despeito do fato de não corresponder aos

direitos da vítima, pertence à sociedade:

entendida de uma maneira organicista (ou antropomórfica) ou contratualista, dependendo da amplitude do poder punitivo legitimado, conforme debilite mais ou menos o estado de direito (ou permite maior ou menor avanço de elementos do estado de polícia). 113

Com efeito, traduzem-se em uma pluralidade de discursos justificantes do

poder punitivo com a pretensão de racionalização da sanção penal por meio de

uma decisão. Esta é levada a cabo tão somente através da definição do discurso

considerado mais apropriado ao caso concreto, dentre as teorias penalógicas

existentes.

2.4.1.1 Teorias absolutas

As teorias absolutas ou retributivas partem do pressuposto que a pena tem

por função precípua a retribuição ao delito, mera finalidade vindicativa. Trata-se

112 ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N. Direito Penal Brasileiro I, p. 114-115. 113 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, 114 et. seq.

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da mais antiga função atribuída à pena114, defluída primitivamente do Princípio de

Talião (olho por olho, dente por dente).

Não estabelecem razões utilitárias à pena, compreendendo a punição ao

delito como um fim em si mesmo, através da imposição de um mal justo (pena)

contra um mal injusto (crime). Remonta a máxima de Sêneca punitur, quia

peccatum est - punido porque pecou115.

Dentre os principais adeptos das teorias absolutas encontram-se Binding,

Maurach, Welzel e Mezger na Alemanha, Carrara, Petrocelli, Maggiore e Bettiol

na Itália, mas, sobretudo com a decisiva contribuição de Kant e Hegel116.

Uma das perspectivas retributivas da pena está associada a concepções

religiosas, sobretudo na tradição judaico-cristã ocidental, calcada na ideia de culpa

e de uma justiça divina retributiva, tendo sido fundamentadora dos castigos na

Idade Antiga e na Idade Média. O crime é associado à noção de pecado,

constituindo a violação de um preceito oriundo de Deus. Hassemer e Muñoz

Conde identificam que para esta visão, a pena deve possuir o caráter de expiação

da culpabilidade, estabelecendo uma penitência ao condenado em razão de seu ato

injusto117.

Na modernidade a fundamentação retributiva da pena recebeu anteparos da

filosofia idealista alemã. De um lado com Kant, compreendendo que a justificação

é de ordem ética, de outro Hegel, fundamentando-a sob o prisma jurídico, porém,

ambos atribuem à pena um conteúdo talional118.

Para KANT o crime é uma infração de ordem moral, e a pena deve ser a

compensação moral do desvio. Sua fundamentação está relacionada à ideia de

justiça. Em célebre passagem da obra A Metafísica dos Costumes, exemplifica seu

raciocínio:

114 Nas palavras de Cirino dos Santos: “a pena como compensação da culpabilidade atualiza o impulso de vingança do ser humano, tão velho quanto o mundo”. CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 241. 115 SÊNECA, Da ira. Livro 1, p. 16 et. Seq Apud QUEIROZ, P. Curso de Direito Penal. Parte Geral, v. 1, p. 401. 116 Ibid., p. 402. 117 HASSEMER, W.; MUÑOZ CONDE, F., Introducción a la Criminologia, p. 226. 118 MARCÃO, R.; MARCON, B., Rediscutindo os fins da pena. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/textos/x/20/00/200/>. Acesso em: maio de 2007.

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Se a sociedade civil resolver autodissolver-se, com a concordância de todos os seus cidadãos, mesmo assim, caso esta sociedade habitar uma ilha e resolver abandoná-la espalhando-se pelo mundo, o último assassino condenado e preso teria que ser executado, antes do abandono final da ilha pelo último membro do povo. Isto deverá assim acontecer para que cada um receba a punição equivalente aos seus atos e a dívida de sangue não permaneça vinculada ao povo.119

A tese kantiana entende que o condenado deve ser castigado apenas por ter

delinquido. A pena retributiva esgota o seu sentido no mal que se faz sofrer ao

delinqüente como compensação ou expiação do mal causado, não possui qualquer

caráter utilitário ou preventivo120. Como afirma Bitencourt, em Kant "a aplicação

da pena decorre da simples infringência da lei penal, isto é, da simples prática do

delito"121.

Hegel, por seu turno, manifesta seu discurso penalógico em Princípios da

Filosofia do Direito, compreendendo a pena como derivação dialética da violação

do direito: "a pena é a negação da negação do Direito"122. Desta forma, a

imposição da sanção penal representaria a afirmação do direito.

Aceitando que a pena venha restabelecer a ordem jurídica violada pelo delinquente, igualmente se deve aplicar simplesmente porque antes houve outro mal, porque seria – como afirma o próprio Hegel – ‘irracional querer um prejuízo simplesmente porque já existia um prejuízo anterior’. A imposição da pena implica, pois, o restabelecimento da ordem jurídica quebrada.123

Diferentemente da teoria retributiva kantiana, Hegel não estabelece

fundamento em um mandado de justiça, mas sim em um postulado decorrente da

razão, que se justifica a partir de um processo dialético124. O fundamento

hegeliano da pena é jurídico, uma vez que esta visa restabelecer a vigência

119 KANT, I., Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 176. 120 Partidário da teoria absoluta, Bettiol afirma que "tão-somente a idéia retributiva, colocada como fundamento da pena, é capaz de satisfazer plenamente todas as exigências que urgem no campo da penalidade. Ela atende à suprema exigência de que o mal praticado deva exigir a inflição de um castigo proporcionado à gravidade do malefício". BETTIOL, G., Direito penal, v. 3, p. 121. 121 BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 108. 122 Hegel aduz que “Como evento que é, a violação do direito enquanto direito possui, sem dúvida, uma existência positiva exterior, mas contém a negação. A manifestação dessa negatividade é a negação desta violação que entra por sua vez na existência real; a realidade do direito reside na sua necessidade ao reconciliar-se ele consigo mesmo mediante a supressão da violação do direito.” HEGEL, G. W. F., Princípios da Filosofia do Direito, p. 87. 123 BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 113. 124 Para Ferrajoli, as concepções de Kant e Hegel só aparentemente se distinguem, pois a visão hegeliana que concebe o Estado como um espírito ético também compreende a retribuição jurídica como associada a um valor moral. FERRAJOLI, L., Direito e razão, p. 254.

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da “vontade geral” (lei), violada pela “vontade do delinquente”, ou seja, restaurar

a razão do direito, negando a razão do delito.

Contemporaneamente, para alguns autores, a justificação retributiva da

pena está associada ao princípio da proporcionalidade. A sanção penal deve ser

proporcional ao injusto praticado, seguindo o princípio de justiça distributiva.

Desta forma, não se resumiria à punição, mas também à limitação do poder

punitivo125.

É farta na literatura jurídico-penal, a contraposição às teorias retributivas.

Claus Roxin126 aponta três elementos centrais para sua negação enquanto

justificação penalógica. Primeiramente, porque a lógica retribucionista pressupõe

de antemão a necessidade da imposição da pena, que deveria fundamentar. Aponta

que “a teoria da retribuição, portanto, não explica em absoluto quando se tem de

punir, mas apenas refere: ‘se impuserdes - sejam quais forem os critérios - uma

pena, com ela tereis de retribuir um crime’”.

A segunda objeção assenta-se no fato de que:

Se afirma sem restrições a faculdade estatal de penalizar formas de condutas culpáveis, continua insatisfatória a justificação da função da culpa, uma vez que a possibilidade da culpabilidade humana pressupõe a liberdade de vontade (livre-arbítrio) e a sua existência, com o que concordam inclusive os partidários das ideias retribucionistas, é indemonstrável.127

Assim, a retribuição, como salienta Cirino dos Santos, funda-se no “mito

de liberdade pressuposto na culpabilidade do autor”128.

Enfim, a terceira crítica tem por objeto a natureza expiatória e

compensatória da pena. A necessidade de retribuição de um mal por outro

constitui, segundo Roxin, um ato de fé. Não é tributária da razão, mas sim do

impulso humano de vingança.

Ademais, pode-se afirmar que o modelo compensatório/expiatório fragiliza

a noção de subsidiariedade subjacente ao Direito Penal, que compreenderia a pena

125 SCHECAIRA, S. S.; CORRÊA JUNIOR, A., Pena e constituição, p. 100. PRADO, L. R., Teoria dos fins da pena: breves reflexões, p. 143. 126 ROXIN, C., Problemas fundamentais de direito penal, p. 19 et. seq. 127 Ibid., p. 13. 128 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 242.

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como ultima ratio ao Estado129. Como salienta Queiroz, “tal formulação parece

absolutizar na pena todo controle social, sendo inconciliável com a crescente

relativização dos modos de atuação dos sistemas penais contemporâneos (penas

alternativas, transação, descriminalização, despenalização)”130.

2.4.1.2 Teorias preventivas

A dimensão preventiva da pena recebe distintas denominações na doutrina,

empregadas como sinônimos: teorias relativas, finalistas, utilitárias ou

preventivas. Partilham do pressuposto que a pena possui finalidade de natureza

política e de utilidade para a sociedade. Diferentemente das teorias absolutas, não

percebem na pena um fim em si mesmo, mas sim, compreendem-na como um

meio a serviço de determinados fins. Portanto, a pena passa a ter um condão

utilitário e finalístico, qual seja, a prevenção de futuros delitos (punitur ut ne

peccetur).

As teorias prevencionistas são tributárias dos ideais iluministas, emergem

na transição do Estado Absoluto para o Estado Liberal. Estas são construídas com

base em interesses políticos e econômicos de seu tempo, voltadas à afirmação do

capitalismo como modo de produção. Neste sentido, salienta Bustos Ramirez, que

“em uma primeira época do Estado capitalista, como Estado liberal reduzido a

mera função de vigilância, as teorias mencionadas podem parecer suficientes”131.

Os dicursos penalógicos prevencionistas dividem-se em teorias da

prevenção geral (positiva e negativa) e teorias da prevenção especial (positiva e

negativa), as primeiras, com objetivo de evitar novos delitos através de

intervenção na coletividade, já as segundas, centradas na figura do condenado,

conforme analisaremos pormenorizadamente a seguir. 129 Neste sentido, não se pode descuidar da observância do princípio da intervenção mínima, imprescindível ao Direito Penal compatível com uma Constituição democrática. A este respeito, afirma Fragoso “Só deve o Estado intervir com a sanção jurídico-penal quando não existam outros remédios jurídicos, ou seja, quando não bastarem as sanções jurídicas do direito privado. A pena é a ultima ratio do sistema”. FRAGOSO, H. C., Lições de Direito Penal, p. 290. Consoante Luiz Régis Prado, nas teorias retributivas, “o direito penal deixa de ser a ultima ratio para converter-se em prima ratio, dado que a pena seria uma consequência absoluta da transgressão da norma”. PRADO, L. R., Teoria dos fins da pena: breves reflexões, p. 143. 130 QUEIROZ, P., Curso de Direito Penal. Parte Geral, v. 1, p. 399. 131 RAMIREZ, J. B.; MALARÉE, H. H., Pena y Estado, p. 122, apud BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 124.

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a) Prevenção Geral Negativa

Tradicionalmente, a finalidade preventiva da pena esteve associada à

intimidação, presente na teoria da coação psicológica de Feuerbach132, segundo a

qual “é através do Direito Penal que se pode dar uma solução ao problema da

criminalidade". Parte significativa da doutrina compreende ainda esta como a

única dimensão da prevenção geral.

Luigi Ferrajoli afirma que é possível identificar duas vertentes da

prevenção intimidatória: a) pena exemplar (presente em Hobbes, Beccaria e

Bentham) - aquele a quem foi imposta uma sanção penal funcionaria como um

meio de fomento ao comportamento em consonância com o Direito; b) ameaça

legal (com Feuerbach e Romagnosi) – a simples previsão legal seria capaz de

incitar o comportamento conforme o Direito133.

Feuerbach distingue dois momentos da pena que motivariam os indivíduos

a não transgredir a norma penal. Em primeiro plano, refere-se à cominação, tendo

por objetivo a intimidação geral dos indivíduos que diante da ameaça abstrata de

punição. No segundo momento, a aplicação da pena, devendo esta ter o efeito

dissuasório à coletividade através da aplicação concreta da sanção penal, sendo a

prevenção alcançada pelo exemplo do castigo desferido.

A principal crítica direcionada à teoria da prevenção geral negativa reside

em sua ineficácia para alcançar os fins pretendidos. Ou seja, a intimidação não é

capaz de assegurar a evitabilidade do cometimento de novos delitos. Conforme

Cirino dos Santos:

Afirma-se que não é a gravidade da pena – ou o rigor da execução penal -, mas a certeza da punição que pode desestimular o autor de praticar crimes – uma velha teoria já enunciada por Beccaria, sempre retomada como teoria moderna pelo discurso de intelectuais e políticos do controle.134

132 FEUERBACH, A. V., Tratado de derecho penal, §13. 133 FERRAJOLI, L., Direito e Razão. 134 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 245. A este respeito, Zaffaroni e Nilo Batista afirmam que “as únicas experiências de efeito dissuasivo do poder punitivo passíveis de verificação são os estados de terror, com penas cruéis e indiscriminadas”. BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p 118.

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Outra aporia deste discurso punitivo legitimante reside na falta de critério

limitador da culpabilidade, problema também verificado nas teorias absolutas.

Como aponta Roxin:

Assim como na concepção preventivo-especial não é delimitável a duração do tratamento social-terapêutico e, no caso concreto, pode exceder a medida defensável da ordem jurídica liberal, o ponto de partida preventivo-geral tem, geralmente, a tendência ao terror estatal. Pois quem quiser intimidar através da pena tenderá a reforçar esse efeito tão severamente quanto possível.135

Por fim, critica-se a utilização da punição ao indivíduo delinquente como

meio para obtenção da obediência dos demais ao ordenamento jurídico. Assim,

“aumenta-se injustamente o sofrimento de acusados reais, para desestimular o

comportamento criminoso de acusados potenciais”136. Trata-se de uma concepção

utilitarista que compreende o ser humano como objeto, inaceitável nos marcos do

Estado Democrático de Direito, o qual não pode valer-se de sujeitos de direitos

como instrumento para alcançar seus fins137.

Neste sentido, vale aduzir que a criminalização exemplarizante, como

observam Nilo Batista e Zaffaroni, vem recorrentemente a reforçar a seletividade

do sistema penal, uma vez que o poder punitivo dirige-se recorrentemente sobre

os grupos sociais mais vulneráveis ao poder punitivo estatal, alimentando a

ofensiva do Estado policial138.

b) Prevenção Geral Positiva

As raízes da denominada teoria da prevenção geral positiva encontram-se

no século XIX, a partir das observações de Francesco Carrara.

Contemporaneamente, passa a ter por adeptos Hans Welzel e Günther Jakobs. Esta

135 ROXIN, C., Problemas fundamentais de direito penal, p. 23. 136 CIRINO DOS SANTOS, J. Manual de Direito Penal, p. 465-466. 137 Neste sentido, afirma Kant: "O homem não pode nunca ser utilizado meramente como meio para os propósitos de outro e ser confundido com os objetos do direito das coisas, contra o que o protege a sua personalidade inata", apud HASSEMER, W.; MUÑOZ CONDE, F., Introducción a la Criminologia, p. 128. 138 “A partir da realidade social, pode-se observar que a criminalização pretensamente exemplarizante que esse discurso persegue, pelo menos quanto ao grosso da delinquência criminalizada, isto é, quanto aos delitos com finalidade lucrativa, seguiria a regra seletiva da estrutura punitiva: recairia sempre sobre os vulneráveis”. BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 117.

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perspectiva teórica almeja incutir na comunidade a noção de obediência ao

ordenamento jurídico, preservando-o das condutas nocivas. Trata-se de buscar a

prevenção de delitos através da integração da norma penal à comunidade, portanto

para alguns constitui a noção de prevenção-integração.

A concepção de Jakobs, também chamada de prevenção geral positiva

fundamentadora, recebe influência da “teoria dos sistemas” de Niklas

Luhmann139. Compreende a norma penal como necessidade funcional e sistêmica

de estabilização das expectativas normativas da sociedade através da aplicação da

pena. Assim, a pena teria a finalidade de integração da norma penal na sociedade,

seria, em suas palavras, “uma demonstração da vigência da norma à custa de um

responsável”140.

Outra variante é a prevenção geral positiva limitadora, elaborada por Claus

Roxin, que concebe a pena como meio legitimado para a proteção de bens

jurídico-penais relevantes, de modo subsidiário, visto que deve pressupor outras

medidas mais eficazes do que a intervenção penal141. Busca, portanto, limitar o

âmbito de intervenção do poder punitivo estatal.

A concepção de prevenção geral positiva em Jakobs muito se aproxima da

teoria absoluta desenvolvida por Hegel, fato identificado pelo próprio autor142.

Portanto, as críticas à perspectiva retributiva da pena também aqui se justificam.

Outro ponto problemático observado na obra de Jakobs é a percepção de que em

sua construção sistêmica, o direito não serve ao homem, mas, sobretudo, à

manutenção do próprio sistema. Neste sentido, Zaffaroni aponta que o discurso

jurídico-penal sistêmico:

Afasta-se do homem, reduzido a um subsistema, perdem-se todos os limites às garantias consideradas tradicionalmente como “liberais” (...), abrindo-se a possibilidade de imporem penas a ações meramente imorais (...) e de se defender um critério de pena meramente utilitário ou instrumental para o “sistema”.143

139 Jakobs, com influência de Luhman, parte da funcionalidade do direito penal para o sistema social. Deste modo, a norma penal constitui uma necessidade funcional/sistêmica de estabilização de expectativas sociais por meio de aplicação de penas ante as frustrações decorrentes da violação da norma. QUEIROZ, P., Curso de Direito Penal. Parte Geral, v. 1, p. 401. 140 JAKOBS, G., Derecho Penal, p. 9. 141 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 244 et. seq. 142 JAKOBS, G., op. cit., p. 22 et. seq. 143 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 87.

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De outro lado, também recebe críticas a formulação de Roxin, em especial

por estabelecer uma superposição de efeitos político-criminais que não se verifica

na realidade concreta, como o suposto “aumento da confiança do cidadão no

ordenamento jurídico” pela percepção da imposição do Direito, e a suposta

“pacificação social” a partir da punição da violação do Direito144.

c) Prevenção Especial Positiva

As teorias da prevenção especial atribuem à pena a finalidade de evitar que

o delinquente volte a cometer novos crimes. Portanto, centra-se na pessoa do

condenado, alvo da seleção criminalizante, e não na coletividade, como nas

teorias da prevenção geral. A denominada prevenção especial positiva preconiza o

discurso correcionalista em face do condenado. Suas primeiras contribuições

remetem à Antiguidade, com Sêneca, Platão e Protágoras. Com a Modernidade irá

assumir a feição das ideologias “re”, almejando a suposta ressocialização,

reeducação, reinserção ou reintegração social, e recuperação moral do condenado.

Ideais defendidos por teóricos iluministas denominados por Foucault de

“ortopedistas da moral”145.

Várias correntes defendem o discurso penalógico da prevenção especial.

Em França, destaca-se a Nova Defesa Social, de Marc Ancel, também seguido por

Filippo Gramatica; na Itália, com os adeptos do positivismo criminológico

(Lombroso, Ferri e Garófalo); na Espanha, com a Escola Correcionalista; mas a

principal contribuição vem no final do século XIX, com os escritos de Franz von

Liszt, da Escola Positivista Sociológica Alemã.

Von Liszt apresenta a “doutrina teleológica da diferenciação da pena” em

seu célebre Programa de Marburgo146. Em sua visão, a finalidade subjacente à

pena e ao Direito Penal é a proteção de bens jurídicos, devendo incidir na

personalidade do condenado através da pena, de modo que não incorra em

reincidência delitiva. A função preventivo-especial positiva constitui a chamada

pena-tratamento, que busca ao fim e ao cabo, a “correção” do condenado.

144 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 245 et. seq. 145 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 15. 146 ROXIN, C., Problemas fundamentais de direito penal, p. 20.

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Evidentemente, as normas sociais não constituem um corpus imutável e

permanente ao qual o indivíduo deve ‘adaptar-se’ obrigatoriamente, mas se trata,

sim, do resultado de uma correlação de forças sujeitas a influências mutáveis.

Como aponta Muñoz Conde:

Falar, portanto, de ressocialização do delinquente sem questionar, ao mesmo tempo, o conjunto normativo a que se pretende incorporá-lo, significa aceitar como perfeita a ordem social vigente sem questionar nenhuma de suas estruturas, nem mesmo aquelas mais diretamente relacionadas com o delito praticado.147

Assim, o ideal ressocializador da pena é alvo de diversas críticas. A

principal objeção recai em sua ineficácia para a correção do condenado e na

consequente prevenção de novos delitos. Como aponta Zaffaroni, em célebre frase

“pretender ensinar um homem a viver em sociedade prendendo-o é como disse

Carlos Elbert, algo tão absurdo como pretender entregar a alguém para jogar

futebol dentro de um elevador” (tradução nossa)148. A notória ineficiência torna a

ressocialização uma utopia irrealizável, sobretudo em razão das históricas

condições desumanas e degradantes da execução penal, que se acentuam ainda

mais nos países periféricos.

Neste sentido, é criticada ainda pela recorrente supressão de direitos não

atingidos pela sentença criminal, ou seja, afronta à dignidade humana para além

da privação da liberdade. Zaffaroni e Batista alertam que:

Os riscos de homicídio e suicídio em prisões são dez vezes superiores aos da vida em liberdade, em meio a uma violenta realidade de motins, abusos sexuais, corrupção, carências médicas, alimentares e higiênicas, além de contaminação devido a infecções, algumas mortais, em quase 80% dos presos provisórios. Assim, a prisionização é feita para além da sentença, na forma de pena corporal e eventualmente de morte, o que leva ao paradoxo a impossibilidade estrutural da teoria.149

147 MUNOZ CONDE, F., La ressocialización del delincuente: análisis y critica de um mito, p. 135. 148 “(...) pretender enseñarle a um hombre a vivir em sociedad mediante el encierro es, como dice Carlos Elbert, algo tan absurdo como pretender entrenar a alguien para jugar futbol dentro de um ascensor”. ZAFFARONI, E. R. El sistema penal en los países de América Latina. In Sistema penal para o terceiro milênio, p. 223. 149 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 126. Na mesma direção, aponta CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro, p. 243.

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Segundo Claus Roxin, a teoria da prevenção especial tende, mais que um

Direito Penal da culpa retributivo, a deixar o particular ilimitadamente à mercê da

intervenção estatal. Outra objeção apontada pelo autor consiste no fato de que,

em alguns delitos, não haveria de impor-se a sanção penal caso não existisse

perigo de reincidência criminal. Em suas palavras, "a teoria da prevenção especial

não é capaz de fornecer a necessária fundamentação da necessidade da pena para

tais situações"150.

Por fim, vale aduzir a crítica formulada por Ferrajoli, para quem a

prevenção especial positiva concebe o poder punitivo como um bem metajurídico,

a ser tutelado por um Estado pedagogo ou terapeuta, que deve coibir o delito

como mal moral ou enfermidade social. Esta perspectiva se revela antiliberal e

antigarantista, servindo à justificação de um modelo de direito penal máximo151.

d) Prevenção Especial Negativa

Outra vertente do discurso prevencionista, a prevenção especial negativa,

busca tanto a intimidação como a neutralização (ou inocuização). Tem como

finalidade neutralizar a possível nova ação delitiva do agente que delinquiu em

momento anterior. Para tanto, prescinde do ideal correcionalista, dirigindo-se

meramente à inocuização do delinquente durante a execução penal. Pressupõe a

adoção de sanções penais como a pena de morte, prisão perpétua e isolamento

celular, típicas punições inocuizadoras.

Trata-se de uma finalidade supletiva da pena que se evidencia como

função penalógica manifesta em combinação com a prevenção geral positiva.

Como apontam Nilo Batista e Zaffaroni, “quando as ideologias re fracassam ou

são descartadas, apela-se para a neutralização e eliminação”152.

Esta perspectiva ganha força com a doutrina do Direito Penal do Inimigo,

desenvolvida por Gunther Jakobs. Para o jurista alemão:

inimigo é quem se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias cognitivas de que vai continuar fiel à norma, (...) o indivíduo que não admite

150 ROXIN, C., Problemas fundamentais de direito penal, p. 21. 151 FERRAJOLI, L., Direito e razão, p. 253. 152 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 127.

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ingressar no estado de cidadania, não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa. (...) Contra ele não se justifica um procedimento penal (legal), sim, um procedimento de guerra.153

Assim, o Direito Penal do Inimigo não visa à imposição da pena como

reafirmação contrafática da norma, mas almeja predominantemente a eliminação

de um perigo, pelo maior tempo possível (neutralização).

Uma primeira objeção à teoria da prevenção especial negativa refere-se à

efetividade da imposição da pena para tal fim. Ferrajoli questiona se a pena

privativa de liberdade é realmente capaz de garantir a inocuização do delinquente,

visto que não assegura terminantemente que este não irá praticar ou comandar

delitos de dentro do cárcere.

Zaffaroni e Nilo Batista aduzem que a mera neutralização física está fora

do conceito do que se entende por direito dentro do atual horizonte cultural.

Apontam que:

ao nível teórico, a ideia de uma sanção jurídica é incompatível com a criação de um mero obstáculo mecânico ou físico, porque este não motiva o comportamento, mas apenas o impede, o que fere o conceito de pessoa (art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e art. 1º da Convenção Americana de Direitos Humanos).154

Por fim, a função preventivo-especial negativa dá ensejo à incapacitação

seletiva de indivíduos considerados perigosos. Trata-se do etiquetamento

neutralizante dos alvos preferenciais do poder punitivo. Neste sentido, amolda-se

ao Direito Penal do Inimigo, como supramencionado, mais consentâneo ao Estado

Policial do que ao Estado Democrático de Direito155.

2.4.1.3 Teorias mistas

153 JAKOBS, G.; MELIÁ, M. C., Direito penal do inimigo: noções e críticas, p. 39. 154 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 128. 155 JAKOBS, G.; MELIÁ, M. C., Direito penal do inimigo: noções e críticas. ZAFFARONI, E. R., O inimigo no Direito Penal, p. 163: “O Estado de Direito concreto de Jakobs, deste modo, torna-se inviável, porque seu soberano, invocando a necessidade e a emergência, pode suspendê-lo e designar como inimigo quem considerar oportuno (...)”.

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As teorias mistas, também denominadas de teoria eclética, intermediária,

unitária, unificadora ou conciliatória, procuram agregar vários aspectos das teorias

absolutas e relativas. Trata-se da fusão das funções declaradas de retribuição,

prevenção geral e prevenção especial.

Baseiam-se em um conceito pluridimensional de pena, definindo-a como

um fenômeno complexo que compreende as etapas da cominação, aplicação e

execução penal. Em cada um desses momentos preponderaria uma finalidade

penalógica. Na cominação prevalece a função de preventivo-geral negativa, por

meio da intimidação; o momento da aplicação corresponde à função retributiva e à

prevenção geral positiva; por fim, na execução penal, evidenciam-se as funções de

prevenção especial positiva e negativa156.

Seu primeiro formulador é o jurista suíço-alemão Adolf Merkel, no início

do século XX. Em sua visão, a pena é justa retribuição ao mal causado, aliado à

sua finalidade, qual seja, manter as condições da vida social, destinando-se, assim,

à proteção dos interesses dos indivíduos, através da prevenção de futuros

delitos157.

As teorias unificadoras são majoritárias na legislação, jurisprudência e

dogmática jurídico-penal do Ocidente. No Brasil, o Código Penal de 1940

recepciona a teoria unificada, ao conceber em seu artigo 59 a aplicação da pena

“conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime”. A

noção de reprovação remete à função retributiva da pena, ao passo que a

prevenção compreende tanto a prevenção especial (ressocialização e

neutralização), como a prevenção geral (intimidação e integração/manutenção da

norma penal).

Para Mir Puig, as teorias mistas podem ser classificadas em conservadoras

ou progressistas, a depender da função que prepondere sobre as demais158. O

Projeto Oficial do Código Penal alemão de 1962 corresponderia a um exemplo da

posição conservadora159. Como expoentes de teorias mistas progressistas,

156 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro, p. 247. 157 BITENCOURT, C. R., Falência da pena de prisão, p. 142. 158 MIR PUIG, Derecho Penal, p. 46, apud BITENCOURT, op. cit., p. 142. 159 Centrava-se na ideia de que os fins preventivos da pena cumprem papel complementar, vista que sua função primordial é garantir a proteção da sociedade através da retribuição justa ao delito. Ibid.

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encontram-se as contribuições de Claus Roxin, com a teoria dialética

unificadora160, e o garantismo penal de Luigi Ferrajoli161.

Em síntese, para Roxin, a finalidade central da pena é a proteção

subsidiária de bens jurídicos relevantes, através da prevenção geral e especial e

rejeição do caráter retributivo. Assevera que a culpabilidade deve servir como

limitação do poder punitivo, e preconiza a salvaguarda da autonomia da

personalidade do condenado na execução da pena162.

Ferrajoli, por seu turno, aponta que a única função legítima à intervenção

penal é a prevenção geral negativa, com o objetivo de garantir a dissuasão da

prática de futuros delitos, mas também de coibir “as reações informais públicas ou

privadas arbitrárias” - a finalidade mais importante da pena, em sua perspectiva163.

As debilidades percebidas em cada uma das teorias penalógicas em sua

unidimensionalidade fazem-se também presentes nas teorias unificadoras,

comungando, pois, das críticas já mencionadas164. Além disso, a fusão das

distintas funções da pena evidencia o amálgama de teorias contraditórias.

Conforme Nilo Batista e Zaffaroni, esta pluralidade de discursos justificantes da

pena permite discricionariamente a mobilização da teoria que mais se adeque ao

caso concreto165. Desta forma, a adoção de uma teoria que abarca a pluralidade

funcional da pena não a exime de incorrer nas antinomias de cada função

penalógica perante seus resultados pretendidos.

2.4.2 Discursos deslegitimantes

As teorias legitimadoras compõem o discurso oficial penalógico, como

observado, apresentando as distintas justificações ao exercício do poder de punir

do Estado (seja pela tese retributiva, pelas distintas teorias da prevenção, ou

através da fusão pluridimensional destes discursos). Em perspectiva oposta,

encontram-se os discursos deslegitimantes que negam a legitimidade à imposição

160 ROXIN, C., Problemas fundamentais de direito penal. 161 FERRAJOLI, L., Direito e razão. 162 ROXIN, op. cit., 163 FERRAJOLI, L., op. cit. 164 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro, p. 248. 165 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, p. 114.

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da pena, contestando a eficiência do sistema penal como garantidor do controle

social.

Esta abordagem ao avesso, busca apresentar um contra-discurso

analisando criticamente o discurso oficial acerca dos fins da pena criminal, cuja

gênese encontra-se nas reflexões criminológicas das aporias do sistema penal,

sendo tributárias da Criminologia Crítica.

Tais análises centram-se, sobretudo, na disparidade entre as funções

ilusórias da pena (fins declarados) e as funções penalógicas reais (fins ocultos)

para apontar a crise de legitimidade do poder punitivo. Antes de abordar as

principais vertentes deslegitimadoras da pena criminal, convém esboçar os

principais postulados da Criminologia Crítica como seu corpus teórico de fundo.

2.4.2.1 A Criminologia Crítica como chave interpretativa

A partir da segunda metade do século XX desenvolvem-se os primeiros

estudos da Criminologia Crítica em contraponto à Criminologia tradicional -

anteriormente centrada no paradigma etiológico-causal, ou seja, o estudo

científico da criminalidade compreendida como realidade ontológica pré-

constituída ao delinquente.

Revolucionando o método de estudo criminológico, a Escola Crítica adota

o paradigma da reação social como aporte norteador, por esta razão também chamada de

Criminologia da Reação Social. Deste modo, o objeto de análise é deslocado da

criminalidade, como dado ontológico, para os processos de criminalização,

compreendendo o crime como status atribuído a determinados comportamentos

considerados desviantes.

Os fatos criminais, para as teorias críticas, não são explicados pelos

determinismos de ordem biológica, psicológica ou social, mas são

predominantemente condicionados pela realidade material. Por este viés, Baratta166

aponta que constituem um bem negativo desigualmente distribuído de acordo com a

hierarquia de interesses ditados pelo sistema sócio-econômico e segundo a

desigualdade social dos indivíduos.

166 BARATTA, A., Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal, p. 161.

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Esta seletividade criminalizante ancora-se nos processos de etiquetamento

que serão objeto central de análise da teoria do labelling approach167 (teoria do

etiquetamento) através da contribuição decisiva de Howard Becker em sua obra

Outsiders, com influências das correntes de origem fenomenológica na sociologia

- a etnometodologia168 e o interacionismo simbólico169, da Escola de Chicago.

Segundo esta formulação de Becker, o desvio não corresponde a uma mera

conduta individualmente realizada, mas decorre de uma construção social:

os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e aplicar ditas regras a certas pessoas em particular e qualificá-las de marginais (estranhos). Desde este ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, senão uma consequência da aplicação que os outros fazem das regras e sanções para um ofensor.170

Conforme aponta Vera Regina de Andrade, a introdução do labelling

approach, foi determinante para o paradigma da reação social (social reaction

approach) do "controle" ou da "definição"171. Com efeito, a Criminologia Crítica

bebe desta fonte, no entanto, busca a superação da teoria do etiquetamento, uma

vez que esta analisa os processos de criminalização, sem contudo indagar acerca

de suas condicionantes estruturais econômicas e sociais172.

167 Abordagem fundada por Howard Becker, sociólogo norte-americano, através da publicação de sua obra. BECKER, H. S., Outsiders: estudos sobre sociologia do desvio. CIRINO DOS SANTOS, J., A Criminologia Radical, p. 69. 168 Uma corrente da sociologia que surgiu na Califórnia no final da década de 1960, tendo como seu principal marco fundador a publicação do livro Studies in Ethnomethodology [Estudos sobre Etnometodologia], em 1967, de Harold Garfinkel. 169 Ver ANITUA, G., História dos pensamentos criminológicos, p. 421-433. Para os teóricos da Escola de Chicago, a cidade em si era de extremo valor como laboratório para explorar as interações sociais, na busca de modelos ecológicos resultantes da análise dos paralelos entre sistemas naturais e sociais, onde variados mapeamentos de mundos em cooperação e conflito se somariam no mosaico da experiência urbana. 170 BECKER, H. Los extraños, apud ANDRADE, V. R. P. de, A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal, p. 206. 171 ANDRADE, V. R. P. de, Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Disponível em: <www.buscalegis.ufsc.br>. Acesso em março de 2009. 172 Baratta aponta que o labelling approach representa condição necessária, porém, insuficiente para o campo de estudo da Criminologia crítica, “condição necessária porque mostra o comportamento criminoso como consequência da aplicação de regras e sanções pelo sistema penal – e não como qualidade da ação, segundo a etiologia positivista; mas condição insuficiente, porque incapaz de indicar os mecanismos de distribuição social da criminalidade, identificáveis pela inserção do processo de criminalização no contexto das instituições fundamentais das sociedades modernas – a relação capital/trabalho assalariado –, suscetível de mostrar que o poder de definir crimes e de atribuir a qualidade de criminoso corresponde às desigualdades sociais em propriedade

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Assim, identifica que os processos de criminalização são pautados pela

dinâmica de classes na sociedade capitalista. De modo que a Criminologia Crítica

tem importante referencial teórico na tradição marxista. A este respeito, afirma

Juarez Cirino que:

A integração dos processos subjetivos de construção social da criminalidade, estudados pelo labelling approach, com os processos objetivos estruturais e ideológicos das relações sociais de produção da vida material, definidos pela teoria marxista (...), lançou as bases de formação da Criminologia crítica na Europa e, depois, na América Latina.173

Os discursos criminológicos críticos emergem na década de 1970 na

Europa e nos EUA, com a Escola de Berkeley174, a partir daí, desdobrando-se em

distintas vertentes175. Na América Latina se desvelaram como contundente

contraponto às ditaduras civis-militares, e no contexto contemporâneo recebe

imprescindíveis contribuições176.

A análise das diversas vertentes críticas da criminologia baseia-se no

método materialista-histórico, portanto, não se revelam como um conceito

hermeneuticamente fechado no tempo, mas sim como uma construção aberta à

crítica e à ressignificação. O método materialista rompe com a noção de verdade

absoluta presente na metodologia positivista, preconizando uma concepção de

verdade relativizada, que deve estar circunscrita a uma determinada realidade

social.

e poder das sociedades contemporâneas”. CIRINO DOS SANTOS, J., A Criminologia Crítica e a Reforma da Legislação Penal, p. 1 e 2. 173 Ver CIRINO DOS SANTOS, J., A Criminologia Radical. Também BARATTA, A., Che cosa è la criminologia critica?, p. 60 et. seq. 174 Sua origem encontra-se nos trabalhos de Taylor, Walton e Young, com as obras The New Criminology, de 1973, e Critical criminology, nas quais buscam a questionar a ordem social, atacam os fundamentos do castigo aplicado às minorias, e por consequência, a não punição do Estado. 175 Esta corrente criminológica desenvolveu-se a partir dos anos 70, nos Estados Unidos e Inglaterra. Nos Estados Unidos, os sociólogos Hans e Schwendinger foram os pioneiros. Na Inglaterra, Paul Taylor, Ian Walton e Jock Young. E ainda, outros cultores, na Itália Dario Melossi, Massimo Pavarini e Alessandro Baratta, e ainda Simondi, Sack, Baurman, Schumann e Bianchi contribuíam com esta vertente. 176 Durante os regimes de exceção na América Latina, se desenvolveram as obras de Lola Aniyar de Castro, Criminologia da libertação, Roberto Lyra Filho, e Juarez Cirino dos Santos. Posteriormente, destacam-se Eugenio Raúl Zaffaroni, Rosa Del Olmo, Nilo Batista, Vera Malaguti Batista e Vera Regina de Andrade. Mais recentemente, podem ser destacados os trabalhos de Gabriel Ignacio Anitua, Salo de Carvalho, Mauricio Dieter e Maximo Sozzo. ANITUA, G. I., História dos pensamentos criminológicos. Ver ainda BATISTA, V. M., Introdução crítica à Criminologia brasileira.

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O objeto de análise da teoria crítica criminológica é o estudo do crime e do

controle social compreendidos na divisão da sociedade em classes (estrutura

econômica) e na reprodução das condições de produção (separação do trabalhador

e dos meios de produção) pelas instituições jurídicas e políticas (superestruturas

de controle social), que determinam práticas contrárias às condições de produção,

ou reprodução social, das quais o crime faz parte177.

Por este viés, o sistema penal assegura a punição seletiva do desvio aos

despossuídos, mantendo a estrutura social desigual e excludente, com ínfimas

possibilidades de responsabilização dos desvios perpetrados pelas classes

dominantes. Desta forma, evidencia-se a dicotomia entre sua função real e sua

função aparente. O discurso de combate ao crime de forma universal é subvertido

pela punição seletiva das ilegalidades, dando ensejo à denominada “eficácia

invertida”. Nas palavras de Vera Andrade:

A eficácia invertida do sistema penal é consistente no fato de que a função latente e real deste é construção seletiva da criminalidade e, neste processo, a reprodução material e ideológica, das desigualdades e diferenças sociais (de classe, gênero, raça) e não o combate da criminalidade, com a proteção de bens jurídicos universais e geração de segurança pública e jurídica.42

Nesta esteira, não é possível verificar um sistema punitivo legítimo, visto

que tal característica é estrutural em todos os sistemas penais. Entretanto, ainda

mais acentuada em sociedades historicamente espoliadas e colonizadas, caso do

Brasil e demais países latino-americanos. Assim, a Criminologia Crítica será o fio

condutor deste trabalho.

A crítica radical empírica e teórica ao sistema penal atinge de forma

demolidora os discursos penalógicos legitimantes, colocando em xeque suas

funções de prevenção geral e especial. Apontam o antagonismo entre os fins

ideológicos (aparentes) e os fins reais (ocultos) do exercício do poder punitivo.

Deste modo, emergem da Criminologia Crítica, discursos criminológicos

deslegitimantes da pena, como antípodas ao discurso oficial. Dentre as teorias

deslegitimantes podem ser destacadas: o Abolicionismo Penal e o Minimalismo

Radical, que por sua vez compreende as variantes Teoria Dialética da Pena e

Teoria Agnóstica da Pena.

177 CIRINO DOS SANTOS, J., A Criminologia Radical, p. 28.

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2.4.2.1.1 Abolicionismo Penal

O surgimento do abolicionismo penal remonta ao final da Segunda Guerra

Mundial178, mas é, sobretudo, nas décadas de 1960 e 1970, que ganha força com

as teorias sociológicas com distintas correntes179. Neste sentido, Zaffaroni, na obra

Em busca das penas perdidas aponta que o abolicionismo penal, juntamente com

as vertentes do minimalismo penal, representa uma das respostas à crise de

legitimidade do sistema penal:

É importante adiantar que, ao contrário das respostas até agora examinadas – que “fogem” ou negam a deslegitimação ou que, como o funcionalismo, enfrentam-na com o propósito de refutá-la -, as respostas minimizantes e abolicionistas assumem e reafirmam a deslegitimação (...).180

O movimento abolicionista se desenvolve em torno da criação de

alternativas ao sistema penal, este compreendido como um problema social, um

“mal social” que mais cria problemas do que resolve, devendo, por esta razão ser

abolido. Em substituição ao controle social punitivo, propõe-se a criação de

microorganismos sociais baseados na solidariedade e fraternidade, com vistas à

reapropriação social dos conflitos entre agressores e ofendidos e a criação

espontânea de métodos alternativos de composição. Segundo afirmam Edson

Passetti e Roberto Baptista Dias da Silva as práticas abolicionistas já fazem parte

de nosso cotidiano.181

178 Sobre Abolicionismo Penal, ver PASSETI, E.; SILVA, R. B. D. da (orgs.), Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva; PASSETI, E. et al., Curso livre de Abolicionismo Penal; HULSMAN, L.; CELIS, J. B., Penas perdidas: o sistema penal em questão; SCHEERER, S. et al., Abolicionismo. 179 Entre as mais notáveis vertentes do abolicionismo penal, podem-se encontrar a variante estruturalista de Michael Foucault; a variante materialista, de orientação marxista, do norueguês Thomas Mathiesen; a variante fenomenológica do holandês Louk Hulsman; e a variante fenomenológico-historicista de Nils Christie. Destacam-se também Sebastian Scheerer (Alemanha) e Heinz Steinert (Áustria). Vale mencionar que recentemente, Mathiesen e Christie mudaram de posição, passando a defender uma perspectiva minimalista penal. ANDRADE, V. R. P. de, Minimalismo e abolicionismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão, p. 463. Disponível em: <http://www.mp.to.gov.br/cint/cesaf/arqs/040908090302.pdf>. Acesso em: 9 nov. 2009. 180 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 89. 181 “A teoria do abolicionismo penal sintoniza-se com o presente, evitando dicotomias e discriminações, mas, principalmente, procura mostrar que a sociedade sem o sistema penal já

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A crítica abolicionista denuncia a seletividade do sistema penal, partindo

da premissa que persegue a manutenção de uma estrutura social desigual e

excludente, dirigindo-se sua intervenção a grupos sociais mais vulneráveis ao

poder punitivo, especialmente as classes populares. Contesta ainda a ênfase

reativa e não preventiva do sistema penal, concentrando-se em uma atuação

mediata em relação aos delitos já praticados. Em célebre passagem, Louk

Hulsman evidencia a síntese da reflexão abolicionista:

Cinco estudantes moram juntos. Num determinado momento, um deles se arremessa contra a televisão e a danifica, quebrando também alguns pratos. Como reagem seus companheiros? É evidente que nenhum deles vai ficar contente. Mas, cada um, analisando o acontecido à sua maneira, poderá adotar uma atitude diferente. O estudante número 2, furioso, diz que não quer mais morar com o primeiro e fala em expulsá-lo de casa; o estudante número 3 declara: “o que se tem que fazer é comprar uma nova televisão e outros pratos e ele que pague”. O estudante número 4, traumatizado com o que acabou de presenciar, grita: “ele está evidentemente doente; é preciso procurar um médico, levá-lo a um psiquiatra, etc...”. O último, enfim, sussurra: “a gente achava que se entendia bem, mas alguma coisa deve estar errada em nossa comunidade, para permitir um gesto como esse... vamos juntos fazer um exame de consciência”.182

Ancorada nestes pressupostos, a perspectiva deslegitimadora abolicionista

critica frontalmente a ideologia oficial da pena, colocando em xeque as funções

penalógicas declaradas. Com relação à prevenção geral, aponta que o direito penal

é incapaz de motivar comportamentos subjetivos a fim de prevenir novos delitos,

visto que a existência jurídica de inúmeros tipos penais não assegura que não

sejam praticados concretamente.

A prevenção especial é contestada, compreendendo que as desumanas

condições da execução penal tornam a ressocialização uma utopia irrealizável. Ao

revés, o cárcere possui efeito criminógeno, uma vez que dessocializa, desumaniza

e estigmatiza.

A crítica volta-se também à perspectiva garantista do Direito Penal, uma

vez que esta ao buscar a limitação do poder punitivo estatal, ao invés de arrefecê-

lo, legitima sua intervenção para a solução de conflitos sociais.

existe. As pessoas, no cotidiano, encontram soluções pacíficas para os acontecimentos, principalmente através de mecanismos conciliatórios e compensatórios, que dispensam qualquer intermediação do sistema penal”. PASSETI, E.; SILVA, R. B. D. da (orgs.), Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva, p. 1. 182 HULSMAN, L.; CELIS, J. B., Penas perdidas: o sistema penal em questão, p. 100.

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A despeito da diversidade de fundamentos metodológicos das tendências

abolicionistas, inúmeras críticas são levantadas ao seu audacioso projeto político-

criminal. Luigi Ferrajoli183 o refuta, apontando que mesmo em uma sociedade

onde não exista delito, um modelo de auto-regulação social espontânea seria

irremediavelmente utópico, que representaria, certamente, um retrocesso no que

se refere aos meios de controle social.

Salo de Carvalho contesta a aplicabilidade da teoria abolicionista à

realidade marginal latino-americana, visto que nos países periféricos os direitos

inerentes ao Estado Liberal e ao Estado Social não passaram de promessas não

cumpridas184.

2.4.2.1.2 Minimalismo Penal Radical

O minimalismo penal, em sua vertente minimalismo radical é proposto por

Alessandro Baratta185, grande difusor da Criminologia Crítica no final do século

XX. Este discurso criminológico toma por base as mesmas críticas que os

abolicionistas levantam contra o sistema penal, diferindo destes por apregoar a

necessidade do direito penal, embora reduzindo sua incidência a um mínimo

necessário, restrita a um núcleo absolutamente essencial de condutas

particularmente danosas.

A concepção minimalista de Baratta adota o ponto de vista das classes

subalternas, apontando como horizonte a superação das condições econômicas do

capitalismo e autoritarismo do Estado:

183 FERRAJOLI, L., Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 234 et. seq. O autor aponta que as doutrinas abolicionistas “evitam todas as questões mais específicas da justificação e da deslegitimação do direito penal (...) desvalorizando toda e qualquer orientação garantista, confundindo em uma rejeição única modelos penais autoritários e modelos penais liberais (...)”. 184 Não podemos olvidar, também, que as teorias abolicionistas foram criadas a partir de realidade totalmente distinta da realidade marginal latino-americana. É proposta gerada no interior das sociedades nas quais o Estado efetivamente cumpriu seu papel, ou seja, em países nos quais a existência do Estado Liberal e do Estado Social é notória, países nos quais as promessas da modernidade saíram do papel e integraram o cotidiano das pessoas. CARVALHO, S. de, Garantismo e direito de punir: teoria agnóstica da pena, p. 11. 185 Baratta apresenta suas teses sobre o minimalismo radical em sua obra Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal. Distingue-se do denominado minimalismo moderado, reconhecido sobretudo no constructo de Luigi Ferrajoli, o Garantismo Penal.

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Nós sabemos que substituir o direito penal por qualquer coisa melhor somente poderá acontecer quando substituirmos a nossa sociedade por uma sociedade melhor, mas não devemos perder de vista que uma política criminal alternativa e a luta ideológica e cultural que a acompanha devem desenvolver-se com vistas à transição para uma sociedade que não tenha necessidade do direito penal burguês, e devem realizar, no entanto, na fase de transição, todas as conquistas possíveis para a repropriação, por parte da sociedade, de um poder alienado, para o desenvolvimento de formas alternativas de autogestão da sociedade, também no campo do controle do desvio.186

Pode-se apontar a teoria agnóstica da pena, proposta por Zaffaroni, e a

teoria dialética da pena, apresentada por Cirino dos Santos, como vertentes do

discurso minimalista radical187 fundadas em oposição às tradicionais teorias

penalógicas legitimadoras.

Considerando-se a pena como a intervenção estatal mais gravosa em face

do indivíduo, a perspectiva minimalista estabelece que não deve ser acionado o

direito penal, e, por conseguinte, a pena criminal, caso existam outros

instrumentos jurídicos não-penais capazes de resolver ou mitigar o conflito social.

O Direito Penal, portanto, deveria ser constantemente contido pelo Princípio da

Intervenção Mínima, permeado pelas noções de fragmentariedade e

subsidiariedade188. Desta forma, pugna por medidas de política criminal como

descriminalização, descarcerização, diminuição das penas, alternativas penais e

penas alternativas.

O minimalismo penal, segundo Baratta, concebe o Direito Penal com base

nos Direitos Humanos189. O conceito de direitos humanos recebe aqui função

dúplice: uma função negativa, no que toca aos limites da intervenção penal; e uma

função positiva, a respeito da definição do objeto da tutela por meio do direito

penal. Desta forma, não empresta legitimidade à pena, preconizando a retração do

186 BARATTA, A., Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal, p. 207. 187 Utilização a denominação minimalismo radical como distinção ao dito minimalismo moderado, preconizado por Ferrajoli (Direito e razão: teoria do garantismo penal), Hassemer, Garcia-Pablos de Molina, dentre outros. Sobre os distintos matizes do minimalismo, ver ANDRADE, V. R. P. de, Minimalismo e abolicionismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão: “entre os modelos teóricos mais notáveis do minimalismo, todos com fundamentações diversas, o do italiano Alessandro Baratta, de base interacionista-materialista; o do penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, de base interacionista, foucautiana e latino-americanista; e o do italiano Luigi Ferrajoli, de base liberal iluminista”. 188 BATISTA, N., Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. 189 BARATTA, A., Principios de derecho penal mínimo. Para una teoría de los derechos humanos como objeto y limite de la ley penal.

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poder punitivo que deve ser ao mesmo tempo limitado e definido pelo cânone dos

direitos humanos.

2.4.2.1.3 Teoria Dialética da Pena

Juarez Cirino dos Santos defende uma teoria materialista/dialética da pena,

a qual seria decorrente do discurso crítico da teoria criminológica, que se constitui

na distinção entre as funções reais e funções ilusórias da ideologia penal nas

sociedades capitalistas190. Corresponde à tradução dos postulados da Criminologia

Radical para uma formulação crítica da teoria penalógica (ou anti-penalógica).

Nas palavras de seu precursor no Brasil:

A Criminologia Radical distingue objetivos ideológicos aparentes do sistema punitivo (repressão da criminalidade, controle e redução do crime e ressocialização do criminoso) e objetivos reais ocultos do sistema punitivo (reprodução das relações de produção e da massa criminalizada), demonstrando que o fracasso histórico do sistema penal limita-se aos objetivos ideológicos aparentes, porque os objetivos reais ocultos do sistema punitivo representam êxito histórico absoluto desse aparelho de reprodução do poder econômico e político da sociedade capitalista.191

Este contra-discurso penalógico encontra seu referencial teórico na

tradição marxista, com Pachukanis192, Rusche e Kircheimer193, Melossi e

Pavarini194, bem como com contribuições do legado de Foucault.195 Em sua busca

por arcabouços para compreensão acerca do crime e do controle social, conclui

que o sistema punitivo é um fenômeno social ligado ao processo de produção.

A teoria dialético-criminológica da pena evidencia a conservação e

reprodução social empreendidas pelo programa desigual e seletivo do Direito

Penal, cuja ideologia penal tem como funções reais: a) a função política de

garantir e reproduzir a escala social vertical; b) a função ideológica de

190 CIRINO DOS SANTOS, J., Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial, p. 34. 191 Id., A Criminologia Radical, p. 128. 192 PACHUKANIS, A teoria geral do direito e o marxismo. 193 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social. 194 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica. 195 FOUCAULT, M., Vigiar e punir.

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encobrir/imunizar comportamentos danosos das elites do poder político e

econômico196. Por sua vez, o discurso penalógico oficial compreende que:

a) a pena criminal cumpre a função de retribuição equivalente do crime nas sociedades modernas, precisamente mediante a neutralização de condenados reais durante a execução da pena; b) as outras funções (i) de correção individual (prevenção especial positiva, destruída pela experiência histórica e arquivada pelo labelling approach) e (ii) de afirmação da validade da norma (prevenção geral postiva, em contradição com a correlação sistema penal/mercado de trabalho) constituem retórica encobridora das funções reais da pena criminal, de garantia da desigualdade social e da opressão de classe da relação capital/trabalho das sociedades contemporâneas197.

Nesta esteira, as teleologias penalógicas tradicionais corresponderiam a

meras funções ilusórias da pena, que serviriam estrategicamente para legitimar a

forma de punição específica da sociedade capitalista.

2.4.2.1.4 Teoria Agnóstica da Pena

A teoria agnóstica da pena, formulada por Zaffaroni198, ou também

chamada teoria negativa da pena199, não compreende a pena com base em

fundamentos jurídicos ou racionais, mas sim como um fato meramente político,

que emana do poder. Conforme dispõe o autor:

Creo que a partir de considerar a la pena como un hecho de poder, como un hecho político, es que podemos reducir el ámbito del poder punitivo, postular la reducción del ámbito de poder punitivo como un objetivo político sumamente claro.200

Desta forma, reconhece na pena a incapacidade em cumprir, na grande

maioria dos casos, suas funções manifestas (prevenções gerais e especiais),

expressas no discurso oficial, prevalecendo efetivamente suas funções reais,

ocultas (reprodução da violência institucional e efeito criminógeno).

196 BARATTA, A., Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal, p. 167. 197 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal brasileiro. Parte Geral, p. 261 et. seq. 198 Sobre Teoria Agnóstica da Pena, ver ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas e BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 97 passim; CARVALHO, S. de, Teoria agnóstica da pena: o modelo garantista de limitação do poder punitivo. 199 CIRINO DOS SANTOS, J., Op. Cit. 200 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas.

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Segundo Zaffaroni e Batista: “não se transpõe esse atoleiro com uma nova

teoria punitiva, mas sim apelando para uma teoria negativa ou agnóstica da

pena.”201 Em sua visão, a falência das teorias oficiais da pena permite verificar

que o poder punitivo conserva apenas as funções negativas da pena (retribuição e

neutralização), sendo seus efeitos positivos

(ressocialização/intimidação/incorporação da norma penal) inalcançáveis por

meio da sanção penal, por se tratarem de teorias falsas ou não-generalizáveis.

Como aponta Carvalho, é “fundamental, pois, (re)fundar o direito penal a partir de

uma teoria agnóstica da pena, teoria que denuncia, segundo Zaffaroni, que tudo o

que foi dito sobre a punição é falso e irreal, principalmente sua finalidade

medicinal”202.

Neste sentido, esta teoria deslegitimante da pena é denominada de

agnóstica quanto à sua função, pois confessa não conhecê-la203. Este diagnóstico

conduz seus defensores à busca de um conceito de pena limitador da intervenção

penal. Entendem que “adotando-se uma teoria negativa, é possível delimitar o

horizonte do direito penal sem que seu recorte provoque a legitimação dos

elementos do estado de polícia próprios do poder punitivo que lhe toca limitar.”204

Salo de Carvalho, sintetizando o horizonte que busca estabelecer a teoria

agnóstica da pena, afirma que “reduzir dor e sofrimento (danos) seria o único

motivo de justificação da pena nas atuais condições em que é exercida,

principalmente nos países periféricos”205. Trata-se, pois, de um constructo teórico

direcionado à redução de danos do sistema penal, de forma a operar como “dique

de contenção das sujas e turbulentas águas do estado de polícia, para impedir a

submersão do estado de direito”206.

Neste primeiro capítulo pudemos observar a crise de legitimidade que se

abate sobre o sistema penal. Identifica-se tal crise como um traço que se confunde

com sua própria gênese. Esta deslegitimação traduz-se, sobretudo, na contumaz

incongruência entre o discurso jurídico-penal e a realidade social produzida pelo

cárcere.

201 BATISTA, N., op. cit., p. 98. Grifo nosso. 202 CARVALHO, S. de, Garantismo e direito de punir: teoria agnóstica da pena. 203 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1, p. 100. 204 Ibid., p. 94. 205 CARVALHO, S. de, Antimanual de Criminologia, p. 149. 206 BATISTA, op. cit., p. 20 passim.

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Faz-se necessário atentar às idiossincrasias presentes tanto no que tange

aos modelos de sistema penitenciário implementados, quanto às teorias

penalógicas que embasam o discurso punitivo oficial. Os sucessivos modelos

penitenciários, instituídos no esforço contínuo de reforma do sistema prisional,

fracassaram. Desde o sistema filadélfico, passando pelo sistema auburniano, até

chegar aos sistemas progressivos, a crise crônica que se abate sobre o cárcere não

arrefeceu. As constantes reformas penitenciárias não surtem soluções, tão somente

resumindo-se a um discurso de remediar o irremediável.

De igual sorte, fracassaram as teorias justificadoras da pena, apresentando

distintos discursos voltados a empregar legitimidade a imposição da sanção penal.

Partindo das teorias absolutas - calcadas na retribucionismo -, às teorias

preventivas - preconizando as funções de intimidação, integração/manutenção da

norma penal, neutralização e ressocialização -, e, por fim, às teorias unitárias –

com a proposta de fusão das distintas funções penalógicas, verificam-se, em

verdade, discursos que não encontram respaldo na realidade concreta. Em todas

estas teorias legitimantes, percebe-se o antagonismo entre as funções manifestas

da pena, presentes em seu discurso oficial, e as funções reais da pena, produzidas

pelo poder punitivo na realidade social.

Estas contradições dão ensejo às teorias penalógicas deslegitimadoras,

negando legitimidade ao poder punitivo pela crítica radical às funções ilusórias da

pena e aos efeitos do sistema penal. Em primeiro plano, o discurso do

abolicionismo penal, preconizando pela extinção gradual do sistema penal. Em

outra perspectiva, o discurso minimalista penal, também sem reconhecer

legitimidade à imposição da pena dirige-se à contenção do poder punitivo. Nesta

esteira, emergem a teoria dialética da pena e a teoria agnóstica da pena, como

vertentes de um minimalismo radical.

A partir deste escorço crítico podemos identificar as profundas

contradições que delineiam a crise do sistema penitenciário. A percepção destas

aporias, tanto dos modelos como dos fundamentos do sistema penal, servirá de

alicerce para as investigações almejadas nesta tese. Cabe, portanto, no capítulo

que segue, verificar em que medida as estratégias de punição estão relacionadas

ao modelo econômico vigente, de modo a permitir a análise dos contornos do

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sistema penal sob a égide do capitalismo neoliberal e suas implicações diretas no

cárcere.

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3 A Era do Grande Encarceramento: neoliberalismo, sistema penitenciário e contenção punitiva da pobreza

A transformação em sistemas penais não pode ser explicada somente pela mudança das demandas da crime [sociedade] contra o crime, embora esta luta faça parte do jogo. Todo sistema de produção tende a descobrir punições que correspondam às suas relações de produção. É, pois, necessário pesquisar a origem e a força dos sistemas penais, o uso e a rejeição de certas punições, e a intensidade das práticas penais, uma vez que elas são determinadas por forças sociais, sobretudo pelas econômicas e consequentemente fiscais.

(Otto Kirchheimer)207

A despeito do fracasso de suas diversas teorias fundamentadoras e de seus

sistemas de operativos, ao longo dos últimos 200 anos, o cárcere continua a ser a

principal forma de punição na atualidade. A aposta na pena de prisão como

panaceia à conflitividade social parece chegar ao paroxismo na atual fase do

capitalismo, dando ensejo ao que algumas vozes da Criminologia Crítica irão

denominar de “Era do Grande Encarceramento”208.

Na segunda metade do século XX, a reestruturação do capitalismo já

começava a dar seus primeiros sinais, especialmente com o aumento do

desemprego, consequência da expulsão de uma larga fatia do trabalho no setor

industrial. Como adverte Alessandro de Giorgi, voltam à cena os alardes sobre o

crescimento de um surplus populacional, isto é, uma força de trabalho em excesso

no que tange à capacidade de absorção do mercado de trabalho209. Constata-se

uma crise socioeconômica sem precedentes, que se avoluma a partir do crack da

bolsa de valores de Nova Iorque em 1929, derivada da forma de reprodução e

207 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 18. 208 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos. BATISTA, V. M. (org.), Depois do grande encarceramento e Introdução crítica à Criminologia brasileira. CARVALHO, S. de, Sobre as possibilidades de uma Penologia crítica: provocações criminológicas às Teorias da Pena na era do grande encarceramento. 209 GIORGI, A. de, A miséria governada através do sistema penal, p 27.

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acumulação do capital no processo de globalização, cuja concentração produz

desigualdades abissais.

Todo esse complexo contexto apresentado pelo “capitalismo tardio”210 nos

permitiria, segundo Marildo Menegat, compreender que a estrutura social

capitalista é amparada, cada vez mais, “por um aparato jurídico que lhe permite

esconder a sua congênita intenção de exclusão por meio da violência”211. Num

contexto no qual explodem as crises cíclicas do capitalismo, a barbárie acumulada

nas situações anteriores tende a se agravar e aprofundar, de modo a revelar-se em

uma crise estrutural, decorrência do “excesso de civilização”212.

A barbárie – que não pode ser entendida como um fato, uma ocorrência, ou a consequência de uma crise cíclica, mas um modo geral de organização a partir dos escombros que resultam desta crise estrutural, ou seja, não apenas como uma objetivação inconsciente, mas também como uma subjetividade fria, dessolidarizada e cruel, perfeitamente adequada à naturalização da monstruosidade a que o mundo vai sendo reduzido – será a forma dominante das relações sociais.213

Em semelhante toada, Bauman aponta a vigência de uma crise existencial

(Unsicherheit), na qual o conceito de crise já não é apenas um elemento

conjuntural, inerente aos processos de acumulação de capital recorrentes na

história do sistema capitalista214, mas algo “inexorável à condição humana

atual”215.

Diante deste cenário limítrofe, os atuais contornos assumidos pelo

desenvolvimento do capitalismo, com a solidificação do empreendimento

político-econômico neoliberal, irão impor uma nova dinâmica ao sistema

210 Capitalismo tardio é aqui tomado no sentido dado por Mandel, de prolongamento da história desta forma social após a recaída na barbárie de 1914-1945, em que uma de suas características foi o início de uma nova fase de transformações tecnológicas amadurecidas plenamente nos anos 1980. As transformações que se colocam em curso desde então perfazem o universo do que chamo de fim da trégua e da volta definitiva da barbárie, agora também, e mais uma vez, nos países centrais. MANDEL, E., O capitalismo tardio. 211 MENEGAT, M., O olho da barbárie, p. 41. 212 “Nas crises declara-se uma epidemia social que teria parecido um contra-senso a todas as épocas anteriores — a epidemia de sobreprodução. A sociedade vê-se de repente retransportada a um estado de momentânea barbárie (...). E por que? Porque a sociedade possui civilização em excesso”. Karl Marx apud MENEGAT, M., Civilização em excesso, p. 2.. 213 Id., Estudos sobre ruínas. 214 MARX, K., Contribuição à crítica da economia política. 215 BAUMAN, Z., Em busca da política, p. 13 passim.

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punitivo. A crise, também um elemento presente desde a gênese da instituição

prisional, atinge seu ápice, e assume uma dimensão colossal na atualidade.

Neste sentido, os estudos sociológicos e criminológicos sobre o período

contemporâneo irão adotar distintas definições para este divisor de águas na

dinâmica de funcionamento do Estado e seus impactos no exercício do controle

social punitivo: Zygmunt Bauman e David Garland adotam o conceito de Pós-

modernidade216; Jock Young utiliza a expressão Modernidade Recente217;

Alessandro Di Giorgi o denomina Pós-fordismo218, e autores como Nilo Batista,

Eugênio Raul Zaffaroni, Vera Malaguti e Loic Wacquant, preconizam o termo

Neoliberalismo, posição que acompanhamos neste trabalho219.

Deve-se a Loic Wacquant, professor da Universidade de Berkeley na

Califórnia, a contribuição decisiva para compreender o enlace entre as

transformações socioeconômicas e o sistema punitivo na atualidade. Nas palavras

de Vera Malaguti:

Foi Loic Wacquant quem sistematizou, através de pesquisa sociológica de verdade, o eixo central desse novo movimento do capital que tratava de desmantelar o estado previdenciário para instituir o estado penal: punir os pobres, a nova gestão da miséria. Pesquisando o paradigma estadunidense e também sua disseminação pelo mundo, ele contribuiu decisivamente para o fortalecimento dos nossos argumentos na luta contra a expansão desse capital predador e contra o grande encarceramento que se instituía.220

Em sua obra Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados

Unidos, Wacquant analisa os efeitos do neoliberalismo sobre a expansão dos

aparatos punitivos nos EUA, bem como sua disseminação pelo mundo. O

criminólogo francês aponta que o setor penal do aparelho burocrático do Estado:

não foi predeterminado, mas, antes é o resultado de lutas envolvendo uma miríade de agentes e instituições que buscam reformatar esta ou aquela ala e prerrogativa do Estado, de acordo com seus interesses materiais e simbólicos.

216 Id., O mal estar da pós-modernidade. O autor também utiliza o conceito de “modernidade líquida”. Ver BAUMAN, Z., Modernidade líquida. 217 YOUNG, J., A sociedade excludente. 218 GIORGI, A. de, A miséria governada através do sistema penal. 219 BATISTA, N. et al., Direito Penal brasileiro, v. 1. BATISTA, V. M. (org.), Loic Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. 220 BATISTA, V. M., op. cit., p. 5.

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Outros caminhos históricos foram abertos, e continuam abertos, ainda que possam ser estreitos e improváveis.221

Com efeito, nas últimas décadas, sob a égide do neoliberalismo, assiste-se

à ascensão do recrudescimento das estratégias de controle punitivo em quase todo

o Ocidente222, precipuamente nos Estados Unidos, como será analisado adiante.

Esta onda punitiva deságua, sobretudo, no grande encarceramento, com o

emblemático aumento da população carcerária dos EUA em um índice de 314%

em 20 anos (1970-1991), algo inédito em uma sociedade democrática223.

A América Latina, e notadamente o Brasil, também receberá influências

desta nova colonialidade do saber/poder. Em razão de se tratar da periferia do

capitalismo, com histórico marcado pelo colonialismo exploratório, escravagismo

e regimes políticos autoritários, as consequências são ainda mais nefastas para o

respeito à dignidade humana nas masmorras prisionais.

Desta forma, fica patente a necessidade de debruçar-se na literatura que

permita identificar as razões subjacentes à pena de prisão, de modo a buscar

compreender a insistência em um fracasso de quase dois séculos.

Neste capítulo aprofundaremos esta análise, buscando perceber as interações

do modelo econômico-social com os sistemas de punição desde a gênese da prisão224,

para compreender de que maneira a crise estrutural da atual fase do capitalismo reflete-

se no cárcere. Em um primeiro momento, abordaremos a relação entre punição e

estrutura social, descortinando os trabalhos de Michel Foucault, George Rusche e Otto

Kircheimer e, por fim, Dario Melossi e Massimo Pavarini, para perceber desde a

transição do Medievo para a Modernidade a visível conexão entre o modelo

221 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 20. 222 Ibid, p. 20. 223 Garland adverte que “Em sociedades como as do Reino Unido e dos Estados Unidos, onde se manifestam divisões sociais e raciais profundas, que ensejam a experiência de taxas de criminalidade e de níveis de insegurança elevados, onde as soluções sociais foram politicamente desacreditadas, onde há poucas perspectivas de reinserção dos antigos delinquentes pelo trabalho ou pela família e onde, para completar esse quadro deprimente, um setor comercial em expansão encoraja e favorece o aumento do encarceramento, essa cultura punitiva está provocando um encarceramento em massa, a uma escala jamais alcançada nos países democráticos e raramente encontrada na maioria dos países totalitários”, GARLAND, D., A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea, p. 88. 224 “Sem pretender resgatar a a surrada imagem da ‘base e superestrutura’, desacreditada pela voz autorizada de Poulantzas, é decisivo advertir-se para a ‘essência econômica” que subjaz as definições jurídicas abstratas, compreendendo o verdadeiro processo socialde criação do direito”. BATISTA, N., Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro, p. 18.

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econômico vigente e a dinâmica operativa do sistema de punição, até meados do

século XX.

No segundo tópico, com base nas contribuições de Loic Wacquant,

buscaremos analisar os reflexos do modelo econômico neoliberal no sistema penal.

Para tanto, nos debruçamos sobre a emergência do neoliberalismo nos EUA e suas

consequências sobre o controle social punitivo, em especial o sistema penitenciário,

delineando a transfiguração do Estado de Bem Estar Social em Estado Penal.

No terceiro item, por fim, será analisada a repercussão do ideário neoliberal no

exercício do poder punitivo na América Latina e em especial no Brasil, através de uma

perspectiva marginal. Neste bojo será debatida a possível caracterização de um Estado

Penal brasileiro e seus contornos político-criminais.

3.1 A economia política da penalidade: (inter)faces dos sistemas penais e econômicos

O criminoso produz uma impressão ora moral, ora trágica, e presta um "serviço" despertando os sentimentos morais e estéticos do público. Ele produz não apenas manuais de direito penal, o direito penal em si, e, dessa forma, legisladores, mas também arte, literatura, romances e o teatro trágico.... O criminoso interrompe a monotonia e a segurança da vida burguesa. Assim, ele a protege da estagnação e gera aquela tensão contínua, aquela mobilidade do espírito sem a qual o estímulo da competição seria ele próprio entorpecido.

(Karl Marx)225

O discurso ideológico jurídico-penal recorrentemente conduz a

argumentações acríticas e a-históricas sobre a prisão, sua origem e suas

finalidades. Subvertendo a este senso comum teórico, destacam-se os estudos

centrados na conexão entre o sistema penal e a estrutura socioeconômica,

remetendo a um tripé fundamental na literatura criminológica. Primeiramente

Georg Rusche e Otto Kirchheimer (Punição e Estrutura Social), além de Michel

225 Karl Marx, Theories of surplus value apud BOTTOMORE, T.; RUBEL, M., Karl Marx: selected writings in society and social philosophy, p. 159.

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Foucault (Vigiar e Punir), e, por fim, Dario Melossi e Massimo Pavarini (Cárcere

e Fábrica) evidenciam, em perspectivas distintas, os contornos da intrínseca

relação entre a emergência da sociedade capitalista e a pena de prisão.

3.1.1 Punição e estrutura social: âmbito econômico-político

Rusche e Kirchheimer, representantes da tradição marxista da Escola de

Frankfurt, publicam o livro Punição e estrutura social, em 1939226. A despeito da

profundidade da análise e do ineditismo do tema tratado, a obra permaneceu sem

visibilidade até 1968, quando foi reeditada, tornando-se referência para as

primeiras reflexões da Criminologia Crítica.

Os autores destacam diversas abordagens acerca da relação entre a

criminalidade e o meio social, criticando o fato de que nem as teorias

sociológicas, nem as teorias da pena trouxeram a temática dos sistemas de

punição para o centro da investigação227.

Com o propósito de preencher esta lacuna, apontam a existência de uma

íntima relação entre a dinâmica dos sistemas penais e o modelo econômico

vigente em um dado contexto histórico. A tese de Rusche e Kirchheimer aponta

que a consolidação da pena privativa de liberdade não decorreu de formulações de

teóricos iluministas, mas sim de outros processos socioeconômicos estratégicos ao

modo de produção capitalista em ascensão.

Neste sentido, para os autores, a obrigatoriedade do trabalho dos presos

nas galés, no século XVI, deveu-se à escassez de trabalhadores livres, os quais se

negavam a realizar insalubre tarefa: a repressão à mendicância e vadiagem,

contrárias aos valores da ascendente burguesia, determinaram o surgimento das

226 Apesar de ser uma obra comum, o texto não foi escrito em conjunto pelos dois autores. Rusche se encarregou da elaboração dos capítulos II ao VIII, enquanto que Kirchheimer escreveu a introdução e os demais capítulos. O livro Punishment and social structure foi publicado em 1939, tendo sido a primeira obra da Escola de Frankfurt editada pela Columbia University Press de Nova Iorque. As diretrizes gerais de Punição e estrutura social foram lançadas por Georg Rusche no artigo “Arbeitsmarkt und Strafvollzug” (1933), publicado pelo Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt e, mais adiante, traduzido para o inglês na publicação Crime and social justice. Acerca de tais informações, ver “Nota introdutória à edição brasileira” em KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 11 et. seq. 227 Ibid., p. 16 et. seq.

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casas de correção no fim do século XVII; o sistema de encarceramento foi

impulsionado pelo mercantilismo e pelo iluminismo, e assim por diante.

Os autores se valem da metodologia materialista-histórica dialética para a

compreensão do crime e das técnicas de controle social. Desta forma, repudiam a

compreensão das análises criminológicas com base em postulados preconcebidos,

ontológicos e abstratos. Pugnam por uma pesquisa científica marcada pelo

empirismo – buscando revelações com embasamento na realidade social - e pela

interdisciplinaridade – conjugando campos do saber, como História, Sociologia,

Criminologia e Economia.

As reflexões de Rusche e Kirchheimer são resgatadas como base

fundamental para a emergente Criminologia da Reação Social na segunda metade

do século XX. Sobretudo, é a tese de que o sistema econômico determina a

dinâmica operativa do sistema penal, proposta em Punição e estrutura social, que

irá conectar os estudos criminais da Escola de Frankfurt às primeiras vertentes da

teoria criminológica crítica.

A fundamentação de sua tese inicia-se com a análise do sistema penal na

Baixa Idade Média na Europa. Neste contexto, os métodos de punição centravam-

se na indenização e na fiança, devendo ser mensuradas de acordo com a classe

social do infrator e da vítima. Em momento posterior, os castigos corporais

passam a ser utilizados recorrentemente, voltados principalmente a criminosos

integrantes das classes populares228.

Nos primórdios do capitalismo, a coexistência entre penas corporais e

fiança persistiu. Porém, verifica-se que os crimes patrimoniais vão recebendo

punições mais severas e acentuou-se a distinção de tratamento entre ricos e

pobres. Para os integrantes das classes sociais dominantes aplica-se a pena

pecuniária, na forma da fiança, a despeito da gravidade do delito. A contrario

sensu, os mais pobres são submetidos aos castigos físicos e penas de morte, ainda

que em face de delitos leves, de modo que “a legislação era abertamente contra as

classes subalternas”229.

Acerca do incremento da violência do sistema penal neste contexto,

Rusche e Kirchheimer destacam que:

228 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 21. 229 Ibid., p. 32 et. seq.

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todo o sistema penal da Baixa Idade Média deixa claro que não havia escassez de força de trabalho, pelo menos nas cidades. Como o preço da mão-de-obra baixou, a valorização da vida humana tornou-se cada vez menor. A luta renhida pela sobrevivência moldou o sistema penal de tal forma que este se constituiu num dos meios de prevenção de grandes crescimentos populacionais.230

A afirmação do mercantilismo no século XVI demarcou uma nova

transfiguração do sistema penal. O surgimento de grandes centros urbanos foi

marcado pela escassez de mão de obra, que conviveu com guerras religiosas,

assim como a eclosão de levantes populares. Neste sentido, novas formas de

punição foram implementadas, como a escravidão nas galés, a deportação e a

servidão por meio de trabalhos forçados.

No final do século XVII, concomitante ao incremento da densidade

demográfica das grandes cidades, o sistema penal passou a exercer controle mais

repressivo sobre os indivíduos que exerciam profissões ilegais (mendigos e

prostitutas) e sobre aqueles que dependiam de assistência (loucos, órfãos, doentes

e viúvas). A crescente escassez de mão de obra fez com que o Estado

recrudescesse o tratamento desta parcela considerada improdutiva da sociedade,

com a criação da Casa de Correção231. Estes estabelecimentos, que guardavam

características da fábrica e da prisão, receberam a dupla função de higienização

social dos centros urbanos e incorporação da lógica do trabalho aos internos, com

fulcro de assegurar lucratividade.

O advento do iluminismo demarcou as rupturas com o modelo penal do

Antigo Regime, caracterizado pelo arbítrio e pela imposição dos suplícios e penas

de morte. A burguesia, possuidora de poder econômico, não obstante alijada do

poder político, vislumbrava a limitação do poder punitivo concentrado nas mãos

do soberano. O projeto iluminista, dentre as transformações de ordem política,

econômica, científica e cultural que preconizava, delineava também um novo

230 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 39. 231 As casas de correção surgiram na Inglaterra, mas tiveram seu desenvolvimento máximo na Holanda. Nelas, misturavam-se os princípios das casas de assistência aos pobres, das oficinas de trabalho e das instituições penais, para se criar um ambiente cujo objetivo precípuo era transformar mendigos, prostitutas, ladrões, desempregados, ou seja, os indesejáveis, em força de trabalho útil. Neste sentido, Rusche e Kirchheimer destacam que “a política institucional para as casas de correção neste tipo de sociedade não era o resultado de amor fraterno ou de um senso oficial de obrigação para com os desvalidos. Era, outrossim, parte do desenvolvimento do capitalismo”. Ibid., p. 80.

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modelo punitivo - calcado na pena de prisão -, como sintetizado por Beccaria em

Dos delitos e das penas232.

Desta forma, este contexto evidencia-se como decisivo para o surgimento

da prisão. Para Rusche e Kirchheimer “os fundamentos do sistema carcerário

encontram-se no mercantilismo; sua promoção e elaboração foram tarefas do

Iluminismo”233. A reforma humanitária ensejada pela Escola Clássica e seus

ideólogos iluministas no século XVIII apontava para a racionalização e limitação

do poder punitivo. Por outro lado, tratava de atribuir à propriedade o status como

bem supremo que merece a efetiva e prioritária tutela do Estado, através da

imposição da pena de prisão.

As transformações sociais ocorridas neste período, como o fim do

mercantilismo, o crescimento populacional, o excedente de mão de obra em razão

da introdução das máquinas a vapor na produção, e o aumento da pobreza geraram

como consequência superlotação e precariedade estrutural nas casas de correção.

Em virtude disto, a vadiagem e mendicância deixaram de ser punidas com a

imposição da sanção penal na casa de correção, que gradualmente vai

desaparecendo234.

A pobreza continua crescendo na Europa, especialmente entre o final do

século XVIII e início do século XIX, o que redunda no aumento das populações

marginalizadas nos grandes centros urbanos e consequentemente dos índices de

crimes patrimoniais. Neste contexto, emerge o discurso de que o aumento da

criminalidade deve-se à complacência das leis penais menos severas, bradando

pela volta das penas corporais típicas do Antigo Regime. No entanto, os ideais

iluministas conseguem preservar a pena privativa de liberdade como resposta

prioritária do poder punitivo.

232 “À medida que os suplícios se tornam mais cruéis, a alma, semelhante aos fluidos que se põem sempre ao nível dos objetos que os cercam, endurece-se pelo espetáculo renovado da barbárie. A gente se habitua aos suplícios horríveis; e, depois de cem anos de crueldades multiplicadas, as paixões, sempre ativas, são menos refreadas pela roda e pela força do que antes o eram pela prisão”. BECCARIA, C., Dos delitos e das penas, p. 31. 233 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 109. 234 “a casa de correção caiu em decadência porque outras fontes melhores de lucro foram encontradas, e porque, com o desaparecimento da casa de correção como um meio de exploração lucrativo, a possível influência reformadora de trabalho seguro também desapareceu”. Ibid., p. 136 et. seq.

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Na primeira metade do século XIX a prisão se consolida como o principal

método de punição no Ocidente. Neste momento, há um expressivo aumento da

população carcerária, entretanto sem receber em contrapartida aumento de

investimentos ou de vagas nos estabelecimentos prisionais. A precariedade de

condições vai se avolumando no cárcere, sobretudo no que se refere a

superlotação, alimentação e saúde dos presos, atingindo, portanto, elevados

índices de mortalidade.

Os autores apontam que esta imposição de sofrimento ao preso devia-se à

“necessidade de manter o seu padrão de vida abaixo do padrão das classes

subalternas da população livre”235. Desta forma, constituía-se o princípio

da menor elegibilidade (less elegibillity principle), com efeito dissuasivo-

repressivo, em vistas de não permitir que o cárcere tenha condições mais

favoráveis do que as piores condições de vida do trabalhador livre236.

Neste contexto, a mão de obra dos apenados não era mais considerada útil

ao modelo econômico vigente, de modo que o trabalho prisional deixou de estar

relacionado a um meio à obtenção de lucro para servir como instrumento de

punição. Considerava-se que a mera privação da liberdade não era suficiente para

assegurar os castigos, devendo, portanto, ser complementada com a imposição de

trabalhos forçados, fome, tortura e isolamento celular.

Rusche e Kirchheimer apontam que a partir da segunda metade do século

XIX, as classes subalternas passam por significativas melhorias nas condições de

vida, em razão do aumento dos salários, processo de industrialização,

desenvolvimento de meios de transporte e algumas políticas de assistência.

Consequência direta deste novo cenário socioeconômico foi a redução nos índices

de criminalidade. Neste período, a noção de cura do apenado, como correção

através da prisão, acarretará melhorias das condições da execução penal237.

235 Segundo Rusche e Kirchheimer, relatórios da época apontavam que os presos deveriam se submeter à “autoridade incondicional” e “enquadrar seus desejos nos limites das condições das classes subalternas”. KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 152 et. seq. 236 ARGUELLO, K., Uma abordagem criminológico-crítica das finalidades subjacentes à pena de prisão. 237 A ideia de correção associada à noção de cura de um problema médico-psicológico foi disseminada pelo discurso cientificista do positivismo criminológico. LOMBROSO, C., O homem delinquente.

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O início do século XX também traz novas facetas ao sistema penal, com a

ascensão de regimes totalitários, particularmente o fascismo na Itália e o nacional

socialismo na Alemanha. Em matéria penal, seu legado é a afronta às garantias do

Direito Penal Liberal, dando ensejo a um modelo punitivo de contornos pré-

iluministas, marcado pelo arbítrio e pelo reestabelecimento da pena capital238.

Rusche e Kirchheimer irão debruçar-se ainda sobre estudos estatísticos

acerca da criminalidade em diversos países da Europa no início do século XX

chegando à conclusão de que a implementação de modelos de política criminal de

contornos liberais não representa o aumento dos índices de criminalidade, mas ao

contrário acarreta sua redução. Desta maneira, apontam que “a taxa de

criminalidade não é afetada pela política penal, mas está intimamente dependente

do desenvolvimento econômico”239.

3.1.2 Vigiar e punir: âmbito disciplinar e político-ideológico

Após o excurso histórico punitivo apresentado pelos autores alemães, vale

mencionar a contribuição de Michel Foucault, também decisiva para descortinar a

genealogia da prisão. Em Vigiar e punir, o filósofo francês revela como a

formação da sociedade disciplinar – que emerge na transição do século XVII ao

XVIII - e a afirmação da prisão como modelo punitivo estão intrinsecamente

correlacionadas às transformações econômicas que permeiam a Europa na

modernidade.

A contribuição foucaultiana, de inspiração pós-estruturalista240, aprofunda

o debate iniciado por Rusche e Kirchheimer acerca do papel do ideário iluminista

para o delineamento da invenção carcerária, entretanto, centrando foco em um

novo campo de estudo: a disciplina241. Se para os frankfurtianos era decisiva a

238 O sistema penal do nazismo representou a sobreposição do poder punitivo do Estado sobre os direitos e garantias individuais, caracterizando-se pela reintrodução da pena de morte, associação do delito à noção de traição à comunidade e julgamentos sumários e inquisitoriais. KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G ., op. cit., p. 233 e segs. 239 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 270. 240 A obra de Foucault é classificada das mais variadas formas, assim como demais teóricos da Escola Francesa como Deleuze, Derrida, Lyotard e Guattari, ora tidos como pós-estruturalistas, estruturalistas, pós-modernos ou desconstrutivistas. 241VIANNA, G. S. S., Disciplina, direito e subjetivação: uma análise de Punição e estrutura social, Vigiar e punir e Cárcere e fábrica, p. 166. Disponível em:

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dinâmica econômica de regulação do mercado de trabalho pautando o poder

punitivo estatal, para Foucault, é central trazer à análise as estratégias e

tecnologias de poder-saber, ou seja, a economia política dos corpos242.

O maior legado de Vigiar e punir reside em, analiticamente apontar, a

discrepância entre norma e disciplina, entre poder judiciário e poder punitivo,

entre doutrina penal e prática penal, entre discursos reformistas e afirmação

histórica do cárcere, entre sujeito de direito e corpos obedientes e dóceis243.

Foucault atenta para a dinâmica dos dispositivos disciplinares no cárcere,

como técnicas de poder que opera de modo calculado, contínuo, produzindo

sujeitos obedientes e úteis ao sistema. Esta gestão disciplinar dos corpos se

distingue da soberania estatal, mas constitui-se como uma microfísica do poder

que permeia aos poucos o próprio aparelho estatal244. Em sua ótica, os

mecanismos que possibilitaram o sucesso do empreendimento disciplinar são a

vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame245. Em sua análise,

porém, a prisão é parte constitutiva de uma rede de instituições disciplinares:

O que transformou a penalidade, na virada do século, foi o ajustamento do sistema judiciário a um mecanismo de vigilância e de controle; foi a integração comum de ambos num aparelho de Estado centralizado; mas foi também a instauração e o desenvolvimento de toda uma série de instituições (parapenais e, por vezes, não-penais) que serviam de ponto de apoio, de posições avançadas ou de formas reduzidas ao aparelho principal. Um sistema geral de vigilância-reclusão penetra por toda a espessura da sociedade, tomando formas que vão desde as grandes prisões, construídas a partir do modelo do Panopticom, até as sociedades de patronagem e que encontram seus pontos de aplicação não somente nos delinquentes, como também nas crianças abandonadas, órfãos, aprendizes, estudantes, operários etc.246

Contudo, Foucault mostra-nos que a instituição penitenciária já é

considerada falida por inúmeros críticos desde o seu surgimento, mas que a <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000770593>. Acessado em: 06/06/2015. 242 O autor traz ao debate a necessidade de evidenciar as contradições entre norma e disciplina, entre poder judiciário e poder punitivo, entre discurso penal e prática penal, entre discurso reformista e afirmação histórica da pena, entre sujeito de direito e sujeitados - corpos obedientes e dóceis. FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 193. 243 VIANNA, G. S. S., op. cit., p. 159. 244 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 153. 245 “O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame”. Ibid., p. 143. 246 Ibid, p. 38.

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“reforma” funciona como seu próprio programa, visto que “a prisão se encontrou,

desde o início, engajada numa série de mecanismos de acompanhamento, que

aparentemente devem corrigi-la, mas que parecem fazer parte de seu próprio

funcionamento, de tal modo têm estado ligados a sua existência em todo decorrer

de sua história”247.

Segundo Foucault, na realidade, a prisão não se desvia de seu objetivo ao

aparentemente fracassar. Como lucidamente aponta Katie Arguello:

O sistema punitivo opera uma gestão diferencial das ilegalidades, cujo efeito indireto é golpear uma ilegalidade visível e útil (das classes subalternas) para encobrir uma oculta (das classes dominantes); e diretamente, alimenta uma zona de marginalizados criminais (produz uma “ilegalidade fechada, separada e útil”), inseridos em um próprio mecanismo econômico (“indústria” do crime) e político (utiliza-se dos criminosos com fins subversivos e repressivos).248

Interessante notar que Pachukanis havia feito, em A teoria geral do Direito

e o marxismo, uma reflexão embrionária muito próxima do argumento

apresentado por Foucault em Vigiar e punir. Pachukanis relativiza os “progressos”

consumados desde os reformismos de Beccaria e Howard, rebatendo que as penas

corporais não foram abolidas em todo lugar249.

3.1.3 Cárcere e fábrica: âmbitos político-econômico e ideológico-disciplinar

Dario Melossi e Massimo Pavarini, representantes da teoria criminológica

crítica na Escola de Bolonha, destacam-se ao publicar a obra Cárcere e fábrica, no

ano de 1977, deixando como contribuição teórica algumas respostas à lacuna

presente em Vigiar e punir no que tange à esterilidade da contraposição entre

ideologia e disciplina.

247 Ibid., p. 197. 248 ARGUELLO, K., Uma abordagem criminológico-crítica das finalidades subjacentes à pena de prisão. Sobre o conceito de ilegalidades populares e a seletividade da prisão, ver FOUCAULT, M., op. cit., p. 231 et. seq. 249 O autor menciona inclusive, baseando-se em Teoria da Pena, de I. J. Fojnickij, que, mesmo após as reformas penais, o castigo corporal subsiste na França enquanto sanção disciplinar aplicada aos penitenciários. PACHUKANIS, A teoria geral do Direito e o marxismo, p. 152.

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Com o estudo das contribuições de Pachukanis sobre a forma jurídica,

Melossi e Pavarini buscam evidenciar que o direito, ao fixar a totalidade das

relações sociais no modo como aparecem na esfera da circulação, torna possível o

processo produtivo. A pena de prisão como noção de “retribuição equivalente” do

crime com a privação de um quantum de liberdade250, neste sentido, revela-se

simultaneamente um mecanismo jurídico-econômico – cobrando a dívida do

crime sob a equivalência de um tempo calculado de liberdade suprimida – e um

mecanismo técnico-disciplinar – investindo sobre os corpos dos condenados com

o “exercício de coação educativa total”251.

Melossi aponta que um dos grandes méritos de Vigiar e punir foi ter

demonstrado que a razão prática e a moral não são determinadas pela ideologia,

mas sim produzidas por técnicas específicas de controle sobre o corpo252. Porém,

para o italiano, esta importante articulação na obra foucaultiana corre o risco de

cair na “indeterminação de uma estrutura de signos e relações, brilhantemente

ligados entre si, mas cuja razão de existência nos escapa”253, uma vez que a

construção burguesa do corpo (na escola, no quartel, no cárcere, na família) só

poderia ser compreendida enquanto parte da organização do trabalho capitalista

“que necessita estruturar o corpo como máquina no interior da máquina produtiva

em seu conjunto”254.

A este respeito, Melossi e Pavarini destacam “a aporia presente no próprio

modo de produção capitalista, entre a esfera da distribuição ou circulação e a

esfera da produção ou de extração de mais-valia”255.

O contrato pode, portanto, ser assumido felizmente como fundamento ideal do poder político burguês, contanto que se reconheça, como co-essencial a este, o princípio disciplinar que sustenta o aparato técnico da coerção. Se a pena da privação da liberdade se estrutura, pois, sobre o modelo da ‘relação de troca’ (enquanto retribuição por equivalente), a sua execução (leia-se, penitenciária) é

250 Como ensina Pachukanis, foi preciso esperar a redução de todas as formas de “riqueza social” àquela mais abstrata e simples, “o trabalho humano medido em tempo”, através do capitalismo, para que surgisse a noção de “retribuição equivalente” do crime com a privação da liberdade. PACHUKANIS, op. cit., p. 159. 251 SANTOS, J. C. dos, 30 anos de Vigiar e Punir. 252 MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 76. 253 Ibid. 254 “Cárcere e trabalho na Europa e na Itália, no período de formação do modo de produção capitalista”, in: MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 77. 255 Ibid., p. 264.

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moldada sobre a hipótese da ‘manufatura’, da ‘fábrica’ (enquanto disciplina e subordinação).256

A pena compreendida como retribuição representaria sua consonância com

o direito, com a igualdade formal e com a certeza jurídica; por outro lado, a pena

como execução é o momento da disciplina, da subordinação política e da

arbitrariedade. Neste sentido, a inovação de Cárcere e fábrica em face de Vigiar e

punir reside na compreensão da ligação entre esses dois momentos contraditórios

a partir da teoria marxista da forma jurídica257.

Em suma, observa-se uma complementaridade entre as três referidas obras.

Em Punição e estrutura social, a análise da prisão se submete à prevalência de

uma esfera econômica apartada da política, compreendendo-se a dinâmica do

sistema penal enquanto regulador do mercado de trabalho. Em viés contrário,

Vigiar e punir traz à tona a constituição de indivíduos obedientes e socialmente

úteis ao sistema, através da prisão dando-se ênfase às técnicas de poder

disciplinar. Por fim, em Cárcere e fábrica há um equilíbrio entre estas duas

perspectivas de análise da trajetória histórica do sistema penal. Nesta última obra,

a prisão não produz apenas mercadorias, nem apenas homens, mas, sobretudo, o

próprio homem enquanto mercadoria. A análise de Arguello bem sintetiza esta

reflexão:

considera-se que a obra de Rusche e Kirchheimer, tenha subestimado o papel das forças ideológicas e políticas;69 quanto a Foucault, critica-se o caráter historicamente abstrato que assume a disciplina, sem se reconduzir às relações de produção. Os fundamentos materialistas que reenviam a questão da disciplina às relações de produção na fábrica, a partir da contradição entre capital e trabalho, são desenvolvidos por Melossi e Pavarini, em “Cárcere e fábrica”, e também por outros teóricos da criminologia crítica, impondo-se como outro marco decisivo para essa disciplina.258

Por este viés, percebe-se que historicamente a prisão, de fato, tem

realizado a função de “produzir a relação de desigualdade” e os

256 Ibid. 257 VIANNA, G. S. S., Disciplina, direito e subjetivação: uma análise de Punição e estrutura social, Vigiar e punir e Cárcere e fábrica, p. 129. 258 ARGUELLO, K., Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem, p. 17. Disponível em: <http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2013/01/Artigo-Katie.pdf>. Acessado em: 06/06/2015.

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“sujeitos submissos”259 dessa relação por meio da subordinação estrutural do

trabalho ao capital e da disciplina exigida pelo sistema capitalista através do

binômio cárcere/fábrica260.

O enlace destas contribuições teóricas evidencia que as teses de Rusche e

Kirchheimer (aspecto econômico-político), de Foucault (aspecto disciplinar e

ideológico-político) e de Melossi e Pavarini (aspectos econômico-político e

ideológico-disciplinar)261 são decisivas para compreender a dinâmica operativa do

sistema penal em sua complexidade. Revelam que os modelos de punição não

podem ser colocados em análise separadamente, de maneira atomizada, como se

fossem distintos e segregados de toda a realidade social. De modo que, conforme

apontaram Rusche e Kirchheimer “o sistema penal de uma dada sociedade não é

um fenômeno isolado sujeito apenas às suas leis especiais. É parte de todo o

sistema social, e compartilha suas aspirações e seus defeitos”262.

Desta forma, é necessária uma análise materialista-dialética do modelo

punitivo contemporâneo, circunscrito nos marcos do capitalismo neoliberal,

iniciado a partir da segunda metade do século XX. Por este prisma, a tese de

Rusche e Kirchheimer precisa ser atualizada.

Para alguns estudiosos, as mudanças nas relações de produção

capitalistas no século XX colocam em xeque as próprias bases da instituição

penitenciária, que se torna obsoleta e incapaz de atender às suas funções

manifestas263. Na opinião de Takagi e Platt: “A hipótese de Rusche em Punição e

estrutura social funcionou bem quando aplicada a sociedades pré-industriais em

que o trabalho poderia ser forçado e produtivo, mas aparentemente se perde

quando aplicada a sistemas de punição no século 20” (tradução nossa)264.

259 BARATTA, A., Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal, p. 193. 260 SANTOS, J. C. dos, Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial, p. 43. MELOSSI, D.; PAVARINI, M., Cárcere e fábrica, p. 211. 261 Esta percepção pode ser aprofundada em ARGUELLO, K., Uma abordagem criminológico-crítica das finalidades subjacentes à pena de prisão. 262 KIRCHHEIMER, O.; RUSCHE, G., Punição e estrutura social, p. 273 et. seq. 263 Para Garland, após dois séculos de otimismo racional e de crença no aparato técnico para punir e controlar os desviantes, na atual conjuntura, de crise do modelo punitivo moderno, até mesmo os especialistas reconhecem os limites desta engenharia punitiva. GARLAND, D., Punishment and modern society, p. 7 et. Seq. Contudo, Foucault mostra-nos que a instituição penitenciária já é considerada falida por inúmeros críticos desde o seu surgimento, mas que a “reforma” funciona como um programa da própria prisão. FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 197. 264 “Rusche’s hypothesis in Punishment and Social Structure worked well when applied to preindustrial societies in which labor could be forced and productive, but it apparently breaks

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Entretanto, as últimas décadas do século XX assistem ao movimento

contrário em boa parte do mundo, com o crescimento das taxas de

encarceramento. Ao esmiuçar os fenômenos recentes da questão criminal,

Wacquant endossa a hipótese central de Rusche e Kirchheimer de que o modelo

punitivo atua como médium do mercado de trabalho, apontando que “o sistema

penal contribui diretamente para regular os segmentos inferiores do mercado de

trabalho – e isso de maneira infinitamente mais coercitiva do que todas as

instituições sociais e regulamentos administrativos”265.

Wacquant descreve o fenômeno da transição do estado-providência para o

estado-penitência266, demonstrando a hipertrofia punitiva, nos EUA e seus

reflexos na Europa e países periféricos. É diante deste deslizamento do social para

o penal que se transfigura o sistema punitivo, no contexto do capitalismo em sua

fase neoliberal, conforme será analisado no próximo item.

3.2 O advento do Estado penal: Neoliberalismo e Sistema Penal

3.2.1 A gênese do campo burocrático neoliberal

A tese de Rusche e Kirchheimer, de viés materialista-histórico, cunhada

nos anos de 1930, tida como referencial para a Criminologia Crítica para

compreender as interfaces entre os modelos de punição e a estrutura

socioeconômica267, perde força no período do pós-guerra, quando a ênfase se

encontrava numa concepção tecnocrática dos problemas sociais. A partir da

segunda metade dos anos 1970, quando começa a se delinear o período pós-

fordista da economia, esse paradigma materialista é retomado. Cabe, portanto,

down when applied to punishment systems in the 20th century”. PLATT, T.; TAKAGI, P. (orgs.), Punishment and penal discipline: essays on the prison and the prisoners’ movement, p. 1. 265 WACQUANT, L., As prisões da miséria, p. 96. 266 Wacquant observa que “à regulamentação da pobreza permanente pelo trabalho assalariado sucede sua regulamentação pelas forças da ordem e pelos tribunais”. Ibid., p. 129. 267 Sabemos, desde os trabalhos pioneiros de Georg Rusche e Otto Kirchheimer, confirmados por cerca de 40 estudos empíricos em uma dezena de sociedades capitalistas, que existe no nível societário uma estreita e positiva correlação entre a deterioração do mercado de trabalho e o aumento dos efetivos presos – ao passo que não existe vínculo algum comprovado entre índice de criminalidade e índice de encarceramento. Ibid., p. 106.

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promover a atualização da análise dos teóricos da Escola de Frankfurt, para

compreender o sistema punitivo nos marcos do neoliberalismo.

A ideologia neoliberal surge na Europa Ocidental e América do Norte no

pós-II Guerra Mundial, desenvolvendo-se desde o início do século XX a partir da

Escola Austríaca, fundada por Carl Menger e continuada por Ludwig Von Mises,

que formulou os postulados que caracterizam o eixo do pensamento neoliberal até

os dias atuais. Baseada na revalorização do liberalismo econômico dos séculos

XVIII e XIX, esta ideologia tentaria recuperar o “sentido original do liberalismo”,

apontando para uma descaracterização do termo “liberal” em relação ao

liberalismo clássico268. De tal sorte, o ideário neoliberal reacende a defesa da

existência de uma “mão invisível” que exerceria a regulação das ações dos

homens e a busca constante de equilíbrio no mercado.

Entretanto, segundo aponta o eminente estudo elaborado pelo historiador

inglês Perry Anderson269, o grande marco do surgimento do pensamento

neoliberal encontra-se na publicação do livro O Caminho da Servidão, de

Friedrich Auguste Hayek, discípulo de Von Mises, em 1944, na Grã-Bretanha270.

“Trata-se de um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de

mercado por parte do Estado, denunciada como uma ameaça letal à liberdade, não

somente econômica, mas também política”271. O intervencionismo keynesiano, na

visão de Hayek, será considerado inevitavelmente como caminho em direção ao

crescimento da coerção administrativa arbitrária e a progressiva destruição do

Estado de direito que, por sua vez, levariam à constituição de um regime

totalitário.

A despeito de ser uma expressão largamente utilizada desde então, a

bibliografia que trata do tema nem sempre é rigorosa na proposição de um

conceito de neoliberalismo. Este é geralmente utilizado de modo descritivo, sem

268 VON MISES, L., Liberalismo segundo a tradição clássica. 269 ANDERSON, P., Balanço do neoliberalismo. 270 Mais tarde, em 1947, Hayek e outros simpatizantes do neoliberalismo (Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwing Von Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyr, Salvador de Mandrija, entre outros) reúnem-se na estação de esqui de Mont Pèlerin (Suíça), fundando a Mont Pèlerin Society. Trata-se de uma sociedade dedicada a promover a economia de livre mercado, cujo propósito se baseava no combate ao keynesianismo e, se caracterizava pela natureza franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada. A cada dois anos, realizam-se encontros internacionais para preparar as bases de outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro. Ibid., p. 10. 271 Ibid., p. 9 passim.

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que os autores procurem compreender sua origem e seu papel, o que acaba por

esvaziar o potencial explicativo do conceito272. No esforço de apresentar uma

definição, Harvey afirma:

El neoliberalismo es, ante todo, una teoría de prácticas político-económicas que afirma que la mejor manera de promover el bienestar del ser humano, consiste en no restringir el libre desarrollo de las capacidades y de las libertades empresariales del individuo, dentro de un marco institucional caracterizado por derechos de propiedad privada, fuertes mercados libres y libertad de comercio. El papel del Estado es crear y preservar el marco institucional apropiado para el desarrollo de estas prácticas.273

Os teóricos neoliberais passaram a defender enfaticamente que o problema

da crise do capitalismo estava nos sindicatos e no movimento operário que corroía

as bases do capitalismo ao destruir os níveis de lucros das empresas274. Portanto,

apregoam a precarização das relações de trabalho como garantia de estabilidade

aos mercados275.

A política neoliberal foi inaugurada no Chile no período do ditador

Pinochet, entretanto, foi na Inglaterra de Margareth Thatcher que ganhou seus

contornos mais definitivos e acabados. Segundo Anderson o programa econômico

dos governos Thatcher previam pelo menos a seguinte receita:

a) contrair a emissão monetária; b) elevar as taxas de jutos; c) diminuir os impostos sobre rendimentos altos; d) abolir os controles sobre fluxos financeiros; e) criar desemprego massivo; e) aplastar as greves; f) elaborar legislação antissocial; g) cortar gastos públicos e finalmente; h) praticar um amplo programa de privatização.276

272 Outra limitação reside no fato de que parte da bibliografia não atenta para as contradições entre a teoria e a prática neoliberal, e tende a desconsiderar as diferentes formas que o neoliberalismo assume em países centrais e periféricos. DUMÉNIL, G.; LÉVY, D., Une théorie marxiste du néolibéralisme. 273 HARVEY, D., Breve historia del neoliberalismo, p. 8. 274 ANDERSON, P., op. cit. 275 Neste sentido, Bordieu ironicamente aponta que significaria passar aos trabalhadores a seguinte mensagem: “abandonem hoje as suas conquistas sociais, sempre para evitar destruir a confiança dos investidores, em nome do crescimento que isso nos trará amanhã. Uma lógica bem conhecida pelos trabalhadores afetados que, para resumir a política de participação que em outros tempos o gaullismo lhes oferecia, diziam: Você me dá o seu relógio que eu lhe dou a hora”. BORDIEU, P., Contrafogos, p. 66. 276 ANDERSON, P., op. cit., p. 9.

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A hegemonia deste programa levou cerca de uma década, a década de

1970, para ser implementada quando, em outra direção, a maioria dos governos da

Organização Europeia para o Comércio e Desenvolvimento (OCDE) tratavam de

adotar ajustes keynesianos para superar as crises econômicas. O momento chave

vem em 1979, com a eleição do governo Thatcher na Inglaterra, o primeiro país

de capitalismo avançado disposto a levar a cabo o programa neoliberal. Um ano

depois, em 1980, Reagan chegou à presidência dos Estados Unidos. Em seguida,

quase todos os países do norte da Europa ocidental, com exceção da Suécia e da

Áustria, também adotaram as teses neoliberais, irradiando-se, posteriormente, aos

países da Cortina de Ferro com a queda do muro de Berlim. “O impacto do triunfo

neoliberal no leste europeu tardou a ser sentido em outras partes do globo,

particularmente, pode-se dizer, aqui na América Latina, que hoje em dia se

converte na terceira grande cena de experimentações neoliberais”277.

Na América Latina o chamado ideário neoliberal encontrou sua mais

acabada expressão e sistematização no encontro realizado em novembro de 1989

na capital dos Estados Unidos, que ficou conhecido como Consenso de

Washington. Os objetivos elementares do Consenso de Washington pugnam “por

um lado, a drástica redução do Estado e a corrosão do conceito de Nação; por

outro, o máximo de abertura à importação de bens e serviços e à entrada de

capitais de risco. Tudo em nome de um grande princípio: o da soberania absoluta

do mercado auto regulável nas relações econômicas tanto internas quanto

externas”278.

A despeito do sucesso, inimaginável aos seus ideólogos, com a

globalização dos mercados, na visão de Anderson:

Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonham, disseminando a simples ideia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas.279

277 ANDERSON, P., Balanço do neoliberalismo, p. 9. 278 BATISTA, P. N., O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos, p. 27. 279 ANDERSON, P., op. cit., p. 12.

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É neste sentido que Michel Foucault irá antecipar, em 1978 na obra

Segurança, Território e População, que o neoliberalismo deve ser compreendido

como uma nova governamentalidade280. Com efeito, no neoliberalismo tem de

haver uma intervenção maciça do Estado sobre a sociedade para garantir a

moldura do mercado, como regulador desta:

Ele (o Estado) tem de intervir sobre a própria sociedade em sua trama e em sua espessura. (...) Vai se tratar, portanto, não de um governo econômico, como aquele com que sonhavam os fisiocratas, isto é, o governo tem apenas de reconhecer e observar as leis econômicas; não é um governo econômico, é um governo de sociedade.281

Por este viés, sob o prisma do neoliberalismo – em especial o da Escola de

Chicago –, o sujeito materialista e individualista, em uma palavra, utilitário;

garantidor da extinção do Estado deveria ser produzido para que fosse possível

uma organização autônoma da sociedade civil. O projeto neoliberal: “busca

estender a racionalidade do mercado, os esquemas de análise que ela propõe e os

critérios de decisão que sugere a domínios não exclusivamente ou não

prioritariamente econômicos. No caso, a família e a natalidade ou a delinquência e

a política penal”282.

Loic Wacquant irá identificar, portanto, claramente duas leituras distintas

acerca do significante que se pode extrair do projeto neoliberal:

A antropologia do neoliberalismo se polarizou entre um modelo econômico hegemônico, ancorado por variantes do domínio de mercado, e uma abordagem rebelde, alimentada por derivações da noção foucaultiana de governamentalidade. Ambas as noções dissimulam o que é “neo” no neoliberalismo: a reengenharia e a reestruturação do Estado como a agência principal que estabelece regras e conforma as subjetividades, relações sociais e representações coletivas apropriadas à produção de mercados.283

280 Em vias de descrever o funcionamento do modo de governo do Estado moderno, Foucault elaborou o conceito de governamentalidade o entendendo como: “o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança”. FOUCAULT, M., Segurança, território e população, p. 143. 281 Ibid., p. 151. 282 Ibid. p. 329. 283 WACQUANT, Três etapas para uma Antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente.

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O criminólogo francês vale-se do conceito de “campo burocrático” de

Pierre Bourdieu284, para propor uma via média entre essas duas abordagens, que

concebe o neoliberalismo como uma articulação entre Estado, mercado e

cidadania, aparelhando o primeiro para impor a marca do segundo à terceira. Essa

concepção repatria a penalidade para o centro da produção de um Estado

punitivo285.

Este panorama de implementação do neoliberalismo, não apenas enquanto

projeto de liberalização econômica, mas, sobretudo como gestão de uma nova

governamentalidade, deve ser analisado pormenorizadamente no laboratório onde

foi levado ao paroxismo. Neste sentido, cabe examinar a experiência

estadunidense, verificando seus efeitos, de um lado com a derrocada do Welfare

State, e de outro, com a ofensiva punitiva.

3.2.2 Do Estado de bem estar social ao Estado penal

A difusão do modelo econômico neoliberal traz consigo como legado o

declínio do Estado de Bem Estar Social. Parece haver atualmente o entendimento

comum entre conservadores e progressistas de distintos matizes que o Estado

Keynesiano foi suplantado na maioria dos países do mundo, a despeito de sua

solidez erguida no pós-guerra. As leituras acerca de sua natureza e extensão são,

entretanto, alvo de controvérsias.

Giuseppe Vacca entende que a crise do Welfare State, com a estagnação do

desenvolvimento econômico, confunde-se, também, com a crise do Estado nação,

que por sua vez, traz em seu bojo uma crise fiscal, uma crise de legitimação e uma

284 O conceito de campo é definido por Bourdieu e Wacquant “como una red o una configuración de relaciones objetivas entre posiciones”. BOURDIEU, P.; WACQUANT, L., Una invitación a la sociologia reflexiva, p. 134. Notadamente, a noção de campo burocrático é trabalhada por Bourdieu para redefinir o Estado como uma arena de lutas pela definição e manipulação dos bens públicos. É um dos três conceitos forjados pelo autor para repensar a posição de governo, não devendo ser confundido com o campo político (com o qual faz interseção), nem com o campo do poder (no qual está situado). BOURDIEU, P., Rethinking the state: on the genesis and structure of the bureaucratic field. 285 WACQUANT, Três etapas para uma Antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente, p. 505.

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crise de governabilidade. Aos crescentes problemas de falta de produtividade do

aparelho estatal, a fórmula “menos Estado, mais mercado” surge como solução286.

Na análise de Vicente Navarro o centro da questão está na derrocada do

welfarismo na desconstrução da natureza ideológica dos argumentos anti-welfare,

associando o estado de bem estar como elemento gerador de estagnação social.

Desta forma, caracterizando o neoliberalismo como um “keynesianismo

militarista”, levando em conta a relação entre a redução de gastos sociais e o

aumento de gastos militares, sobretudo no governo Reagan287.

Zygmunt Bauman, por seu turno, aponta que este Estado não pôde mais

custear as garantias para o cidadão, pois, com a crescente mecanização da

produção, surge, assim, um exército de trabalhadores desempregados, uma massa

de inimpregáveis, que foram condenados a viverem excluídos da sociedade de

consumo, aqueles que sobraram, e, portanto, são descartáveis.

O estado de bem-estar tinha de arcar com os custos marginais da corrida do capital pelo lucro, e tornar a mão-de-obra deixada para trás novamente empregável — um esforço que o próprio capital não poderia empreender. Hoje, com um crescente setor da população que provavelmente nunca reingressará na produção e que, portanto, não apresenta interesse presente ou futuro para os que dirigem a economia, a “margem” já não é marginal e o colapso das vantagens do capital ainda o faz parecer menos marginal — maior, mais inconveniente e embaraçoso — do que o é. A nova perspectiva se expressa na frase da moda: “Estado de bem-estar? Já não podemos custeá-lo”.288

Os efeitos da minimização do Estado de bem-estar com a suspensão do

custeamento das condições protetivas para os indivíduos, foram bastante

expressivos. Constituiu-se uma gigantesca massa de excluídos que foram privados

das condições dignas de sobrevivência e que não puderam mais participar ou

gozar de um papel na sociedade capitalista, são os “consumidores falhos” que se

enfileiram no “exército de reserva de mão de obra”289.

Neste trabalho, interessa-nos compreender como se deu a transição do

modelo de Estado de Bem Estar Social para o modelo de Estado Penal, sob égide

do empreendimento neoliberal. É necessário, portanto, identificar a

286 VACCA, G., Estado e mercado, público e privado, p. 163. 287 NAVARRO, V., Welfare e keynesianismo militarista na era Regan, p. 190. 288 BAUMAN, Z., O mal-estar da Pós-modernidade, p. 51. 289 Ibid., p. 55.

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implementação de um vasto programa que concomitantemente alia a corrosão das

políticas sociais e assistenciais e sua substituição por políticas repressivas.

Esta transfiguração do intervencionismo estatal é estudada por Loic

Wacquant. Debruçando-se sobre as reformas nas políticas sociais implementadas

nos EUA no último quartel do século XX, o autor aponta para o declínio do

Welfare State (Estado de Bem-Estar Social) e a ascensão do Warfare State (Estado

Penal), preconizando o incremento do aparato repressivo do Estado290. O autor

aponta que:

No decorrer das três últimas décadas (...) a América lançou-se numa experiência social e política sem precedentes (...): a substituição de um (semi) Estado-providência por um Estado penal e policial, no (...) qual a criminalização da marginalidade e a ‘contenção punitiva’ das categorias deserdadas faz-se de política social.291

A partir do momento em que o Estado retrocede no que tange à sua

dimensão prestacional de direitos sociais, se torna necessária a intervenção do seu

aparato repressivo em relação às condutas consideradas transgressoras da lei e o

rigoroso controle dos grupos sociais ditos ameaçadores da nova ordem. Este

binômio conduz Wacquant a fazer uso da expressão Estado Centauro para retratá-

lo292.

Trata-se de uma nova forma política, um Estado híbrido de viés “liberal-

paternalista", que exibe rostos opostos nos dois extremos da estrutura de classes:

ele é edificante e ‘libertador’ no topo, onde atua para alavancar os recursos e expandir as opções de vida dos detentores de capital econômico e cultural; mas é penalizador e restritivo na base, quando se trata de administrar as populações desestabilizadas pelo aprofundamento da desigualdade e pela difusão da insegurança do trabalho e da inquietação étnica. O neoliberalismo realmente existente exalta o “laissez faire et laisez passer” para os dominantes, mas se mostra paternalista e intruso para com os subalternos, especialmente para com o

290 O fim da Guerra Fria e a queda do muro de Berlim demarcam a ascensão da nova ordem mundial, cenário que torna obsoleta a necessidade de programas governamentais orientados na filosofia do Estado-Providência. 291 VACCA, G., Estado e mercado, público e privado, p. 154. 292 O conceito utilizado por Wacquant simboliza ao mesmo tempo um ser dotado de cabeça humana, representando o racionalismo liberal, e de corpo bestial, espelhando sua face penal e de controle punitivo. Tal metáfora fora também trabalhada anteriormente por Maquiavel, Gramsci e Poulantzas. Ver em: Maquiavel, O Príncipe, p. 94. GRAMSCI, A., Cadernos do cárcere, v. 3 (“Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política”). POULANTZAS, N., O Estado, o poder, o socialismo, p. 10.

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precariado urbano, cujos parâmetros de vida ele restringe através da malha combinada de workfare fiscalizador e da supervisão judicial293.

Deste modo, o autor afirma que o Estado, que se mostra incapaz de superar

a crescente crise social, empenha seus esforços em uma gestão penal da miséria,

na criminalização das consequências da pobreza.

Como salienta Arguello, as duas principais manifestações do programa

criminalizante levado a cabo pelo empreendimento neoliberal nos Estados

Unidos, substituindo progressivamente, nas últimas três décadas, um semi

Estado-providência por um Estado policial, foram294:

a) os dispositivos do workfare, que transformam os serviços sociais em

instrumento de vigilância e controle das classes consideradas “perigosas” -

condicionam o acesso à assistência social à adoção de certas normas de conduta

(sexual, familiar, educativa, etc.), e o beneficiário do programa deve se

submeter a qualquer emprego (não importa a remuneração nem as

condições de trabalho);

b) a adoção de uma política de “contenção repressiva” dos pobres, por

meio do encarceramento em massa, tendo como resultado mais visível e

estarrecedor um crescimento da população carcerária nunca visto em uma

sociedade democrática, de 314% em 20 anos (entre 1970 a 1991)295. Este

segundo efeito desta metamorfose da dinâmica operativa do Estado será analisado

no próximo item deste trabalho.

No que tange à adoção dos dispositivos de workfare, é importante observar

que significativos retrocessos nas políticas de assistência e previdência social

foram introduzidos no Governo Reagan, em 1980. Entretanto, destaca-se,

sobretudo, a decisiva contribuição da reforma da assistência social votada pelo

congresso americano e implementada no Governo Bill Clinton em 1996,

denominada por Wacquant de “verdadeira falsa reforma”:

293 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 20 et. seq. 294 ARGUELLO, K., Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem, p. 6. 295 Conforme ARGUELLO, K., Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem.

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consiste em abolir o direito a assistência para as crianças mais desfavorecidas e substituí-lo pela obrigatoriedade do salariado desqualificado e subpago para seus pais”. “afeta apenas um setor menor dos gastos sociais (...) voltados para as famílias pobres. (...) o objetivo declarado desta lei é reabsorver não a pobreza, mas a pretensa dependência das famílias assistidas em relação aos programas sociais.296

Tais medidas obtiveram popularidade junto ao eleitorado das classes

médias brancas, visto que compartilham do senso comum que vê a assistência aos

pobres como mantenção da ociosidade e do vício dos habitantes do gueto. Assim,

busca-se fazer as pessoas passarem da assistência ao emprego, mas, a vertente

emprego da lei é inexistente. Nela não é previsto nenhum orçamento para

formação profissional ou para a criação de postos de trabalho.

O escopo da reforma assume contornos de enquadramento dos pobres,

representando inúmeras restrições. Revoga o direito à assistência de que as

crianças desfrutam, e, em seu lugar instaura uma duração máxima acumulada de

cinco anos de assistência por uma vida. Os estados e condados passam a ter toda a

liberdade de ação para impor condições de atribuições dos auxílios mais

restritivas do que as enunciadas pela lei federal.

De fato, a lei institui um sistema de prêmios e penalidades financeiras

encorajando os estados a eliminar por todos os meios os assistidos. Os orçamentos

da assistência passam a ser determinados não em função das necessidades das

populações, mas por dotações fixas. Ademais, a nova legislação exclui do registro

das verbas um conjunto de categorias sociais como os imigrantes legais chegados

a menos de 10 anos (que, no entanto, pagam impostos), as pessoas condenadas por

infração à legislação sobre estupefacientes, as crianças pobres portadoras de

deficiência física, dentre outros.

Este conjunto de restrições à assistência social terá considerável impacto

nas camadas mais populares da sociedade estadunidense. Verifica-se uma nova

redução do nível de vida das famílias americanas mais pobres. As famílias que

sobrevivem abaixo da metade da linha da pobreza (menos de 7.800 dólares anuais

para quatro pessoas) sofrerão a maior parte dos cortes do programa de tíquetes

alimentares. No mesmo compasso, observou-se a redução no nível dos salários

desqualificados. A economia informal vai conhecer uma retomada de crescimento,

296 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 147.

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e com ela a criminalidade e a insegurança, o numero de pessoas sem teto

aumentou consideravelmente297.

O aprofundamento das desigualdades sociais aliado à repressão seletiva às

camadas populares permite revelar o que está nas partes “inferiores e

desconfortáveis de nós mesmos” sobre o outro, “essencializando-o” e, finalmente,

culpabilizando-o pelas mazelas estruturais de nossa sociedade298.

Conforme aponta Slavoj Zizek, as inseguranças advindas do

desmantelamento do welfare state são vendidas enquanto oportunidades de novas

liberdades, como se a flexibilização trabalhista pudesse ser encarada como uma

chance do indivíduo de se libertar das amarras de uma carreira permanente e

realizar seu potencial oculto, reinventando-se. Do mesmo modo, a falência dos

sistemas públicos de saúde e previdência não passariam de oportunidades nas

quais o indivíduo tem de exercer seu livre arbítrio e escolher entre um melhor

estilo de vida no presente ou mais segurança no futuro299.

As consequências da adoção do pacote de medidas anti-welfare não se

resumem à explosão da pobreza e da desigualdade social, mas, também, desaguam

no aumento da criminalidade e da violência, já que, como salienta Jock Young:

a violência e o crime são, amiúde, o único meio dos jovens da classe trabalhadora sem perspectiva de emprego para adquirir dinheiro e os bens de consumo indispensáveis para ascender a uma existência socialmente reconhecida.300

A fim de garantir a contenção das desordens geradas pela exclusão social,

desemprego em massa, imposição do trabalho precário e retração da proteção

social, utiliza-se amplamente da estratégia de criminalização das classes

potencialmente perigosas. Nesta cruzada contra a “criminalidade”, o Estado norte-

americano incrementa políticas repressivistas, buscando reparar suas debilidades

sociais, não mais através do Estado de Bem Estar Social, mas sim, pela

criminalização das consequências da miséria, promovendo a contenção punitiva

dos pobres e dos jovens negros do gueto.

297 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 168. 298 YOUNG, J., A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente, p. 156. 299 ZIZEK, S., Against human rights, p. 3. 300 WACQUANT, L., op. cit., p. 33.

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Em tempos neoliberais, a soberania dos mercados sobrepõe-se à

soberania estatal, inebriando todas as dimensões da gestão política e econômica

do Estado. A economia e a política, outrora símbolos de sua soberania, não mais

estão circunscritas ao seu âmbito decisório. Resta-lhe apenas a soberania penal, o

jus puniendi, resumindo suas tomadas de decisão ao policiamento do território e

da população. No capitalismo vídeo-financeiro, aos governos restou pouco mais

do que o mero papel de distritos policiais superdimensionados, dirigidos a

assegurar a “confiança dos investidores”301.

3.2.3 O Leviatã neoliberal: o grande encarceramento nos EUA

Arraigados à defesa ideológica do fim do “governo grande” (big

government), os analistas sociais do neoliberalismo silenciam diante da gigantesca

expansão do aparato penal do Estado em meio à liberalização dos mercados302. No

bojo do empreendimento burocrático neoliberal, o desmantelamento do Estado

social e a hipertrofia súbita do Estado penal são dois desenvolvimentos

concomitantes e complementares, a forjar o que Wacquant denomina de “Leviatã

neoliberal”303. Evidencia a clara opção pelo estabelecimento de uma regulação

punitiva da pobreza racializada na qual a prisão ocupa uma posição central.

Contrariando a leitura de alguns estudiosos, Wacquant aponta que o

fortalecimento e a ampliação do setor penal do campo burocrático não são uma

resposta à criminalidade, tampouco seriam a cria do advento da “sociedade

exclusiva”, a ascensão de uma “cultura de controle”, o declínio da confiança no

301 BAUMAN, Z., Globalização. As conseqüências humanas, p. 128. 302 Acerca desta retração do papel estatal, Francisco de Oliveira destaca que: “O Estado mínimo da falsa utopia neoliberal não é mínimo na economia, como pregam os tolos: ele se faz mínimo é na política”. OLIVEIRA, F. de; RIZEK, C. S. (orgs.), A era da indeterminação, p. 311. 303 Wacquant resgata o conceito trabalhado por Thomas Hobbes em O leviatã. Na obra, o autor resgata esta figura bíblica para metaforicamente explicar o funcionamento do Estado. Em suas palavras “aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado”. HOBBES, T., O leviatã, p. 9. Wacquant, por sua vez, considera que o recrudescimento punitivo decorrente da ascensão do modelo econômico neoliberal, daria ensejo ao que chama de Leviatã neoliberal, um Estado absenteísta em políticas sociais, mas absoluto em sua dimensão penal. WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos.

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governo, o acatamento da “sociedade de risco”304 e nem, muito menos, uma

criação de especuladores sedentos de lucro.

O inchamento da instituição penal é um tijolo no edifício do Leviatã neoliberal. É por isso que ela está estreitamente correlacionada, não à onda de ‘ansiedades ontológicas’ da ‘modernidade tardia’, mas às mudanças específicas de fortalecimento do mercado nas políticas econômicas e sociais que desencadearam a desigualdade de classe, aprofundaram a marginalidade urbana e alimentaram o ressentimento étnico, ao mesmo tempo em que erodiram a legitimidade dos formuladores de políticas.305

Wacquant aponta que a retração do investimento social implica no

superinvestimento carcerário, uma vez que este se apresentaria como o único

instrumento capaz de enfrentar as mazelas advindas da derrocada do welfare e

pela generalização da insegurança social. Em sua análise:

a atrofia deliberada do Estado social corresponde à hipertrofia distópica do Estado penal: a miséria e a extinção de um tem como contrapartida direta e necessária a grandeza e a prosperidade insolente do outro. A esse respeito, cinco tendências de fundo caracterizam a evolução penal nos Estados Unidos desde a virada social e racial esboçada no início dos anos 60, em resposta aos avanços democráticos provocados pelo levante negro e pelos movimentos populares de protesto que vieram em sua esteira (estudantes, oponentes à guerra do Vietnã, mulheres, ecologistas, beneficiários da ajuda social) durante a década precedente.306

As cinco grandes tendências da emergência do Estado penal, apontadas

pelo autor são: a) o encarceramento massivo; b) ampliação horizontal da rede de

controle penal; c) a hipertrofia orçamentária do sistema penal; d) a indústria do

controle e a privatização do sistema penitenciário; e) e, por fim, a seletividade

punitiva racializada.

Necessário se faz examinar tais fatores determinantes do “grande salto

penal para trás” que transformou os Estados Unidos de ponto de referência da

penalidade progressista dos anos 1960 em líder mundial de encarceramento e

304 Conforme proposto, respectivamente, por Jock Young, John Pratt e Jonathan Simon para sinalizar as principais macroteorias opostas da mudança penal recente. Apud WACQUANT, Três etapas para uma Antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente, p. 513. 305 Ibid., p. 513. 306 Id., As prisões da miséria, p. 80.

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exportador global de políticas agressivas de controle da criminalidade nos anos

1990307.

a) O Encarceramento em massa

Analisando as três primeiras décadas do pós-guerra, o criminólogo Alfred

Blumstein observa que a população prisional dos EUA apresentava

impressionante estabilidade, oscilando entre 90 e 110 presos por 100.00

habitantes. Este diagnóstico o conduziu a elaborar a Teoria Homeostática,

compreendendo que cada sociedade tem uma variante “normal” de castigo

determinando uma taxa de encarceramento estável no tempo308. Na realidade, a

população prisional diminuía progressivamente no início da década de 1960, a

uma média de em torno de 1% ao ano. Porém, contrariando qualquer expectativa

esta teoria cai por terra em meados da década de 1970, quando a população

penitenciária do país começa a aumentar em uma velocidade vertiginosa.

No limiar do século XXI a taxa de encarceramento nos EUA se estabilizou

em aproximadamente 700 presos por 100.000 habitantes, nada menos do que

cinco vezes o quantitativo verificado até a década de 1970.

Com uma taxa prisional estratosférica, os EUA se notabiliza por erguer o

empreendimento do grande leviatã punitivo. A reviravolta da demografia

carcerária nos EUA foi brutal a partir de 1973. De modo que, a população

prisional em números absolutos dobrou em dez anos e quadruplicou em vinte.

Partindo de cerca de 380 mil presos em 1975, beira o vertiginoso exército de 2,2

milhões de prisioneiros em 2006.

307 WACQUANT, L., As prisões da miséria. 308 BLUMSTEIN, A., Prisons, p. 387 et. seq.

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Figura 1: População Prisional EUA (1920-2006)

Fonte: Justice Policy Institute Report

De tal modo, o diagnóstico de Punição e Estrutura Social revigora-se em

face do exemplo enfático da hiperinflanção carcerária nos Estados Unidos,

marcada, em sua gestão penal da miséria, pelo encarceramento de pequenos

delinquentes.

A hipertrofia penitenciária é também alimentada pelo crescimento

concomitante de dois fatores: a elevada duração das penas e o alto número de

condenados à pena privativa de liberdade. A majoração do quantum das penas

deve-se sobremaneira à implementação da three strikes and you’re out

(perpetuidade automática no terceiro crime), presente em alguns estados. Quanto

ao recurso sistemático recurso à pena de prisão, o crescente punitivismo passa a

preconizar a reclusão para uma gama de delitos que anteriormente não conduziam

ao cárcere.

Contrariamente ao discurso político e midiático, não são os criminosos

perigosos e violentos que abarrotam as prisões americanas, mas, criminosos sem

expressão, condenados por delitos como comércio de substâncias entorpecentes,

furto, roubo ou simples atentados contra a ordem pública, oriundos, em sua

maioria, de parcelas precarizadas da classe trabalhadora. Segundo Wacquant, “seis

penitenciários em cada dez são negros ou latinos, menos da metade tinha emprego

em tempo integral no momento de ser posta atrás das grades e dois terços

População Prisional – EUA 1920-2006

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provinham de famílias dispondo de uma renda inferior à metade do limite de

pobreza.”309

Nesta esteira, percebe-se que o aumento da população carcerária nos

Estados Unidos não se deve, portanto, ao aumento da criminalidade violenta,

mas, sim, à transfiguração do modus operandi do sistema punitivo em face das

camadas mais empobrecidas da população. “O encarceramento serve antes de

tudo para ‘governar a ralé’ que incomoda bem mais do que para lutar contra

crimes de sangue”310.

b) Ampliação horizontal da rede de controle penal

Além do boom carcerário, o Leviatã punitivo daria ensejo a uma

expressiva expansão horizontal da rede penal, pois o assustador número de

encarcerados não é bastante diante da colossal expansão do aparato repressivo

estatal, uma vez que não abarcaria os indivíduos condenados à prisão com sursis

(suspensão condicional da pena, em inglês, probation) e colocadas em liberdade

condicional (parole), depois de terem cumprido a maior parte de sua pena311.

A estes ainda devem-se somar ainda os que se encontram em prisão

domiciliar, em campos disciplinares, assim como aqueles sujeitos a todo tipo de

vigilância e monitoramento eletrônico, resultando assim numa ampliação

considerável da malha de controle do sistema penal, que resulta no que David

Garland denomina de “segregação punitiva”312.

O descomunal aumento do contingente carcerário de 314% em 20 anos

(1970-1991), caso considere o número de pessoas submetidos a probation e

parole, por falta de vagas nas penitenciárias, chega-se ao total de cerca de cinco

milhões de americanos, ou seja, 2,5% da população adulta do país submetida à

tutela penal do estado.

309 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 83. 310 Ibid., p. 230. 311 Id., As prisões da miséria, p. 84. 312 Segundo Garland, a segregação punitiva constitui-se de longos períodos de privação da liberdade em prisões sem comodidades, além de uma persecução do Estado, através da vigilância e da estigmatização, daqueles que tenham sido liberados. GARLAND, D., A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea, p. 240.

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Western, Beckett e Harding atentam para outra questão crucial que decorre

do encarceramento em massa das classes populares:

O encarceramento em massa mascara uma forte tendência ao desemprego, subtraindo das estatísticas uma grande massa de adultos em idade de trabalhar. Assim, o baixo índice de desemprego americano dos anos 90 é, em parte, um resultado e um artifício do elevado índice de encarceramento. Longe de ser exemplo de regulamentação, como se procura demonstrar, o mercado americano é de fato modelado, através de seu sistema penal, por uma forte e coercitiva intervenção penal.313

Assim, o sistema penal, serve como uma ferramenta a serviço da

manipulação do mercado. “A rede penal se estreita e se alarga” como diagnostica

Wacquant, dirigindo-se aos despossuídos, aos empobrecidos, tidos como as

“ervas daninhas” de onde emerge a violência e a criminalidade314. Contra

estes, ergue-se uma verdadeira cruzada para incorporar os valores da

moralidade e do trabalho, ao mesmo tempo em que se promove a retração das

políticas sociais e precarização do trabalho, tornam as condições de vida

destes setores ainda mais vulnerável.

c) A hipertrofia orçamentária do sistema penal

Um terceiro aspecto relevante encontra-se no expressivo crescimento das

agências penitenciárias na administração pública. Tal fenômeno é denominado por

Wacquant de Big Government carcerário, a título ilustrativo, aponta que entre

1982 e 1993, os orçamentos das administrações penitenciárias aumentaram em

254%315.

O ano de 1985 é um marco na transição do Estado social para o Estado

Penal, pois, pela primeira vez, os orçamentos penitenciários ultrapassaram os dos

programas sociais. Deste divisor de águas na evolução orçamentária, aponta o

autor:

313 BECKETT, K.; HARDING, D.; WESTERN, B. Sistema penal e mercado de trabalho nos Estados Unidos, p. 41. 314 WACQUANT, L., A ascensão do Estado penal nos EUA, p. 20. 315 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 263.

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Pode-se concluir que o Estado americano abandonou seu apoio à habitação dos mais carentes em proveito das penitenciárias, ou então, o que parece mais justo, que a construção de prisões tornou-se, de fato, o principal programa de habitação social do país316.

Em 1993 os Estados Unidos gastaram 50% a mais com suas prisões que

com sua administração judiciária (32 bilhões de dólares a 21) enquanto dez anos

antes os orçamentos dos dois eram praticamente idênticos (em torno de 7 bilhões

cada). Neste mesmo ano, as unidades prisionais públicas contavam com mais de

600.000 empregados, correspondendo ao status de terceiro maior empregador dos

pais, atrás apenas da General Motors e da rede de supermercados Walmart. Esse

aumento de créditos ao sistema prisional só foi possível graças a cortes profundos

nos orçamentos destinados a ajudas sociais, saúde e educação317.

A cartilha econômica neoliberal, defensora do radical não

intervencionismo estatal sobre o mercado de trabalho, não se sustenta diante da

indústria de controle do crime318. Os gastos anuais com o sistema penal nos

EUA chegaram a US$ 210 bilhões em 1998, muito próximo do montante de

US$ 256 bilhões gastos no mesmo ano com as Forças Armadas. Para Nils

Christie, o custo da guerra contra os inimigos internos está se aproximando

dos custos militares contra os inimigos externos319. Assiste, em paralelo, a

queda dos gastos militares e o incremento das despesas com o sistema punitivo.

d) A indústria do controle e a privatização do sistema penitenciário

Os custos para a manutenção da penalidade neoliberal alcançam níveis

estratosféricos. O custo médio de detenção em uma penitenciária estadual é

estimado em 22 mil dólares por ano por prisioneiro320. Com o intuito de enxugar

os gastos penitenciários o estado norte-americano passou adotar medidas como a

redução de “privilégios” concedidos aos presos - como retrocessos na oferta de

atividades educacionais e na garantia de condições adequadas de detenção -, bem

316 Id., A ascensão do Estado penal nos EUA, p.28. 317 Id., As prisões da miséria, p. 56. 318A forte intervenção americana no mercado, portanto, é modelada pelo seu sistema penal. Conforme BECKETT, K.; HARDING, D.; WESTERN, B. Sistema penal e mercado de trabalho nos Estados Unidos, p. 41. 319 CHRISTIE, N., Crime control as industry, p. 140 et. seq. 320 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 282.

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como a transferência de parcela dos custos dos presos às suas famílias. Entretanto,

o ápice deste intento reside na implementação de um vasto programa de

privatização do sistema penitenciário.

A indústria do controle penal desenvolveu-se a partir de 1983, desde então

foi apresentando crescimento exponencial, saltando de 3.100 leitos em 1987, para

145 mil em 1999321. Este empreendimento mercadológico-punitivo abarca não

somente a construção e manutenção de unidades prisionais, mas também a criação

de um conjunto de produtos e serviços disponíveis ao mundo carcerário, de

colchões à prova de incêndio, a cinturões eletrificados de descarga mortal. “A

indústria da carceragem é um empreendimento próspero e de futuro radioso, e

com ela todos aqueles que partilham do grande encerramento dos pobres nos

Estados Unidos”322.

O Estado penal vale-se das consequências do declínio do estado semi-

previdência, para justificar o corte de orçamento nas penitenciárias, e, por

conseguinte, ampliar a rede punitiva deste imenso aparelho burocrático.

Importante notar, como bem assinala Arguello, que “por um lado, temos o fato de

que a força de trabalho inassimilável pelo mercado pode ser utilizada nas prisões

como forma de extrair elevadas taxas de mais-valia: com o crescimento

exponencial das prisões privadas, esse setor se tornou uma indústria altamente

lucrativa”323.

A exploração do trabalho carcerário na era do encarceramento privado

representará, conforme conclui Cirino dos Santos, a confirmação da existência do

binômio “cárcere/fábrica”, ensejado pelos autores Melossi e Pavarini, mas,

evidencia ainda sua evolução para a “simbiose fábrica/cárcere”324:

em que a fábrica é construída sob a forma de cárcere, ou inversamente, o cárcere assume a forma da fábrica, configurando o ideal de exploração capitalista do trabalho humano, que realiza o trágico vaticínio de Pavarini: os detidos devem ser trabalhadores; os trabalhadores devem ser detidos.325

321 Ibid., p. 286. 322 Id., As prisões da miséria, p. 93. No mesmo sentido, ver: CHRISTIE, N., op. cit. 323 ARGUELLO, K., Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem, p. 21. 324 SANTOS, J. C. dos, Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial, p. 53. 325 Ibid.

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e) Seletividade punitiva racializada

Por fim, com o Estado Penal, se apresenta uma espécie de política de ação

afirmativa carcerária. Trata-se do “escurecimento” da população prisional, que faz

com que desde 1989 os afro-americanos correspondam à maioria dos internos nas

prisões estaduais, embora sejam apenas 12% da população norte-americana.

A prisão é, portanto, um domínio no qual os negros gozam de fato de uma promoção diferencial, o que não deixa de ser uma ironia no momento em que o país vira as costas para os programas de affirmative action com vistas a reduzir as desigualdades raciais mais gritantes no acesso â educação e ao emprego.326

Na era do Grande Encarceramento, se apresenta uma nova instituição

peculiar para confinar e controlar os afro-americanos: a prisão como substituto do

gueto327. As estratégias de controle punitivo da negritude se transfiguram nos

EUA, passando da escravidão, ao sistema de Jim Crow (regime legal de

discriminação e segregação), e, após, do gueto à prisão.

A seletividade punitiva institui o continuum gueto-prisão. Segundo

Wacquant “o gueto é um modo de ‘prisão-social’ - põe na gaiola um grupo

desprovido de honra e amputa gravemente as chances de vida de seus membros a

fim de assegurar ao grupo dominante ‘monopolização dos bens e das

oportunidades materiais e espirituais” -, enquanto a prisão funciona à maneira de

um ‘gueto judiciário’ - “espaço a parte que serve para conter sob coação uma

população legalmente estigmatizada, no seio da qual esta população desenvolve

instituições, uma cultura e uma identidade desonrada que lhe são específicas.”328.

Desta maneira, a seletividade característica do Estado Penal revela que o

regime disciplinador do workfare e o regime penalizador do prisonfare329 dirigem-

326 WACQUANT, L., As prisões da miséria, p. 95. 327 “o gueto é um dispositivo socioespacial que permite a um grupo (...) dominante (...) explorar um grupo dominado.” “o gueto é uma relação etnico-racial de controle e de fechamento composta de quatro elementos: estigma, coação, confinamento territorial, e segregação institucional.” Id., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos Punir os pobres, p. 344. 328 Ibid., p. 345. 329 Prisonfare é um termo introduzido por Loïc Wacquant em analogia a workfare para designar programas de penalização da pobreza via o direcionamento preferencial e o emprego ativo da polícia, dos tribunais e das prisões (bem como suas extensões - liberdade vigiada, liberdade condicional, bases de dados de criminosos e sistemas variados de vigilância), no interior e nas proximidades dos bairros marginalizados, onde se aglomera o proletariado pós-industrial. Id., Três etapas para uma Antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente.

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se aos seus alvos preferenciais: negros e pobres, moradores das periferias norte-

americanas. Tratam de supervisionar as mesmas populações despossuídas e

desonradas, desestabilizadas pela dissolução do pacto fordista-keynesiano e

concentradas nos bairros abandonados da cidade polarizada330.

A análise de Wacquant revela como estas cinco grandes tendências

atravessam o novo papel assumido pelo Estado diante das mudanças estruturais do

capitalismo. O cárcere passa a substituir o gueto como estratégia de contenção das

classes populares, ditas perigosas, consumidores falhos aos olhos da sociedade de

consumo. Este panorama contribui para pontuar que a emergência do Estado penal

não constitui um acontecimento apenas nos EUA. Igualmente, permite a reflexão

para vislumbrar os desdobramentos da penalidade neoliberal nos países

periféricos, ofertando elementos de análise imprescindíveis para pensar o caso

brasileiro.

Outro aspecto decisivo no período analisado por Wacquant é ascensão da

doutrina chamada de “tolerância zero” nos EUA, experienciada na Prefeitura de

Nova Iorque, sob a gestão do Prefeito Rudolph Giuliani em 1994. Em matéria de

política criminal, a doutrina “tolerância zero” denota o rigor do aparato repressivo

do Estado até mesmo em face dos pequenos desvios. Para restabelecer a ordem

pública na cidade, por meio da política de “tolerância zero”, voltava atenções aos

desviantes, às prostitutas, os sobrantes, os moradores de rua, os perigosos, os

parasitas, devendo ser vigiados, controlados, afastados e, mesmo, eliminados331.

Entretanto, estudos centrados neste contexto, revelam que três anos antes

da adoção da política de “tolerância zero” já havia uma queda significativa nas

taxas de criminalidade na cidade de Nova Iorque. Neste sentido, é possível

perceber a manipulação midiática dos resultados obtidos a partir da adoção da

política de “tolerância zero” para redução dos índices de criminalidade332.

O modelo “tolerância zero” passa a ser alardeado como o parâmetro a ser

seguido mundialmente. As agências midiáticas, a partir de 1998, passam a

330 WACQUANT, L., Três etapas para uma Antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente. 331 Id., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 439. Experiência semelhante é a chamada teoria das janelas quebradas (broken windows) formulada na década de oitenta, que preconiza o combate implacável contra os pequenos desvios e ilegalidades para manter a ordem, controlando rigidamente os desviantes e fazendo reduzir a criminalidade urbana. 332 Ibid., p. 435.

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associar Nova Iorque não mais à imagem de paraíso do crime, mas como modelo

de cidade segura. Segundo afirma Dornelles, são estas as “tendências ideológicas

neoliberais no campo do controle social, em especial nas práticas penais que

forjam o modelo do eficientismo do direito penal máximo”333. A partir de então, a

ideologia “tolerância zero” passou a ser enaltecida como a solução final do

problema da desordem urbana e da criminalidade, como modelo de administração

a ser exportado, chegando a diversos países da Europa e da América Latina.

Entretanto, para melhor compreensão da recepção da penalidade neoliberal na

periferia do capitalismo é necessário pontuar o paradigma biopolítico que se

ergue.

3.3 A globalização do estado penal: biopolítica e sociedade de controle

Diante da derrocada do Estado de bem estar e da assustadora ofensiva do

Estado penal, o laboratório vivo do Leviatã neoliberal, apresenta-se como “uma

invenção estadunidense com implicações planetárias”334. Segundo Wacquant:

A expansão penal nos Estados Unidos, e nos países da Europa Ocidental e América Latina, que seguiram de forma mais ou menos servil sua orientação, encerra, no fundo, um projeto político, um componente central da remontagem da autoridade pública, necessária para alimentar o avanço do neoliberalismo.335

Entretanto, a globalização do Estado penal revela mais do que a hipertrofia

do aparato punitivo sob a égide do campo burocrático neoliberal. Evidencia,

sobretudo, a pauperização da democracia e a crescente afronta ao cânone dos

direitos humanos336. Tal encruzilhada, além de exigir profundidade de análise

crítica no âmbito econômico-político (a penalidade neoliberal), torna

333 “Inicialmente desenvolveu-se uma rede de difusão de idéias, valores, práticas e modelos de regulação social e de universalização da regulação econômica que partiu dos Estados Unidos da América e chegou à Europa Ocidental, através da Inglaterra, e à América Latina.(...) Há, assim, um verdadeiro tráfico transcontinental de idéias e valores que reforçam as políticas públicas que se colocam no campo da internacionalização da penalização da miséria”. DORNELLES, J. R. W., Conflito e segurança. Entre pombos e falcões, p. 53. 334 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 39. 335 Ibid., p. 18. 336 SOBRINHO, S. G., Globalização e Sociedade de Controle.

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imprescindível o enfoque que identificaremos nos marcos do “paradigma

biopolítico”.

A normalidade institucional do Estado democrático-liberal é brutalmente

abalada, deixando latentes as suas promessas não cumpridas e pondo em xeque o

próprio projeto iluminista. Neste quadro se delineia, como alerta Agamben, uma

zona de indeterminação entre o Direito e a Política, entre norma e exceção. Nas

palavras do filósofo italiano, diante do desenfreado avanço da “guerra civil

mundial” o Estado de exceção tende a se afirmar como o paradigma de governo

hegemônico na política contemporânea337.

Em face dos impasses colocados pela crise civilizacional que se agiganta,

os governos dos Estados-nação recorrem de modo cada vez mais frequente a

saídas que preconizam a suspensão de direitos fundamentais a fim de viabilizar

seus anseios – medidas de exceção que passam a se tornar a regra na governança

global. Essa transmissão de medidas de caráter provisório e excepcional para

técnicas permanentes de governo passa a apresentar um grau de indeterminação

entre democracia e absolutismo, entre Estado de Direito e Estado de exceção338.

Na concepção de Agamben, a vigência deste imperativo de exceção na

condução da política contemporânea implicaria necessariamente na redução do ser

político, expresso no vocábulo grego bíos (vida politicamente qualificada), em um

ser desprovido de qualquer atributo ou potência política, como o homo sacer -

figura jurídica do direito romano arcaico que designa aquele que pode ser morto

impunemente, que se encontra ao mesmo tempo fora da jurisdição do direito e da

religião, incluído na pólis apenas como zoé, mera existência biológica para os

gregos339.

As grandes questões políticas do nosso tempo já não têm a ver com uma

política das ideias, mas com os processos de inserção da vida (zoé) dos indivíduos

nos cálculos do poder – questões, em suma, que dizem respeito ao nascimento, à

morte, à doença, etc. As políticas demográficas, as questões do aborto e da

337 AGAMBEN, G., Estado de exceção. Homo sacer II, p. 3. 338 “Estado de exceção é o dispositivo original graças ao qual o Direito se refere à Vida, e a incluiu em si por meio de sua própria suspensão, uma teoria do estado de exceção é, então, condição preliminar para se definir a relação que liga e, ao mesmo tempo, abandona, o vivente ao direito. É essa terra de ninguém, entre o direito público e o fato político e entre a ordem jurídica e a vida, que a presente pesquisa pretende explorar”. Ibid., p. 12. 339 Ibid.

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eutanásia, a regulamentação cada vez mais severa da higiene pública, as medidas

de segurança preventiva, a guerra contra o terrorismo, a migração de massas:

todos estes fenômenos revelam um paradigma de poder e da governança chamado

“biopolítica”.

Deve-se a Michel Foucault uma definição deste conceito340, tal como ele

se impôs na reflexão sobre a matéria política com que estamos hoje confrontados.

Foucault não apenas fez a arqueologia do conceito, fazendo-o coincidir

temporalmente com a modernidade, como identificou os processos através dos

quais o biopoder se pôde constituir, fazendo entrar a vida (o bíos) e os seus

mecanismos no domínio dos seus cálculos explícitos. O homem enquanto espécie,

diz Foucault, tornou-se assim uma questão fundamental nas estratégias políticas

das sociedades ocidentais.

Em seu percurso genealógico do poder, Michel Foucault aponta que o

Antigo Regime era caracterizado pelo “poder soberano”, presente na, por ele

denominada, “sociedade de soberania”. Consistia em um poder de “deixar-viver”

e “fazer-morrer” sobre os súditos. Esta forma de poder é sucedida pelo “poder

disciplinar”. “O poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se

apropriar e retirar tem como função maior adestrar; ou sem dúvida adestrar para

retirar e se apropriar ainda mais e melhor”341. Isso porque a modalidade

disciplinar do poder faz aumentar a utilidade dos indivíduos, gerando “corpos

obedientes e dóceis”, consequentemente amplificando seus rendimentos e lucros.

O autor aponta a emergência da “sociedade disciplinar” coincidindo com a

conjuntura compreendida nos séculos XVII e XVIII nos países europeus342. Tal

nomenclatura destina-se a explicar a dispersão das técnicas disciplinares

340 Biopolítica trata-se de conceito formulado por Foucault para descrever a dinâmica que envolve a política a partir do século XVII, qual seja, a inclusão da vida do homem-espécie nos cálculos do poder, através de políticas de Estado que enfoquem v.g.: natalidade, longevidade, saúde pública, sexualidade e segurança. Ver: FOUCAULT, M., Em defesa da sociedade; História da sexualidade I. A vontade do Saber; e O nascimento da biopolítica. O conceito será melhor explorado na sessão 3.3.2. 341 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 143. 342 O roteiro proposto por Foucault leva em consideração as transformações ocorridas nas estratégias de controle social dos países da Europa Ocidental. Desta maneira, é errônea a transposição mecânica da genealogia foucaultina para a realidade dos países latino-americanos. Cabe a nós uma apropriação e um olhar latino-americano sobre as instigantes questões levantadas pelo autor. Elementos centrais da biopolítica estão presentes na América Latina desde o colonialismo, nas ideias de escravidão e racialização da sociedade. Entretanto, na concepção foucaultiana, tal inovação do poder coincide com o pensamento liberal. Id., Segurança, território e população.

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reproduzidas por instituições como a fábrica, o exército, a escola, o hospital, o

manicômio e, sobretudo, a prisão.

Foucault, por fim, percebe mais uma reviravolta nas tecnologias de poder,

no século XVIII. O poder agora consiste em estratégias de “deixar-morrer” e

“fazer-viver”, diferentemente do poder soberano, e não são mais centradas apenas

nos corpos dos indivíduos como o poder disciplinar (anátomo-política do corpo),

mas sim focadas no governo da população (biopolítica do homem-espécie), trata-

se do biopoder ou biopolítica343. A biopolítica consiste no conjunto de tecnologias

políticas que inserem a vida da população nos cálculos do poder, como a

sexualidade, a saúde pública, saneamento básico, e segurança pública, também

chamada pelo autor de ciência do policiamento. Foucault ressalta que poder

disciplinar e biopoder, afinal, sobrepõem-se e superpõem-se constante e

incessantemente344.

A partir do pós-guerra, as disciplinas entram em crise, passando a coexistir

com novas forças que marcam a transição atual para a “sociedade de controle”,

denominação dada por Deleuze para o diagnóstico foucaultiano de exercício do

poder no contemporâneo345. Hardt e Negri, por sua vez, irão identificar uma

“sociedade mundial de controle”, devido à crescente planetarização deste

paradigma biopolítico346.

Os grandes confinamentos e as instituições disciplinares fechadas e

descontínuas (prisão, fábrica, escola, hospital, família, etc.) vão perdendo espaço

para circuitos abertos de controle contínuo, dentre os quais figuram as penas

substitutivas e as coleiras eletrônicas, empresas voltadas para o produto e para o

marketing.

343 A primeira fundamentação e caracterização do termo biopolítica no pensamento de Foucault aparece em seu livro História da sexualidade I. A vontade do saber, e desenvolvido no seu curso ministrado no Collège de France nos anos de 1975 e 1976, curso esse intitulado de Em defesa da sociedade. 344 FOUCAULT, M., Em defesa da sociedade, p. 300 et. seq. 345 Tal conceito é formulado a partir das reflexões de Foucault acerca da disseminação da biopolítica. O autor chega a falar em “sociedade de segurança”. Id., Segurança, território e população. Posteriormente, dando continuidade ao trabalho iniciado, Deleuze irá forjar a expressão “sociedade de controle”. DELEUZE, G., Post-scriptum sobre as sociedades de controle. 346 Hardt e Negri ao analisarem a atual conjuntura política, no contexto do que chamam de sociedade mundial de controle, afirmam que a constituição formal torna-se obsoleta diante da constituição material biopolítica, que define a excepcionalidade. Na visão dos autores, a fonte de normatividade da gestão biopolítica global conjuga dois fatores: o Estado de exceção permanente, e as técnicas de poder de polícia. Confira: HARDT, M., A sociedade mundial de controle, e HARDT, M.; NEGRI, A., Império, p. 34.

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Desta maneira, o modelo do panóptico vem sendo substituído por um

modelo de controle difuso, por meio de cruzamentos de diversos bancos de dados

e rastreamentos constantes a longas distâncias. A vigilância se descola da

arquitetura, “o que conta não é a barreira, mas o computador que detecta a posição

de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal”347. O sistema

prisional na atualidade não é mais uma instituição disciplinar monolítica, mas sim

um ‘tijolo no edifício do Leviatã neoliberal’, como parte constitutiva de uma vasta

malha penal para contenção punitiva da pobreza.

Assim como o projeto penitenciário “inclusivo”, pautado pelo ideal

ressocializador, no século XIX exercia um controle sobre as populações e as

disciplinava e constituía enquanto mão de obra assalariada, suprindo a demanda

do capitalismo industrial; de igual sorte, no limiar do século XX para o XXI o

modelo de sistema penal “excludente” exerce controle sobre as populações

“perigosas” do presente, disciplinando-as para servirem de mão de obra informal

de que necessita o capitalismo pós-industrial ou, simplesmente, neutralizando-as.

Este é o entendimento de Wacquant, em sua investigação sobre o sistema prisional

nos EUA:

No século XIX, ‘a reclusão era antes de tudo um método visando o controle das populações desviantes dependentes’ e os detentos, principalmente pobres e imigrantes europeus recém-chegados no Novo Mundo. Em nossos dias, o aparelho carcerário americano desempenha um papel análogo com respeito aos grupos que se tornaram supérfluos ou incongruentes pela dupla reestruturação da relação social e da caridade do Estado: as frações decadentes da classe operária e os negros pobres das cidades.348

A questão biopolítica delineada por Foucault tornou-se um tema maior

num tempo de despolitização, em que se tornou evidente a insuficiência, e por

vezes o caráter caduco, das tradicionais categorias políticas. Em nosso tempo, a

biopolítica tornou-se um paradigma de governo diante de um contexto no qual a

violência é tida como resposta imediata à conflitividade social. O paradigma do

homo laborans, descrito por Hannah Arendt349 dá lugar ao homo sacer de que fala

347 DELEUZE, G., op. cit., p. 225. 348 WACQUANT, L., Punir os pobres. A nova gestão penal da miséria nos Estados Unidos, p. 96. 349 ARENDT, A., A condição Humana.

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Agamben350. A vida está agora inserida nos cálculos do poder como mera

existência biológica, vida nua matável. É o fracasso da universalização dos

direitos humanos e o sucesso da generalização da biopolítica.

Todo este cenário é identificado por um conjunto de autores de matizes

teóricos distintos, utilizando, para tanto, conceitos distintos, mas confluentes no

mesmo diagnóstico. Deste modo, seja através da expressão Estado Policial

cunhada por Foucault351, seja Estado penal, como nomeia Wacquant, Estado de

exceção, como estuda Agamben352, Sociedade de Controle, como elaborou

Deleuze353, Estado de sítio com Paulo Arantes354, Bonapartismo Soft, como afirma

Losurdo355, Fascismo societal, como diz Boaventura356, Autoritarismo cool, como

afirma Zaffaroni357, militarização da vida social, como anuncia Menegat358, todas

são denominações diversas para explicitar o mesmo processo de exacerbação do

controle repressivo no contexto das democracias contemporâneas.

Este cenário limítrofe produz consequências diretas na dinâmica de

funcionamento do Estado, mas, sobretudo dá ensejo ao florescimento de

movimentos político-criminais repressivos e discursos jurídico-penais autoritários.

Compreendem-se no pólo discursivo que Luigi Ferrajoli denomina de Direito

Penal Máximo, pugnando por uma agenda repressiva que abarca: a) ampliação do

rol de crimes; b) ampliação das penas de prisão de longa duração; c) regime de

execução prisional mais severo; d) tolerância zero; e) redução da maioridade

penal; f) guerra às drogas; g) direito penal do inimigo.

Nesta sintonia, Winfried Hassemer demonstra o caráter deletério dos atuais

“Movimentos de Lei e Ordem”, impondo uma erosão normativa em face de

garantias duramente conquistadas, provocando uma sensação de paralisia. De tal

sorte que, o Estado, antes um Leviatã, passa, consoante o autor, a ser concebido

350 AGAMBEN, G., Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. 351 FOUCAULT, M., O nascimento da biopolítica. 352 AGAMBEN, G., Estado de exceção. Homo sacer II. 353 DELEUZE, G., Post-scriptum sobre as sociedades de controle. 354 ARANTES, P., Extinção. 355 LOSURDO, D., Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal, p. 333. 356 Boaventura utiliza a denominação de fascismo societal para descrever a convivência de práticas excludentes, autoritárias e violentas, dentro de regimes ditos democráticos. SANTOS, B. de S., Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo, p. 51 et. seq. 357 ZAFFARONI. E. R., O inimigo no Direito Penal, p. 78. 358 MENEGAT, M., O olho da barbárie.

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como o “companheiro de armas dos cidadãos, disposto a defendê-los dos perigos

e dos grandes problemas da época”359.

No mesmo bojo identifica-se: a) a ascensão do dito Direito Penal do Risco,

dando ensejo a ampliação sem parcimônia dos bens jurídico-penais360; b) as

permanências do ideário da Doutrina de Segurança Nacional, gestado em meio às

ditaduras civis-militares, no modus operandi das instituições policiais361; c) o

Direito Penal do Inimigo de Gunther Jakobs, relativizando o conceito de pessoa

em face dos “perigosos”362; d) o discurso Tolerância Zero, clamando pela

repressão seletiva e implacável mesmo diante dos menores desvios praticados

pelas classes mais pauperizadas dos centros urbanos; e) o Direito Penal e o

Processo Penal de Emergência363, ensejando a afronta às garantias fundamentais

do cidadão em nome de respostas céleres e “eficientes” ao crime e à violência; f) o

fenômeno crescente do Populismo punitivo364, com perniciosas colaborações das

agências midiáticas no sistema penal. Diante da hipertrofia do poder punitivo, o

Direito Penal engendrado nos ideais iluministas liberais, pensado como racional e

aplicável apenas em ultima ratio, passa a ser exercido em excesso, dando ensejo a

imposições arbitrárias e desproporcionais365 catapultadas por movimentos

repressivisitas.

Assim, o paradigma biopolítico serve como pano de fundo para a

compreensão da redefinição dos mecanismos de controle social e de dominação na

nova conjuntura de ascendência neoliberal. Segundo Dornelles, é neste cenário

que se processa a “globalização da segurança pública e a internacionalização do

controle social”366, disseminando-se pelos países centrais e exportando-se à

periferia do capitalismo.

359 HASSEMER, W., Persona, mundo y responsabilidade: bases para una teoria de la imputacion en Derecho Penal, p. 254 passim. 360 SANCHEZ, J. S., A Expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais; / BECK, U., Sociedade de risco: rumo a uma nova Modernidade. 361 BATISTA, N., Política criminal com derramamento de sangue. 362 JAKOBS, G.; MELIÁ, M. C., Direito penal do inimigo: noções e críticas. 363 CHOUKR, F. H., Processo Penal de emergência. 364 PRATT, J., Penal populismo; SOZZO, M., Populismo punitivo, proyecto normalizador y “prisión-depósito” en Argentina. 365SANTOS, J. C. dos, Manual de Direito Penal brasileiro. 366 DORNELLES, J. R. W., Conflito e segurança. Entre pombos e falcões, p. 16.

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3.4 Estado penal no Brasil: o controle biopolítico da pobreza no capitalismo periférico

A “irresistível” globalização do recrudescimento punitivo não se revela

nos mesmos moldes em realidades distintas. O Estado penal gestado nos EUA não

apresenta os mesmos contornos de seu florescimento nos países periféricos. O

próprio Wacquant destaca sua peculiaridade na periferia do capitalismo:

a penalidade neoliberal é ainda mais sedutora e mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida e desprovidos de tradição democrática e de instituições capazes de amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do novo século. Isso é dizer que a alternativa entre o tratamento social da miséria e de seus correlatos (...) que visa às parcelas mais refratárias do subproletariado e se concentra no curto prazo dos ciclos eleitorais e dos pânicos orquestrados por uma máquina midiática fora de controle, diante da qual a Europa se vê atualmente na esteira dos Estados Unidos, coloca-se em termos particularmente cruciais nos países recentemente industrializados da América do Sul, tais como o Brasil e seus principais vizinhos, Argentina, Chile, Paraguai e Peru.367

De tal sorte, os efeitos desta onda punitiva são obviamente mais

nefastos “em países onde imperam a desigualdade social, a pobreza e a

ausência de tradição democrática, nos quais a influência norte-americana,

tanto no plano econômico como no penal, pode ser sentida com maior

intensidade”368. Convém buscar compreender as peculiaridades da difusão do

Estado Penal na América Latina, em especial no Brasil. Neste intento, alguns

fatores históricos, culturais, políticos e econômicos são determinantes para que

não se incorra na equívoca transposição mecânica do panorama traçado por

Wacquant nos EUA.

O repressivismo penal, expresso nos discursos de Lei e Ordem e

Tolerância Zero, é recepcionado por quase todos os países latino-americanos. Esta

importação teórico/prática reedita o fenômeno da “colonialidade do saber e do

367 WACQUANT, L., As prisões da miséria, p. 4. 368 “Na América Latina, quase todos os candidatos a cargos eleitorais, nos últimos anos, têm como tema central o discurso sobre a segurança pública. Na maioria das vezes, sem o menor pudor de proclamar, como solução definitiva para os problemas atuais, a volta do suplício, abolido oficialmente há séculos”. ARGUELLO, K., Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem, p. 8.

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poder” denunciada por Quijano e outros adeptos dos estudos pós-coloniais369.

Parece-nos crucial trazer esta contribuição ao debate. Consistindo em uma

resposta da periferia ao centro, a Teoria Pós-Colonial procura dar voz à alteridade

que a “vontade de saber” dominante tem vindo a assimilar dentro de si mesma,

apontando a colonialidade do saber/poder que gera longas permanências nas

práticas políticas dos países da América Latina.

Nesta direção, apesar de não haver intercâmbio teórico entre os autores,

situa-se a contribuição de Zaffaroni, ao propor uma leitura da criminologia a partir

da história da periferia colonial que denomina de Realismo Marginal370,

convidando-nos a pensar a questão criminal a partir de nosso lugar de fala, a partir

de nossa região marginal - a América Latina.

3.4.1 As permanências autoritárias no estado brasileiro

A história de constituição do Estado brasileiro demonstra-nos que a

garantia da legalidade nunca se fez presente para a grande massa de oprimidos.

Genocídio negro e indígena, escravagismo, golpes, decretos plenipotenciários,

intervenções federais nos estados e respostas beligerantes às insurreições

populares são práticas recorrentes, o que demonstra a precisão da máxima

apontada por Walter Benjamin em suas Teses sobre a Filosofia da História: “para

os oprimidos o estado de exceção é a regra”371.

Portanto, falar de exceção permanente acerca de países de capitalismo

periférico, em especial latino-americanos, não é falar de algo recente, mas sim,

falar de sua história372. Para compreender a dinâmica operativa da penalidade

369 Para alguns, o "pós-colonial" marca uma condição latente da contemporaneidade e torna-se também um projeto literário, político e teórico. Na afirmação de Miguel Vale de Almeida, o pós-colonialismo acabou por se constituir numa corrente. Uma corrente teórica e crítica que estaria procurando desfazer ou desconstruir o eurocentrismo, com a consciência de que a pós-colonialidade não nasce e não cresce numa distância panóptica em relação à história. Estes estudos estariam propondo um "depois de ter sido trabalhado" pelo colonialismo. Noutros termos, seria uma teoria do "discurso pós-colonial" ou a "crítica pós-colonial". ALMEIDA, M. V. de, Um mar da cor da terra. Raça, cultura e política da identidade, p. 228. 370 Sobre o Realismo Marginal, ver: ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas e Criminología, aproximación desde um margen; BATISTA, V. M., O Realismo Marginal: criminologia, sociologia e história na periferia do capitalismo. 371 BENJAMIN, W., Sobre o conceito de história. Obras escolhidas. 372 SOUZA, T. L. S. e, Constituição, segurança pública e Estado de exceção permanente: a biopolítica dos autos de resistência, p. 41.

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neoliberal com a ascensão do Estado Penal, é preciso levar em conta seu

entrelaçamento com a exceção permanente, que remonta às permanências

autoritárias no tempo presente.

Assim, no esforço de buscar traçar uma análise do Estado penal em “solo

tupiniquim”, é necessário, em primeiro plano, identificar os fatores históricos,

políticos e econômicos que permitem compreender as singularidades do controle

social repressivo no país. Neste ponto, destacam-se três fatores constitutivos

fundamentais: a) o genocídio colonial e as matrizes ibéricas do sistema penal; b)

desenvolvimento econômico nos marcos do capitalismo tardio; c) o entulho

autoritário das ditaduras do século XX.

3.4.1.1 Do genocídio colonial ao autoritarismo imperial

O teórico argentino Enrique Dussel analisa como, no período colonial, se

processou a inclusão da América Latina na política moderna ocidental. Segundo o

pensador argentino, a América Latina entra na modernidade (muito antes que a

América do Norte) como a “outra face”, dominada, explorada, encoberta373.

Desde o início do colonialismo a vida foi inserida nos cálculos do poder

como vida nua, na escravidão em massa, no extermínio, no controle dos fluxos

migratórios. Nilo Batista irá apontar as matrizes ibéricas de nosso autoritarismo

penal374, importadas de um contexto inquisitorial da metrópole e reproduzidas de

maneira estratégica para o controle social na colônia.

Zaffaroni salienta ainda que o colonialismo planetarizou o saber jurídico

penal375. O saber do poder punitivo que se desenvolveu na cultura europeia

cumpre papel fundamental no controle social da vida colonial.

Vale neste ponto, fazer uso da lição de Paulo Arantes que afirma que a

despeito da normalidade institucional presente na história metropolitana, o fato

constitutivo da construção da periferia colonial e pós-colonial corresponde ao

estado de exceção permanente376.

373 DUSSEL, E., Europa, modernidade e eurocentrismo. 374 BATISTA, N., Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. 375 Ver prefácio de BATISTA, N., Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. 376 ARANTES, P., Extinção, p. 163.

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O autoritarismo penal perdura e se sofistica no período imperial. Como

afirma Batista:

No liberalismo à brasileira os direitos não podiam colidir com o “direito de propriedade em toda a sua plenitude”, como aparece na Constituição de 1824, mantendo a escravidão sem referir-se a ela. Um conceito muito peculiar de cidadania vai-se instaurando nos trópicos: homem-proprietário versus escravos,

mulheres e não-proprietários.377

No texto de 1824 o escravo era apenas res, semovente. Sua tutela

constitucional o compreendia como mera vida nua, mera propriedade, com

humanidade negada. Já no Código Criminal do Império de 1830, estava prevista a

responsabilidade penal do escravo378. Vera Malaguti lembra o descalabro da

inobservância do princípio da isonomia aos preconizar penas de multa e prisão

para brancos, e penas corporais e de morte para escravos379. O negro escravo era a

encarnação da exclusão inclusiva descrita por Agamben, é a presença do homo

sacer380.

Diante deste processo histórico que são gestadas as bases da

arbitrariedade policial e do controle social repressivo no Brasil. O Estado de

exceção é acionado sempre que qualquer movimento contestatório se insinua. Tal

fato se pôde observar nas virulentas respostas do poder estatal às resistências

expressas nos diversos momentos da história brasileira, como por exemplo, na

Revolta dos Malês na Bahia, na revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul, na

Cabanagem no Pará, na Guerra de Canudos e na resistência do Quilombo de

Palmares.

As contradições do liberalismo no Brasil se aprofundam na prática da

exceção permanente, na soberania pura da polícia em ação, na busca pela

contenção das resistências. O delineamento desta historicidade é salutar para

compreender a incorporação da periferia do capitalismo no processo civilizatório.

Para Foucault, a colonização foi o primeiro desenvolvimento do racismo381 e do

377 BATISTA, V. M., O medo na cidade do Rio de Janeiro, p. 25. 378 O art. 113 do Código Criminal de 1830 prevê o crime de insurreição, praticado apenas por escravos. 379 BATISTA, V. M., op. cit., p. 136. 380 AGAMBEN, G., Homo sacer. O poder soberano e a vida nua, p. 15. 381 FOUCAULT, M., Em defesa da sociedade, p. 307.

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genocídio colonizador. Posteriormente, Zaffaroni expandiu o conceito

foucaultiano de “instituição de sequestro” à América Latina como um todo382.

Neste sentido, o jurista argentino aponta ainda, que o controle penal na ‘terra das

veias abertas’383 não teve sua inspiração maior no panoptismo benthaminiano,

mas sim a proposta criminológica de Lombroso foi a que definitivamente melhor

se ajustou à periferia por racionalizar a inferioridade biológica das classes

perigosas384.

O poder soberano à época enfrentava a ameaçadora configuração de uma

população negra, índia, mestiça, que se buscava domesticar, explorar, e, em tal

perspectiva, vista como perigosa.385 Esta relação se mantém e adquire novos

contornos em períodos históricos posteriores. Coimbra demonstra como no final

do século XIX e início do século XX teorias eugenistas, racistas e higienistas são

conjugadas na construção imaginária do mito das classes perigosas, e como no

regime militar a Doutrina de Segurança Nacional contribuirá para o

desenvolvimento de subjetividades favoráveis ao controle repressor386.

3.4.1.2 O entulho autoritário da ditadura civil-militar de 1964

A dilaceração do Estado de Direito nos anos de chumbo não foi arquitetada

apenas pelas Forças Armadas. René Armand Dreifuss, com riqueza

historiográfica, na obra 1964: a conquista do Estado387 demonstra de forma

patente o complexo civil-militar ensejado para desferir o golpe e gerir sua

governabilidade. Elites dirigentes do grande capital patrocinaram o ato, e

participaram da administração pública através de empresas públicas e institutos.

Como afirma Zizek:

382 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 13. 383 Galeano, E., As veias abertas da América Latina. 384 ZAFFARONI, E. R., op. cit., p. 81. 385 Gizlene Neder já apontava a criminalização da capoeira e da malandragem como formas de controle social dos escravos e dos negros libertos. NEDER, G., Discurso jurídico e a ordem burguesa no Brasil. 386 COIMBRA, C., Operação Rio: o mito das classes perigosas. Um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. 387 DREIFUSS, R. A., 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe.

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Na Argentina, no Brasil, na Grécia, no Chile e na Turquia, os militares proclamaram um estado de emergência a fim de controlar o “caos” da politização generalizada. (...) a proclamação reacionária do estado de emergência é uma defesa desesperada do verdadeiro estado de emergência.388

Começa aqui uma trajetória de mais de duas décadas de intensa

repressão e autoritarismo. O regime militar fazia uso retórico dos indicadores de

crescimento econômico a galvanizar sua legitimidade social, entretanto, o imenso

atraso em matérias como educação, saúde e habitação perduraram. O inchaço das

grandes cidades acentuou os problemas urbanos, como desemprego e miséria, e

alternativas de renda pela via da “ilegalidade”.

Como salienta Orlando Zaccone, foi decisivo o papel do arcabouço teórico

cumprido pelas ideologias da Defesa Social – comum às escolas clássica e

positivista da criminologia - e da Segurança Nacional – desenvolvida nos anos de

chumbo, no auge da Guerra Fria, para salvaguardar a manutenção do regime

militar contra os “subversivos”389.

Da conjugação dessas ideologias, forja-se a declaração de guerra aos

inimigos internos e externos. Sob influência da ordem mundial bipolar, o inimigo

externo encontra-se na ameaça comunista, já o inimigo interno era identificado

com o militante subversivo. Salo de Carvalho observa como esta criação da figura

do inimigo acaba “estabelecendo uma política criminal beligerante, estruturada a

partir da ideia de guerra total - interna e externa”390 que irá resultar, diante do

contemporâneo cenário de “guerra às drogas”, na eleição da figura do traficante de

drogas como novo inimigo público a ser combatido.

Todo este violento processo de formação do Estado e do povo brasileiro

deixará marcas profundas, restando o que Guillermo O' Donnell denomina de

“entulho autoritário” 391, particularidades que permitem melhor compreender as

contradições do presente, em tempos ditos democráticos.

Neste sentido, tal percepção é verificada na realidade carcerária brasileira.

Em recente visita ao Brasil, o Relator Especial da ONU sobre Tortura, Juan

388 ZIZEK, S., Bem-vindo ao deserto do real, p. 128. 389 ZACCONE, O., Acionistas do nada, p. 96. 390 CARVALHO, S. de, A política criminal das drogas no Brasil: do discurso oficial às razões da descriminalização, p. 144. 391 O’ DONNELL, G., Sobre o Estado, a democratização e alguns problemas conceituais, p. 129.

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Méndez, após visitas a vários presídios brasileiros, constatou que a tortura é uma

prática recorrente nessas instalações, apontando que se trata de “uma violência

herdada dos anos de ditadura militar, onde a tortura era política estatal e

deliberada”392.

3.4.1.3 Desenvolvimento econômico nos marcos do capitalismo tardio

As consequências econômicas do histórico de profunda exploração sobre

os países da periferia capitalista recaem diretamente no parco legado de direitos

sociais típicos do Estado de Bem-Estar. O questionamento acerca da existência ou

não do welfare state no Brasil e em outros países em desenvolvimento sob o

manto do capitalismo tardio deve ser precedido da indagação necessária: o que se

entende por Estado de Bem-Estar Social?

Ao menos teoricamente existe a compreensão de que a participação do

Estado na economia é maior no chamado Estado do Bem-Estar Social do que no

Estado Neoliberal, mas a precisa caracterização dos elementos de identificação do

welfare state é matéria bastante controvertida entre estudiosos393.

José Luis Fiori vale-se da classificação dada por Esping-Andersen para o

que chamou de regimes de welfare states, compreendendo: o welfare state liberal;

os welfare states conservadores; e os regimes social-democratas394. Apesar da

existência de inúmeros trabalhos que identificam traços do welfare state no

392 Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/2015/08/14/3046-relator-da-onu-diz-que-tortura-nos-presidios-do-brasil-heranca-da-ditadura-militar. Acessado em: 17/08/2015. 393 Para José Luís Fiori, é possível distinguir três posições fundamentais: “a primeira, com menor densidade teórica e maior preocupação historiográfica, privilegia a ideia de ‘proteção social’, enquanto tal e isoladamente, e por causa disso isso tende a sublinhar a evolução mais do que as descontinuidades na trajetória que vai das Poor Laws de 1536 a 1601 até o Plano Beveridge”. FIORI, J. L., Neoliberalismo e políticas públicas, p. 6. 394 1. O welfare state liberal, em que predominam a assistência aos comprovadamente pobres, reduzidas transferências universais ou planos modestos de previdência social e onde as regras para habilitação aos benefícios são estritas e muitas vezes associadas ao estigma. São seus exemplos típicos: Estados Unidos, Canadá e Austrália; 2. Os welfare states conservadores e fortemente corporativistas, onde predomina a preservação das diferenças de status; os direitos, portanto, aparecem ligados à classe e ao status... e a ênfase estatal na manutenção das diferenças de status significa que seu impacto em termos de redistribuição é desprezível. Incluem-se aqui, como casos típicos, Áustria, França, Alemanha e Itália; 3. Os regimes social-democratas, onde o universalismo e a desmercantilização atingem amplamente a classe média e onde todos os segmentos sociais são incorporados a um sistema universal de seguros no qual todos são simultaneamente beneficiários, dependentes e, em princípio, pagadores. Não cabe dúvidas de que Esping Andersen está falando aqui de um número limitadíssimo de países escandinavos. Ibid., p. 12 et. seq.

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Brasil395, Fiori assinala que em nenhum caso a periferia capitalista, e a latino-

americana em particular, aparecem consideradas nestas tipologias.

Assim, na América Latina, o percurso do welfarismo não é dos mais

prósperos, ou tão próximo do tipo-ideal previsto nas cartas constitucionais

gestadas sob inspiração do Estado Social. Na esteira do que observam Lênio

Streck e José Luiz Bolzan de Morais, os países latino-americanos possuem certas

peculiaridades, como processo de colonização, autoritarismo, industrialização

tardia e dependência periférica, que obstaculizaram a criação e ascensão de um

Estado de Bem-Estar.396

Contudo, é importante ressaltar que desde o final do século XIX e as duas

primeiras décadas do século XX, há um crescimento significativo das

organizações e lutas operárias no país, as quais conseguem avanços importantes

em direitos sociais, na sua maioria, relativos ao trabalho e previdência social397.

Não obstante a existência de documentos que delinearam os traços do

constitucionalismo social no Brasil, o welfare state encontra-se ainda carente de

efetivação, reduzido à condição de mera utopia como analisa Paulo Bonavides398.

A despeito de pontuais avanços em matérias de direitos fundamentais sociais, o

processo de modernização pelo qual passou o Brasil ao longo do século XX

negligenciou a justiça social, gerando condições de desigualdades alarmantes.

3.4.2 O empreendimento neoliberal no Brasil

O paradigma neoliberal no Brasil quando comparado com outros países da

América Latina pode ser considerado como tardio, pois foi apenas em meados da

década de 1990 que se deu então um grande impulso para que o sistema se

tornasse hegemônico dentro do país. Um fator importante no contexto

internacional foi à chegada ao poder dos presidentes Carlos Salinas de Gortari no

México, Carlos Saúl Menem na Argentina, Carlos Andrés Péres na Venezuela,

Alberto Fujimori no Peru e Fernando Collor de Mello no Brasil.

395 Confira, em especial, as obras: DRAIBE, S. M., O Welfare State no Brasil: características e perspectivas; e SANTOS, W. G. dos, Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. 396 STRECK, L. L.; MORAIS, J. L. B. de, Ciência política e teoria do estado, p. 82. 397 SANTOS, W. G. dos, op. cit., p. 18 et. seq. 398 BONAVIDES, P., Curso de direito constitucional, p. 381.

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Streck e Morais destacam que a “globalização neoliberal-pós-moderna

coloca-se justamente como o contraponto das políticas do Welfare State.”399 O

contexto latino-americano, contudo, é ainda mais vulnerável aos influxos

neoliberais, eis que aqui não houve efetivamente um Estado que providenciasse

níveis satisfatórios de justiça e cidadania sociais400.

No caso brasileiro, os períodos do governo Fernando Collor de Melo

(1990-1992), e Itamar Franco (1992-1994)401, representam o período

intermediário para a consolidação do sistema neoliberal no Brasil. Entretanto

foram nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que se deu

o auge do modelo neoliberal no país, uma vez que aprofunda e consolida a

reforma do Estado no Brasil402.

As políticas de ajuste neoliberais promovem o desmonte dos sistemas de

proteção social nos países do capitalismo central e entram nos países do chamado

terceiro mundo através da imposição do Banco Mundial e Fundo Monetário

Internacional (FMI) para que implementem as orientações do chamado “Consenso

de Washington”403.

Trata-se de um programa de ajuste que contribui para o aprofundamento da

miséria e da exclusão e secundariza qualquer ação pública destinada ao

enfrentamento da questão social. Segundo aponta Mantega, o governo FHC

gastou na operação de salvamento dos bancos Econômico, Nacional e

Bamerindus, 20 bilhões de dólares do Programa de Estímulo à Reestruturação e

ao Fortalecimento do Sistema Financeiro (PROER), recurso superior a todo o

399 STRECK, L. L.; MORAIS, J. L. B. de, op. cit. 400 Ibid. 401 Existem controvérsias sobre o governo Itamar Fraco, pois há leituras que o colocam como um governo de medidas protecionistas, já em outras visões o seu governo é colocado como neoliberal, principalmente pelo fato da criação do Real. FIORI, J. L., Os moedeiros falsos. 402 Em 1995, no primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso, surge, por transformação da Secretaria de Administração Federal, o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE). O órgão foi criado por força da medida provisória nº 813/95, reeditada várias vezes, que apenas em 1998 foi convertida na lei nº 9.649/98. Deu-se início ao que ficou conhecido como Reforma Gerencial do Estado Brasileiro. 403 Segundo Fiori, tais orientações ou recomendações contemplavam uma estratégia sequencial em três fases: “a primeira consagrada à estabilização macroeconômica, tendo como prioridade absoluta um superávit fiscal primário envolvendo invariavelmente a revisão das relações fiscais intergovernamentais e a reestruturação dos sistemas de previdência pública; a segunda dedicada ao que o Banco Mundial vem chamando de ‘reformas estruturais’; liberação financeira e comercial, desregulamentação dos mercados, e privatização das empresas estatais; e a terceira etapa definida como a da retomada dos investimentos e do crescimento econômico”. FIORI, J. L., op. cit., p. 11 et. seq.

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orçamento da saúde em 1997404. Do total de 21 bilhões que o PROER gastou

desde que foi criado em 1995, até janeiro de 1998 só havia recuperado 5,71% do

dinheiro utilizado. Mantida esta política de incentivos, isenções e renúncias

tributárias, o país deixaria de arrecadar até 2003 o montante de R$ 32,975 bilhões.

Indústria e comércio juntos foram beneficiados com R$ 11 bilhões. Esta era a

dinâmica da política econômica praticada no livre jogo do mercado sob égide do

neoliberalismo brasileiro no período FHC.

Em contrapartida, no campo dos gastos sociais, registra-se: 8 anos sem

reajuste salarial para o funcionalismo, o qual perdeu 40% do seu salário real no

período 1995-1999, redução dos investimentos em educação e saúde. Assim, o

resultado da política de ajuste neoliberal no Brasil refletiu-se no aprofundamento

das desigualdades sociais e da concentração de renda. Segundo o Relatório sobre

o Desenvolvimento do Mundo 1999-2000, do Banco Mundial, o Brasil é o vice-

campeão mundial da desigualdade, com um índice Gini de 0,60, só perdendo para

Serra Leoa, 0,629405.

Segundo a Comissão Económica para a América Latina e o Caribe

(CEPAL), no ano 2000 o Brasil possuía 37,5% da sua população vivendo abaixo

da linha de pobreza, incluindo os que se encontram em situação de indigência ou

em extrema pobreza. Este número, apesar de inaceitável é inferior ao que se

registrava em 1990 de 48% da população nesta condição406.

Contudo, o crescimento expressivo do empobrecimento da população

brasileira, nos anos 1990 e início dos anos 2000, pode configurar um quadro

muito pior do que o revelado pelos dados oficiais. Conforme Vera Telles, uma

pesquisa do Datafolha divulgada em 13 de julho de 1997 mostra que “59% da

população brasileira estão à margem de qualquer mecanismo de ascensão social: é

uma população que não tem o 1º grau completo, tem renda familiar inferior a 10

salários mínimos, sofre intensamente o desemprego e a precarização do trabalho,

concentra gente mais velha e com maior índice de aposentados”407.

404 MANTEGA, G., O PROER deve ser extinto? 405 Relatório sobre o Desenvolvimento do Mundo 1999-2000, do Banco Mundial. 406 Conforme CEPAL - Panorama Social de América Latina 2000-2001. 407 TELLES, V. da S., No fio da navalha: entre carências e direitos. Notas a propósito dos programas de renda mínima no Brasil.

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Historicamente, o olhar sobre a miséria no Brasil, se reduziu “a uma combinação

de critérios supostamente científicos para definir a pobreza”408.

O empreendimento neoliberal e seu legado de pauperização das classes

populares terão reflexos diretos na afronta a direitos e garantias, conforme

apontam Salla e Ballestreros:

Proporcionalmente inversa à liberalização da economia, ao fortalecimento do mercado como paradigma regulador das relações econômicas e sociais, avançaram os controles sociais sobre os cidadãos de um modo geral, mas sobretudo sobre os segmentos mais afetados pelo desemprego, pela nova economia centrada na elevação de produtividade com baixa assimilação de mão-de-obra. Uma concepção securitária se estende por todos os campos de atividades e direciona as ações para a redução dos riscos. No terreno da segurança pública, essa concepção se converte nas propostas de controles sociais mais rígidos e consequentemente em políticas penais mais severas.409

Com a crise do neoliberalismo que se instalou na América Latina no final

do século XX e começo do século XXI, deu origem ao desenvolvimento de um

conjunto de novos governos com diferentes perspectivas políticas, críticos

discursivamente de alguns aspectos e fruto de conflitos gerados pelo próprio

modelo neoliberal. No Brasil, este cenário irá desaguar na eleição presidencial de

Lula da Silva em 2002.

Com os governos do Partido dos Trabalhadores, sob as presidências de

Lula (2003/2007 e 2008/201) e Dilma (2011/2014 e 2015/Atual) os ditames da

agenda neoliberal sofrem pequenas alterações no país. Este novo cenário dá

ensejo a distintas caracterizações das administrações petistas, de modo que alguns

autores situam sua governabilidade no âmbito do “social-liberalismo”410, outros os

identificam como governos neoliberais411, uma terceira perspectiva o considera

408 Ibid. 409 SALLA, F.; BALLESTEROS, P. R., Democracia, direitos humanos e condições das prisões na América do Sul, p. 4 et. seq. 410 Michael Lowy afirma que “social liberalismo” trata-se do conceito destinado a caracterizar governos com origem e lastro em movimentos sociais que implementam políticas macroeconômicas consentâneas com os interesses do grande capital financeiro. São, pois, administrações contraditórias de conciliação de classes. Aduz ainda que não há consenso entre os especialistas acerca da data de desembarque do social-liberalismo no Brasil. Ver LOWY, M., entrevista concedida ao Jornal Brasil de Fato. Fonte: www.brasildefato.com.br. Acessado em 15/12/2006. 411 Arcary faz uma análise do significado das administrações petistas desde um ponto de vista socialista revolucionário e internacionalista, classificando-as como um governo conciliador de classes, a serviço do grande capital nacional e internacional. Com base nisso, considera que

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expressão de um “capital-imperialismo”412, e, por fim, há quem os classifique

como governos neodesenvolvimentistas ou pós-neoliberais413.

Ainda que ancorado em políticas macroeconômicas liberalizantes aos

mercados, sobretudo o mercado financeiro, nas administrações do PT houve

considerável redução da pobreza no país, em decorrência do incremento de

programas assistenciais de transferência de renda.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no Censo

Demográfico 2010 indica que 16,27 milhões de pessoas vivem em extrema

pobreza no Brasil o que significa 8,5% da população total414. Segundo o Instituto

de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o número de pessoas pobres caiu de

30,4 milhões em 2003 para 17 milhões em 2010415.

Entretanto, em que pesem as nuances distintivas entre as administrações

do governo federal, desde a reabertura democrática, o fato inegável é que em

matéria de política criminal, o neoliberalismo permanece a ferro e fogo416.

A questão criminal tornou-se bandeira suprapartidária, e vem se

consolidando em uma política, no mais das vezes, invariável a despeito das

alternâncias nas estruturas de poder. Dornelles destaca que “no caso brasileiro, é

notável como o governo Fernando Henrique Cardoso voltou a tratar – como em

uma reedição da República Velha – a questão social através de uma ótica penal. A

questão social voltou a ser ‘caso de polícia’”417.

Esta perspectiva não se altera com a ascensão ao poder de um partido

identificado historicamente com as lutas das classes populares. Neste sentido, vale

existiria uma continuidade das políticas de Lula e Cardoso. ARCARY, V., Um reformismo quase sem reformas: uma crítica marxista do governo Lula em defesa da revolução brasileira. 412 Virginia Fontes coloca que o processo histórico ulterior, iniciado com Fernando Henrique Cardoso e continuado sob os dois mandatos de Lula da Silva expressaram uma recuperação da capacidade burguesa de conservar seu predomínio no âmbito nacional, através agora de um formato democrático-representativo, típico do enquadramento burguês das reivindicações populares. Em sua visão, os governos petistas seriam a expressão do capital-imperialismo. FONTES, V., O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. 413 Para Sader são governos que, para superar a herança econômica, social e política recebida dos anteriores governos neoliberais, priorizam, ao contrário, um modelo de desenvolvimento intrinsecamente articulado com políticas sociais redistributivas, colocando a ênfase nos direitos sociais e não nos mecanismos de mercado. SADER, E. (org.), 10 anos de Governos Pós-neoliberais – Lula e Dilma. 414 IBGE. Censo Demográfico 2010. Disponível: http://censo2010.ibge.gov.br/. Acessado em: 14/07/2015. 415 Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/. Acessado em: 14/07/2015. 416 LEMOS, C., Politica criminal no Brasil neoliberal. 417 DORNELLES, J. R. W., Conflito e segurança. Entre pombos e falcões, p. 65.

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lembrar a precisa expressão cunhada por Maria Lucia Karam, “a esquerda

punitiva”418, para compreender as permanências de uma política criminal “lei e

ordem”.

No cenário atual, diante da hegemonia do capitalismo neoliberal, é

relegada aos governantes a “gestão da barbárie”, como afirma Menegat419,

conduzindo programas políticos desprovidos de quaisquer mudanças estruturais,

mas que mantenham possível a “governabilidade social”.

3.4.3 Forjando o Estado Penal brasileiro

Como exposto por Wacquant, nos EUA, a partir das reformas na área da

assistência social, assiste-se à transição do Estado de Bem Estar Social (Welfare

State) para o Estado Penal (Warfare State). No Brasil, como país de capitalismo

periférico, não se pode falar sequer na vigência histórica do Estado de Bem Estar.

A tendência de hipertrofia do aparato penal vem apenas reforçar o controle

violento das camadas excluídas da população exercido desde o genocídio colonial.

Neste sentido, o Leviatã neoliberal brasileiro caracteriza-se por dois pólos:

um repressivo, e outro assistencialista. O controle social da pobreza é

empreendido tanto através de: a) programas de assistência que encontram no

Programa Bolsa Família sua versão mais emblemática; quanto por: b) medidas de

recrudescimento punitivo, expressas, sobretudo, no letífero habitus policial e no

grande encarceramento em curso.

Esta ambivalência revela uma diferenciação em face do Estado Penal nos

EUA no qual, segundo Wacquant, através da metáfora do Centauro, “a penalidade

neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um ‘mais

Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico e social”420. Por

outro, no Brasil, a despeito da tendência de liberalização econômica, a equação

aponta para “mais Estado” no âmbito social, ao mesmo tempo que “mais Estado”

policial e penitenciário.

418 KARAM, M. L., A esquerda punitiva. Discursos sediciosos: crime, Direito, sociedade. 419 MENEGAT, M., O olho da barbárie. 420 WACQUANT, L., As prisões da miséria, p. 4.

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Cabe, portanto, analisar como se revela aqui este Estado Penal, apontando

suas características singulares. Consideramos três traços fundamentais para esta

caraterização: a) o workfare brasileiro, presente em determinadas políticas sociais;

b) o elevado índice de violência institucional, expresso na tortura e na letalidade

policial; c) o grande encarceramento em curso no Brasil.

Esta peculiaridade do Estado penal que vai se erguendo no Brasil, pode ser

melhor compreendida à luz do conceito de hegemonia desenvolvido pelo marxista

italiano Antonio Gramsci. Para Gramsci, o grupo dirigente, ocupando o espaço do

Estado, pode ter “dupla perspectiva”: a da necessidade do uso do consenso e

também o da força, da coerção421. Sobre os graus nessa “relação de força”,

Gramsci distingue vários momentos. Acerca do terceiro deles, o da formação da

hegemonia, afirma:

é aquele em que se adquire a consciência de que os próprios interesses corporativos, no seu desenvolvimento atual e futuro, superam o círculo corporativo, de grupo meramente econômico, e podem e devem tornar-se os interesses de outros grupos subordinados.422

Recentes estudos, dentro da denominada Nova Pedagogia da Hegemonia

têm analisado as estratégias de construção de consenso no seio do Estado

brasileiro, para consolidação de um projeto hegemônico capitalista423. Em nossa

visão, no que tange à dinâmica do controle social formal, ao mesmo tempo se

assiste ao crescimento de políticas assistenciais e ao incremento do aparato

punitivo, assiste-se, metaforicamente, à hegemonia do Bolsa Família aliado ao

binômio extermínio/encarceramento.

As modificações promovidas nas estratégias de controle social ao longo do

percurso institucional brasileiro, desde o colonialismo até o presente, demonstram

o recurso permanente à exceção. Na atual conjuntura, a política criminal tornou-se

a governamentalidade privilegiada para conter os indesejáveis, os sobrantes da

421 GRAMSCI, A., Maquiavel, a política e o Estado moderno, p. 50. 422 Ibid. 423Na obra A nova pedagogia da hegemonia os autores identificam e desvelam o processo de redefinição dos fundamentos e das práticas do Estado brasileiro no sentido da consolidação e do aprofundamento do projeto burguês para a atualidade. E o fazem evidenciando o pensamento e algumas importantes práticas pedagógicas constitutivas da mais atual corrente da pedagogia da hegemonia representada pela Terceira Via, num processo em que o Estado ampliado se requalifica historicamente como agente educador. NEVES, L. M. W. (org.), op. cit., p. 39.

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sociedade de consumo, e para criminalizar os que insistem em resistir. O exercício

do poder punitivo revela-se central para manutenção das estruturas seculares de

dominação no contexto do capitalismo vídeo-financeiro, como diz Vera

Malaguti424.

Analisaremos como o panorama no qual se edifica o Estado penal

brasileiro apresenta manifestações das três técnicas de poder identificadas por

Foucault425: o poder soberano, empreendido no “fazer morrer, deixar viver” da

“política criminal com derramamento de sangue”; o poder disciplinar, uma

“anátomo-política do corpo”, presente nas agruras das masmorras abarrotadas

pelo grande encarceramento; e a biopolítica, desvelada nas estratégias de inclusão

da vida nos cálculos do poder, em uma verdadeira rede de controle punitivo da

pobreza, complementar às políticas de segurança pública e ao encarceramento,

desde o Programa Bolsa Família, às interceptações telefônicas, passando, por

exemplo, pelo monitoramento eletrônico de apenados e pela implementação das

Unidades de Polícia Pacificadora.

3.4.3.1 Bolsa Família: dispositivo de workfare?

Relatórios do Banco Mundial apontam, desde os anos 1990, a necessidade

de aumentar o desenvolvimento e o número de programas de combate à pobreza

pelo fato de que a população pobre passará a constituir uma ameaça em termos de

“fratura social”, para tanto, seria preciso favorecer os mercados426. A partir de

então, assiste-se a uma multiplicação de “medidas de focalização” programas

assistencialistas, tanto no plano social como no educacional, com ênfase na saúde,

educação básica, geração de emprego e renda e moradia.

424 BATISTA, V. M., Adesão subjetiva à barbárie, p. 1. 425 Sobre o poder soberno e o poder disciplinar, ver FOUCAULT, M., Vigiar e punir. Sobre biopoder/biopolítica, ver Id., Em defesa da sociedade e Id., Segurança, território e população. 426 Mercados em bom funcionamento são importantes para gerar crescimento e expandir oportunidades para os pobres. É por isto que doadores internacionais e governos de países em desenvolvimento, em especial os democraticamente eleitos, têm promovido reformas que favorecem o mercado. BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o desenvolvimento mundial. Washington: Banco Mundial, 2000-2001, p. 61. Disponível em: <www.bancomundial.org.br>. Acesso em: 09/07/2015.

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O Programa Bolsa Família, instituído pelo governo federal em 2003427 e

vinculado, desde 2004, ao recém-criado Ministério de Desenvolvimento Social e

Combate à Fome, constitui um exemplo emblemático das medidas de focalização.

A despeito de sua verificada relevância na dimininuição das desigualdades sociais,

possibilitando, ainda que em níveis mais básicos, distribuição de renda e acesso ao

consumo, o programa pode ser compreendido na lógica de governamentalidade da

pobreza.

Em tempos nos quais a questão social remete, segundo Bauman, a pessoas

declaradas “redundantes”, “descartáveis”, constituintes do que o que se chama de

“refugo humano”428, tais políticas se apresentam como gestão política da miséria.

Desta forma, dirigem-se aos setores mais pauperizados do tecido social429. Jessé

de Souza utiliza o conceito de “ralé”, para denominar esta classe estrutural na

sociedade brasileira, correspondendo a 1/3 da população:

Essa classe social que é sempre esquecida enquanto uma classe com uma gênese e um destino comum, só é percebida no debate público como um conjunto de "indivíduos" carentes ou perigosos, tratados fragmentariamente por temas de discussão superficiais, dado que nunca chegam sequer a nomear o problema real, tais como "violência", "segurança pública", "problema da escola pública", "carência da saúde pública", "combate 'á fome" etc.430

427 O PBF substitui quatro programas que lhe antecederam: Bolsa-Escola, Auxílio-Gás, Bolsa Alimentação e Cartão Alimentação. A unificação desses programas visou "melhorar a gestão e aumentar a efetividade do gasto social através da otimização e racionalização, ganhos de escala e facilidade da interlocução do governo federal com estados e municípios". BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. 2006. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia>. Acessado em: 09/07/2015. 428 BAUMAN, Z., Vidas desperdiçadas. Compõem, entre outros, essa nebulosa dos “marginalizados” os seguintes segmentos sociais, estatisticamente discriminados, definidos pelos próprios enunciados dos programas focalizados como: os “indigentes”, as pessoas em “situação de vulnerabilidade social” ou de “extrema pobreza” ou que vivem em “territórios vulnerabilizados pela pobreza”. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia>. Acessado em 09/07/2015. 429 Qualquer família que receba até R$ 77,00 mensais pode se cadastrar no Bolsa Família. Aquelas que ganham de R$ 77,00 a R$ 154,00 também podem entrar no cadastro, desde que pelo menos uma pessoa tenha dezessete anos, para que ela possa receber o valor. O Decreto n. 7.447 “prevê um benefício básico fixado em R$ 70, destinado a famílias que se encontram em situação de extrema pobreza. Institui, ainda, um valor variável de R$ 32 por beneficiário, até o limite de R$ 96, para as famílias que tenham em sua composição gestantes, nutrizes e crianças e adolescentes de zero a 15 anos. Para os jovens de 16 e 17 anos matriculados em estabelecimentos de ensino, o valor do benefício variável mensal passa a ser de R$ 38, até o limite de R$ 76 por família. São valores ajustados a partir do dia 1º de abril de 2011”. Disponível em: <http://calendariobolsafamilia2015.com.br/bolsa-familia-2015>. Acesso em: 09/07/2015. 430 SOUZA, J., A ralé brasileira: quem é e como vive, p. 21.

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Essa perspectiva que busca propiciar a mera condição de existência, um

mero fazer viver, dá ensejo a identificar tais medidas compensatórias como uma

forma de governamentalidade biopolítica, uma vez revelam um “processo de

subjetivação que leva o indivíduo a vincular-se à própria identidade e à própria

consciência e, conjuntamente, a um poder de controle externo”431.

O benefício do Programa Bolsa Família é mantido pelo governo mediante

o cumprimento de regras pela família. Uma das condicionalidades, como

estabelecido pelo governo na elaboração das concepções do programa, é a

participação efetiva das famílias no processo educacional e nos programas de

saúde que promovam a melhoria das condições de vida na perspectiva da inclusão

social. As famílias que descumprem as condicionalidades estão sujeitas a

penalidades gradativas, que vão da advertência ao cancelamento do benefício. Há,

no entanto, beneficiários que não as cumprem e correm o risco de perder a

transferência monetária do Estado, muitas vezes a única renda da família.

Em estudo de caso baseado na realização de entrevistas com beneficiários

do Programa Bolsa Família, Ranincheski e Mendonça da Silva concluem que:

as titulares legais do benefício esforçam para se sujeitarem às novas, complexas e rígidas normas e aos hábitos de ordem, de exatidão e de previsão que lhe são impostos pela política social da qual são usuárias, o Programa Bolsa Família. Elas sentem a pressão pela mudança de suas estratégias de sobrevivência e tentam se adequar à ação exigida. (...) Aceitam as regras existentes, simplesmente porque elas são consenso na sociedade em que vivem, e mantêm-se sob a pressão coercitiva devido às necessidades elementares da sua existência e às de sua família.432

Este viés de implementação dos programas de assistência vem ao encontro

da reflexão de Gramsci433, uma vez que podem ser interpretados como prepostos

do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social

e do governo político. Em um programa social estatal, como o Bolsa Família, a

confiança está na política que funciona, e o controle está na sanção ao não

cumprimento das condicionalidades, na perda do benefício.

431 AGAMBEN, G., Homo sacer. O poder soberano e a vida nua, p. 13. 432 RANINCHESKI, S. M; SILVA, C. E. M. da, Hegemonia, consenso e coerção e os beneficiários do Programa Bolsa Família. 433 GRAMSCI, A., Cadernos do cárcere, v. 2, p. 21.

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As condicionalidades cada vez mais rígidas apresentam alguma

similaridade com os programas do workfare implementados nos EUA, ainda que

em menor grau de rigidez434. Levando em conta que através das inscrições no

cadastro único do Bolsa Família, o Estado obtém uma cartografia mais precisa da

população indigente e marginalizada, fato que permite maior controle da

pobreza435.

Constitui-se, deste modo, um conjunto de tecnologias sociais de

controle, sustentadas por numerosos saberes sobre a miséria, a serviço de uma

vida que se pode considerar tanto ‘nua’ quanto possivelmente ‘socializada’, que se

somam à face repressiva do Leviatã penal que se ergue em terra brasilis.

3.4.3.2 Política Criminal com derramamento de sangue

Curiosamente, ao mesmo tempo em que o Brasil vive hoje seu mais longo

período ininterrupto de democracia, se assiste ao espantoso incremento da

violência institucional436. Nos territórios nos quais a presença do Estado é quase

imperceptível, vai se constituindo nas periferias urbanas, no Brasil profundo, o

terreno fértil para a coexistência de espaços nos quais prevalece o Estado de

exceção, a suspensão dos direitos e garantias preconizadas pelo Estado

Democrático de Direito.

434 Wacquant aponta que os discursos neoconservadores nos EUA e na Inglaterra sustentam que “se o Estado deve evitar ajudar materialmente os pobres, deve todavia sustentá-los moralmente obrigando-os a trabalhar; eis o tema, canonizado desde então por Tony Blair, das ‘obrigações da cidadania’, que justifica a mutação do welfare em workfare e a instituição do trabalho assalariado forçado em condições que ferem o direito social e o direito trabalhista para as pessoas ‘dependentes’ das ajudas do Estado”. WACQUANT, L., As prisões da miséria, p. 28. 435 Pelo menos três outros pontos de fixação e de normalização ainda participam desse empreendimento de mapeamento dos sujeitos marginalizados ou de rastreabilidade dos efeitos dos programas socioassistencialistas: a escola, o posto de saúde e o centro de assistência social. 436 Guillermo O' Donnell irá analisar a crise do Estado nos países latino-americanos a partir da década de 80, durante o período da abertura democrática e percebe “em muitas democracias emergentes, a efetividade de uma ordem nacional corporificada na lei e na autoridade do estado desaparece tão logo deixamos os centros urbanos nacionais (...). O crescimento do crime, as intervenções ilegais da polícia nos bairros pobres, a prática disseminada da tortura e mesmo da execução sumária de suspeitos pertencentes aos setores pobres ou de alguma forma estigmatizados, a negação de direitos a mulheres e a várias minorias, (...) expressam a crescente incapacidade do estado para tornar efetivas suas próprias regulações”. O’ DONNELL, G., Sobre o Estado, a democratização e alguns problemas conceituais, p. 129.

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O leitmotiv desta acumulação de poder punitivo centra-se no combate às

drogas. O reflexo deste deslocamento da política de drogas pode ser

contundentemente percebido no Brasil. Nilo Batista descreve a transição de um

modelo sanitário, aplicado até o início do século XX, para o modelo bélico que

passa a ser estabelecido na vigência da doutrina de Segurança Nacional durante o

regime militar. Desde então, busca-se construir no imaginário social a ideia do

traficante enquanto inimigo público a ser combatido, dando ensejo à “política

criminal com derramamento de sangue”437.

Neste cenário, percebe-se que na periferia do capitalismo o poder soberano

não foi relegado ao passado, convive contemporaneamente com a biopolítica438.

Em sua atualização da obra foucaultiana, Giorgio Agamben considera que a

política contemporânea é suplantada pela biopolítica, e, quando necessário, pela

tânato-política439. Não é por outra razão que se mantém e acirra o processo de

criminalização da pobreza e dos movimentos sociais. “Mais polícia e menos

política” é o que caracteriza nossos tempos, como afirma o filósofo francês

Jacques Rancière440.

A reabertura democrática inaugura, paradoxalmente um processo de re-

militarização das políticas de segurança pública notadamente no Rio de Janeiro441.

Põe-se em curso um modelo de segurança pública orientado pela metáfora da

guerra, como precisamente denomina Dornelles442. Já Marildo Menegat, por sua

vez fala da disseminação de uma guerra civil que está em curso, mediante a qual

“o Estado desmorona, mas se mantém”443.

Este modelo securitário belicista encontra nos autos de resistência seu

dispositivo emblemático para gestão biopolítica dos marginalizados nas periferias

urbanas444. Presente desde a época da ditadura militar, tal classificação

437 BATISTA, N., Política criminal com derramamento de sangue. 438 Diferentemente do modelo identificado por Foucault, ao analisar a realidade europeia, no qual o poder soberano seria substituído pelo poder disciplinar e pela biopolítica, na América Latina e demais periferias capitalistas, o poder soberano, expresso na violência institucional letal permanece como prática contemporânea. 439 AGAMBEN, G., Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. 440 RANCIÉRE, J., O desentendimento. Política e filosofia. 441 DORNELLES, J. R. W., Conflito e segurança. Entre pombos e falcões, p. 162 passim. 442 Ibid., p. 47. 443 MENEGAT, M., O olho da barbárie. 444 SOUZA, T. L. S. e, Constituição, segurança pública e Estado de exceção permanente: a biopolítica dos autos de resistência.

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administrativa passou progressivamente a ser empregada com maior frequência

para designar as mortes resultantes das ações policiais445. Recente levantamento

apresentado pelo NECVU-UFRJ, sob coordenação do professor Michel Misse,

apontou os indicadores de autos de resistência no Rio de Janeiro, identificando

seu ápice no ano de 2007, quando foram contabilizados 1.330 civis mortos pela

polícia.

Tabela 1: Autos de Resistência lavrados no Rio de Janeiro – (2000-2014)

Ano 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Total 427 592 900 1195 983 1098 1063 1330 1137 1084 855 523 415 416 584

Fonte: ISP-RJ446 e NECVU-UFRJ447

Entre 2000 e 2014, chega-se a um contingente de 12.594 mortos pela

polícia. Soma-se a este fato o elevadíssimo número de vítimas de homicídio no

país, totalizando 56 mil em 2014448. Números de um país em guerra, dando ensejo

a uma política de extermínio dirigida, sobretudo, contra jovens, negros e

moradores de periferias urbanas, os ditos “indignos de vida” como aponta

Zaccone449. Em paralelo, constata-se também que temos uma das polícias que

mais morre no mundo450.

Para situar a assustadora disparidade da letalidade policial do Rio de

Janeiro, convém comparar com outras realidades, como se pode verificar no

quadro abaixo:

445 Esta gratificação foi criada por um decreto do governador Marcelo Alencar, em novembro de 1995, quando o general Nilton Cerqueira estava à frente da Secretaria de Segurança Pública, podendo aumentar os salários dos policiais militares em até 150%. Tais gratificações, aliadas às promoções por bravura, fizeram com que os homicídios classificados como “auto de resistência” passassem de 3 pessoas por mês, no começo de 1995, para mais de 20 por mês, em 1996. CANO, I., Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro. 446 Disponível em: <www.isp.rj.gov.br>.. Acessado em: 09/07/2015. 447 MISSE, M., Autos de resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do rio de janeiro (2001-2011). 448 Dados apontam ainda que, neste ano, o Brasil teve 29 assassinatos por 100.000 habitantes, ao passo que nos EUA apenas 4,7. ANISTIA INTERNACIONAL, Relatório Anual – 2014. 449 ZACCONE, O., Indignos de vida: A forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. 450 Ibid.

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Figura 2: Comparativo Internacional de Letalidade Policial (2008)

Fonte: Human Rights Watch451.

Como mais uma vez salienta Zaccone, “na guerra do bem contra o mal

quem entra com os corpos são os pobres”452. Trata-se do fenômeno que Malaguti

irá denominar de verdadeiro “filicídio”453, uma vez que estamos promovendo o

massacre de nossa juventude.

Podemos pensar então, se está empiricamente verificado que nenhum crime de Estado é cometido sem ensaiar ou apoiar-se em um discurso justificante, que a matança em curso no Brasil neoliberal se sustenta em uma criminologia funcionalista e acrítica, que pretende reordenar, eficientizar o controle social letal legitimando a expansão da barbárie, que se traduz no emparedamento em vida e no aniquilamento de milhares de jovens brasileiros.454

A insuportável letalidade policial praticada no Brasil, em especial no Rio

de Janeiro, sinaliza as sinistras peculiaridades do Estado penal brasileiro.

Diferentemente do que ocorre nos EUA455, a violência policial brutal serve como

uma espécie de complemento biopolítico ao grande encarceramento, promovendo

451 HUMAN RIGHTS WATCH, Força Letal. Violência policial e segurança pública no Rio de Janeiro e em São Paulo. 452 ZACCONE, O., Indignos de vida: A forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro, p. 210. 453 BATISTA, V. M., Filicídio: a questão criminal no Brasil contemporâneo. 454 Id., O realismo marginal: criminologia, sociologia e história na periferia do capitalismo, p.9. 455 Nos Estados Unidos são mortos anualmente em confronto uma média de 300 pessoas para uma população de aproximadamente 314 milhões (1 morte para cada 1.050.000). Já no Rio de Janeiro, em média, são mil mortes para 16 milhões de habitantes (1 morte para cada 16.000). MISSE, M., Autos de resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do rio de janeiro (2001-2011).

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o enlace entre o modelo de Estado Penal (Wacquant) com o paradigma do Estado

de exceção permanente (Agamben).

3.4.3.3 O grande encarceramento no Brasil

Assim como o Leviatã neoliberal norte-americano, o Brasil vem

apresentando uma escalada colossal em seu nível de aprisionamento. Entretanto,

como pondera Zaffaroni, é de se ressaltar que “na América Latina, as prisões se

assemelham a verdadeiros campos de concentração para miseráveis, enquanto nos

países centrais possuem um aspecto disciplinador”456. Esta clara distinção está

diretamente relacionada às desigualdades econômicas provocadas pelas clivagens

do capitalismo nos planos nacional e internacional457.

Dados de junho de 2014, informados pelo Levantamento de Informações

Penitenciárias (Infopen) do Departamento Penitenciário Nacional458, apontam que

o Brasil possui uma população prisional de 607.731 presos, com uma taxa de

encarceramento de 299,7 presos por 100.000 habitantes. Entretanto, existem

apenas 376.669 vagas nos estabelecimentos carcerários, o que revela um índice de

superlotação da ordem de 161%.

Estes indicadores, por si só, sinalizam a gravidade da situação do sistema

prisional brasileiro. Contudo, para uma melhor compreensão desse quadro, é

pertinente comparar a realidade carcerária brasileira com a de outros países.

Tabela 2: Dados acerca das 10 maiores populações prisionais do mundo (2014)

País População prisional

Taxa de encarceramento (presos por 100 mil habitantes)

Taxa de ocupação

Presos provisórios

1. EUA 2.228.424 698 102,7% 20,4% 2. China 1.657.812 119 - - 3. Rússia 673.818 468 94,2% 17,9% 4. Brasil 607.731 300 161% 41% 5. Índia 411.992 33 118,4% 67,6% 6. 308.093 457 133,9% 20,6%

456 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 123 passim. 457 ARGUELLO, K., Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem, p. 17 et. seq. 458 Fonte: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA – Depen.

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Tailândia 7. México 255.638 214 125,8% 43% 8. Irã 225.624 290 161,2% 25,1% 9. Indonésia

167.163 66 153% 31,9%

10. Turquia 165.033 212 101,2% 13,9% Fonte: International Centre for Prison Studies459

A tabela acima oferece um panorama dos principais indicadores sobre as

dez maiores populações prisionais do mundo. Em números absolutos, o Brasil tem

a quarta maior população prisional, com 607 mil presos, ficando atrás apenas dos

Estados Unidos, 2,2 milhões de presos, seguido de China, com 1.657.812l, e

Rússia, com 673 mil.

Neste cálculo não estão computadas prisão albergue domiciliar, cujas

condições de aprisionamento não são vinculadas à administração penitenciária460.

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2014, havia cerca de

147.937 pessoas em prisão domiciliar461. Contabilizando este valor ao total de

presos em estabelecimentos prisionais, constata-se um total de 755.668 pessoas

privadas de liberdade no Brasil, fato que colocaria o país no terceiro lugar do

ranking internacional, à frente da Rússia com 673.818.

Levando em conta a taxa de aprisionamento, verifica-se que a população

prisional brasileira também ocupa a quarta colocação, atrás somente de EUA,

Rússia e Tailândia. Em relação à taxa de ocupação, que indica a realidade de

superlotação, considerando os dez países com maior população prisional, o Brasil

fica na segunda posição, com 161%, ligeiramente atrás do Irã. Ademais, dentre os

países comparados, o Brasil figura como terceiro quanto ao percentual de presos

provisórios com 41%, atrás apenas de Índia e México.

459Dados referentes ao ano de 2014. Ressalte-se que há pequenas discrepâncias entre as datas de informação do quantitativo prisional dos países. Não há informações disponíveis sobre taxa de ocupação, bem como sobre o número de presos provisórios na China. Disponível em: http://www.prisonstudies.org/world-prison-brief. Consultado em: 09/07/2015. 460 Não há registros disponíveis sobre os indicadores de prisão domiciliar em comparativos internacionais. 461 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_ presas_correcao.pdf. Acessado em: 07/07/2015.

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Figura 3: População Prisional Brasil (1990-2014)

Fonte: Ministério da Justiça/DEPEN

A população prisional brasileira vem crescendo regularmente. O gráfico

acima revela a evolução entre 1990 e 2014, com um acréscimo da ordem de

575%, saltando de 90.000 encarcerados para o assustador exército de 607.700

presos neste intervalo de tempo.

Em 2014, pela primeira vez, o número de presos no país ultrapassou a

marca de 600 mil, atingindo um número de pessoas privadas de liberdade 6,7

vezes maior do que em 1990. Desde 2000, a população prisional cresceu, em

média, 7% ao ano, totalizando um crescimento de 161%, valor dez vezes maior

que o crescimento do total da população brasileira, que apresentou aumento de

apenas 16% no período, em uma média de 1,1% ao ano462.

462 IBGE. Censo Demográfico 2010.

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Figura 4: População Prisional EUA (1990-2014)

Fonte: International Centre for Prison Studies

Uma análise comparativa com o crescimento da população carcerária nos

EUA, o maior empreendimento do Leviatã neoliberal no mundo, permite observar

que desde 2008 o número total de presos vem diminuindo progressivamente, ao

contrário do Brasil, que permanece crescendo cerca de 7% ao ano. A comparação

entre a taxa de aprisionamento (número de presos por 100 mil habitantes) também

é reveladora deste aspecto.

Não fosse bastante o elevado número de presos, o Brasil se notabiliza pela

altíssima velocidade de crescimento de sua população prisional. Segundo

levantamento realizado pelo DEPEN463 no período entre 1995 e 2010, analisando

os cinquenta países com maior população prisional, o Brasil aparece com a

segunda maior variação na taxa de aprisionamento (número total de presos por

cem mil habitantes), com um crescimento na ordem de 136%, perdendo apenas

para a Indonésia - país que tem sido criticado internacionalmente por severas

violações aos direitos humanos -, que apresentou o ritmo de crescimento relativo

de 145% em sua população prisional. Entretanto, o sistema penitenciário na

Indonésia, apesar desta alta variação, apresenta indicadores muito menores do que

o Brasil, com 66 presos para cada cem mil habitantes, e uma população carcerária

de 167.163 presos.

Convém ainda comparar a evolução do encarceramento nos países com as

quatro maiores populações prisionais do mundo, para reforçar a compreensão

sobre este cenário, conforme o gráfico abaixo.

463 BRASIL. Ministério da Justiça. Levantamento de Informações Penitenciárias. Infopen, 2014.

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Figura 5: Comparativo entre as 4 maiores populações prisionais do mundo (1995-2014)

Fonte: ICPS e DEPEN

O gráfico revela a variação da população prisional de EUA, China, Rússia

e Brasil entre 1995 e 2014. Verifica-se que a partir 2009, a variação da população

prisional brasileira tem destoado em relação às demais. Entre 2009 e 2014 a

população prisional estadunidense diminuiu em 80 mil presos. Em relação à

China, apesar de ter havido aumento, há uma tendência de estabilização do efetivo

carcerário, tendo elevado em apenas 40 mil presos no período. No que se refere à

Rússia, a redução é considerável. Desde 1998 a população prisional russa só cai,

tendo apresentado queda de 170 mil internos entre 2009 e 2014. No caso

brasileiro, ao contrário, verifica-se o contínuo crescimento, majorando em 134 mil

presos nos últimos cinco anos. Segundo o Ministério da Justiça, seguindo esta

projeção, a população carcerária brasileira deverá superar a da Rússia em 2018464

e os EUA em 2034465.

Vale ressaltar, que diferentemente de tais países466, o Brasil apresenta um

imenso déficit prisional, da ordem de 231 mil vagas, fato que torna as condições

da execução penal muito mais degradantes. Além disso, segundo informações do

CNJ havia cerca de 373.991 mandados de prisão em aberto no país em junho de

464 Ministério da Justiça/DEPEN. Levantamento de Informações Penitenciárias 2014. 465Fonte: <http://institutoavantebrasil.com.br/populacao-prisional-brasil-vai-passar-os-eua-em-2034>. 466 Nos EUA a taxa de ocupação das unidades prisionais é de 102%, na Rússia tal indicador é de 94%. Não há informações seguras sobre a China neste aspecto.

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2014467, que caso sejam cumpridos, conduziriam a população prisional a um total

de mais de 1 milhão de presos.

Os números são assustadores. Para que fique mais evidente o significado

do encarceramento massivo, vale situar que ao todo, em 2014 havia no mundo um

total de mais de 10,2 milhões de presos, metade destes em unidades prisionais dos

EUA, China, Rússia e Brasil468. Em 2009 a população prisional do planeta era de

9,95, ou seja, verifica-se que neste intervalo houve um crescimento global de 250

mil presos. Porém, apenas no Brasil o aumento neste período foi de 134 mil

presos, equivalente, portanto, a mais da metade do aumento da população

prisional global.

A voracidade deste implacável Estado penal evidencia uma brutal

seletividade, atingindo sobremaneira os segmentos populacionais dotados de

maior grau de vulnerabilidade à criminalização secundária, notadamente, os

jovens pobres, negros e moradores de periferias urbanas.

Em meio a este Grande Encarceramento, emerge por clara influência

norte-americana no âmbito do controle social punitivo a implementação da

incipiente, mas promissora, indústria do controle do crime no Brasil469, como

revela Laurindo Minhoto:

Se, de um lado, há evidências fundadas de que a operação privada de estabelecimentos correcionais não tem executado um serviço mais eficiente nem tampouco mais barato, como também não tem conseguido fazer frente aos objetivos internos do sistema de justiça criminal, notadamente, o alívio da superpopulação e a reabilitação dos detentos, além de despertar forte polêmica, é certo que paradoxalmente as prisões privadas vêm se expandindo e as companhias ampliando largamente suas margens de lucratividade.470

467 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/61762-cnj-divulga-dados-sobre-nova-populacao-carceraria-brasileira. Acessado em: 10/06/2015. 468 Disponível em: http://www.prisonstudies.org/. Acessado em: 07/07/2015. 469 Sobre a privatização do sistema penitenciário brasileiro ver: Prisões privatizadas no Brasil em debate / Pastoral Carcerária Nacional (2014), coordenação de obra coletiva: José de Jesus Filho e Amanda Hildebrand. O Relatório revela que um custo médio de um preso no sistema prisional privado é de aproximadamente R$ 3.000,00/mês, ao passo que o custo mensal no sistema penitenciário estadual público gira em torno de R$ 1.500,00 a R$ 2.000,00. 470 MINHOTO, L. D., Privatização de presídios e criminalidade. A gestão da violência no capitalismo global, p. 92. Em relação ao Brasil, adverte que “Em grande medida, essa proposta resulta de um intenso lobby realizado por uma empresa brasileira de segurança privada, a Pires Segurança Ltda., destinado a transpor as prisões privadas para o contexto brasileiro, a partir da manipulação seletiva da ‘experiência estrangeira’ – sobretudo da experiência norte-americana –, invocada como argumento de autoridade”.

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Esta tendência ganha fôlego a partir dos tendenciosos trabalhos da

Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário realizada na

Câmara de Deputados no ano de 2015. A comissão foi presidida pelo deputado

Alberto Fraga (DEM-DF), ex-tenente-coronel da Polícia Militar e integrante da

chamada “Bancada da Bala”. No relatório final, aprovado no dia 05 de agosto de

2015, são apresentadas 20 propostas legislativas, e tem como uma de suas

principais sugestões a participação da “iniciativa privada na gestão de

estabelecimentos penais” no país471.

Neste sentido, desponta o risco de maior expansão punitiva, catapultada

pelo complexo-industrial-prisional que se movimenta sorrateiramente através de

lobbies ao Legislativo e Executivo. Ao analisar o fenômeno do

superencarceramento, Nils Christie manifesta a necessidade de limites contra a

indústria do controle penal do crime:

a situação exige uma discussão séria sobre os limites do crescimento do sistema formal de controle do crime. Pensamentos, valores, ética – e não o impulso industrial – devem determinar os limites do controle, o momento em que este já é suficiente.472

Já existem empresas privadas lucrando com o fornecimento de

alimentação, serviços de saúde, trabalho e educação para os detentos, além da

própria administração e manutenção de unidades prisionais no país. Estima-se que

atualmente haja mais de 200 presídios privados no mundo473, sendo 30 deles em

atividade no Brasil474. Está em curso um forte lobby para a expansão deste setor,

inclusive com expressivo apoio das agências políticas e midiáticas, para expansão

do gerenciamento privado das penitenciárias brasileiras475, fato que gera profunda

471 Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/com-2018bancada-da-bala2019-cpi-sugere-2018privatizacao2019-do-sistema-penitenciario-776.html. Acessado em: 17/08/2015. 472 CHRISTIE, N., A indústria do controle do crime: a caminho dos Gulags em estilo ocidental. 473 Disponível em: http://apublica.org/2014/05/quanto-mais-presos-maior-o-lucro/. Acessado em: 14/07/2015. 474 FILHO, José de Jesus e OI, Amanda Hildebrand (cord.).Prisões privatizadas no Brasil em debate. 475 O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) elaborou as diretrizes em 1992, para adoção das prisões privadas no Brasil as quais, em resumo, propunham que “A admissão das empresas seria feita por concorrência pública e os direitos e obrigações das partes seriam regulados por contrato. O setor privado passaria a prover serviços penitenciários tais como alimentação, saúde, trabalho e educação aos detentos, além de poder construir e administrar os

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preocupação, sobretudo em razão dos efeitos deste pernicioso caminho,

largamente demonstrados na experiência fracassada nos EUA.

Desta forma, podemos perceber que a tese de Rusche e Kirchheimer, que

identifica a íntima relação entre os sistemas penais e os sistemas econômicos,

permanece vívida. Embora a história do sistema penitenciário permita conclusões

claras acerca da função real do cárcere no seio da sociedade, que rechaçam as

teorias idealistas dos fins da pena de prisão, de prevenção (geral e especial) e

retribuição, à condição de ideologias insustentáveis do ponto de vista empírico, tal

resposta punitiva se intensifica assustadoramente, em pleno século XXI.

A penalidade neoliberal ergue nos EUA uma agenda criminalizante que

dá ensejo ao Estado penal, disseminando globalmente o boom carcerário, como

aponta Wacquant. Na América Latina e no Brasil, a ofensiva punitiva será

recepcionada tal qual um programa suprapartidário. Torna-se imprescindível

percorrer as entranhas deste Leviatã neoliberal, como verificaremos no sistema

prisional do Rio de Janeiro.

estabelecimentos”. Sobre a incipiente privatização/terceirização dos presídios brasileiros, confira: MINHOTO, L. D., op. cit. e FREIRE, M. de F., Privatização de presídios: uma análise comparada.

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4 Nas entranhas do Leviatã prisional: cartografia do encarceramento massivo no Rio de Janeiro

O conceito de cartografia por muitos anos ficou restrito ao campo das

ciências geográficas, como ciência que trata da concepção, produção, difusão,

utilização e estudo dos mapas, mas, atualmente não pode ser restrita ao

significado de “arte ou ciência de compor cartas geográficas”476. Passou a ser

compreendida, também, pelo prisma do que se convencionou chamar de filosofia

da multiplicidade477, na análise de Gilles Deleuze e Félix Guattari, ou seja, a

cartografia busca em diferentes territórios as especificidades necessárias para

compor uma área dinâmica.

A cartografia recebe a atribuição de método em Gilles Deleuze e Félix

Guattari478, este que visa acompanhar um processo, e não representar um objeto. A

cartografia atribuída como método, cria seus próprios movimentos, seus próprios

desvios. É um projeto que pede passagem, que fala, que incorpora sentimentos,

que emociona. É um mapa do presente que demarca um conjunto de fragmentos,

em eterno movimento de produção. Como definem Deleuze e Guatarri:

O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar−se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social.479

Descortinando um mundo e seus lugares, interpretando à sua maneira o

espaço, a cartografia pode ser aplicada como método de acompanhamento para

traçar percursos políticos, formas de exercício do poder, constituição de territórios

de controle e dominação, a exemplo da dinâmica de funcionamento do cárcere.

476 FERREIRA, A. B. de H., Dicionário Aurélio Eletrônico. Século XXI. 477 A filosofia da multiplicidade é a perspectiva proposta por Deleuze e Guatari que pretende se desvencilhar de todo dogmatismo científico que busca uma verdade absoluta, uma unidade, uma representação. DELEUZE, G., Conversações, p. 170. 478 O esboço de um método cartográfico deve ser feito levando em conta as já conhecidas perspectivas metodológicas de Foucault – arqueologia do saber, genealogia do poder e genealogia da ética – visto ser a análise cartográfica ao mesmo tempo uma derivação e uma incorporação dessas perspectivas. Deleuze refere-se a Foucault como cartógrafo. DELEUZE, G.; GUATTARI, F., Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, Vol.I, p.22. 479 Ibid.

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Desta forma, pretendemos neste capítulo percorrer uma cartografia da prisão

no Rio de Janeiro, descortinando o mapa do exercício do poder punitivo em suas

entranhas, percebendo as inflexões do grande encarceramento nos

estabelecimentos prisionais.

De início, consideramos imprescindível apresentar um escorço histórico

sobre a prisão no Rio de Janeiro, percorrendo a genealogia do cárcere para

permitir sua melhor compreensão no tempo presente. No segundo item, voltaremos

as lentes às estratégias de controle social implementadas no estado do Rio de Janeiro,

buscando identificar possíveis evidências de que tem servido como laboratório para a

implementação de um tipo ideal de cidade punitiva no contexto neoliberal, dentro do

qual a prisão cumpre papel essencial.

Por fim, no terceiro tópico, nos propomos a fazer a análise das condições

de aprisionamento, sob os impactos do grande encarceramento. A partir de

relatórios de visitas do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura a

29 unidades prisionais, busca-se apontar uma cartografia da prisão no Rio de

Janeiro, analisando indicadores quanto à superlotação, perfil da população privada

de liberdade, assistência e direitos do preso, corpo técnico, regime e atividades,

castigos e violência no cárcere. Deste modo, pretendemos analisar a vigência do

encarceramento massivo neste território, identificando suas especificidades.

4.1 A trajetória histórica da Prisão no Rio De Janeiro: os caminhos da dor

Que vai fazer agora o governo? Vai demitir o administrador da Casa de Detenção? Daqui a pouco será obrigado a demitir o cidadão que o substituir, e as coisas continuarão no mesmo pé – porque a causa dos abusos não reside na incapacidade de um funcionário, mas de um vício essencial do sistema, num defeito orgânico do aparelho penitenciário. E não há de ser a demissão de um administrador que há de consertar o que já nasceu torto e quebrado. (Olavo Bilac)

A trajetória trilhada pelo sistema penitenciário do Estado do Rio de

Janeiro, no que se refere à sua construção e expansão, ainda carece de uma síntese

histórica com amplitude analítica e dados consistentes. Não há uma obra que

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tenha dado conta desta historiografia do cárcere fluminense, a despeito de serem

observadas importantes contribuições recentes480. Além disso, não é nosso

objetivo apresentar uma análise aprofundada sobre este escorço histórico, mas sim

um breve panorama sobre as transformações que perpassam a prisão no Rio de

Janeiro até o contexto contemporâneo.

A genealogia do cárcere no Brasil remete ao Rio de Janeiro, Capital da

Colônia a partir de 1763, permanecendo como sede do poder político durante todo

o Império, perdurando até 1960. O sistema penal colonial foi tributário das

matrizes ibéricas inquisitoriais481, tendo por balizamento as Ordenações da Coroa

Portuguesa, com ênfase nos castigos corporais e na pena capital. As Ordenações

Filipinas publicadas em 1603 - primeiro programa de criminalização primária

mais denso do Brasil Colônia - previam a prisão como pena, servindo esta, tão

somente enquanto medida cautelar até a execução da pena482. Nas raras hipóteses

de cabimento da prisão, como nos casos de dívida, esta não seria superior a quatro

meses483.

No Brasil, a modernidade penal é inaugurada ainda no Império, no início

do século XIX, e tem seu triunfo com a República484. O Código Criminal do

Império de 1830 estabelecia como penas em espécie: o açoite, a pena de morte, as

galés, a multa, o degredo, a perda e suspensão do emprego, bem como a pena de

prisão simples e a pena de prisão com trabalho.

No Rio de Janeiro, até o início do século XVII, a privação da liberdade era

realizada na cadeia pública, localizada em um prédio nas cercanias do Morro do

Castelo, local que também abrigava o Senado da Câmara. O estabelecimento já se

480 Sobre a trajetória histórica dos marcos legais da execução penal, ver ROIG, Rodrigo Duque Estrada Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil. Acerca da história do sistema penitenciário em São Paulo, SALLA, F., As Prisões em São Paulo – 1822-1940. No que tange ao período histórico imperial BARROS DA MOTA, M., Crítica da razão punitiva; PINTO, L. R., Sobre a arte de punir; e NEDER, G., Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro. Há ainda excelentes trabalhos sobre o sistema prisional do Rio de Janeiro na coletânea BRETAS, M. L. (org.), História das Prisões no Brasil vol. I, e Id. História das Prisões no Brasil vol. II. 481 BATISTA, N., As matrizes ibéricas do sistema penal. 482 As Ordenações Afonsinas (1447-1521) não tiveram qualquer influência na vida da colônia. Posteriormente, na vigência das Ordenações Manuelinas (1521-1603) o poder punitivo era exercido de maneira privada e desregulada. De fato, o programa criminalizante mais densamente instituído no contexto colonial advém com as Ordenações Filipinas, publicadas em 1603, mantendo vigência por alguns anos no Império, até a promulgação do Código Criminal de 1830. ZAFFARONI, E. R., e BATISTA, N., Direito Penal Brasileiro, Vol. I, p. 411-422. 483 Ordenações Filipinas – livro V – título CXXXIX, p. 1318. 484 Ver mais em BARROS DA MOTTA, M., Crítica da razão punitiva, p. 4.

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encontrava deteriorado pelo tempo, com estrutura frágil, que permitia constantes

fugas de presos. Em 1639 a Corte autorizou a realização das obras do novo

edifício que posteriormente ficou conhecido como “Cadeia Velha”.

No início século XIX verificavam-se três modalidades distintas de prisão:

as militares (como os Fortes de Santa Cruz e Santa Bárbara, os Navios

Presigangas485 e da Ilha das Cobras); as eclesiásticas (como o Aljube e as

reclusões no interior de mosteiros e conventos); e as civis (como o Calabouço, a

prisão civil da Ilha das Cobras486 e a Prisão Municipal)487. A rede de contenção

penal desta época compreendia ainda outras instituições a ela associadas, como o

Asilo de Mendicidade, o Depósito de Africanos Livres e o Instituto de Menores

Artesãos488.

De 1747 até a chegada da família Real, o principal cárcere destinado aos

presos comuns era a Cadeia Velha - já apresentando à época cenário de

superlotação489 -, situada no então Palácio da Justiça, posteriormente vindo a

abrigar o Paço Imperial490. Nesta prisão estiveram reclusos alguns comprometidos

na Inconfidência Mineira, inclusive o próprio Tiradentes.

Os detentos viviam em condições de extrema precariedade e deviam

custear suas despesas, não recebendo do Estado o mínimo de assistência material.

Em muitos casos esta era prestada pela Santa Casa de Misericórdia. Em relato, no

início do século seguinte, John Luccok, viajante inglês, descreve que o

estabelecimento se assemelha “às nossas jaulas de animais ferozes, e dentro dele

vagueiam os presos de modo muito semelhante a eles e com acomodações não

muito superiores”491.

485 SOARES, C. E. L., Da Presiganga ao Dique: os capoeiras no Arsenal de Marinha. 486 O prédio possuía masmorras construídas pelos padres jesuítas, destinada ao recolhimento de militares, porém, a partir de 1834 passou a receber também presos civis. 487 PINTO, L. R., op. cit., p. 74. KARASH, M. C., A vida dos escravos no rio de janeiro (1808-1850), p. 177. 488BARROS DA MOTTA, M., op. cit., p. 4. 489 Em 1764, Conde Da Cunha, Vice Rei de Portugal, escreve ao Rei de Portugal D. José I : “ A cadeia desta cidade ´tão pequena, que com grande aperto e incômodo dos presos só poderá recolher cento e ciquenta; e porque presente duzentos e ciquenta e três , se faz preciso que ou se acrescente a casa da prisão( o que custará mais de trinta mil cruzados) ou se não prendam os que delinquirem aqui em diante por não haver onde se recolham”. NEIVA, G. A., Os Mutirões Carcerários e a Crise do Sistema Penitenciário. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/artigos/2010/07. Acessado em: 06/06/2015. 490 O prédio da Cadeia Velha foi demolido no início da década de 1920, e em seu sítio histórico foi construído o Palácio Tiradentes, onde atualmente funciona a Assembléia Legislativa. 491 NEIVA, G. A., op. cit.

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Em 1808, o prédio passou a ser destinado à criadagem da rainha, e os

presos foram transferidos para as mais espaçosas instalações do Aljube,

construído em 1732 nas proximidades do Morro da Conceição, até então,

destinando-se exclusivamente às penitências eclesiásticas. Posteriormente veio a

ser denominado de Cadeia da Relação, passando a ser administrada pelo

Ministério da Justiça.

Vale registrar um fato histórico muito elucidativo sobre a crise

(permanente) do sistema penitenciário no Brasil. Em 1828 fora aprovada a Lei de

1º de outubro, que designava uma comissão para fiscalizar as “prisões civis,

militares, e eclesiásticas, dos cárceres dos conventos dos regulares, e de todos os

estabelecimentos públicos de caridade”492. Trata-se do primeiro registro de

controle da execução penal no Brasil. Em sua primeira inspeção, a comissão

constatou no Aljube que “os esconderijos desse edifício, construído para 12 a 20

pessoas, continham 390 presos!”, no que denominaram de “sentina de todos os

vícios”493. A obtenção da obediência era assegurada com o uso reiterado da

violência institucional, sendo as surras desferidas pelos carcereiros denominadas

de “roda de pau”.

Vale mencionar que a Constituição Federal de 1824 preconiza a reforma

do sistema punitivo, prevendo, em seu artigo 179 número XXI, que “as cadeias

fossem seguras, limpas e bem arejadas havendo diversas casas para a separação

492 A primeira comissão foi composta Os arts. 56 e 57 estabeleciam tal diretriz. “Art. 56. Em cada reunião, nomearão uma commissão de cidadãos probos, de cinco pelo menos, a quem encarregarão a visita das prisões civis, militares, e ecclesiasticas, dos carceres dos conventos dos regulares, e de todos os estabelecimentos publicos de caridade para informarem do seu estado, e dos melhoramentos, que precisam. Art. 57. Tomarão por um dos primeiros trabalhos, fazer construir ou concertar as prisões publicas, de maneira, que haja nellas a segurança, e commodidade, que promette a Constituição.” Lei de 1º de outubro de 1828.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-1-10-1828.htm. Acessado em: 06/06/2015. 493 “foi com grande dificuldade que se pôde vencer a repugnância que deve sentir todo coração humano para penetrar nesta sentina de todos os vícios, neste antro infernal onde tudo se acha confundido, o maior facínora com uma simples acusada, o assassino mais inumano com uma miserável vitima da calúnia, ou da mais deplorável das administrações da justiça. O aspecto dos presos nos faz tremer de horror: mal cobertos de trapos imundos, eles nos cercam por todos os lados e clamam contra quem os enviou para semelhante suplício, sem os ter convencido de crime ou delito algum. Os infelizes preferiam antes morrer de uma vez, do que acabar pouco a pouco no meio dos maiores tormentos da fome, do calor e vendo cada dia deteriorar-se mais a sua saúde. Os esconderijos desse edifício, construído para 12 a 20 pessoas, continham 390 presos!” (...) “No interior das salas sente-se um cheiro insuportável de cigarro, suor, latrinas e de toda a sorte de imundícies, que tornam semelhante prisão mais horrível do que o deve ser a habitação dos mais ferozes animais”. (...) “morre nelas grande número de presos abafados, principalmente no verão!” VIEIRA FAZENDA, J., Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro.

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dos réus, conforme a circunstâncias, e natureza dos seus crimes”. Estabelecia

ainda a mitigação das penas cruéis, como o açoite, a tortura, o ferro quente,

mantidas apenas para a punição aos escravos.

A Fortaleza de São Sebastião no Morro do Castelo, comumente chamada

de Calabouço destinava-se à custódia de escravos que seriam submetidos à pena

de açoite. Para Barros da Motta, seu funcionamento “é um índice de que a

pedagogia e a ortopedia disciplinar não ocupam todo o espaço da política penal.

Sua transformação no curso do século XIX é um índice do processo de

implantação da disciplina na própria penitenciária.”494 Demarcava a transição que

progressivamente se dava entre o controle penal da escravidão em âmbito

doméstico (dominium) para um poder punitivo público (imperium)495. O

Calabouço permaneceu com esta função até 1837, quando então os escravos

punidos passam a ser transferidos para a Casa de Correção, ainda em construção

na Rua Nova do Conde496. Os castigos corporais do controle penal da escravidão

permaneceram ali aplicados até a década de 1870497.

Não obstante a existência das primeiras prisões mencionadas, a

inauguração do sistema carcerário brasileiro se dá com a Casa de Correção da

Corte inaugurada em 1834498, e regulamentada em 06 de julho de 1850, através do

Decreto nº 677, destinando-se à execução de pena de prisão com trabalho. Sob o

regime rigoroso do silêncio, foi adotado o sistema de isolamento noturno e de

trabalho em comum diurno. O modelo prisional recebe influências dos sistemas

americanos de Filadélfia e de Auburn. O modelo de prisão com trabalho chega

494 BARROS DA MOTTA, M., op. cit., p. 3. 495 O programa punitivo do mercantilismo colonial, centrado nos corpos dos suspeitos ou condenados – através das penas de degredo, galés, açoites, mutilações e morte – é empreendido, sobretudo, em âmbito privado. Segundo Batista e Zaffaroni, esta continuidade público-privado constitui uma tradição ibérica. Para os autores, nas colônias assiste-se a uma reminiscência feudal que enseja a superposição entre o eixo jurídico privado (dominium) e o público (imperium). Nilo e ZAFFARONI, E. R., BATISTA, N., op. cit., p. 412. NEDER, G.,Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro, p. 159. 496 PINTO, L. R., op. cit., p. 68. 497 BARROS DA MOTTA, M., op. cit., p. 3. Os açoites foram revogados apenas com a lei 3.310 de 15 de outubro de 1886. 498 A Carta Régia de 08 de julho de 1769 determinava a construção de uma "Casa de Correção" para homens e mulheres, porém, apenas em 1834 fora iniciada a obra que seguia a planta de uma casa de correção dos EUA, conforme o modelo panóptico de Bentham.

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ainda a outros estados, como São Paulo, através da Casa de Correção inaugurada

em 1852, e também Ceará499.

Neste período, tanto na província quanto na Corte não havia instituições

prisionais em número suficiente para detenção de uma população carcerária que

aumentava consideravelmente500. O controle social punitivo no Brasil Império

pretendeu instituir um modelo prisional que superasse a barbárie dos cárceres

coloniais501.

Conforme aponta Gizlene Neder, o Rio de Janeiro como capital do

Império, almejava ocupar um status cosmopolita, inspirado nos padrões dos

grandes centros urbanos europeus502, que buscava no que tange ao sistema

penitenciário, pautar-se nos modelos norte-americanos e na reforma humanista

europeia, em consonância com os ditames da Constituição de 1824. De tal modo,

a capital imperial destacava-se como “caixa de ressonância”, servindo como

exemplaridade para as demais unidades prisionais do Império.

Desta maneira, a Casa de Correção da Corte simbolizava para as

autoridades da época um legado de progresso e civilização ao incorporar as

reformas liberais ao sistema penal. A Casa de Correção deveria representar a

substituição das penas corporais pelo sofrimento psíquico do cárcere503.

Entretanto, a contradição do liberalismo jurídico-penal à brasileira fazia ainda

constar em seu cotidiano os castigos físicos, a ausência de oficinas de trabalho e a

permanência da escravidão como sustentáculo do modelo econômico504.

O aparato policial à época voltava-se prioritariamente ao controle penal

das populações marginalizadas urbanas, visando escravos e homens pobres livres 499 PEDRINHA, R. D., Uma Abordagem Tridimensional do Espaço do Cárcere: Da Casa de Correção da Corte ao Regime Disciplinar Diferenciado. 500 HOLLOWAY, T., Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX, p. 159. 501 Segundo o então Ministro da Justiça Bernardo Pereira de Vasconcelos, os cárceres deveriam ser transformados “de escolas do crime em escolas de bons costumes”, com o objetivo de assegurar “a ordem e a moral particular e pública”. BRASIL, Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa na sessão ordinária. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1838, p. 10. 502 O termo “caixa de ressonância” é utilizado pela historiadora Gizlene Neder se referindo ao Rio de Janeiro, pela “importância assumida pela cidade, capital federal, capital cultural, que atua como ‘caixa de ressonância’ para o resto do país”, repercutindo historicamente, socialmente e ideologicamente. NEDER, G., Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil, p. 139. 503 No contexto da Independência e da Constituinte Imperial, os reformadores alardeavam o fim da era dos códigos góticos e das penas atrozes, com a prisão assumindo o status de punição racional e humanizada. BARROS DA MOTTA, M., op. cit., p. 7. 504 NEDER, G., O iluminismo jurídico penal, p. 185. SILVA, M. R. N. da, Um lugar para os deserdados e deserdadas, pp. 21-22.

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que pudessem ser enquadrados na condição de vadiagem, mendicância ou

ajuntamentos505. Os incapacitados para o trabalho eram destinados à Ilha de Santa

Bárbara, e os sadios para a Casa de Correção com a pena de um mês de trabalho,

segundo o Código Criminal de 1830. A pena prisional com trabalho tinha um

duplo objetivo, de um lado buscava a segregação social de indivíduos

indesejáveis, de outro, buscava-se aferir o lucro da extração de sua força de

trabalho506.

A demanda por mais vagas deu ensejo à criação da Casa de Detenção da

Corte, estabelecida provisoriamente nas instalações da Casa de Correção, pelo

decreto nº 1.774, de 2 de julho de 1856, que aprovou seu regulamento. A Casa de

Detenção foi inspirada no modelo de encarceramento celular pensilvânico para

detenções de curto período.

Pouco após sua inauguração, a Casa de Detenção passou a representar

graves problemas por sua instalação num dos raios da Casa de Correção, visto que

a estrutura permitia o contato direto entre os detentos e os condenados a pena de

prisão com trabalho. Além disso, rapidamente atingiu elevados índices de

superlotação. Em 1859, o Chefe de Polícia informou que haviam sido detidos

5.030 indivíduos, sendo liberados e redistribuídos 4.885, restando um contingente

excessivo de 561 detentos em um estabelecimento com capacidade para custodiar

100 pessoas507.

Com o advento da República Velha, novos instrumentos e mecanismos de

controle social precisaram ser desenvolvidos. Em 1890, sob grande influência

positivista, já havia sido editado o primeiro Código Penal republicano. Revelador

o fato de que o republicanismo brasileiro aprovou o código repressivo antes

mesmo da Constituição Federal de 1891.

505 Como destaca Vera Malaguti “o Império contra-ataca então reprimindo, carregando para o futuro as marcas de um sistema penal público/privado, com o poder punitivo incidindo sobre os corpos negros/índios/pobres, com a desqualificação jurídica inventada pela economia escravagista, com a intimidade amedrontada do legado inquisitorial”. BATISTA, V. M., O medo na cidade do Rio de Janeiro, p. 138-139. 506 Os presos condenados à prisão com trabalho eram forçados a quebrar pedras para aterrar mangues, utilizados em diversas obras da cidade, e inclusive na própria Casa de Correção em sua fase inicial. HOLLOWAY, T., Polícia no Rio de Janeiro, pp. 129-131. 507 BRASIL, Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa na 4ª sessão da 10ª legislatura. 1860.

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A despeito de representar um avanço, por ser influenciado pelo sistema

progressista irlandês, a criminologia que o embasava centrava-se na figura do

autor e não do fato criminoso, portanto o novo ordenamento atribuiu maior ênfase

aos “delitos” característicos dos hábitos das classes perigosas como vadiagem,

prostituição, alcoolismo e embriaguez508.

Neste sentido, cabe destacar o controle repressivo contra a prática da capoeira,

a repressão à figura do malandro e às religiões de matriz africana. Medidas de

política criminal que já demonstram a criminalização da pobreza à época, e que

em momento histórico posterior irão voltar-se à figura do traficante, como bem

destaca Gizlene Neder509.

A crise do sistema penitenciário, denunciada por Lemos de Brito nesta

época, apontava como questões graves a violência institucional, a superlotação, as

fugas e os motins510. Com o objetivo de contornar a problemática estrutural, foram

inauguradas unidades prisionais na Ilha Grande, bem distantes da capital. Em

1893 o antigo Lazareto, localizado na Vila do Abraão foi adaptado a um presídio.

Em 1894, foi criada a Colônia Correcional de Dois Rios, com a finalidade de

manter as classes perigosas distantes do convívio social. O estabelecimento

recebia os "ociosos", "imorais" e “reincidentes". Posteriormente, passou a receber

qualquer tipo de preso.

Na década de 1940, foram criadas duas colônias correcionais preconizando

a pena de prisão com trabalho. Assim, surgiram a Colônia Penal Cândido Mendes,

situada em Abraão, vindo a ser desativada e implodida em 1962511, e a

Penitenciária Cândido Mendes, localizada em Dois Rios, implodida em 1994, por

decisão do então governador Leonel Brizola e do Secretário de Justiça, Nilo

Batista512. Nos anos de chumbo, estes estabelecimentos receberam militantes

políticos presos pelo regime militar513.

508 MARANHÃO COSTA, A. T., Entre a lei e a ordem, p. 91. 509 Ver NEDER, G., Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil. 510 Lemos Brito registrou em 1924 a situação em que se encontravam as prisões de algumas capitais brasileiras, apontando-a como "nefasta" e "odiosa". A administração carcerária, com base em suas denúncias, chegou a receber uma série de propostas de reformas sugeridas por vários juristas. As premissas para tais mudanças tinham como ponto de debate a capacidade das prisões e as condições dos cofres públicos. BRITO, L., Os sistemas penitenciários do Brasil. 511 ALMEIDA, G. R. de, O Sistema Prisional no Rio de Janeiro. 512 Segundo aponta Nilo Batista “Esta foi provavelmente a única decisão que tomei, como Secretário de Justiça, tendo absoluta certeza de estar fazendo a coisa certa: implodir uma prisão”.

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Na localidade da Casa de Correção foi erguido, posteriormente, o

Complexo Penitenciário Frei Caneca. O Decreto-Lei nº 3971 de 24 de dezembro

de 1941 transformou-a em Penitenciária Central do Distrito Federal. Em 19 de

julho de 1957, através da Lei 3.212, passou a ser denominada Penitenciária

Professor Lemos Brito, cujo prédio veio a ser demolido em 2006 juntamente com

todo o Complexo da Frei Caneca.

Com relação à Casa de Detenção, através do Decreto-Lei nº 3971, de 24 de

dezembro de 1941, foi transformada em Presídio do Distrito Federal, e,

posteriormente, em Penitenciária Milton Dias Moreira, regulamentada em 04 de

dezembro de 1948, pelo Decreto nº 25.945, tendo sido igualmente demolida.

Após o advento do Código Penal de 1940, o sistema penitenciário passou

por modificações em relação ao seu regulamento, funcionamento e disciplina.

Outro fator determinante foi a mudança da capital federal para Brasília em 1960.

Iniciou-se uma crise, em função da perda de investimentos em infraestrutura e

reformas, em decorrência da estadualização do Sistema Penitenciário, tornando-se

difícil manter o nível existente anos atrás. As transformações também foram

atravessadas pelas contradições entre o escopo apontado pela Lei de Execução

Penal, aprovada em 1984, e a realidade prisional em permanente crise de

legitimidade.

Influenciado pelo aumento da população carcerária, o então governo

estadual prossegue o processo de expansão com a inauguração de novas unidades,

entretanto, a partir deste período, situadas em localização distante do centro da

cidade. A demolição do Complexo Penitenciário Frei Caneca e a desativação dos

antigos cárceres situados em prédios no centro urbano se coadunam com o

processo de desaparecimento das prisões apontado por Pratt.

A prisão, segundo o que representava então na imaginação pública, havia se convertido no fato menos desejável (...). Em geral, em meados do século XX lugares remotos ou socialmente indesejáveis (...) pareciam os únicos disponíveis

BATISTA, Nilo. El filo de la navaja. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epos/v2n1/02.pdf. Acessado em: 07/07/2015. 513 A junção de presos comuns com presos com vinculação a organizações políticas de esquerda deu ensejo a ilações acerca de tal fato ter contribuído de modo decisivo ao surgimento do Comando Vermelho. SCHIMIZU, B., Solidariedade e Gregarismo nas Facções Criminosas: Um Estudo Criminológico à Luz da Psicologia das Massas.

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para a construção de prisões. Como resultado disso, ajudaram mais a camuflar e ocultar a prisão e a acentuar seu caráter obscuro e seu isolamento514.

Esta tendência atinge seu apogeu no Rio de Janeiro com a construção do

Complexo Penitenciário de Bangu. As primeiras unidades prisionais foram

implantadas na localidade em 1966, com a construção dos presídios Esmeraldino

Bandeira e Muniz Sodré.

Entretanto, a inauguração do Complexo de Bangu se dá em 1987 no

Governo de Moreira Franco, com a criação da Penitenciária de segurança máxima

Bangu I – regulamentada pelo Decreto nº 11.539, de 14 de julho de 1988. Sua

localização, nas proximidades do Lixão de Bangu, foi considerada uma opção

“segura” por ser bem distante do centro urbano.

Deveras simbólica a escolha do local a ser construído o principal

complexo prisional do estado. Neste particular, adverte Zygmunt Bauman que “o

principal e talvez o único propósito das prisões não é ser apenas um depósito de

lixo qualquer, mas o depósito final, definitivo. Uma vez rejeitado sempre

rejeitado”515. Acrescenta, acerca da expansão do sistema penitenciário que:

Em suma, as prisões, como tantas outras instituições sociais, passaram a tarefa de reciclagem para o deposito de lixo.(...) Construir novas prisões, aumentar o numero de delitos puníveis com a perda de liberdade, a política de tolerância zero e o estabelecimento de sentenças mais duras e mais longas podem ser medidas mais bem compreendidas como esforços para construir a deficiente e vacilante indústria de remoção do lixo - sobre uma nova base, mais antenada com as novas condições do mundo globalizado.516

O sistema carcerário do Rio de Janeiro, já sob égide do Regulamento

Penitenciário instituído pelo Decreto Nº 8.897 de 31 de março de 1986 passou

sucessivamente a receber novas unidades, tanto no interior do estado, bem como

no Complexo de Bangu. Em 1995, o Alfredo Tranjan; em 1997, o Doutor Serrano

Neves e, em 1999, o Jonas Lopes de Carvalho, conhecidos, respectivamente, por

Bangu 2, 3 e 4. Posteriormente, através da Lei nº 4.955/06, o conjunto de unidades

prisionais de Bangu, foi denominado de Complexo de Gericinó – bairro criado a

partir de um fracionamento de Bangu, com o intuito de “recuperar a autoestima”

514 PRATT, J., Castigo y civilizacion, p. 75-86. 515 BAUMAN. Z., Vidas Desperdiçadas, p. 107. 516 Ibid., 109.

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dos moradores estigmatizados por residir nos arredores do complexo prisional517.

É neste complexo penitenciário que estão confinados dois terços dos presos do

Rio de Janeiro, diante da deterioração das condições estruturais decorrentes do

hiperencarceramento crescente que iremos analisar.

4.2 O Rio de Janeiro como laboratório biopolítico da penalidade neoliberal

Antes de adentrar à análise da atualidade do cárcere, especialmente dos

impactos do grande encarceramento, importa perceber como o Rio de Janeiro tem

assumido um protagonismo na adoção de políticas criminais repressivas, uma

espécie de tipo ideal da penalidade neoliberal no país. Deste modo, assume papel

similar à Nova Iorque quando fora considerada por Wacquant como um

laboratório vivo para a ascensão do Estado penal nos EUA518. Conforme aponta o

autor:

Isto é particularmente verdadeiro no Brasil, que figura entre os mais entusiastas defensores das plataformas anti-crime copiadas da Nova Iorque de Giuliani e que provê, nesse sentido, um laboratório vivo para antecipar o impacto desastroso da “tolerância zero” nos países do Segundo Mundo519.

No mesmo sentido, De Giorgi aponta que os Estados Unidos “constituem

um importante "laboratório social" em cujo interior se experimentam estratégias

políticas e econômicas, que, posteriormente, são sistematicamente exportadas para

o resto do mundo”520.

Neste terreno, Wacquant identifica três grandes manifestações da

penalidade na era neoliberal que caracterizam a onda punitiva que se dissemina

por todo Ocidente, são elas: socialização, medicalização e penalização.

a) socialização: em sua descrição as ações de socialização tratam de “agir

no nível das estruturas e dos mecanismos coletivos que as produzem e

517 Em 22 de novembro de 2004 o então prefeito do Rio de Janeiro César Maia criou por decreto o bairro de Gericinó, desmembrando de Bangu a região onde se localizam o Complexo Penitenciário de Gericinó, o Lixão de Bangu e a Serra de Gericinó. 518 WACQUANT, L., Punir os pobres. 519 Id., Rumo à militarização da marginalização urbana. 520 DE GIORGI, A., Neoliberalismo e controle penal na Europa e nos Estados Unidos: a caminho de uma democracia punitiva?

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reproduzem”. Poderiam ser compreendidas, por exemplo, através da construção

de conjuntos habitacionais populares para abrigar pessoas sem residência fixa,

com o intuito de higienizar a paisagem urbana.

b) medicalização: estratégias de controle social que se caracterizam por

“considerar que a pessoa vive nas ruas porque sofre de dependência ao álcool, é

viciada em drogas ou tem problemas de saúde mental, e, portanto procurar um

remédio médico a um problema”.

c) penalização: “o nômade urbano é etiquetado como delinquente e

tratado enquanto tal; ele deixa de integrar o contingente dos ‘sem teto’ quando é

colocado atrás das grades”.

Todas essas estratégias são "técnicas para invisibilização dos problemas

sociais que o Estado, enquanto alavanca burocrática da vontade coletiva, não pode

ou não se preocupa em tratar de forma profunda"521. Para o autor, a ênfase em

cada uma dessas de estratégias neoliberais (socialização, medicalização e

penalização) varia conforme a formação social e a vontade política de cada país,

estando ancorada numa concepção da vida em comum.

No Rio de Janeiro, é possível identificar que esses três vetores estão

articulados para maximização do controle social. Esta articulação levada a cabo

evidencia claras influências do paradigma tolerância zero nas políticas de

segurança deste estado522. Como aponta Cecília Coimbra, torna-se necessário:

colocar em análise uma certa política de segurança pública que se fortalece na contemporaneidade e se justifica em nome da ‘guerra contra os perigosos’. Política esta que, com o apoio dos grandes meios de comunicação, prega a Tolerância Zero, produzindo a fascistização do cotidiano523.

É possível identificar que este repressivismo se acentua com a realização

de grandes eventos, como os Jogos Pan-americanos em 2007, a Conferência

Rio+20 em 2012, a Copa das Confederações da Federação Internacional de

521 WACQUANT, L., Punir os pobres, p.21. 522 “As agências midiáticas, a partir de 1998, passam a associar Nova Iorque não mais à imagem de paraíso do crime, mas como modelo de cidade segura. A partir de então, a ideologia “tolerância zero” passou a ser enaltecida como a solução final do problema da desordem urbana e da criminalidade, como modelo de administração a ser exportado, chegando a diversos países da Europa e da América Latina, dentre eles o Brasil”. SOUZA, T. L. S. e, Constituição, Segurança Pública e Estado de Exceção Permanente: a biopolítica dos autos de resistência, p. 107. 523 COIMBRA, C. Memória e Reparação.

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Futebol (FIFA) em junho de 2013, a Jornada Mundial da Juventude da Igreja

Católica em julho de 2013, a Copa do Mundo da FIFA em 2014. Como aponta o

Relatório Megaeventos, Repressão e Privação da Liberdade, elaborado pelo

Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT/RJ):

Temos observado, nos últimos anos, durante os grandes eventos nos quais o Rio de Janeiro foi anfitrião, uma tendência ao recrudescimento das políticas repressivas do Estado, como encarceramento em massa, remoções forçadas, prisões arbitrárias e recolhimento de pessoas em situação de rua, tanto durante a realização destes eventos quanto no contexto de preparação dos mesmos”524.

No que se refere às políticas de socialização, a “política habitacional”

implementada na cidade vem promovendo remoções forçadas de comunidades

inteiras e transferindo-as para ares distantes e de difícil acesso da cidade. Estima-

se que três mil famílias tenham sido removidas e outras oito mil estão ameaçadas

de remoção,525 para realização de obras do Plano de Aceleração do Crescimento

(PAC), bem como para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

Este higienismo social pode ser percebido ainda na crescente construção

de muros e “ecolimites” em favelas cariocas, delimitando o controle geográfico

destes territórios da cidade. Pode ser identificado também em políticas repressivas

de inspiração ‘lei e ordem’, dentre elas o “Lapa Legal” e o “Copa Bacana”526,

preconizando o controle da circulação de pessoas pobres nas regiões mais

turísticas da cidade (Zona Sul e Lapa), bem como através do Choque de Ordem527,

que preconiza a repressão seletiva sobre trabalhadores informais que atuam. Trata-

se da materialização das teorias ecológicas da Escola de Chicago528.

524 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Megaeventos, Repressão e Privação da Liberdade. 525 “A justificativa, na maior parte das vezes, é a localização destas comunidades em áreas de interesse da prefeitura e do governo do estado para o projeto da Copa e das Olimpíadas, como as destinadas à construção do estacionamento para o estádio do Maracanã, às obras viárias com faixas segregadas para o BRT, e ao Porto Maravilha no centro da cidade, entre outras.“ Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro. 526 Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/seop/exibeconteudo?article-id=1740822. Acessado em: 05/07/2015. 527 A desordem urbana é o grande catalisador da sensação de insegurança pública e a geradora das condições propiciadoras à prática de crimes, de forma geral. Como uma coisa leva a outra, essas situações banem as pessoas e os bons princípios das ruas, contribuindo para a degeneração, desocupação desses logradouros e a redução das atividades econômicas. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article-id=87137. Acessado em: 05/07/2015. 528 ANITUA, G. I., História dos pensamentos criminológicos, pp. 421-432.

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Em relação à crescente tendência de medicalização da pobreza, no Rio de

Janeiro a partir de 2011, a Secretaria Municipal de Assistência Social passou a

implementar a política de recolhimento e abrigamento/internação compulsórios529

para crianças e adolescentes em situação de rua supostamente usuários de drogas.

Como aponta Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e da Cidadania da

ALERJ:

a atual política governamental fortalece a lógica institucionalizante, excludente, com caráter disciplinar, manicomial e de higienização social, e, portanto, inaceitável. (...) Em um Estado Democrático de Direito os cidadãos devem ser compreendidos como sujeitos das políticas públicas, jamais como objetos das mesmas; o Estado não pode em nenhuma hipótese instrumentalizar a pessoa humana530. Ademais, disseminam-se as chamadas comunidades terapêuticas, entidades

privadas e/ou filantrópicas, em sua maioria religiosas, que pressupõem a “cura”

dos problemas relativos ao uso de drogas, via de regra, com uma abordagem

religiosa531. Constituem-se assim, novas formas de institucionalização e

manicomialização, na contramão das diretrizes da reforma psiquiátrica.

Por fim, no que se refere à penalização, verifica-se o recrudescimento das

políticas criminais. Além da manutenção da estratosférica letalidade policial532, a

política de segurança recebe como inovação a implementação das Unidades de

Polícia Pacificadora, a partir de 2008. Trata-se da policização do cotidiano,

através do controle militar dos territórios urbanos da pobreza533, associado aos

529 Em 27 de maio de 2011, a Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) da Prefeitura do Rio de Janeiro publicou o intitulado “Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social”, no âmbito das ações da Proteção Social Especial de Média Complexidade, através da Resolução SMAS n° 20. O art. 5º nítida do uso de drogas, devem ser "mantido(s) abrigado(s) em serviço especializado de forma compulsória". O parágrafo 4o do mesmo artigo complementa que crianças e adolescentes “independente de estarem ou não sobre a influência do uso de drogas, também deverão ser mantidos abrigados/acolhidos de forma compulsória com o objetivo de garantir sua integridade física”. 530 Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e da Cidadania da ALERJ, Relatório de Visitas aos “Abrigos Especializados” para Crianças e Adolescentes. 531 “As visitas realizadas nas comunidades terapêuticas (...) reafirmam, assim, que a “humanização” não é medida suficiente quando se trata de espaços asilares. Mesmo quando as condições físicas são relativa e aparentemente adequadas, a violência invisível e mortificante das instituições totais está presente”. Mecanismo e Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório de Inspeção em Comunidades Terapêuticas Financiadas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. 532 Anistia internacional, Relatório a situação dos direitos humanos no mundo 2014-2015. Ver ainda: ZACCONE, O., Indignos de vida. 533 BATISTA, V. M., O alemão é mais complexo.

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interesses dos fluxos de capital na cidade. Neste sentido, o MEPCT/RJ salienta

que:

observamos o recrudescimento da repressão em toda a cidade e a militarização de determinados espaços urbanos que evidenciam claros interesses estratégicos de setores econômicos, promovendo uma valorização imobiliária nunca antes vista nestes espaços e em seu entorno, bem como promovendo o controle social militarizado das populações subalternizadas534. O repressivismo também se expressa na utilização das Forças Armadas para

fins de policiamento535, especialmente no Complexo do Alemão e da Maré.

Também cabe salientar as inúmeras manifestações de criminalização de

movimentos grevistas, como professores, garis e bombeiros,536, o expressivo

aumento das medidas de internação de adolescentes acusados de atos

infracionais537 e a brutal repressão policial às ‘Jornadas de Junho de 2013’538.

Entretanto, o desaguadouro maior deste caldeirão punitivo é o cárcere. Segundo

informa o MEPCT/RJ:

podemos afirmar haver indícios consistentes de que o contexto de preparação de megaeventos traduz-se, também, em impactos perniciosos aos espaços de privação de liberdade, agravando ainda mais as condições de superlotação e de violações de direitos nestes espaços539.

Em grande medida, estas políticas repressivas tem se notabilizado como um

modelo a ser seguido por outros estados da Federação540. De maneira que se pode

perceber no Rio de Janeiro o status de laboratório biopolítico da penalidade

neoliberal, instituindo e aprimorando estratégias de controle social punitivo

institucionalizado. Trata-se da inclusão da vida nos cálculos meticulosos do poder,

534 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Repressão, Megaeventos e Privação de Liberdade. 535 Ibid., p. 67. 536 Disponível: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/06/bombeiros-do-rio-podem-pegar-ate-12-anos-de-prisao-diz-comandante.html. Acessado em: 07/07/2015. 537 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2014. 538 Sobre as Jornadas de Junho ver: HARVEY, D., Cidades Rebeldes. Especialmente sobre a repressão policial aos manifestantes sociais, ver: Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Repressão, Megaeventos e Privação de Liberdade. 539 Ibid. 540 Os governos estaduais do Espírito Santo e Paraná, buscam implementar protótipos de UPPs, partindo da experiência do Rio de Janeiro como modelo a ser seguido. Disponível em: http://www.folhavitoria.com.br/politica/noticia/2014/11/governo-de-hartung-vai-criar-upp-em-comunidades-carentes-do-estado.html. Acessado em: 05/07/2015. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/parana-se-inspira-no-rio-cria-versao-de-upp-4120654. Acessado em: 07/07/2015.

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ampliando as fronteiras do confinamento para novas instituições totais, bem como

potencializando o papel da prisão como instrumento de contenção punitiva

segmentos sociais considerados indesejados. Neste sentido, convém enveredar por

entre as obscuras galerias do arquipélago prisional do Rio de Janeiro para

compreender o real impacto da Era do Grande Encarceramento.

4.3 Cartografia do Sistema Penitenciário fluminense: abrindo a caixa de Pandora Dentre as mais notáveis passagens da mitologia da Grécia clássica,

encontra-se o mito de Pandora. Nesta história, o titã Epimeteu (que significa

aquele que vê depois), juntamente com seu irmão Prometeu (o previdente) foi

incumbido por Zeus de criar o homem. Zeus, então cria Pandora (que significa

todos os dons), a primeira mulher, e a envia a Epimeteu que a recebe como

consorte, apesar de ser advertido por seu irmão a não aceitá-la. Pandora traz

consigo do Olimpo um presente de núpcias para Epimeteu: uma arca de ouro

hermeticamente fechada.

Segundo Hesíodo541, o poeta grego camponês, Pandora teria aberto a caixa

levada pela curiosidade, apesar da advertência proibitiva de Zeus. Assim, da caixa

escaparam a velhice, a loucura, a doença, a inveja, o vício, a fome, a mentira, o

ódio, a violência, o crime, e todos os outros males que se espalharam pelo mundo

e tornaram miserável a existência dos homens a partir de então. Epimeteu tentou

fechá-la antes, mas só restou no fundo da caixa, a Esperança.

Deste modo, podemos invocar o mito de Pandora como metáfora para

compreender a realidade da prisão. Epimeteu, o incauto, pode ser interpretado

como o homem moderno, movido pelos ideais iluministas de progresso e

civilização. Entretanto, por trás de seu suposto propósito racional e civilizatório,

se oculta a barbárie, representada pelas mazelas que emergem do modelo punitivo

prisional, como na caixa de Pandora. Assim, como na arca mítica, na prisão

encontram-se todos os males, decorrentes, sobretudo, das condições desumanas e

degradantes de encarceramento.

541 HESÍODO. Teogonia.

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Nesta perspectiva, no presente tópico, buscaremos realizar uma cartografia

do cárcere, percorrendo as entranhas do sistema penitenciário do Rio de Janeiro,

analisando os índices de superlotação, o perfil da população privada de liberdade,

bem como as demais formas de violação de direitos na execução penal.

4.3.1 Superlotação Prisional

Uma vez verificado o brutal incremento do encarceramento no Brasil, cabe

identificar sua manifestação no Rio de Janeiro, a fim de aferir se de fato pode ser

interpretado como um laboratório da penalidade neoliberal. Abaixo podem ser

observados dados da população prisional nacional e estadual.

Tabela 3: Dados sobre População Prisional (Rio de Janeiro e Brasil – 2014)

Brasil Rio de Janeiro População prisional 607.731 39.832 Vagas 376.669 28.230 Déficit de vagas 231.062 11.602 Taxa de ocupação 161% 139% Taxa de aprisionamento 299,7 238,9 Fonte: DEPEN e SEAP/RJ

O Rio de Janeiro figura como o terceiro estado do país com maior

população prisional, um total de 39.832. Em primeiro lugar está o São Paulo,

estado com 219.053 pessoas privadas de liberdade (cerca de 36% do país) e em

segundo Minas Gerais, com 61.286 presos. O estado do Rio de Janeiro apresenta

uma taxa de aprisionamento de 238,9 presos por 100 mil habitantes, abaixo da

média nacional que figura em 299,7. A taxa de ocupação do sistema penitenciário

também é ligeiramente menor do que a nacional, com 139%. Das 35 unidades

prisionais analisadas nesta pesquisa, 27 apresentavam cenário de superpopulação,

ou seja, 77%. Convém comparar o crescimento do número de pessoas privadas de

liberdade do estado do Rio de Janeiro com o aumento em todo país.

Tabela 4: Crescimento da População Prisional – Rio de Janeiro e Brasil (2004-2014)

Rio de Janeiro Brasil Ano População

Prisional Crescimento Anual

População Prisional

Crescimento Anual

2004 19.163 - 336.775 -

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2005 21.681 13,14% 361.400 7,3% 2006 21.702 1% 401.200 11% 2007 21.436 -1,24% 422.400 5,2% 2008 21.861 2% 429.400 1,6% 2009 23.333 6,7% 473.600 10,3% 2010 25.517 9,3% 496.300 4,8% 2011 28.895 13,2% 514.600 3,7% 2012 31.650 9,5% 549.800 6,8% 2013 33.748 6,6% 581.500 5,76% 2014 39.832 18% 607.700 4,5% Fonte: DEPEN e SEAP/RJ

Na tabela acima, podemos comparar o crescimento da população prisional

no Brasil e no Rio de Janeiro, na série histórica entre 2004 e 2014, tendo a

primeira apresentado um aumento de 80,4% e, a segunda, um aumento de 108%

no período. O efetivo carcerário estadual apresenta grande oscilação, mas revela

um crescimento expressivo a partir de 2010. Caso considere-se a comparação

entre 2010 e 2014, verifica-se que no período a população prisional brasileira

cresceu 22,44%, saltando de 496.300 para 607.700. Por sua vez, o sistema

penitenciário do Rio de Janeiro sai de um patamar de 25.517 internos para um

total de 39.832, ou seja, um acréscimo de 56%. Neste sentido, constata-se que no

período o Rio de Janeiro apresentou um aumento equivalente a mais do que o

dobro do apresentado no âmbito nacional. Ressaltando mais uma vez que o Brasil

só fica atrás da Indonésia no que se refere ao aumento do efetivo prisional no

período recente. É possível, portanto, afirmar que o Rio de Janeiro é uma das

localidades do mundo com o crescimento mais expressivo em número de presos

nos últimos anos.

Segundo aponta o relatório “Megaeventos, Repressão e Privação da

Liberdade no Rio de Janeiro” elaborado pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e

Combate à Tortura do Rio de Janeiro:

No entendimento do MEPCT/RJ, apesar de não haver elementos comprobatórios mais objetivos, capazes de indicar uma relação direta de causa e efeito, há consideráveis indícios de que tal fato pode guardar relações com a preparação para os megaeventos realizados no período em análise542.

542 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Repressão, Megaeventos e Privação de Liberdade, p. 40.

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Portanto, pode-se inferir que alguns fatores relacionados à política criminal

lei e ordem implementada nos últimos anos no Rio de Janeiro, como as Unidades

de Polícia Pacificadora, o Choque de Ordem e a contumaz política de guerra às

drogas, relacionadas também à preparação para os Megaeventos como a Copa do

Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, tem manifestado reflexos concretos no

hiperencarceramento em curso, reafirmando o Rio de Janeiro como um laboratório

vivo da penalidade neoliberal, um verdadeiro continuum favela-prisão.

Figura 6: População Prisional - Rio de Janeiro-Nova Iorque (2005-2014)

Fonte: ICPS e SEAP/RJ

Para ilustrar o fenômeno do grande encarceramento que se manifesta no

Rio de Janeiro, convém comparar a evolução da população prisional com a cidade

de Nova Iorque, considerada por Loic Wacquant, como o laboratório do Estado

penal nos EUA. A série histórica de 2005 a 2014 revela que a partir de 2006, com

63.304 presos, o contingente carcerário nova-iorquino vem reduzindo, até chegar

a 52.541, configurando uma queda de 16,2%, ao passo que no caso fluminense, o

efetivo prisional salta de 21.681, para alcançar 39.832 encarcerados, um aumento

de 84% no período.

Fica evidente que mesmo no vultuoso território da indústria do controle,

como os EUA, a imposição da pena privativa de liberdade vem reduzindo

progressivamente. Na contramão desta tendência, o grande encarceramento no

Brasil, e em especial no Rio de Janeiro, parece viver seu apogeu, a despeito do

fato de as condições de encarceramento serem a cada ano mais desumanas e

degradantes. Em recente declaração, o Ministro da Justiça, José Eduardo aponta

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que “Temos um sistema prisional medieval que não é só violador de direitos humanos,

ele não possibilita aquilo que é mais importante em uma sanção penal que é a

reinserção social"543.

Nesta irracional escalada punitiva, a população prisional do Rio de Janeiro em

18 de maio de 2015 já apresenta um exército de 42.959 presos544, representando um

aumento de 8% em relação a dezembro de 2014, agravando ainda mais o quadro de

superlotação. Como apontam Salla e Ballestreros:

O crescimento da população encarcerada afeta de modo diverso o sistema de justiça criminal dos países e as condições de suas prisões. Os fatores que interferem de forma mais relevante são: a disponibilidade de recursos materiais e financeiros; a consistência dos padrões democráticos de organização política e social do país, a presença ou não de uma sólida cultura de respeito aos direitos humanos. Assim, os principais países desenvolvidos do Ocidente apresentaram alguma deterioração nas condições de encarceramento nas duas últimas décadas. No entanto, sua capacidade de mobilização de recursos econômicos para enfrentar os novos desafios, sua solidez na organização democrática impediram que problemas graves de condições de habitabilidade e de respeito aos direitos humanos se aprofundassem com o aumento da população encarcerada. Não foi a mesma situação vivida pelos países em desenvolvimento e de organização democrática frágil (...). Além de maior escassez de recursos financeiros para destinar ao sistema prisional, a democracia ainda é um valor em fase consolidação545.

Esta proficiente hiperinflação carcerária reflete-se nas mazelas do sistema

penitenciário. Segundo Lola Aniyar de Castro, a realidade da América Latina se

caracteriza por elevados índices de violência carcerária, no que denomina de

“barril de pólvora sempre prestes a explodir”546. Delineia-se um dantesco cenário

de barbárie no qual é rotineira a realidade de arbítrio, superlotação, tortura,

corrupção, condições degradantes, insalubridade, estigmatização, proliferação de

doenças, ruptura de laços afetivos, familiares e sexuais.

O MEPCT/RJ identifica os perversos efeitos da superlotação no sistema

prisional fluminense:

543 Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2012/11/ministro-da-justica-diz-que-preferia-morrer-ficar-preso-por-anos-no-pais.html. Acessado em: 07/07/2015. 544 Dados disponibilizados pela SEAP. 545 SALLA, F. e BALLESTEROS, P. R., Democracia, direitos humanos e condições das prisões na América do Sul, p. 4-5. 546 CASTRO, L. A., Matar com a prisão, o paraíso legal e o inferno carcerário: os estabelecimentos “concordes, seguros e capazes”.

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A realidade perene de superlotação conduz a violação de inúmeros direitos reconhecidos aos presos. Nas unidades superlotadas é comum o cenário de precariedade material, grande acúmulo de lixo, péssimas condições de aeração, fornecimento inadequado de roupas de cama, colchões e insumos de higiene pessoal, presos dormindo no chão, aviltante revezamento para concessão do banho de sol, tempo reduzido para visitas e escassez de vagas para atividades laborativas e educacionais quando existentes. Tal panorama encontra-se em total desconformidade com parâmetros internacionais(...)547.

Neste sentido, o grande encarceramento produz efeitos ainda mais

aviltantes na periferia do capitalismo. Nos países latino-americanos a superlotação

adiciona um componente agravante na dinâmica de funcionamento das prisões,

diante da falência estrutural do sistema penitenciário. Cabe, portanto, verificar os

impactos destas mazelas no arquipélago carcerário do Rio de Janeiro.

4.3.2 O perfil da população privada de liberdade

4.3.2.1 A Seletividade Punitiva

Com relação ao perfil da população encarcerada no Rio de Janeiro, foi

possível obter informações junto à Secretaria de Estado de Administração

Penitenciária (SEAP) entre o recorte temporal de 2009 a 2014, no que se refere

aos indicadores de: gênero; cor, raça ou etnia; faixa etária; escolaridade. Neste

item também analisaremos o contingente carcerário no que se refere ao tipo penal

praticado e reincidência criminal.

a) Gênero

Em relação à distribuição da população prisional por gênero, constata-se a

ampla predominância de homens compondo o perfil dos encarcerados no período

entre 2009 a 2014. A relação de mulheres mantem-se relativamente estável,

oscilando entre 4,8% e 6,2%. De modo que, conclui-se que a população prisional

feminina tem crescido em ritmo similar à população prisional masculina,

conforme indica o gráfico abaixo.

547 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012.

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Figura 7: Total de Presos por Gênero no Rio de Janeiro (2009-2014)

Fonte: SEAP/RJ

Os dados mais recentes sobre o assunto, referente à população prisional

nacional são de 2012, nos quais se verifica um percentual de mulheres presas na

ordem de 6,17%, correspondendo a um total de 31.824 mulheres, ao passo havia

483.658 homens. Neste sentido, no Rio de Janeiro, o percentual de mulheres

presas é ligeiramente mais baixo do que a média nacional.

 b) Cor, Raça ou Etnia548

Acerca da identificação de internos por cor, raça ou etnia, segue-se o

critério da auto declaração tanto em levantamento feitos pelo Departamento

Penitenciário Nacional (DEPEN), como pela SEAP.

Tabela 5: População Prisional do Rio de Janeiro por Cor, Raça ou Etnia (2009-2014)

Fonte: SEAP-RJ

A tabela acima evidencia que o elevado percentual de pessoas negras

encarceradas no Rio de Janeiro, um contingente superior a 2/3 do total. Ademais,

548 Os dados coletados junto à SEAP e ao InfoPen foram classificados segundo a tipologia negros para a somatória dos indivíduos identificados como pretos e pardos, conforme o padrão censitário desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desta forma, as tabelas e os gráficos deste trabalho acompanham este padrão.

Ano Branca Negra Outros 2009 30,3% 69,64% 2,16% 2010 29,6% 70,34% 2,54% 2011 28,6% 71,37% 2,21% 2012 27% 72,97 5,26% 2013 27,26% 72,7% 1,3% 2014 26,6% 72,49 0,88%

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este indicador vem crescendo progressivamente desde 2009, com 69,64%, até

2014, com o índice de 72,49%.

Figura 8: Comparativo de população presa e livre por cor, raça e etnia 2014

Fonte: DEPEN, SEAP/RJ e IBGE

Ao analisar os gráficos acima, verifica-se que a porcentagem de pessoas

negras no sistema prisional nacional é de 67%, ao passo que na população

brasileira no mundo livre, a proporção é significativamente menor (51%). Essa

tendência é observada tanto na população prisional masculina quanto na feminina.

Chama ainda a atenção o fato de que no Rio de Janeiro a sobrerrepresentação dos

negros na população prisional é mais acentuada, chegando a 72% dos presos. Tal

índice é ainda mais emblemático levando-se em conta que na região Sudeste os

negros representam apenas 42% da população total549.

c) Faixa Etária

Tabela 6: População Prisional do Rio de Janeiro por Faixa Etária (2009-2014)

Ano Não Informado

Entre 18 e 24

Entre 25 e 29

Entre 30 e 34

Entre 35 e 45

Entre 45 e 60

Acima de 60

2009 0,48% 30,2% 24,8% 17,3% 18,73% 7,36% 1,12%

549 DEPEN. Mapa do Encarceramento (2005-2012).

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2010 0,47% 30,45% 23,9% 17,9% 18,6% 7,55% 1,06% 2011 0,4% 30,7% 23,32% 18,48% 18,62% 7,47% 0,96% 2012 0,35% 32,18% 22,28% 18,13% 18,94% 7,06% 1,03% 2013 0,24% 34,26% 21,87% 17,14% 18,67% 6,74% 1,07% 2014 0,16% 35,85% 21,96% 16,03% 18,3% 6,6% 1,01% Fonte: SEAP-RJ

Na série histórica entre 2009 e 2014, foi possível perceber que a população

prisional do Rio de Janeiro vem sistematicamente aumentando em relação ao

número de internos na faixa etária entre 18 e 24 anos, enquanto nas demais faixas

há uma ligeira queda percentual, apesar do crescimento em números absolutos em

todas as variáveis.

Figura 9: Total de presos por faixa etária - Rio de Janeiro e Brasil (2014)

Fonte: SEAP-RJ.

O gráfico acima revela que a população prisional brasileira em 2014 era

composta por 56% de jovens - idade entre 18 e 29 anos, segundo o Estatuto da

Juventude (Lei nº 12.852/2013). Segundo dados do IBGE, esta faixa etária

compõe apenas 21,5% da população livre no do país550. No mesmo ano, o número

de jovens presos no Rio de Janeiro equivale a 58% do total. Ou seja, percebe-se

que a população prisional fluminense é mais jovem do que a média nacional, e

vem acentuando progressivamente sua juventude a cada ano.

Outro indicador relevante, associado à juventude, é o estado civil. Segundo

dados do DEPEN, em 2012 a população prisional brasileira era composta por 57%

550 IBGE, Censo 2010.

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de pessoas solteiras551. Essa proporção é maior do que a verificada na população

brasileira que, de acordo com o IBGE, é de 34,8%41.

d) Escolaridade

A tabela abaixo compreende a série histórica entre 2009 e 2014, sobre o

nível de escolaridade da população prisional do Rio de Janeiro.

Tabela 7: População Prisional do Rio de Janeiro por Nível de Escolaridade (2009-2014)

Ano Não Infor-mado

Anal- fabeto

Alfabe-tizado

Fundamental Incompleto

Fundamental Completo

Médio Incompleto

Médio Completo

Superior Incompleto

Superior Completo

2009 15,88% 3,27% 3,18% 57,82% 10,64% 3,6% 4,44% 0,6% 0,52% 2010 16,23% 3,03% 3,53% 56,53% 10,93% 3,9% 4,6% 0,62% 0,6% 2011 19,64% 2,5% 4,41% 51,9% 11,36% 4,2% 4,82% 0,61% 0,52%

2012 24,2% 2,11% 4,1% 49,42% 10,5% 4,27% 4,77% 0,5% 0,45% 2013 21,19% 2% 4,15% 51,8% 10,52% 4,15% 5,2% 0,5% 0,45% 2014 22,22% 1,65% 3,56% 51,61% 9,83% 4,76% 5,36% 0,51% 0,49%

Fonte: SEAP/RJ

Ainda que haja um considerável número de presos cuja escolaridade não

é informada, verifica-se que em todos os anos analisados a maioria dos internos

sequer apresentava o ensino fundamental completo. Entretanto, pode-se observar

uma ligeira elevação no nível de escolaridade. Em 2009, 64,27% dos presos tinha

escolaridade até o ensino fundamental incompleto (considerando analfabetos,

alfabetizados sem ensino regular e fundamental incompleto). No ano de 2014,

esse indicador cai para 56,82%. Há que se destacar que o percentual de

escolaridade não informada nesse período aumentou de 15,88% a 22,2%552. No

intervalo analisado, verifica-se ainda um número muito restrito de internos com

ensino superior.

551 DEPEN, Mapa do Encarceramento (2005-2012). 552 Tal fato permite que o crescimento acelerado do número de presos prejudica a capacidade da administração penitenciária obter dados com celeridade e confiabilidade.

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Figura 10: Total de presos por nível de escolaridade - Rio de Janeiro e Brasil (2014)

  Fonte: DEPEN e SEAP/RJ

 Os gráficos acima permitem uma comparação do nível de escolaridade da

população prisional no país e no Rio de Janeiro. A comparação revela que, no ano

de 2014, a população prisional brasileira era composta por 68% de presos com

escolaridade até o ensino fundamental incompleto. Ao passo que, no mesmo ano,

o sistema prisional do Rio de Janeiro apresentava tal indicador em cerca de 57%,

portanto, ainda que expresse um baixíssimo nível de escolaridade, trata-se de uma

marca 11% melhor do que a verificada na média do país.

e) Tipo penal

Com relação ao tipo penal praticado, podemos encontrar dados sobre esta

variável acerca da população prisional nacional de junho de 2014. Não havia

dados específicos sobre o estado do Rio de Janeiro553.

553 As informações do Rio de Janeiro e de Tocantins foram desconsideradas, pois ambos os estados forneceram uma quantidade de informações sobre a questão muito inferior ao número de pessoas a que supostamente se referiam essas informações. Ministério da Justiça/DEPEN, Relatório de Informações Penitenciárias 2014.

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Figura 11: Total de Presos por Tipo Penal (Brasil - 2014)

Fonte: DEPEN

O gráfico acima demonstra que ao todo 62 % (376.340 presos)

praticaram os delitos de tráfico de entorpecentes (27 %) ou crimes contra o

patrimônio (35% de presos por roubo, furto e receptação), o que contraria a

percepção do senso comum de que o cárcere é composto majoritariamente

condenados por crimes violentos. Esta análise reforça a percepção de seletividade

do sistema penal, evidenciando que crimes contra a propriedade geram

encarceramento muito superior ao de crimes contra a vida.

f) Reincidência

No que se refere aos índices de reincidência, tanto o DEPEN como a

SEAP não disponibilizam esta informação acerca da população prisional. Trata-se

de uma variável questionável, uma vez que não há um método seguro para sua

aferição, tampouco há consenso entre os estudiosos sobre a sua definição.

Segundo dados do programa Mutirão Carcerário, desenvolvido pelo

Conselho Nacional de Justiça aponta-se uma estimativa de presos reincidentes no

Brasil entre 60% e 70%554, índice que revela o imenso potencial criminógeno do

cárcere.

O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA)555 realizou recente

pesquisa sobre o tema, a partir de amostra que identificou a reincidência criminal

pregressa em de 24,4%, estimada de acordo com os registros que constavam nos

554 O programa “Começar de Novo”, do CNJ tem como proposta reduzir a taxa de reincidência para 20% a partir dos cursos profissionalizantes e oportunidades de trabalho. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=116383. Acessado em: 07/07/2015. 555 A pesquisa trabalhou com uma análise amostral de 817 processos de indivíduos que acabaram de cumprir algum tipo de pena no ano de 2006, incluindo os estados de Alagoas, Minas Gerais, Pernambuco, Paraná e Rio de Janeiro. IPEA. Reincidência Criminal no Brasil.

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autos pesquisados. O estudo utilizou como marco conceitual a definição

estritamente legal de reincidência556, ou seja, na hipótese específica de em que o

condenado por sentença criminal transitada em julgado é novamente condenado

por outro delito num intervalo de até cinco anos após o cumprimento da primeira

pena. Deste modo, “não se trata de reincidência carcerária (isto é, pessoas que vão

mais de uma vez para prisão), nem de “passagens” pelo sistema de justiça

criminal ou da mera reiteração em atos criminosos, critérios que levariam ao

estabelecimento de uma taxa superior à encontrada na pesquisa”. Ademais, há que

se levantar em conta a reduzida amostragem da pesquisa.

Estes indicadores revelam a profunda seletiva da criminalização

secundária, incidindo o encarceramento, na esmagadora maioria dos casos, sobre

pobres, negros, moradores de periferias urbanas e de baixíssima escolaridade.

4.3.2.2 A banalização da prisão cautelar

No intervalo entre 2009 e 2014, pode-se observar o elevado número de

pessoas privadas de liberdade sem condenação criminal definitiva no Rio de

Janeiro. Nota-se que este indicador vem apresentando crescimento nos últimos

anos, saltando de 32,9% em 2009, para 41,8% em 2014. 

Tabela 8: Total de Presos Provisórios no Rio de Janeiro (2009-2014)

Ano Presos Condenados Presos Provisórios Medidas de Segurança 2009 15579 66,8% 7678 32,9% 76 0,3% 2010 17453 68,4% 7911 31% 153 0,6% 2011 18467 63,7% 10331 36% 97 0,3% 2012 19019 60,1% 12579 39,7% 52 0,16% 2013 19445 57,6% 14218 42,1% 85 0,25% 2014 23089 59,9% 16660 41,8% 83 0,2%

Fonte: SEAP-RJ

Em levantamento feito pelo DEPEN, o número de presos provisórios no

país chegou a 220.190 em 2014, equivalendo a cerca de 41% do total. No mesmo 556 Art. 63 - Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior. Art. 64 - Para efeito de reincidência:I - não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação;

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relatório, a população de presos provisórios do Rio de Janeiro foi apontada na

marca de 46% (diferentemente do índice de 41,8% obtido por dados da SEAP),

cinco pontos percentuais acima da média nacional.

Figura 12: Presos Provisórios - Rio de Janeiro e Brasil (2004-2014)

Fonte: SEAP-RJ e DEPEN

Nesta análise comparativa, pode-se perceber que a população de presos no

Brasil saltou de 18% do total em 1990, para 26% em 2004, chegando a 41% em

2014. No Rio de Janeiro, a variação foi de 27% em 2004, para 46% em 2014,

reafirmando a tendência de crescimento da prisão cautelar acima da média

praticada no país.

Causa grande preocupação o elevado número de presos sem condenação, o

que revela um processo de banalização da prisão cautelar. A Comissão

Interamericana de Direito Humanos (CIDH) da Organização dos Estados

Americanos (OEA) divulgou em setembro de 2014, o Relatório sobre o uso das

27%

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prisões preventivas nas Américas, no qual critica a utilização excessiva da prisão

provisória no Brasil e demais países latino-americanos557.

No que se refere ao tratamento destinado aos presos provisórios, o

Relatório Anual do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura de

2012 aponta:

Os presos provisórios estão ainda mais expostos à tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, uma vez que em muitos casos são submetidos a situações de violência no ato da prisão ou na busca de obtenção da confissão, ainda incomunicáveis a sua família e defensor legal. A superlotação e as condições totalmente anti-higiênicas a que estão expostos os coloca em contato com doenças infecto contagiosas. Em geral estes presos não têm contato com suas famílias até chegarem ao Sistema Prisional, fato que atenta contra seu direito à assistência familiar. Quanto ao tratamento dispensado aos custodiados é clara a existência de maus tratos em virtude do difícil acesso das pessoas doentes ao serviço de saúde, a não existência de água filtrada para o consumo dos detidos, a falta de cama, colchões, roupa de cama, uniformes e materiais de higiene558.

Além disso, verifica-se que é recorrente a não observância da separação

entre presos condenados e presos provisórios. No seu relatório de visita ao Brasil

de 2011, o Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura (SPT) afirma

que:

O SPT encontrou situações em que os detentos eram mantidos em instalações policiais juntamente com pessoas que já tinham sido sentenciadas e deveriam ser colocadas em regime fechado ou semiaberto para prisioneiros sentenciados. O SPT recorda que a separação entre pessoas acusadas e pessoas condenadas é uma importante obrigação segundo o direito internacional559.

Neste sentido, apesar do Rio de Janeiro ter desativado as Carceragens da

Polícia Civil, revela-se ainda um quadro de sistemática utilização da prisão

cautelar, não separação entre condenados e provisórios, e ausência de uma clara

política penitenciária para garantia de direitos dos presos provisórios, com

constantes mudanças na unidade prisional de triagem, denominada porta de

entrada do sistema penitenciário560. Conforme entendimento do MEPCT/RJ:

557 Comissão Interamericana de Direito Humanos, Relatório sobre o uso das prisões preventivas nas Américas. 558 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012. 559 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de Visita ao Brasil - 2011, p. 14. 560 Com o processo de desativação das carceragens da Polinter a “porta de entrada” do sistema prisional do Rio de Janeiro inicialmente foi o Presídio Ary Franco, precisamente em 15 de março

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As sucessivas mudanças na triagem masculina do sistema penitenciário evidenciam de modo irrefutável que não há uma política clara para a gestão prisional no Estado do Rio de Janeiro. Mudanças tão profundas em prazo tão exíguo denotam que a política criminal penitenciária é implementada em total casuísmo, ao sabor dos acontecimentos. (...) O sistema parece ser gerido em uma lógica eminentemente empírica que se satisfaz em apagar incêndios, preconizando a garantia da disciplina e segurança internas, em detrimento do esforço em adequar as unidades aos parâmetros legais nacionais e internacionais561.

4.3.3 Regime e Classificação

4.3.3.1 Panorama das Unidades Prisionais

Atualmente, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio

de Janeiro (SEAP), criada pelo Decreto Nº 32.621/2003 substituindo o antigo

Departamento do Sistema Penitenciário (DESIPE), possui 54 unidades prisionais.

Entretanto, a ampla maioria dos estabelecimentos destina-se ao regime fechado.

Ademais, contrariando claramente disposições do art. 33 do Código Penal e Título

IV da Lei de Execução Penal, a maioria dos presos em regime semiaberto cumpre

a sanção penal em unidades típicas de cumprimento da pena em regime fechado,

ou seja, unidades de segurança média ou máxima. Ao todo no estado há dez

unidades destinadas ao regime semiaberto, porém apenas uma colônia agrícola ou

industrial, conforme exige o ordenamento jurídico-penal. A mesma debilidade

observa-se no cumprimento de pena no regime aberto, visto que há apenas seis

unidades de regime aberto, entretanto, apenas uma casa de albergado masculina e

uma casa de albergado feminina562.

de 2011. No ano de 2012 no mês de abril, o ingresso passa a ser realizado na Penitenciária Alfredo Tranjan (Bangu II), no Complexo de Gericinó. Após nova transição, em 15 de agosto de 2013 passa-se à Cadeia Pública Patricia Acioli, recém-inaugurada à época em Guaxindiba, em São Gonçalo, município da Região Metropolitana do Estado. Por fim, em 25 de fevereiro de 2014 a triagem passa a ser realizada na Cadeia Pública José Frederico Marques (Bangu 10). No que tange à triagem de mulheres presas, após a desativação dos estabelecimentos anômalos policiais, o ingresso passa a ser realizado na Penitenciária Joaquim Ferreira de Souza a partir de março de 2011, sem haver mudanças no estabelecimento de custódia. 561 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2014, p. 32. 562 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2013, p. 28.

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Abaixo segue quadro dispondo a relação de unidades prisionais

circunscritas no estado do Rio de Janeiro, discriminadas por nome, endereço,

capacidade, efetivo e regime de cumprimento de pena563:

Tabela 10: Unidades de Niterói e Interior - Sistema Prisional do Rio de Janeiro (2014)

Nome Endereço Ano Vagas Efetivo Excesso Facção e outros

Regime

Instituo Penal Cel. PM Francisco Spargoli Rocha

Centro – Niterói

- 212 108 0% Neutro Pensão alimentícia

Fechado Masculino

Instituto Penal Edgard Costa

Centro- Niterói

- 403 554 37% CV Semiaberto Masculino

Penitenciária Vieira Fonseca – - 220 54 0% Ex- Fechado

563 Dados fornecidos pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciária em 18/06/2013. 564 Unidade destinada apenas ao controle do livramento condicional, prisão albergue domiciliar e penas restritivas de direitos.

Tabela 9: Unidades Isoladas - Sistema Prisional do Rio de Janeiro (2014)

Nome Endereço Ano Vagas Efetivo Excesso Facção e outros

Regime

Hospital de Custódia e Trat. Psiquiátrico Heitor Carrilho

Frei Caneca Bairro Estácio de Sá

- Não recebe internos

78 - - Medida de Segurança (Masc. e Fem.)

Presídio Evaristo de Moraes

São Cristóvão 1967 1.437 1.829 27% Neutro Regime Fechado e Provisório (Masculino)

Instituto Penal Cândido Mendes

Rua Camerino – Centro

2006 208 235 13% Neutro Semiaberto Masculino

Patronato Magarinos Torres564

Benfica 1975 -

-

-

-

Controle de substitutivos penais

Casa do Albergado Crispim Ventino

Benfica 2004 302 323 7% - Aberto Masculino

Instituto penal Oscar Stevenson

Benfica 2010 288 327 18% - Aberto e Semiaberto Feminino

Presídio Ary Franco Agua Santa 1974 970 1875 93% CV; entrada p/ presos federais

Fechado e Provisório Masculino

Cadeia Pública Cotrin Neto

Eng. Pedreira – Japeri

- 750 1602 113,6%

Neutro Provisório Masculino

Penitenciária Milton Dias Moreira

Eng. Pedreira – Japeri

1948 792 1725 118% CV Fechado Masculino

Presídio João Carlos da Silva

Eng. Pedreira – Japeri

2006 884 1883 113% CV Provisório Masculino

Cadeia Pública Franz de Castro Holzwarth

Bairro Roma - Volta Redonda

2004 302 528 75% Terceiro Comando

Provisório Masculino

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Ferreira Neto Niterói servidores Masculino Instituto Penal Ismael Pereira Sirieiro

Fonseca –Niterói

2005 389 485 22% ADA Semiaberto Masculino

Hospital Penal de Niterói565

Fonseca –Niterói

-

-

-

-

-

Hospital

Hospital de Custódia e Trat. Psiquiátrico Henrique Roxo

Centro- Niterói

1972 135 112 - - Medida de Segurança Masculino

Colônia Agrícola Marco Aurélio V. Tavares de Mattos

Bairro do Saco – Magé

1966 146 93 0% - Semiaberto Masculino

Cadeia Pública Hélio Gomes

Bairro do Saco – Magé

- 504 468 0% Neutro Provisório Masculino

Cadeia Pública Romeiro Neto

Bairro Saco – Magé

2003 591 1399 137% CV Provisório Masculino

Presídio Diomedes Vinhosa Muniz

Bairro Frigorífico – Itaperuna

2006 458 823 80 Neutro; Entrada p/ região

Provisório, Todos os regimes Masculino

Cadeia Pública Dalton Crespo de Castro

Bairro Codin - Campos

2006 500 653 31% Terceiro Comando; Entrada p/ região

Provisório Masculino

Presídio Carlos Tinoco da Fonseca

Bairro Codin – Campos

1977 872 1498 72% Neutro Provisório, Todos os regimes Masculino

Presídio Nilza da Silva Santos

Centro – Campos

- 224 291 30% - Provisório Todos os regimes Feminino

Cadeia Pública Juíza Patrícia L. Acioli

Guaxindiba – São Gonçalo

2013 616 1238 101% Neutro Provisório Masculino

Cadeia Pública Isap Tiago Teles de Castro Domingues

Guaxindiba – São Gonçalo

2013 616 1151 87% Neutro Provisório Masculino

Tabela 11: Unidades do Complexo de Gericinó - Sistema Prisional do Rio de Janeiro (2014)  

Unidade Endereço Ano Vagas Efetivo Excesso Facção e outros

Regime

Hospital Dr. Hamilton Agostinho Vieira de Castro

Complexo de Gericinó

1961 80/13 54 - - Hospital Masculino e Feminino

Hospital Penal Psiquiátrico Roberto Medeiros

Complexo de Gericinó

1977 121 84 - - Hospital Psiq. Masculino e Feminino

Sanatório Penal Complexo de Gericinó

1965 110 117 8% - Hospital Masculino

Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho

Complexo de Gericinó

1979 1.699

13210 89% Neutro Semiaberto Masculino

Penitenciária Alfredo Tranjan (Bangu II)

Complexo de Gericinó

- 960 2.243 134% Neutro Fechado Masculino

Penitenciária Industrial Esmeraldino Bandeira

Complexo de Gericinó

1957 991 1.032 47% Terceiro Comando

Fechado Masculino

565 Número de leitos e total de internos não informado pela SEAP.

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Penitenciária Laércio da Costa Pelegrino (Bangu I)

Complexo de Gericinó

1988 48 24 - Sanção disciplinar; Entrada de fora do estado

Provisório Fechado Masculino

Penitenciária Moniz Sodré

Complexo de Gericinó

- 1.320 1392 5% CV Fechado Masculino

Penitenciária Talavera Bruce

Complexo de Gericinó

1941 362 376 4% - Fechado Feminino

Creche – Unidade Materno Infantil

Complexo de Gericinó

2005 20 17 - - Fechado Feminino

Instituto Penal Vicente Piragibe

Complexo de Gericinó

1979 1.444 3041 111% CV Semiaberto Masculino

Penitenciária Dr. Serrano Neves (Bangu 3A)

Complexo de Gericinó

1997 668 865 29% CV Masculino Fechado

Penitenciária Jonas Lopes de Carvalho (Bangu 4)

Complexo de Gericinó

1999 1.344

2171 62% ADA Masculino Provisório e Fechado

Cadeia Pública Jorge Santana

Complexo de Gericinó

2001 750 914 22% CV Masculino Provisório

Cadeia Pública Pedro Melo da Silva

Complexo de Gericinó

- 750 1.125 50% 3º Comando Masculino Provisório

Presídio Elizabeth Sá Rego

Complexo de Gericinó

2005 750 1.078 44% CV Masculino Fechado

Presídio Nelson Hungria (Bangu 6)

Complexo de Gericinó

2003 500 522 12% - Feminino Provisório Fechado

Cadeia Pública Paulo Roberto Rocha (Bangu C)

Complexo de Gericinó

2003 675 1.640 143% CV Masculino Fechado

Penitenciária Gabriel Ferreira Castilho (Bangu 3B)

Complexo de Gericinó

2004 672 791 18% CV Masculino Provisório Fechado

Instituto Penal Benjamin de Moraes Filho

Complexo de Gericinó

2005 912 805 0% Terceiro Comando

Masculino Semiaberto

Penitenciária Joaquim Ferreira de Souza

Complexo de Gericinó

- 318 572 80% Porta de entrada feminina

Feminino Provisório (comum e federal)

Penitenciária Lemos Brito

Complexo de Gericinó

2006 512 624 22% 3º Comando e Ex-servidores

Masculino Fechado

Cadeia Pública Pedrolino Werling de Oliveira

Complexo de Gericinó

- 154 111 0% Ex-servidores Masculino Provisório

Cadeia Pública Bandeira Stampa (Bangu 9)

Complexo de Gericinó

2011 547 408 0% Neutro Masculino Fechado

Cadeia Pública José Frederico Marques (Bangu 10)

Complexo de Gericinó

2011 532 444 0% Triagem masculina

Masculino Provisório e condenados recém-ingressos

Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional566, no Rio de

Janeiro, 26 unidades prisionais do total de 50, ou seja, mais da metade, foram

construídas nos últimos dez anos. Dessas, vale ressaltar, 21, foram construídas

566 Ministério da Justiça/DEPEN, Relatório de Informações Penitenciárias 2014.

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apenas nos últimos cinco anos, fato que revela o acintoso crescimento do sistema

penitenciário no período recente.

Este crescimento expressivo poderá ser acompanhado em breve de outra

grave problemática, isto porque a Secretaria de Administração Penitenciária do

Rio de Janeiro vem manifestando o desejo de implantar a privatização de unidades

prisionais. Segundo informações do Mecanismo Estadual de Prevenção e

Combate à Tortura, A primeira unidade penitenciária privada e mista (homens e

mulheres) do Estado do Rio funcionará em Resende, no sul do Estado567.

4.3.3.2 Regimes Prisionais

O reduzido número de unidades adequadas ao cumprimento de pena em

regime semiaberto e aberto, como verificado no tópico acima, é um dos fatores

determinantes para o chamado desvio de execução, ensejando o cumprimento da

pena muitas vezes em regime mais gravoso ao apenado568.

Este cenário é agravado pela exigência sistemática do exame

criminológico569 por parte da Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro para a

concessão da progressão de regime, a despeito do fato de que a LEP estabelece

este dispositivo como uma faculdade ao juiz da execução penal, e não como uma

exigência peremptória570. Como aponta Luis Carlos Valois “esse uso tendencioso

da atividade técnica para fins de segurança, agravando o encarceramento tem se

567 “A primeira unidade penitenciária privada e mista (homens e mulheres) do Estado do Rio funcionará em Resende, no sul do Estado, informou o Mecanismo Estadual de Combate à Tortura do Rio de Janeiro. ‘Fomos informados pelo secretário (de Estado de Administração Penitenciária) Erir (Ribeiro) dessa notícia. O processo está quase concluído, esperando apenas o aval do governador (Luiz Fernando Pezão) para ser inaugurado. Essa inauguração nos causa preocupação’, disse Patrícia Oliveira, participante do mecanismo. O presídio terá vaga para 300 presos, metade para cada gênero”. Disponível em: http://m.jb.com.br/rio/noticias/2015/08/14/primeiro-presidio-privado-do-estado-do-rio-sera-inaugurado-em-resende/. Acessado em: 15/08/2015. 568 ALMEIDA, Felipe Lima de, A execução da pena no anteprojeto do Código Penal: uma análise crítica. 569 Michel Foucault nas obras Vigiar e Punir, A verdade e as formas jurídicas e Resumo dos Cursos do Collège de France, localiza a emergência do procedimento do exame, entre os séc. XVIII e o séc.XIX, nas sociedades disciplinares, e o entende como uma nova forma de controle social e de produção de poder-saber e da “verdade”. Este procedimento servirá como meio de fixar ou restaurar a norma e como matriz das “ciências do homem”, dentre elas: a psicologia, a psiquiatria e a psicanálise. FOUCAULT, M., Vigiar e punir. Id., As palavras e as formas jurídicas. 570 Em 2003 a Lei Nº 10.792 retirou dos artigos 6° e 112 da LEP a obrigatoriedade de realização do referido exame para a concessão da progressão de regime.

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dado no Brasil na exigência do exame criminológico como requisito para

progressão de regime ou para qualquer outro direito do preso”571.

No ano de 2014, verificava-se um contingente de 31,5% presos em regime

fechado, 24,75% em regime semiaberto, 1,7% em regime aberto, 41,8% presos

provisórios e 0,2% em medidas de segurança. Somados os presos provisórios e em

regime fechado, totaliza-se 72,3%. Observa-se ainda que há uma diminuição do

percentual de presos em regime aberto, revelando um número ínfimo. Como se

pode verificar no quando abaixo.

Figura 13: Presos por regime e natureza da privação da liberdade - RJ (2009-2014)

Fonte: SEAP/RJ

A inobservância do sistema progressivo acarreta sérias problemáticas no

cárcere. Segundo aponta o MEPCT/RJ:

As constadas mazelas que pairam sobre a execução penal instituem uma espécie de progressão de regime às avessas, na qual muitas vezes o apenado vivencia realidade mais gravosa ao progredir do regime fechado para o semiaberto. (...) Põe-se em prática o desvirtuamento da matriz do sistema progressista irlandês que inspira o Ordenamento Jurídico-penal em vigor, instituindo um sistema de progressão de regime de matriz filadélfico, priorizando a pena privativa de liberdade em regime fechado em detrimento de políticas penitenciárias que poderiam orientar-se ao “ideal ressocializador”572.

Neste sentido, constata-se que o sistema de progressão de regime no Rio de

Janeiro, e em todo país, assemelha-se a um barril de pólvora, pois ao não

apresentar qualquer estímulo ao bom comportamento, impele o apenado a buscar

571 VALOIS, L., op. cit., p. 62. 572 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório sobre progressão de regime de cumprimento no Rio de Janeiro.

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alternativas na transgressão, seja através de fugas, motins ou rebeliões. Não

obstante isso, no ano de 2012, menos de 0,05% dos presos envolveram-se em tais

incidentes573.

4.3.3.3 Classificação

A Lei de Execução Penal estabelece que a pena privativa de liberdade deve

assegurar a separação dos presos segundo critérios de gênero e em razão de idade

acima de 70 anos (art. 82, §1º), condenados e provisórios (Art. 84). Além disso, as

Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos preconizam a separação dos

presos jovens (Regra 8, b), bem como separação de acordo com o tipo penal

(Regra 8).

Entretanto, tais parâmetros classificatórios não são observados na

realidade penitenciária. Exceto a separação por gênero, que em regra é respeitada

no Rio de Janeiro574. A administração penitenciária, em nome da garantia de

“segurança”, utiliza, informalmente, a classificação por pertencimento à facção

criminosa como principal critério575. Em 80% das unidades analisadas verifica-se

o uso desta classificação.

Em verdade, a mistura de facções é extremamente temerária, visto que há

um histórico de mortes de presos de grupos rivais. Entretanto, a inexistência de

um número adequado de estabelecimentos prisionais destinados a presos sem

qualquer pertencimento, acaba por fortalecer a lógica das facções, visto que

muitos presos buscando reduzir sua vulnerabilidade no cárcere optam por aderir,

ou são compelidos a aderir, a um grupo, de modo geral, através de uma vinculação

à facção hegemônica na comunidade onde reside576.

573 Disponível em: portal.mj.gov.br/depen/. Acessado em: 05/08/2015. 574 O MEPCT/RJ relata casos em que mulheres foram mantidas no mesmo estabelecimento de custódia policial que homens, relata ainda o transporte de mulheres juntamente com homens em viaturas policiais. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2012. Segundo informa o DEPEN, há registros de mulheres em unidades prisionais masculinas em outros estados do Brasil. Ministério da Justiça/Depen, Relatório de Informações Penitenciárias 2014. 575 Na prática, a administração penitenciária indaga ao preso se possui ou não pertencimento. Há uma cultura que entende que se o indivíduo reside em um bairro ou comunidade com prevalência de determinada facção, deverá ser alocado em uma unidade prisional destinada à mesma. 576 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2012.

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Outro critério importante para separação dos internos é a denominada

condição de “seguro”, para presos que por algum motivo encontram-se ameaçados

na unidade prisional577. Recorrentemente os presos em “seguro” são mantidos em

condições absolutamente precárias. Segundo relatório do SPT:

85. O SPT também observou o tratamento discriminatório de pessoas privadas de liberdade que necessitavam de proteção especial (os chamados “seguros”). Em uma instituição visitada, o SPT descobriu que as pessoas mantidas pela polícia na seção de “seguro” estavam em condições muito inferiores aos demais detentos e eram, segundo alegaram, submetidos a espancamentos frequentes578.

A separação por tipo penal é feita pontualmente, por exemplo, há a previsão

de galerias em unidades prisionais específicas para presos acusados de delitos

sexuais. Entretanto, em muitos casos esta cautela não é observada, gerando casos

de ameaças, espancamentos, abusos sexuais e mortes579.

4.3.4 Agentes e Técnicos Penitenciários

Eugênio Raul Zaffaroni aborda a problemática da vulnerabilidade no

sistema penal, condição esta que além de atingir mais incisivamente as pessoas

privadas de liberdade também afeta aos agentes e técnicos penitenciários, visto

que diante da “politização, burocratização e criminalização, o sistema penal é um

complexo de deterioração regressiva humana que condiciona falsas identidades e

papéis negativos”, ainda assim, “poucas vezes é adequadamente observada a

situação de extrema vulnerabilidade na qual se encontram essas pessoas”580.

A realidade carcerária e todas as mazelas que a cercam constitui uma

realidade intramuros com regras próprias, marcada pela violência e toda sorte de

violações à dignidade humana, propiciando o que Thompson denomina de

577 De modo geral, em razão do delito praticado, por ser delator ou ter histórico de dívidas ou conflitos com outros presos. 578 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de visita ao Brasil – 2011. 579 Segundo relatórios do MEPCT/RJ há relatos de abusos sexuais e mesmo esquartejamento de presos praticado por outros internos. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2012. Id., Relatório anual 2014. 580 ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 143.

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“prisionização”581, refletindo diretamente na subjetividade dos profissionais que

atuam nas instituições totais. Neste sentido aponta Valois:

Outro fenômeno comum na execução penal administrativa é a perda de capacidade dos próprios técnicos em perceberem a influência do meio carcerário sobre eles, assim como a influência de seus preconceitos externos sobre suas atividades diárias582.

As debilidades estruturais escancaram-se perante os técnicos e agentes

penitenciários, em um contexto marcado por insalubridade, falta de capacitação e

condições adequadas de trabalho, imenso déficit de profissionais, superpopulação

prisional, elevado grau de risco e estresse emocional, falta de assistência

psicológica adequada, baixos salários, desprestígio perante os gestores e cultura

autoritária. Segundo aponta o Comitê Europeu para a Prevenção à Tortura:

Entre as condições de detenção, o problema da superpopulação é certamente o mais importante, especialmente porque tem uma influencia negativa em todos os demais aspectos da detenção e no clima geral do estabelecimento. Quando alcança certos níveis, ou quando se combina com outros fatores negativos a superpopulação pode inclusive constituir um tratamento desumano e degradante.583

Nesta realidade, o sistema penitenciário do Rio de Janeiro possui, segundo

dados do DEPEN, 6.655 profissionais, em uma proporção de 5,9 presos por

servidor584. Entretanto, deste total mais de seis mil exercem a função de agente

penitenciário, denominado de inspetor de segurança e administração penitenciária

(ISAP), e apenas 576 são técnicos penitenciários, de carreiras que se destinam à

garantia de direitos do apenado, distribuídos conforme o quadro abaixo.   

Tabela 12: Técnicos Penitenciários (Rio de Janeiro – 2014)

Médico 93 Terapeuta Ocupacional 12 Técnico de Laboratório 25

Enfermeiro 28 Nutricionista 2 Técnico de Raios X 5

Psicólogo 57 Farmacêutico 7 Téc. Equip. Méd. Odonto. 12 Assist. Social 42 Biólogo 3 Aux. de Enfermagem 177

581 THOMPSON, A., A Questão Penitenciária. 582 VALOIS, L. C., Execução Penal e Ressocialização, p. 63. 583 Associação para Prevenção à Tortura. Monitoramento dos locais de detenção: um guia prático. 584 Ministério da Justiça/DEPEN, Relatório de Informações Penitenciárias 2014.

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Odontólogo 22 Técnico de Enfermagem 81 Adm. Saúde 6

       Fonte: SEAP-RJ

      Além da grande discrepância entre o número de agentes e técnicos

penitenciários, a disparidade também se revela nos vencimentos destinados a cada

categoria. Desde a aprovação da Lei estadual n° 5.772/10, apelidada de

“Carreirão”, os funcionários que atuam no sistema prisional recebem salário

proporcional à carga horária definida pelos cargos.

No atual cenário, o vencimento básico de um profissional da área técnica

com nível superior (como médico, psicólogo ou assistente social) corresponde a

R$ 1.675,19, ao passo que o vencimento básico de um inspetor penitenciário, com

ensino médio, recém-ingresso na carreira é de R$ 4.572,45585. A

desproporcionalidade revela claramente a prevalência da disciplina e da

segurança, ao invés da garantia de direitos dos presos.

A grande desvalorização dos profissionais da área técnica se acentua ainda

mais com o crescimento da presença das Organizações Sociais na administração

penitenciária. Os profissionais que atuam na Unidade de Pronto Atendimento

(UPA) do Complexo de Gericinó possuem vencimentos de cerca de R$ 8.500,00

(médicos) e R$ 4.000,00 (Enfermagem, Serviço Social, Psicologia e

Odontologia).

Segundo informações da Associação dos Servidores de Saúde no Sistema

Penitenciário (ASSAP), o desprestígio dos profissionais de saúde tem redundado

em uma grande evasão nos últimos anos, como revela o quadro abaixo586.

Tabela 13: Profissionais de Saúde no Sistema Prisional do Rio de Janeiro (1995-2015)

Ano 1995 2001 2011 2015 Total de profissionais de saúde 1200 1050 700 576 População Prisional 9.000 19.000 28.665 43.000 Nº de presos por profissionais de saúde

7,5 18 41 74,6

Fonte: SEAP-RJ e ASSAP

585 Dados fornecidos pela SEAP. 586 Audiência Pública sobe Saúde no Sistema Penitenciário realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ em 17 de abril de 2012. Disponível em: http://www.alerj.rj.gov.br/. Acessado em 05/07/2015.

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No ano de 1995 havia 1.200 profissionais da área técnica para um

contingente de 9.000 presos, configurando uma proporção de 7,5 presos por

profissional. Desde então, verifica-se a progressiva diminuição do número de

profissionais em paralelo ao expressivo aumento da população prisional. No ano

de 2015, chega-se a uma proporção de 74,6 presos por cada membro da equipe

técnica. Este absoluto descaso revela de modo inequívoco que para a

administração penitenciária a real preocupação reside na garantia de disciplina e

segurança no cárcere, e não na garantia de direitos dos presos.

O MEPCT/RJ tem apresentado em seus relatórios a recomendação de

aprovação do Plano de Cargos e Salários dos servidores da administração

penitenciária para que se viabilizem concursos com vínculo estatutário para a

formação das equipes de saúde previstas no Plano Nacional de Saúde do Sistema

Penitenciário com melhoria salarial e adequação das condições de trabalho dos

servidores da saúde587.

4.3.5 Assistência e Direitos do Preso

4.3.5.1 Assistência à saúde

O direito à saúde no cumprimento da pena privativa de liberdade é

amplamente protegido pelos diplomas legais, a exemplo das Regras Mínimas para

o Tratamento de reclusos (Regra 22), Princípios e Boas Práticas para a Proteção

das Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas (Princípio X) e Lei de

Execução Penal (Art. 14).

No que se refere às pessoas reclusas, o direito à saúde deve ser prioritário.

Segundo Bent Sorensen588, um nível de atenção à saúde inadequado pode se

transformar rapidamente em tratamento desumano, cruel e degradante. O Manual

Internacional para uma Boa Prática Prisional ressalta o importante papel dos

profissionais da saúde do sistema prisional de modo a constituir um “importante

587 A título de exemplo, o último concurso para técnicos penitenciários ocorreu em 1998 com convocações até 2001. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório anual 2012. 588 KOLKER, Tania (org.). Perito integrante do Comitê Europeu para Prevenção à Tortura, em Saúde e Direitos Humanos nas Prisões.

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elemento de intervenção na qualidade de vida geral nos centros penitenciários,

tanto para os reclusos quanto para o corpo funcional (...)”. Ressalta ainda que este

trabalho de assistência terá mais êxito se for realizado, sobretudo, de forma

preventiva.589

Entretanto, as precárias condições de aprisionamento muitas vezes

refletem-se na debilitação da saúde dos apenados. Em seu relatório de visita ao

Brasil, o SPT aponta que:

105. As celas em Ary Franco eram geralmente escuras, sujas, abafadas e infestadas de baratas e outros insetos. A grave superlotação e a manutenção precária das celas resultaram em condições que criaram graves problemas de saúde para os detentos, como micose e outras doenças da pele e do estômago. Em algumas celas, o SPT pôde perceber que o sistema de esgoto das celas dos pisos superiores estava vazando pelo teto e pelas paredes590.

Em monitoramentos realizados pelo MEPCT/RJ percebe-se em muitos

casos a falta de profissionais de saúde, falta de medicamentos bem como presença

de medicamentos e seringas fora da validade. Também foram identificadas

diversas denúncias de debilidade de saúde:

As reclamações dos custodiados são as mais diversas possíveis, tais como: a necessidade de aplicação de injeção para tratamento de doença sexualmente transmissível; dificuldade de locomoção por causa de visível estado avançado de Gota; perna com pino em processo de inflamação; custodiado urinando e defecando na cama; bolsa de colostomia necessitando ser trocada; pontos no braço em visível processo de inflamação; pinos na perna com visível infecção, entre outros.591.

Observa-se um cenário de absoluta precariedade. A situação, no entanto,

agrava-se, visto que o sistema prisional do Rio de Janeiro vem sendo alvo de uma

progressiva precarização da assistência à saúde nos últimos anos. Segundo

informações da ASSAP, em 1995 havia sete unidades hospitalares vinculadas à

administração penitenciária, em um universo de 9.000 presos, ao passo que em

2015, com 43.000 presos, há somente cinco estabelecimentos hospitalares em

atividade592.

589 Reforma Penal Internacional. Dos Princípios à Prática – Um Manual Internacional para uma Boa Prática Prisional. 590 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de Visita ao Brasil – 2011. 591 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012. 592 Em 1995 havia 3 Hospitais Psiquiátricos (Heitor Carrilho, Roberto de Medeiros, Henrique Roxo), 1 Hospital Geral (Hospital Fabio Soares Maciel), 1 Hospital para tratamento de tuberculose

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Os efeitos mais gravosos deste desmantelamento revelam-se, sobretudo,

em complicações do quadro de doenças graves como Tuberculose e HIV/AIDS.

Profissionais da saúde que atuam no Sistema Prisional do Rio de Janeiro

realizaram uma pesquisa no mês de dezembro de 2011 e constataram que um

preso morria a cada dois dias nos presídios deste estado, mortes estas

provavelmente relacionadas à Tuberculose e HIV/AIDS.593

Se é fato que o sistema de saúde prisional deste estado foi uma referência

no âmbito nacional e um exemplo de boas práticas – tendo sido o primeiro a ter

convênio com o Serviço Único de Saúde (SUS) ainda na década de 1990 – um

desmonte das condições de trabalho e atendimento vem assolando,

aceleradamente, as condições de prestação deste serviço, descumprimento

flagrantemente as determinações do Plano Nacional de Saúde no Sistema

Penitenciário594, bem como Resolução do Conselho Nacional de Política Criminal

e Penitenciária595. Além disso, a iminência de privatização da gestão e contratação

de servidores via Organizações Sociais (OSs) também se coloca como grande

preocupação no sistema prisional do Rio de Janeiro596.

(Sanatório Penal), 1 Hospital para presos portadores do vírus HIV (Hospital de Niterói) e 1 Hospital de Doentes Crônicos (Hamilton Agostinho). Com a desativação do Complexo Frei Caneca, desativou-se também o Hospital Fabio Soares Maciel. O Hospital Penal de Niterói foi fechado em 2011 por falta de médicos. O Hospital Heitor Carrilho desde 2012 não recebe novos internos, tendo sido convertido em instituto de perícias. Em agosto de 2011, é inaugurada uma UPA – Unidade de Pronto Atendimento, anexa ao Hamilton Agostinho, que passou a ser ponto de referência para atendimento das emergências. No entanto, além de não ter centro cirúrgico a UPA se encontra muito distante das unidades que não fazem parte do Complexo Penitenciário de Gericinó. 593 “RJ: mortes em penitenciárias serão discutidas”. Disponível em: HTTP://WWW.BAND.COM.BR/NOTICIAS/CIDADES/NOTICIA/DEFAULT.ASP?ID=100000495183. Acessado em: 04/05/2015. 594 Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cartilha_pnssp.pdf. Acessado em: 04/05/2015. 595 Resolução do Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciária, Nº 07 de 14 de abril de 2003. artigo 1º, inciso IV: “Para o atendimento ambulatorial são necessários, no mínimo, servidores públicos das seguintes categorias profissionais: 01 médico clínico, 01 médico psiquiatra, 01 odontólogo, 01 assistente social, 01 psicólogo, 02 auxiliares de enfermagem e 01 auxiliar de consultório dentário com carga horária de 20 horas semanais. Nas unidades femininas deve haver sempre, pelo menos, 01 médico ginecologista.” 596 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório anual 2012.

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4.3.5.2 Assistência Material

A precariedade das condições de detenção também pode ser verificada na

(des)assistência material ao recluso. Como aponta a Associação para Prevenção à

Tortura:

Ao privar uma pessoa privada de liberdade, as autoridades assumem a responsabilidade de cobrir as necessidades vitais dessa pessoa. A privação de liberdade tem em si mesma um caráter punitivo. O Estado não tem a autoridade para agravar isto mediante más condições de detenção, que não cumpram com os padrões internacionais que o Estado se comprometeu a respeitar. (....) As áreas de alojamento, a alimentação e higiene são fatores que contribuem ao sentimento de dignidade e bem-estar dos presos. 597 Neste sentido, o artigo 3º da Lei de Execução Penal (LEP) dispõe que “ao

condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela

sentença ou pela lei”. Em seu artigo 12 afirma ainda que “a assistência material ao

preso e ao internado consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e

instalações higiênicas”. A pena de prisão não pode representar um atentado à

dignidade humana do condenado, de modo que as condições de detenção devem

assegurar-lhe a assistência material adequada.

a) Alimentação e Água

O acesso à água e à alimentação é elementar para a sobrevivência das

pessoas privadas de liberdade. A despeito do fato de sua previsão expressa nas

Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos (Regra 20, inc. 1 e 2), bem como

nos Princípios e Boas Práticas sobre a Proteção das Pessoas Privadas de Liberdade

nas Américas (Princípio XI, inc. 1 e 2), há inúmeros relatos de escassez ou

fornecimento em péssimas condições. Dos relatórios sobre as unidades prisionais

analisados, constata-se que 68% continham denúncias quanto à qualidade e

quantidade da alimentação fornecida e 80% quanto ao acesso à água potável.

Segundo informado pela SEAP, os presos recebem 5 refeições por dia,

compreendendo café da manhã, almoço, lanche, jantar e ceia. Entretanto, em

597 Associação para Prevenção à Tortura, Monitoramento dos locais de privação de liberdade: um guia prático.

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diversas unidades os presos destacam que a comida é servida fria, com cardápio

repetitivo e pouco nutritivo, por vezes o lanche não é servido. Em casos mais

extremos, reportam reclamações de comida estragada e com impurezas ou até

insetos. Há também queixas quanto ao horário do jantar, por ser servido muito

cedo, cerca de 16h598.

Ademais, relatos denunciam o não fornecimento de talheres para

manipulação de alimentos, tendo os apenados que improvisar talheres com a

tampa das ‘quentinhas’. Geralmente, na unidade na qual a alimentação é

produzida na própria cozinha, são mais escassas as reclamações.

A alimentação é o principal serviço terceirizado nas unidades prisionais.

Dentre as principais empresas que fornecem alimentação encontram-se a

Facility599 e a Home Bread600. Na Cadeia Pública Cotrim Neto, situada em Japeri,

as ‘quentinhas’ são fornecidas pela empresa Comissária Rio601 e são oriundas de

estabelecimento localizado na Ilha do Governador. Por tal razão, as quentinhas

chegam frias.

Na Cadeia Pública José Frederico Marques, a triagem do sistema prisional,

foi verificado, no final de 2014, o cenário aterrador onde presos permaneceram

por semanas sem receber o jantar, em razão de atraso de mais de quatro meses no

pagamento dos fornecedores.602 Por tais motivos, os presos que possuem

condições mínimas, veem-se obrigados a receber constantes donativos de

alimentos de suas famílias ou a consumir nas cantinas dos estabelecimentos

prisionais, que praticam preços extremamente abusivos. Das unidades analisadas

por esta pesquisa, 45% revelam não possuir cantina no local.

Quanto ao fornecimento de água, segundo aponta o MEPCT/RJ, em todas

as unidades visitadas, com exceção do Presídio Nelson Hungria, a água para

598 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2012. 599 Segundo sua página na internet, a Facility oferece “soluções corporativas em 9 diferentes ramos de negócio: alimentação industrial, coleta de lixo, limpeza e conservação, manutenção predial, gestão ambiental, saúde, segurança, tecnologia e trade marketing”. A empresa é, atualmente, fornecedora de alimentação para as UPA’s (Unidades de Pronto Atendimento de Saúde). Disponível em: http://www.facilitynet.com.br/40b_0025.htm. Acesso em 17 de Dezembro de 2011. 600 Disponível em: http://www.homebread.com.br/site/default.asp. Acessado em 17 de Dezembro de 2011. 601 Disponível em: http://www.comrio.com.br/2011/default.asp. Acessado em 17 de Dezembro de 2011. 602 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório de Visita à Cadeia Pública José Frederico Marques. Ofício nº 27/2015.

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consumo fornecida aos presos é oriunda do próprio encanamento. Como muitas

unidades são antigas, são comuns os relatos de ferrugem e impurezas na água603.

Há ainda relatos frequentes de interrupção do fornecimento de água, em

várias unidades o fornecimento é feito apenas em três horários por dia, por um

período de apenas 30 minutos, fato que se evidencia extremamente crítico quando

nos deparamos com unidades superlotadas em celas com mais 100 internos e

apenas 3 chuveiros604. Além disso, em alguns estabelecimentos foi registrada falta

de abastecimento por cerca de dois meses entre 2014 e 2015. Tais incidentes são

ainda mais graves diante do extenuante calor do verão carioca, configurando uma

brutal violação ao princípio da dignidade humana605.

b) Vestuário, Roupas de Cama e Colchões

A obrigação de fornecer vestuário adequado aos internos, contida no

Princípio XII, inciso 3, dos Princípios e Boas Práticas sobre a Proteção das

Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas é corriqueiramente violada no

cárcere. Como informa relatório sobre a Cadeia Pública José Frederico Marques:

A referida unidade atualmente é a porta de entrada do sistema penitenciário fluminense. Atualmente, apenas uma galeria (D) possui colchões, os demais internos dormem ou na cama de alvenaria designado pejorativamente de “pedra” ou no próprio chão das celas, sequer tem cobertores ou qualquer outra roupa sobressalente. Faltam materiais de higiene e chinelos (...) O Bangu 10 recebe, em média, 90 internos diariamente.606.

Em 70% das unidades analisadas nesta pesquisa constataram-se falta de

colchões. A SEAP alega fornecer vestuário, roupa de cama e colchão aos internos,

entretanto este fornecimento é feito de modo muito irregular e em muitos casos

não é assegurado. Deste modo, verifica-se um elevado contingente de “presos

603 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório Anual 2012. 604 “Outra queixa relacionada à água é a forma precária de armazenamento que eles têm, em um pequeno tanque dentro do banheiro. A água apresentava larvas de mosquitos(...). Eles também questionaram que são obrigados a utilizar a mesma água para beber e tomar banho, assim como a falta de vasilhas para guardá-la, dispondo apenas de copos plásticos de refrescos”. Id., Relatório anual 2014. 605 O MEPCT/RJ apurou denúncias de falta de água na Penitenciária Talavera Bruce, no Complexo Penitenciário de Japeri, em especial no Presídio Cotrim Neto, e outras unidades do Complexo de Gericinó, entre dezembro de 2014 e fevereiro de 2015. Id., Ofício MEPCT/RJ nº02/15. 606 Id., Relatório anual 2014.

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descalços, e muitos deles com o uniforme em estado precário muitos rasgados e

apresentando aspectos de sujeira. Devido ao alto fluxo de pessoas privadas de

liberdade, essa situação se agrava, pois muitos já recebem os uniformes de outros

sem higienização” 607 Segundo aponta o MEPCT/RJ tais mazelas atingem com

ainda maior frequência os presos provisórios608.

c) Salubridade e Instalações sanitárias

A garantia de condições adequadas de higiene encontra amparo no

Princípio XII, inciso 2, dos Princípios e Boas Práticas sobre a Proteção das

Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas, mas também revela-se distante da

realidade carcerária.

Como aponta relatório sobre a Cadeia Pública José Frederico Marques:

“Precário também é o fornecimento de papel higiênico, o MEPCT verificou que

em algumas celas não tinha o produto. As necessidades fisiológicas são feitas em

um orifício de louça denominado “boi” pelos presos609”. Em muitos casos, os

banheiros encontram-se entupidos ou com vazamentos de água. Também em regra

não há chuveiros, apenas canos em seu lugar. Alguns deles, no entanto, não há

fluxo de água suficiente, o que faz com que os presos tenham que tomar banho

com água acumulada em garrafas plásticas.

No que tange ao kit de higiene pessoal, as direções das unidades alegam

fornecimento semanal. Por sua vez, os presos afirmam que o fornecimento é

extremamente escasso e insuficiente. Em 86% dos estabelecimentos prisionais

analisados apresentavam denúncias quanto ao fornecimento irregular dos insumos

de higiene. Mais uma vez, resta aos familiares dos presos arcarem com a

responsabilidade que deveria ser estatal.

A insuficiência do fornecimento de insumos de higiene pessoal afeta

particularmente as mulheres encarceradas. Nas unidades prisionais é “uníssona a

reclamação acerca do ínfimo fornecimento de papel higiênico e absorvente, tendo

607 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório de visita à Cadeia Pública José Frederico Marques. Ofício nº 27/2015. 608 Id., Relatório anual 2012. 609 Id., Relatório de visita à Cadeia Pública José Frederico Marques. Ofício nº 27/2015.

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as mesmas que submeterem a um esforço de divisão desses itens entre toda cela,

tamanha precariedade no fornecimento”610.

Segundo aponta o MEPCT/RJ o acúmulo de lixo também é um problema

crônico para a salubridade, de modo que em diversas unidades como:

(...) no Presídio Ary Franco, no Instituto Penal Vicente de Piragibe, o Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho e Instituto Penal Ismael Sirieiro o ambiente é extremamente propício para proliferação de doenças respiratórias e de pele. Em muitos casos há acúmulo de lixo e até esgoto aberto no fundo das celas, o que possibilita a presença de moscas, baratas e ratos. (...) inclusive nas de saúde como Hospitais e Casas de Custódia foram observados grande acúmulo de lixo nas celas, bem como em dependências externas da unidade.611.

Este grotesco quadro de insalubridade favorece em muito a proliferação de

doenças. “Diversos detentos relataram agravamento do quadro de saúde em

função da salubridade do local, muitos com manchas na pele, resfriado, HIV

positivo, epilepsia, transtornos mentais, dentre outros”612.

d) Iluminação e Aeração

A exigência de adequadas condições de iluminação e aeração estão

arroladas no Princípio XII, inciso 1, dos Princípios e Boas Práticas sobre a

Proteção das Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas, entretanto, também é

reduzida a letra morta diante crise sistêmica que se verifica no sistema

penitenciário.

Em 71% das unidades analisadas houve reclamações quanto às condições

de iluminação e aeração. O MEPCT/RJ aponta que em muitos estabelecimentos

“foi observado um cenário de umidade e cheiro de mofo”613. Assevera ainda que:

De modo geral, as condições de aeração observadas são precárias. As janelas das celas quando existem são muito pequenas e situadas no alto da parede. Fator que agrava tal situação é a restrição à entrada de ventiladores em algumas unidades, como ocorre na Cadeia Pública Cotrim Neto, na qual os presos só podem obter o direito a receber ventilador trazido por seus familiares a partir de 6 meses na

610 Id., Relatório anual 2012. 611 No Presídio Alfredo Tranjan, presos denunciaram que alguns agentes penitenciários deixam acumular lixos em grandes tambores nas galerias da unidade – fato que atraia a presença de ratos e insetos – com o intuito de vender estes restos para criadores de porcos nas cercanias do Complexo de Gericinó. Ibid. 612 Id., Relatório de visita à Cadeia Pública José Frederico Marques. Ofício nº 27/2015. 613 Ibid.

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unidade. A direção alega que tal medida, objetiva evitar sobrecarga na parte elétrica614. Em relatório sobre visita feita ao Brasil, o Subcomitê da ONU para a

Prevenção à Tortura informa que:

105. As celas em Ary Franco eram geralmente escuras, sujas, abafadas e infestadas de baratas e outros insetos. A grave superlotação e a manutenção precária das celas resultaram em condições que criaram graves problemas de saúde para os detentos, como micose e outras doenças da pele e do estômago. Em algumas celas, o SPT pôde perceber que o sistema de esgoto das celas dos pisos superiores estava vazando pelo teto e pelas paredes. 106. Além do estado deplorável das instalações das acomodações, havia uma deficiência generalizada no fornecimento de itens de higiene, vestimenta, roupa de cama e outros itens essenciais615.

Nesta esteira, verifica-se a absoluta precariedade das condições materiais

do cárcere, com toda a sorte de violações aos pressupostos basilares para a

execução penal, da alimentação e água ao fornecimento de vestuário e colchões,

da aeração às condições de salubridade. Verifica-se um sistemático quadro de

crise agravado pela superlotação, dando ensejo a tratamentos cruéis, desumanos e

degradantes.

4.3.5.3 Assistência Familiar

a) Visitas Familiares

O direito à assistência familiar consagrado no art. 41, inciso X, da LEP e

no Princípio XXI dos Princípios e Boas Práticas sobre a Proteção das Pessoas

Privadas de Liberdade nas Américas. Seria esta uma das principais medidas

afeitas à suposta função penalógica “ressocializadora”, uma vez que a ruptura dos

laços afetivos e fraternais deixaria o apenado ainda mais sujeitado aos efeitos

criminógenos do cárcere.

614 “Como constatado no IPVP e no IPPSC, a arquitetura dos pavilhões está em péssimo estado, o que, por si só viola direitos humanos. A condição do ambiente é insalubre: precária de iluminação e ventilação, a má conservação da rede de esgoto, das fiações elétricas, o acúmulo de lixo e a condição degradada das celas que são fatores que agravam as condições de saúde dos custodiados.” Id., Relatório Anual 2012. 615 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de Visita ao Brasil – 2011.

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Entretanto, inúmeros obstáculos se colocam frente a esta garantia, a

começar pela incomunicabilidade a qual fica submetido o custodiado em boa parte

dos casos, desde a prisão em flagrante, passando pela carceragem da delegacia de

polícia até a unidade prisional de triagem616. Por vezes, os internos ficam mais um

mês sem ter condições de comunicar a prisão à família através do setor de serviço

social. Acresce-se a tal problemática, o dificultoso procedimento para confecção

de carteiras de visitas, que segundo, aponta o MEPCT/RJ pode levar de 1 a 3

meses para ser concluído617.

Em muitas unidades prisionais o MEPCT/RJ informa ainda que recebeu

inúmeras reclamações de que objetos e alimentos doados pelos familiares por

vezes são entregues com muita demora, fato que recorrentemente torna os

alimentos impróprios para consumo. Outra reclamação refere-se ao fato de que em

muitas unidades, a entrega dos bens (custódia) não pode ser realizada no mesmo

dia da visita dos familiares618.

Também são registradas reclamações quanto à entrada e saída de

correspondências. Algumas unidades exigem que o preso promova o

cadastramento de um familiar apenas.

O SPT recomenda “que todos os presos tenham permissão para, sob a supervisão

necessária, comunicarem-se regularmente por carta, telefone e visitas, com seus

familiares e outras pessoas”619. Vale destacar, sobre esse tema, que:

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos declarou que a prática da detenção incomunicável não está em consonância com o respeito pelos Direitos Humanos, uma vez que se “cria uma situação propícia a outras práticas como a tortura”, e pune a família do detido sem permissão. A Comissão Interamericana também considera que o direito de receber visitas de parentes é “uma exigência fundamental” para assegurar o respeito aos direitos dos detidos.620

616 Na capital a unidade de triagem masculina é a Cadeia Pública José Frederico Marques e a feminina é a Penitenciária Joaquim Ferreira de Souza. 617 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012. 618 Tal fato constitui um elemento de grande dificuldade aos familiares, uma vez que em sua ampla maioria não teriam condições deslocar-se à unidade prisional por dois dias da semana. Em geral, a direção da unidade justifica tal procedimento em razão do pequeno número de agentes na unidade. Ibid. 619 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de Visita ao Brasil – 2011, p. 22. 620 FOLEY, C., Protegendo os brasileiros contra a tortura: Um Manual para Juízes, Promotores, Defensores Públicos e Advogados.

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b) Revista Vexatória

Contudo, a maior afronta à assistência familiar encontra-se nos

procedimentos de revista. Na maioria das unidades da SEAP há detectores de

metais, na modalidade do portal, “banquinho” e “raquete”. No estado do Rio de

Janeiro há apenas um scanner corporal, situado no Complexo de Gericinó. Não

obstante, o procedimento vexatório de revista íntima dos visitantes é utilizado

como regra em todo o sistema.

O perverso procedimento consiste submeter o visitante a agachar-se nu

perante um agente do mesmo sexo, por três vezes, mostrando sua genitália.

Muitos presos reclamam que além da violação à dignidade dos familiares, tal

procedimento é moroso em razão do grande número de visitantes, prejudicando o

tempo de visitação. Há relatos, ainda, que em determinadas ocasiões crianças

presenciam a realização da revista invasiva aos familiares.

A medida indubitavelmente constitui tratamento degradante aos visitantes,

açambarcando o princípio da personalidade da pena, insculpido no art. 5, XLV da

Carta Magna de 1988, segundo o qual nenhuma pena pode extrapolar a pessoa do

réu. Ademais, conforme dispõe o relatório de visita do SPT:

O SPT recomenda que o Estado garanta que as revistas cumpram com os critérios de necessidade, razoabilidade e proporcionalidade. Se conduzidas, as revistas corporais devem ser realizadas em condições sanitárias adequadas; por pessoal qualificado, do mesmo sexo do indivíduo revistado; e devem ser compatíveis com a dignidade humana e com o respeito aos direitos fundamentais. Revistas intrusivas, como vaginais e anais, devem ser proibidas por lei. A emissão de passes para os visitantes deve ser agilizada621.

A revista vexatória historicamente tem sido alvo de severas críticas.

Atualmente há uma campanha nacional por sua abolição conduzida pela Pastoral

Carcerária e pela Rede Justiça Criminal622. Recentemente, alguns estados vêm

adotados medidas legais proibitivas desta prática. Entretanto, mesmo com a

aprovação de leis estaduais em São Paulo e Minas Gerais, a revista intrusiva

permanecia sendo realizada.

621 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de Visita ao Brasil – 2011. p. 22. 622 Disponível em: http://www.fimdarevistavexatoria.org.br/. Acessado em: 05/05/2015.

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No Rio de Janeiro foi aprovado o projeto de lei n° 77/2015, mesmo após

veto do Governador623. Além da proibição da revista vexatória, a Assembleia

Legislativa aprovou a doação de um valor de R$ 19 milhões aos cofres do

Governo do Estado para aquisição de 33 scanners corporais a serem instalados

nas unidades prisionais624. Por dia, mais de dois mil familiares realizam visitas no

Rio de Janeiro, na ampla maioria mulheres.

c) Visita Íntima

Em boa parte das unidades prisionais, os “parlatórios” (espaços para a

realização de visita íntima) se encontram em condições inapropriadas para uso no

que tange à aeração, iluminação e higiene. Quanto às instalações sanitárias, em

muitos casos não possuem vasos sanitários, mas sim o “boi”. Em algumas

unidades, como no Cotrim Neto, apesar de haver dependências para os chamados

“parlatórios”, não há visita íntima na unidade. Vale mencionar que o processo de

credenciamento dos internos que desejam receber visita íntima é criticado devido

ao alto grau de exigência burocrática, podendo levar mais de dois meses para ser

concluído625.

A LEP não autoriza expressamente o direito à sexualidade do preso, na

forma da denominada “visita íntima”, apesar de haver resolução autorizativa do

Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária626. Por este motivo, de

modo geral, a administração penitenciária trata a questão como regalia e não como

direito627, sendo assegurado a um número reduzido de presos, assim como em

diversas garantias atinentes à pessoa privada de liberdade.

623 Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-mai-20/alerj-derruba-vetos-aos-projetos-proibem-revistas-vexatorias. Acessado em: 05/05/2015. 624 Disponível em: http://www.rj.gov.br/web/seap/exibeconteudo?article-id=2441035. Acessado em: 05/05/2015. 625 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2012. 626 Resolução nº 1 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), publicada em 30 de Março de 1999 recomenda aos Departamentos Penitenciários Estaduais ou órgãos congêneres que fosse assegurado o direito à visita íntima aos presos de ambos os sexos. 627 Cabe, neste particular a seguinte citação: "uma vez que a sexualidade inere à pessoa, não seria concebível que o direito de receber visitas do ser com quem se compartilha a intimidade se restringisse à liturgia própria do encontro com um parente ou amigo, em que os afetos de corpo e alma nunca atingem a natureza e o grau de segredo e mistério que enlaçam os cônjuges ou companheiros." CARVALHO, P. A. E. de, Visita íntima: direito ou regalia, p. 03.

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Entretanto, o art. 41, X da LEP628 ao prever a visita da companheira ou

cônjuge, deixa tácita a hipótese de visita íntima. Além disso, a privação da relação

sexual no cumprimento de pena privativa de liberdade pode ser considerada pena

cruel, colidindo com o princípio da humanidade das penas (art. 5 XLVII, ‘e’ da

Constituição de 1988).

No mesmo sentido, preceituam as Regras Mínimas para o Tratamento de

Reclusos, ressaltando que sejam mantidas e até mesmo melhoradas as boas

relações entre o preso e sua família, desde que convenientes para ambos (Regra nº

74).

Por fim, se o legislador, ao dizer constituir direito do recluso(a) a visita do

cônjuge ou companheiro(a), não distinguiu entre visita simples e visita íntima, não

cabe ao intérprete limitar essa faculdade à primeira hipótese, rotulando a outra de

mera regalia, sob pena de consagrar o princípio, já não mais aceito pela na

doutrina da execução penal, de entender as normas que regem a relação

presidiário-Estado como propensas à sistemática restrição dos direitos e garantias

de quem sofre a execução da pena privativa de liberdade. Neste sentido, no Rio de

Janeiro, tramita o projeto de lei nº 125/2011 com o fulcro de positivar o direito à

visita íntima nas unidades prisionais.

4.3.5.4 Assistência Jurídica

No que se refere ao direito à assistência jurídica gratuita, no Rio de Janeiro

esta é oferecida pela Defensoria Pública. Vale dizer que a Defensoria Pública

fluminense é considerada uma das mais estruturadas do país. Entretanto, a

despeito de tal fato, seu contingente ainda não é suficiente para atender à

gigantesca demanda, visto que segundo informações do Núcleo do Sistema

Penitenciário da Defensoria Pública (NUSPEN), 98% dos presos do estado são

assistidos pela mesma629. Nesse sentido, procede a alegação da maioria dos presos

628 Lei 7.210/84, Art. 41 – São direitos do preso. X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados. 629 Declaração dada pelo Defensor Público Leonardo Merigueti na Audiência Pública sobre Porta de Saída do Sistema Penitenciário realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro em 29 de novembro de 2013. Disponível em: http://www.alerj.rj.gov.br/. Acessado em: 05/07/2015.

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de que seu primeiro contato com seu defensor público acontece na audiência

especial630.

No que tange ao tema da prevenção à tortura, o atendimento presencial do

defensor ao seu assistido é, seguramente, uma forma de coibir os maus tratos e

outras formas de tratamento cruel, desumano ou degradante. Segundo o manual

Protegendo os Brasileiros contra a Tortura631: “Os suspeitos devem ser informados

sobre seus direitos no momento da prisão ou antes de serem levados em custódia

para o interrogatório. A Constituição prevê que o preso será informado de seus

direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência

da família e de advogado632. No entanto, não há nenhum dispositivo legal

específico que estabeleça um período de tempo após o qual a pessoa detida tenha

acesso a um advogado.” (2011, Protegendo os Brasileiros contra a Tortura).

Em muitas unidades prisionais, o espaço para atendimento da Defensoria,

bem como da advocacia privada é precário e não proporciona a confidencialidade

adequada. Neste sentido, a seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados

do Brasil (OAB), tem se dedicado a pressionar a SEAP para a implementação de

adequados parlatórios aos advogados633.

4.3.6 Atividades no Cárcere

4.3.6.1 Atividades Laborativas

A Constituição Federal de 1988 estabelece o trabalho como um direito

social (Art. 6°), bem como veda a imposição de penas de trabalhos forçados (Art.

5º, XLVII, ‘c’). Entretanto, o trabalho prisional é concebido pela Lei de Execução

Penal (Lei 7.210/84) paradoxalmente como um direito e, ao mesmo tempo, um

dever do preso634. Em seu artigo 28 dispõe que “o trabalho do condenado, como

dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e 630 Nessa audiência o acusado toma conhecimento da denúncia crime feita pelo Ministério Público. 631 FOLEY, C., op. cit. 632 15. Artigo5º, LXIII da Constituição Federal e artigos 186 e 289-A §4º do Código de Processo Penal. 633 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012. 634 Art. 39 - Constituem deveres do condenado: V - execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas; Art. 41 – constituem direitos do condenado, inciso II atribuição de trabalho e sua remuneração.

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produtiva”. Sendo formalmente assegurado ao interno o direito à remuneração,

bem como a remição de um dia de pena a cada três dias de trabalho635.

Segundo aponta relatório do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate

à Tortura do Rio de Janeiro, “em especial educação e trabalho, ao invés de direito

subjetivo do preso, são tidos como privilégios, de poucos, de uma pequena casta

de apenados selecionada pela administração prisional”636. Convém analisar como

vem sendo assegurado o trabalho nas unidades prisionais do Rio de Janeiro.

Figura 14: Presos em Atividades Laborativas (RJ - 2004/2014)

Fonte: SEAP-RJ

O gráfico acima expõe a série histórica acerca do percentual de presos

exercendo atividades laborativas no sistema prisional do Rio de Janeiro entre

2004 e 2014. Neste período verifica-se uma elevação da percentagem de internos

com acesso ao direito ao trabalho, de 2,95% em 2004, a 7,36% em 2014.

Entretanto, apesar desta ligeira majoração, o índice ainda é muito baixo se

comparado com a média nacional que apontava 16% presos trabalhando no

sistema penitenciário em 2014637. Trata-se de uma grande disparidade,

verificando-se no Rio de Janeiro um índice menor do que a metade do que a

média do sistema prisional brasileiro. O fato do Rio de Janeiro sediar grandes

eventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas, com inúmeras obras

públicas que poderiam aproveitar o trabalho prisional, torna ainda mais abjeta tal

marca negativa. Segundo dados do DEPEN, apenas dois estados da federação

635 Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. § 1º, II - 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho. 636 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2013. 637 Vale ressaltar que os dados sobre atividades laborativas no sistema prisional do Rio de Janeiro não constam no levantamento realizado pelo DEPEN, pois a SEAP não forneceu tais informações. Ministério da Justiça/DEPEN, Levantamento de Informações Penitenciárias 2014.

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possuem percentual menor do que o Rio de Janeiro no que se refere à população

carcerária em atividades de trabalho, Rio Grande do Norte e Sergipe, ambos com

apenas 3% dos presos trabalhando638.

Necessário se faz ainda analisar que tipo de trabalho é oferecido aos

internos. Dentre os relatórios de 29 unidades prisionais analisadas nesta pesquisa,

apenas em 11, foi possível identificar apontaram que há atividade laborativa

diversa da função denominada de “faxina” ou “colaborador”, ou seja, auxiliar de

limpeza e serviços gerais no estabelecimento prisional. Revela, portanto, que na

ampla maioria dos casos, em 77% das unidades, o trabalho prisional não se

coaduna com os ideais de “ressocialização” apregoados pela LEP.

No que se refere ao exercício ao direito ao trabalho dos apenados, as

Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Prisioneiros639 dispõem

que este trabalho não deve ser penoso e será de “natureza que mantenha ou

aumente as capacidades dos presos para ganharem honestamente a vida depois de

libertados”, em conformidade com suas aptidões físicas e mentais, não parece ser

o caso verificado nas funções de “faxina”.

Ademais inúmeras denúncias revelam irregularidades no exercício de

atividades laborativas no cárcere:

Na prática, todavia, a situação é diferente. Muitos presos que trabalham no interior das unidades não recebem salário ou não recebem o valor adequado pelo trabalho realizado, havendo desrespeito ao disposto no art. 29, da LEP, que determinado o valor mínimo a ser recebido. (...) Outra questão no tocante a remuneração, observada durante as visitas, é que só é permitido ingressar na unidade prisional com o valor correspondente a 10% (dez por cento) do salário mínimo. (...)muitos apenados não conseguem depositar o dinheiro no banco ou só podem entregar o valor para a família nos dias de visita. Então, o dinheiro fica retido na unidade e o interno ainda pode receber uma falta grave por ser flagrado portando quantia em dinheiro acima do permitido640.

No sistema penitenciário fluminense, o trabalho remunerado dos apenados

é gerenciado pela Fundação Santa Cabrini. Segundo informa o MEPCT/RJ, “há

uma constante reclamação quanto ao atraso no pagamento realizado pelo referido

órgão, alguns relatando a espera de meses”.

638 Não há registros sobre o estado de São Paulo. Ibid. 639 Disponível: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm. Acessado em: 04/05/2015. 640 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012.

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Também se verifica como obstáculo à obtenção do trabalho prisional o

impedimento para obtenção do título de eleitor para o apenado. A ausência do

título, por sua vez, impede a regularização da carteira de trabalho do condenado, o

que representa um verdadeiro entrave à suposta tentativa de restabelecer seu

convívio social641.

Outra problemática relativa ao trabalho reside na controvérsia sobre

autorização de trabalho externo no regime semiaberto. No Rio, como na maioria

dos estados do Brasil, em geral os tribunais tem se apegado à exigência de

cumprimento de mais um sexto da pena a cumprir, presente no artigo art. 123 da

LEP642. Todavia, conforme explicam Massimo Pavarini e André Giamberardino,

“apesar de existiram posições contrárias na jurisprudência, o entendimento

predominante já pacificado no STJ é pela não exigibilidade do requisito objetivo

para o preso que inicia o cumprimento de pena no regime semiaberto.”643

Visando melhorar esse quadro, o CNJ criou, em 2009, o Programa

Começar de Novo, que busca ‘promover a cidadania e reduzir a reincidência

criminal por meio de oferta de cursos de capacitação e de empregos para presos e

egressos do sistema carcerário’644, porém ainda oferece resultados pouco

expressivos.

4.3.6.2 Atividades Educacionais

O direito humano à educação é salvaguardado aos presos em dispositivos

jurídicos nacionais e internacionais, como nas Regras Mínimas para o Tratamento

641 O entendimento dos tribunais eleitorais é de que uma que o condenado tem seus direitos políticos suspensos só poderia obtê-lo após cumprimento integral da pena. Audiência Pública sobre Porta de Saída do Sistema Penitenciário realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro em 29 de novembro de 2013. Disponível em: http://www.alerj.rj.gov.br/. Acessado em: 05/07/2015. 642 Art. 123. A autorização será concedida por ato motivado do Juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a administração penitenciária e dependerá da satisfação dos seguintes requisitos: I - comportamento adequado; II - cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena, se o condenado for primário, e 1/4 (um quarto), se reincidente; III - compatibilidade do benefício com os objetivos da pena. 643 PAVARINI, M.; GIAMBERARDINO, A., Teoria da Pena e Execução Penal: Uma Introdução Crítica, p. 255. 644 Os dados relativos a cursos de capacitação e a empregos ficam disponíveis no Portal de Oportunidades do CNJ online. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/comecardenovo/index.wsp. Acessado em 04/06/2015.

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de Reclusos 645. No Brasil, a LEP prevê o direito à assistência educacional, em seu

artigo 41, VII. Ademais, o Conselho Nacional de Políticas Criminal e

Penitenciária (CNPCP), adaptou e aplicou parâmetros internacionais para esta

temática, através da Resolução 14, de 11 de novembro de 1994.

Em 2010, a proposta de Diretrizes Nacionais para Educação no Sistema

Prisional foi aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE)646, que, dentre

outras medidas, define atribuições do Ministério da Educação e da Justiça no

financiamento para os estados que apresentarem seus planos de educação no

sistema prisional647. Vale observar em que medida se garante o direito à educação

no sistema prisional fluminense.

Figura 15: Presos em Atividades Educacionais (RJ - 2004/2014)

Fonte: SEAP-RJ

Segundo se pode inferir da evolução do percentual de presos em atividades

educacionais no Rio de Janeiro, entre 2004 e 2014, os índices alcançados são

invariavelmente muito baixos, não tendo sequer superado a marca de 5%. No ano

645 Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos de 1955. Regra 77. 1) Devem ser tomadas medidas no sentido de melhorar a educação de todos os reclusos que daí tirem proveito, incluindo instrução religiosa nos países em que tal for possível. A educação de analfabetos e jovens reclusos será obrigatória, prestando-lhe a administração especial atenção. 2) Tanto quanto for possível, a educação dos reclusos deve estar integrada no sistema educacional do país, para que depois da sua libertação possam continuar, sem dificuldades, a sua educação. 646 Tais diretrizes foram elaboradas por participantes do Seminário Nacional pela Educação nas Prisões, realizado em Brasília em 2006, e apresenta parâmetros nacionais com relação a três grandes eixos: (1) gestão, articulação e mobilização; (2) formação e valorização dos profissionais envolvidos na oferta; (3) aspectos pedagógicos. Conselho Nacional de Educação, Resolução nº 2, de 19 de Maio de 2010. 647 No âmbito do MEC as demandas deverão ser veiculadas pelo Plano de Ações Articuladas – instituído através do Decreto Nº 6.094 da Casa Civil da presidência da república, em 2007. Promulga-se, neste documento, o “Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, pela União Federal, em regime de colaboração com Municípios, Distrito Federal e Estados, e a participação das famílias e da comunidade, mediante programas e ações de assistência técnica e financeira, visando a mobilização social pela melhoria da qualidade da educação básica.”

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de 2014 a percentagem é 4,28%, ao passo que o índice relativo ao sistema

prisional brasileiro como um todo neste ano é de 10,7%.

No Rio de Janeiro, apesar do sistema prisional oferecer educação através

de convênio com a Secretaria de Educação desde 1967648, só seria criada, em

2008, no âmbito da Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC) uma

Coordenadoria Especial de Unidades Escolares Prisionais e Socioeducativas

(COESP), atualmente Diretoria Especial de Unidades Escolares Prisionais e

Socioeducativas (DIESP) para atuar em educação nos espaços de privação de

liberdade. No ano de 2007 havia 11 escolas prisionais, número que se eleva para

19 em 2014.

A administração penitenciária estadual também faz uso do Programa Brasil

Alfabetizado649, idealizado através das ações do Ministério da Educação, voltado

à alfabetização de jovens, adultos e idosos. Segundo dados da SEAP, no ano de

2013 havia 780 presos matriculados no estado.

Conforme aponta o MEPCT/RJ: “Em conversa com profissionais da área,

foi relatada uma grande dificuldade no trabalho dos mesmos por estarem na

interseção entre a lógica da educação e a lógica da segurança, tão claramente

adotada pela SEAP.”

No que tange à temática da tortura, a Convenção das Nações Unidas contra

a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes,

entende que os profissionais da educação, assim como os demais integrantes do

corpo técnico dos estabelecimentos prisionais, podem cumprir papel primordial no

enfrentamento a tal prática. Em seu artigo 10, a Convenção ainda obriga os

Estados partes à:

1. Cada Estado Parte assegurará que a educação e a informação relativas à proibição da tortura sejam integralmente incorporadas no treinamento do pessoal civil ou militar responsável pela aplicação da lei, do pessoal médico, dos funcionários públicos e de outras pessoas que possam participar da detenção,

648 Dados do Plano Estadual de Educação Disponível em: http://www.conexaoprofessor.rj.gov.br/downloads/PEE1.pdf. Acessado em: 04/05/2015. 649 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=86&id=12280&option=com_content. Acessado em: 04/05/2015.

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interrogatório ou tratamento de qualquer pessoa submetida a qualquer forma de detenção ou prisão” (artigo 10)650.

Cabe ainda mencionar importante avanço em relação à educação prisional,

com a alteração da LEP, estendendo a garantia de remição de pena para o estudo,

através da Lei Nº 12.433 de 2011651, dando nova redação ao artigo 126, que

anteriormente previa somente a remição pelo trabalho.

Uma vez que a falta de oferta de vagas para atividades laborativas e

educacionais é um problema crônico no sistema penitenciário brasileiro, tem-se

observado iniciativas no sentido de possibilitar a remição pela leitura652, pelo

esporte653 e até mesmo pela arte654. Vários estados brasileiros já implementam

programas com as modalidades de remição pela leitura e pelo esporte655,

entretanto, não foi identificado nenhum caso no Rio de Janeiro.

4.3.6.3 Banho de sol e outras Atividades

Com relação à assistência religiosa, verifica-se que é assegurada sem

registros de problemas. De modo geral, é concedida pela igreja católica e por

diversas vertentes evangélicas, além de, em casos mais raros, grupos espíritas.

Por outro lado, é quase inexistente a oferta de oportunidades aos presos em

atividades artísticas, desportivas e culturais, preceituadas no art. 41, inc. VI, da

650Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/tortura/convencao_onu.pdf. Acessado em: 04/05/2015. 651 A nova lei confere a seguinte redação: Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. § 1o. I - 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar - atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional - divididas, no mínimo, em 3 (três) dias. 652 A Recomendação n. 44/2013 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) propõe a instituição, nos presídios estaduais e federais, de projetos específicos de incentivo à remição pela leitura. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/79760-remicao-pela-leitura-ja-e-realidade-em-diversos-presidios-brasileiros. Acessado em: 07/07/2015. 653 Tramita no Congresso Nacional Projeto de Lei nº 5516/13 que visa instituir a remição pelo esporte. 654 Há jurisprudência no sentido de interpretação extensiva ou analógica da remição penal. Vide: TJ/PR, RA1064168-2 de 2013 (5ª Câmara Criminal) e STJ, HC 30.632/SP de 2004 (5ª Turma). 655 No ano de 2014, destacam-se, em relação à remição pela leitura, os estados do Paraná, 1782 presos, e Pernambuco, com 1551, no que se refere à remição pelo esporte, Mato Grosso do Suç, com 35 presos e Sergipe, com 90. Ministério da Justiça/DEPEN, Relatório de Informações Penitenciárias 2014.

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LEP, e no Princípio XIII dos Princípios e Boas Práticas sobre a Proteção das

Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas.

O confinamento carcerário também viola o direito ao banho de sol, que

segundo a LEP deveria ser assegurado 2 horas por dia (art. 52, inc. IV), assim

como estabelecem as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos (Regra 21).

A este respeito, o Subcomitê da ONU para a Prevenção à Tortura aponta que:

recebeu relatos de acesso insuficiente ao mínimo de uma hora diária de exercício, em conformidade com os padrões internacionais. As precárias condições materiais nas instalações do Ary Franco são acentuadas pelo fato de os detentos serem trancados em suas celas superlotadas, sem devida ventilação ou iluminação natural, continuamente por até duas ou três semanas (somente dez prisioneiros de cada cela tinham acesso ao rodízio de uma hora de banho de sol por semana)656.

No mesmo sentido, em relatório sobre a Cadeia Pública José Frederico

Marques, o MEPCT/RJ alerta que: “há casos de detidos há 17 dias, sem nunca sair

da cela. Todos relatam a tortura psicológica que é ficar confinado em um espaço

tão pequeno por tanto tempo”657.

4.3.7 Castigos e Violência no Cárcere 4.3.7.1 Sanções Disciplinares

A LEP determina em seu artigo 39, inciso VI, como um dos deveres do

preso, a submissão à sanção disciplinar. O artigo 45 garante que a aplicação da

sanção não violará a integridade física ou psíquica do preso e presa, cabendo

ressaltar o § 3º que determina que estão terminantemente proibidas as sanções

coletivas658. Ainda neste sentido, os Princípios e Boas Práticas para a Proteção das

Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas, Princípio XXII, inciso I,

acrescentam que “não poderão infringir as normas do Direito Internacional dos

Direitos Humanos”.

656 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de visita ao Brasil – 2011. 657 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Ofício 25/2015. 658 “Art. 45. Não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar. § 1º As sanções não poderão colocar em perigo a integridade física e moral do condenado. § 2º É vedado o emprego de cela escura. § 3º São vedadas as sanções coletivas”.

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Em seu artigo 53, trata das sanções aplicadas às faltas disciplinares659, sendo

elas: “I - advertência verbal; II - repreensão; III - suspensão ou restrição de

direitos; IV - isolamento na própria cela, ou em local adequado (...); V - inclusão

no regime disciplinar diferenciado.”

Segundo relata o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura,

nas visitas às unidades prisionais é possível constatar que muitos desses

dispositivos são desrespeitados pela administração penitenciária, verificando que:

A dinâmica de violações de direitos na execução penal acarreta também inúmeras distorções sobre a imposição de procedimentos disciplinares, sendo comum a utilização de sanções arbitrárias, sanções coletivas, sanções informais e ilegais, bem como sanções incompatíveis com o princípio da dignidade humana660.

O viés arbitrário das sanções é percebido no elevado grau de decisionismo

presente na imposição dos castigos disciplinares, inclusive respaldado pelo artigo

54 da LEP, uma vez que dispõe que estes serão aplicados “por ato motivado do

diretor do estabelecimento”. Trata-se de verdadeiro atentado ao princípio da

proporcionalidade, bem como aos postulados processuais do devido processo

legal, ampla defesa e segurança jurídica. Tal reclamação é ainda mais frequente

em alguns estabelecimentos prisionais considerados “unidades de castigo”, como

é o caso da Penitenciária Laércio da Costa Pelegrino (Bangu 1), Cadeia Pública

Bandeira Stampa (Bangu 9), Serrano Neves (Bangu 3a) e Gabriel Castilho (Bangu

3b)661.

Segundo informado pela maioria das direções de unidades, boa parte das

sanções disciplinares decorrem de condutas como riscar a parede, desrespeitar

funcionário público, não cumprir os horários estabelecidos. Muitos internos

sequer sabem o porquê de estar cumprindo parte disciplinar. Inúmeras são as

alegações de imposição de sanção disciplinar por motivos banais e obscuros.

Apesar das diversas modalidades de sanção previstas na LEP, os internos relatam

659 O artigo 50 da LEP enumera de forma taxativa as faltas consideradas graves pelo legislador, tais como: incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina; fugir; descumprir, no regime aberto, as condições impostas; dentre outras. 660 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2014. 661 Ver mais informações em: Id., Relatório de Visita à Penitenciária Laércio da Costa Pellegrino. Ofício MEPCT/RJ nº 116/2014; e Id., Relatório de Visita à Cadeia Pública Bandeira Stampa. Ofício MEPCT/RJ nº 0062/2014.

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que na maioria dos casos aplica-se o isolamento celular662. O mesmo

entendimento é esposado pelo SPT, a partir de sua visita ao país:

Durante suas visitas, o SPT se deparou com muitos prisioneiros que eram detidos em celas de isolamento disciplinar. A partir das entrevistas com esses detentos, ficou claro que a punição era frequentemente aplicada como reação às reclamações, de modo regular. Também ficou evidente que os detentos não confiavam em nenhum mecanismo de queixa disponível. De acordo com alegações de detentos no presídio Nelson Hungria, os prisioneiros mantidos em segregação disciplinar eram confinados 24 horas por dia, por trás de uma porta dupla de metal. As sete celas de punição, nesse presídio, eram frequentemente inundadas pela água da chuva663.

Outra grave forma de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes é o uso

das sanções coletivas. A superlotação prisional é um elemento que contribui

diretamente para a imposição de castigos coletivos como forma de conter e

disciplinar o efetivo carcerário. O MEPCT/RJ relata que em várias oportunidades

os presos relatam casos nos quais uma galeria inteira havia ficado semanas sem

visita dos familiares ou sem banho de sol por determinação da Direção em

represália a ato indisciplinar cometido por um interno ou por um grupo de

presos664.

Por fim, verifica-se o apogeu do retribucionismo penitenciário na figura do

Regime Disciplinar Diferenciado, incorporado na LEP, em seu art. 52, através da

Lei nº 10.792/2003. No Rio de Janeiro esta modalidade de sanção é

implementada, sobretudo, na Penitenciária Laércio da Costa Pelegrino (Bangu

1)665. Conforme aponta o MEPCT/RJ:

São notórios os danos à saúde mental do interno submetido às privações no que se refere a atividades laborativas e educacionais, bem como as restrições no que tange à assistência familiar ao longo do cumprimento de tal sanção. O preso em cumprimento de regime disciplinar diferenciado não pode ter contato físico com os visitantes, apenas comunica-se através do parlatório. Ademais, constatou-se que não é possível entrar livro na unidade que não seja da biblioteca666.

662 No tocante à sanção disciplinar de isolamento, em geral, as condições de tais espaços são altamente precárias, muitas vezes sem iluminação, colchão ou roupa de cama. Os presos custodiados no isolamento não possuem direito a banho de sol, tampouco a visita. Em geral, a galeria do isolamento não possui exposição à luz solar. Id., Relatório anual 2012. 663 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de visita ao Brasil – 2011. 664 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2014. 665 Ver mais informações sobre a unidade em: Id., Relatório de Visita à Penitenciária Laércio da Costa Pellegrino. Ofício nº 0116/2014 MECPT/RJ. 666 Id., Relatório anual 2014.

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Por tais motivos, parte significativa da comunidade jurídica entende que

este espécie de sanção é inconstitucional667. Desta maneira, ao analisar a prática

das sanções disciplinares, verifica-se que se por um lado busca-se impor no

cárcere um controle disciplinar, por outro observamos uma lógica de desarrazoada

restrição aos direitos do preso, fato que põe em xeque a finalidade de reinserção

social da execução penal, preconizada pela LEP em seu art. 1º.

Se o processo penal é caracterizado pelo arbítrio, a execução penal é ainda

mais sujeita ao autoritarismo. Por sua vez, a sanção disciplinar pressupõe o auge

do exercício do poder disciplinar sem limites claros, sem respeito aos anteparos

mais elementares ao Estado Democrático de Direito.

4.3.7.2 Tortura e Maus Tratos

A realidade carcerária, além das inúmeras formas de violações de direitos

anteriormente mencionadas, é permeada por situações que remetem à condição de

tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.

Verificam-se consistentes relatos de agressões físicas e verbais por parte de

agentes penitenciários.

Na publicação “Monitoramento de locais de detenção: um guia prático” a

Associação para Prevenção à Tortura, discorrendo sobre as diferentes práticas de

tortura físicas e psicológicas afirma:

As equipes de visita devem saber que há práticas, que podem não cair na definição clássica de tortura, as quais são mais difíceis de detectar, e que podem, a longo prazo, destruir o equilíbrio psicológico de quem está privado de liberdade. Estas são muito perigosas, já que com frequência os detentos vítimas dessas práticas estão tão acostumados a esse tratamento que nem sempre estão em posição de identificar e informar sobre as mesmas de forma explícita668.

667 Em 2012, o Instituto dos Advogados Brasileiros aprovou Parecer pela inconstitucionalidade do R.D.D. Cumpre ainda salientar que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária unanimemente apresentou parecer questionando a constitucionalidade da inclusão do R.D.D no texto da Lei de Execução Penal, especialmente os arts. 52, 53, V, 54, 58 e 60. Na mesma esteira, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, através do processo n° 045/2006 opinou pela inconstitucionalidade desta inovação legislativa. 668“Os seguintes são exemplos dessas práticas: ignorar sistematicamente uma solicitação até que ela se repita várias vezes; dirigir-se às pessoas privadas de liberdade como se fossem crianças pequenas; nunca olhar nos olhos; (...) criar um clima de desconfiança entre os detentos; permitir o descumprimento dos regimentos uma vez e castigar caso não se cumpra em outra oportunidade”.

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Tortura, violação de direitos, corrupção e tráfico de favores são algumas

das práticas que compõem a rotina do sistema penitenciário do Rio de Janeiro. Em

74% das unidades prisionais analisadas nesta pesquisa houve denúncias expressas

de torturas e outros maus tratos. Justamente o conjunto de instituições cuja razão

de ser é aplicar as sanções previstas por lei sobre aqueles que a violaram tem sua

dinâmica pautada por desrespeitos recorrentes dos preceitos legais669. Segundo

aponta o SPT:

126. Vários detentos se queixaram de abusos e maus-tratos envolvendo insultos, sanções arbitrárias e humilhação por parte dos guardas das prisões. Em Ary Franco, o SPT observou que a atmosfera geral era altamente repressiva e caracterizada pelo contínuo tratamento degradante dos internos. O SPT recebeu relatos consistentes de maus-tratos, incluindo a destruição de pertences pelos agentes penitenciários ou pelos “faxinas”. Os internos eram forçados a adotar posições humilhantes durante transferências ou inspeções. Por fim, o SPT também recebeu alegações de espancamentos670.

Em relatório de fiscalização à Cadeia Pública José Frederico Marques, o

MEPCT/RJ aponta que foram uníssonos os relatos de agressões físicas e

verbais sem motivo aparente na unidade, cuja “recepção é extremamente

violenta com demonstrações abusivas de poder e uso da força por meio de

“esculachos” como gritos de “quem manda na cadeia somos nós” e agressões

como tapas no rosto, nas costas, bem como chutes”. Aponta ainda que:

A porta de entrada do sistema penitenciário do Rio de Janeiro tornou-se uma espécie de rito de passagem onde sanções informais e violência institucional tornam-se regra com o objetivo de “docilizar” os indivíduos recém-ingressos no cárcere. O vasto conjunto de relatos de violência física e ameaças dão conta de uma realidade onde o princípio da dignidade humana, insculpido no art. 1º, III da Constituição Federal, é cotidianamente aviltado671.

Foi relatado ainda o uso corriqueiro e desnecessário de spray de pimenta

como forma de intimidação pelos agentes. Os xingamentos também são Associação para a Prevenção à Tortura, Monitoramento de locais de detenção: um guia prático, p. 103-104. 669 CANO, I., SENTO SÈ, J. T., FREIXO, M., As Condições de Encarceramento no Rio de Janeiro. 670 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de visita ao Brasil – 2011. 671 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório de visita à Cadeia Pública José Frederico Marques. Ofício nº 19/2015 MEPCT/RJ.

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constantes: “Aqui não é a casa de vocês”, “Não tem direitos humanos!” Alguns

presos mostraram a equipe visitante hematomas e marcas de ferimento por

agressões sofridas672.

Outra situação emblemática consiste na utilização irregular de armas de

fogo pelos agentes penitenciários. Em visita ao Instituto Penal Plácido de Sá

Carvalho, foi relatado pelos apenados que tiros são disparados a esmo como

forma de intimidação673.

Entretanto, a mais frequente forma de violência institucional apontada no

cárcere reside no reiterado uso indiscriminado da força por parte do Serviço de

Operações Especiais (SOE)674, especialmente no translado para outras unidades,

para diligências externas ou para realização de atendimento médico externo. Os

presos relatam que são algemados de maneira extremamente penosa e amontoados

aos montes em viaturas pequenas, chegando a alocar vinte pessoas em viaturas

com capacidade para o transporte apenas quatro. Conforme aponta o MEPCT/RJ,

os internos denunciam que o SOE “esculacha muito” e que enquanto praticam

sessões de espancamento afirmam que “quebram e o médico conserta”675.

Tal uso sistemático da violência institucional serve como sanção informal,

ou mesmo, como medida preventiva para obtenção de obediência. Segundo aponta

o SPT:

Os métodos utilizados pelo pessoal do SOE, segundo estas alegações, incluíam trancar um grande número de detentos em posições desconfortáveis, algemados e sem ventilação; abrir as portas para espirrar spray de pimenta nos detentos e depois fechar o veículo. Espancamentos, insultos e ameaças também foram relatados676.

672 Ibid. 673 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório de visita ao Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho. Ofício nº 06/2014 MEPCT/RJ. 674 O Departamento do Serviço de Operações Especiais - SOE, pertencente à Coordenação de Segurança que está ligada à Subsecretaria Adjunta de Gestão Operacional, e possui dois grupamentos Especiais: o Grupamento de Intervenção Tática – GIT – criado em 21 de junho de 2004, cuja base é localizada no Complexo Penitenciário de Gericinó (Bangu) e tem por finalidade intervir em motins e rebeliões instauradas nas penitenciárias, presídios e casas de custódia em todo o estado do Rio de Janeiro; o Grupamento de Serviço de Escolta – GSE – que tem como atribuições: apresentação de apenados aos Juízos Criminais das diversas comarcas do Rio de Janeiro, apresentação de presos em hospitais do Sistema e na rede pública, elaborar minuciosamente os trajetos a serem percorridos pelas equipes de escolta, auxiliar o GIT em situações de rebeliões, fugas, motins, etc. Ministério da Justiça, Plano Diretor do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. 675 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2014. 676 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura, Relatório de visita ao Brasil – 2011.

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O uso indiscriminado da força contribui para uma cultura de autoritarismo,

medo, torturas, não responsabilização dos agressores e aniquilação da

subjetividade das pessoas privadas de liberdade. Não obstante isso, o Princípio

XXIII, dos Princípios e Boas práticas para a Proteção das Pessoas Privadas de

Liberdade nas Américas estabelece que:

o pessoal dos locais de privação de liberdade não empregará a força e outros meios coercitivos, salvo excepcionalmente, de maneira proporcional, em casos de gravidade, urgência e necessidade, como último recurso depois de terem sido esgotadas previamente as demais vias disponíveis, e pelo tempo e na medida indispensáveis para garantir a segurança, a ordem interna, a proteção dos direitos fundamentais da população privada de liberdade, do pessoal ou das visitas”.

Desta maneira, percebe-se uma sistemática realidade de violência

institucional, na forma de tortura e outros maus tratos, perpetrada por agentes

públicos contra pessoas as pessoas privadas de liberdade, gerando condições de

detenção absolutamente incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.

Nesta travessia pelo arquipélago carcerário do Rio de Janeiro, verificamos

que desde os primeiros estabelecimentos prisionais instalados ainda no período

colonial, a realidade de superlotação, violência e precariedade estrutural se faz

constante. A perda do status de capital da república trouxe consequências

profundas para o sistema penitenciário, agravando as condições de detenção.

Em meados da década de 1990, o Rio de Janeiro passou a se apresentar

como laboratório das políticas criminais neoliberais. Especialmente a partir de

2007, com sua definição enquanto sede dos Jogos Pan-americanos, e,

posteriormente, da Copa do Mundo de 2014, e dos Jogos Olímpicos de 2016, o

estado do Rio de Janeiro implementou um programa criminalizante repressivista,

no ensejo de assegurar ares de ‘cidade segura’ para tais megaeventos.

Percebe-se o acentuado crescimento da população prisional, tanto no

Brasil como no Rio de Janeiro. Especialmente no período entre 2011 e 2014, o

efetivo carcerário fluminense cresce 56%, mais do que o dobro do crescimento da

população prisional nacional no período677. Uma vez que o crescimento da

677 Ministério da Justiça/DEPEN. Levantamento de Informações Penitenciárias 2014.

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população prisional brasileira só perde para a Indonésia, entre 1995 e 2014678,

pode-se concluir que o Rio de Janeiro é uma das regiões do planeta com maior

velocidade de encarceramento na atualidade. A comparação com Nova Iorque,

considerada o laboratório do Leviatã neoliberal estadunidense, revela que a

população prisional nova-iorquina vem diminuindo progressivamente desde 2006

com uma redução de cerca de 11 mil presos até 2014, ao passo que a do Rio de

Janeiro, vem apresentando crescimento exponencial, resultando num acréscimo de

cerca de 18 mil encarcerados no período.

Este grande encarceramento em curso no Rio de Janeiro caracteriza-se por

uma brutal seletividade punitiva. Os indicadores sobre o perfil do preso

demonstram, no Rio de Janeiro assim como em todo o país, que os alvos

preferenciais da prisão são jovens (58%), negros (72%), do sexo masculino

(95%), de baixíssima escolaridade (57% sequer ensino fundamental completo),

em sua maioria acusados de tráfico de substâncias ilícitas ou crimes patrimoniais

(62%). Ressalta-se ainda, uma tendência de ligeiro aumento do nível de

escolaridade, e de incremento da segregação de jovens e negros.

Ademais, observa-se que o panorama das unidades prisionais do Rio de

Janeiro evidencia uma estrutural realidade de superlotação e violações de direitos

das pessoas privadas de liberdade, configurando penas draconianas, claramente

vedadas pela Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e outros

Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

Nesta perspectiva, não importam as funções positivas da pena, apenas o

poder disciplinar voltado à produção da obediência. Segurança e disciplina

passam a ser os postulados-chave do sistema penitenciário, de modo que os

direitos fundamentais inerentes à pessoa privada de liberdade, como a saúde, o

trabalho, a educação, a assistência jurídica e familiar, são aviltados

cotidianamente.

Deste modo, estas mazelas redundam no índice de reincidência da ordem

de cerca de 70%, que apenas reafirma o potencial criminógeno do cárcere. Única

função que lhe resta é, pois, a função retributiva. Assim, o sistema penitenciário

678 Ibid.

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fica adstrito a uma perspectiva vindicativa, como locus expiatório da culpa dos

desviantes afastados do convívio social.

O cenário calamitoso que se ergue demonstra que o projeto moderno de prisão

que teria como finalidade a correção do preso, como apontou Foucault, naufragou

completamente. Neste sentido, é necessário refletir pormenorizadamente acerca da

realidade prisional na periferia do capitalismo, como se verifica no Rio de Janeiro,

indagando em que medida pode-se apontar que o sistema prisional assume nesta

região marginal um quadro sistêmico de tortura, dando ensejo ao delineamento de

um novo modelo penitenciário, e de novas funções penalógicas na Era do Grande

Encarceramento.

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5 Tortura e Sistema Penitenciário: o Cárcere como Exceção Permanente

No momento, esposo o ponto de vista de que a questão penitenciária não tem solução “em si”, porque não se trata de um problema “em si”, mas parte integrante de outro maior: a questão criminal, com referência ao qual não desfruta de qualquer autonomia. A seu turno, a questão criminal também nada mais é que mero elemento de outro problema mais amplo: o das estruturas sócio-político-econômicas. Sem mexer nestas, coisa alguma vai alterar-se em sede criminal e, menos ainda, na área penitenciária. (Augusto Thompson)679

A tortura é uma das principais violências perpetradas contra o ser humano.

Sua prática pressupõe a inflição de profunda dor física e psicológica, com o

objetivo de promover a neutralização e aniquilamento do outro. Ao longo dos

tempos, a tortura tem sido utilizada como uma técnica de poder marcante na

história da humanidade e permeia a trajetória da sociedade brasileira.

Segundo aponta a filósofa Marilena Chauí, “o autoritarismo é estrutural, isto

é, o modo de ser e de se organizar da própria sociedade brasileira”680. O

autoritarismo se expressa desde os quatro séculos de escravidão das populações

indígenas e africanas, passando pelas ditaduras do século XX, até alcançar suas

permanências no atual contexto “democrático”, distinguindo claramente, como

observa Paulo Arantes, as “classes confortáveis” das “classes torturáveis”681.

Esta violência institucional, verificada como longa permanência

autoritária, se expressa de modo contundente nos cárceres. Analisando a tortura na

Península Ibérica no sistema penal do Antigo Regime, Ana Lucia Sabadell verifica

três peculiaridades: seu caráter legal, seu caráter investigatório e como forma de

679 THOMPSON, A., A Questão Penitenciária, p. 110. 680 CHAUÍ, M., Democracia e autoritarismo: o mito da não violência, p.135. 681 O autor observa como alvos preferenciais da tortura na história brasileira, os indígenas, negros e pobres. " Às classes confortáveis do núcleo orgânico correspondiam, como um complemento exato, as classes torturáveis nas zonas periféricas do sistema. Em tempo: na literatura especializada, e chocada, com esse paradoxo brasileiro que vem a ser a explosão exponencial da violência à medida que se consolida a “democratização” da sociedade observa-se que as classes torturáveis são compostas especificamente por presos comuns, pobres e negros, torturáveis obviamente nas delegacias de polícia e prisões, rotina invisível que o escândalo da ditadura militar recalcou ainda mais, por ser inadmissível torturar brancos de classe média”. ARANTES, P., Extinção, p.163.

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pressão682. Em sua visão, a tortura seria um meio para obtenção da confissão,

diante da equiparação do crime ao pecado, de tal sorte que a tortura não era

concebida como um ato de barbárie.

No mesmo sentido, Gizelene Neder identifica “a tendência exterminadora

deste sistema penal que vige poderoso no mundo ibero-americano, através da

autorização do emprego da tortura, cuja base no mundo da cristandade ocidental,

latina”683.

Este ranço autoritário guarda relações com as matrizes ibéricas de nosso

direito criminal como apontado por Nilo Batista. Em sua busca, o autor aponta

que encontrou:

Sistemas penais dirigidos contra os servos, os judeus, os hereges (todos, com sobrevivência colonial), tanto quanto, no processo de nossa formação nacional, os tivemos também contra os índios, os negros, os trabalhadores, as prostitutas, e recentemente contra aquelas multidões que não encontraram lugar vago à mesa do seleto banquete neoliberal. (...) Saber o quanto dessas matrizes ibéricas está viva no limiar do século XXI é condição impostergável de qualquer projeto que pretenda conhecer e transformar o sistema penal brasileiro684.

As palavras de Batista revelam a imprescindibilidade de revisitar as

agruras do vetusto sistema penal ibérico para refletir criticamente sobre o

presente. Partindo desta historicidade, pretendemos examinar a longa permanência

da tortura como método de imposição de sofrimento no sistema penal, analisando

sua perpetração nos cárceres contemporâneos.

A tortura e os tratamentos degradantes na execução da pena constituem

uma das principais formas de violência institucional, utilizada muitas vezes como

imposição de dominação e controle de certos grupos sociais. Como salienta Johan

Galtung, de modo geral a violência institucional dirige-se à:

(...) desumanização do outro, fazendo parecer de algum modo ‘menor’, ‘sem valor’, e atribuindo-lhe características inteiramente negativas e más são também componentes de violência cultural. Racismo, xenofobia, e as culturas do

682 SABADELL, A. L., Tormenta juris permissione: Tortura e Processo Penal na Península Ibérica (séculos XVI – XVIII). 683 NEDER, G., Iluminismo Jurídico-Penal Luso-Brasileiro: obediência e submissão. 684 BATISTA, N., Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro I, p. 23-26.

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imperialismo, patriarcalismo e neoliberalismo são todas expressão da mesma (tradução nossa)685.

No capítulo anterior pudemos verificar as mazelas do sistema prisional do

Rio de Janeiro, delineando uma realidade endêmica de superpopulação, absoluta

precariedade material, escassez de atividades laborativas e educacionais ou outras

medidas supostamente afeitas à função “ressocializadora”, proliferação de

doenças e insalubridade, império do arbítrio e distintas formas de maus tratos.

Este conjunto de relatos de condições desumanas e degradantes reforça o

entendimento esposado por Juarez Tavares:

O sistema carcerário nacional, além de não possuir as condições mínimas para a concretização do projeto corretivo previsto nas normas nacionais e internacionais, apresenta uma eficácia invertida, isto é, atua de forma deformadora e estigmatizante sobre o condenado686.

Neste capítulo, buscaremos identificar em que medida a prisão, na Era do

Grande Encarceramento, pode ser apontada enquanto uma sanção aflitiva que

corporifica a tortura de modo sistêmico. Pretende-se verificar a que ponto a

penalidade neoliberal no Rio de Janeiro, como laboratório do Leviatã punitivo na

periferia capitalista, essencialmente traduz-se em tratamentos cruéis, desumanos e

degradantes.

Primeiramente, abordaremos o cânone dos direitos humanos voltado à

tutela das pessoas privadas de liberdade no sistema penitenciário, examinando

tanto os parâmetros protetivos internacionais como nacionais, para por fim,

colocar em questão os descompassos entre o arcabouço protetivo formalmente

previsto aos presos e a realidade operativa do sistema prisional.

No segundo item, nos debruçaremos sobre a tortura perpetrada na pena

privativa de liberdade. Será necessário percorrer a trajetória de enfrentamento à

forma de violência institucional, identificar o conceito de tortura e sua necessária

ampliação no contexto contemporâneo, bem como a percepção de sua prática no

sistema prisional do Rio de Janeiro.

685 GALTUNG, J.; JACOBSEN, C.; BRAND-JACOBSEN, K. F., Searching for peace: the road to transcend, p. 18. 686TAVARES, J., Parecer sobre as Condições do Sistema Prisional Brasileiro.

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Por fim, no terceiro item, analisaremos a prisão à luz de categorias

trabalhadas por Giorgio Agamben, nos marcos da exceção permanente,

verificando a pertinência da categoria campo para pensar a prisão, e o preso

associado à figura do homo sacer. Ademais, no bojo da prisão como manifestação

da exceção permanente, serão identificados tanto o modelo penitenciário como as

funções assumidas pela pena de prisão no contexto do grande encarceramento.

5.1 Direitos Humanos e Sistema Penitenciário

O Brasil é reconhecido por um grande paradoxo nas relações

internacionais. Ao mesmo tempo em que se apresenta como um país com sólidas

posições favoráveis aos direitos humanos em sua atuação junto aos organismos

internacionais687, todavia, concretamente convive, no plano interno, com uma

realidade de sistemáticas violações aos direitos e garantias dispostos nos marcos

protetivos nacionais e internacionais, especialmente no que se refere à população

prisional.

O sistema internacional de proteção aos direitos humanos foi oficialmente

incorporado pelo Brasil a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988.

Inicia-se, portanto, a remoção do entulho autoritário, que ao longo dos anos de

chumbo se valia flagrantemente da tortura e da execução sumária como políticas

de estado - sustentáculo político-criminal da ditadura civil-militar de 1964.

5.1.1 Parâmetros Protetivos Internacionais 5.1.1.1 Instrumentos Universais O Brasil é signatário de diversas Convenções e Tratados Internacionais que

visam prevenir atos de tortura e práticas de tratamento cruel, desumano ou

687 Após passar a integrar o Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 2009, o Brasil foi um dos primeiros países a ser considerado pelo novo mecanismo de Revisão Periódica Universal. Nesse exercício, foi elogiado pelos Estados por sua disposição para o diálogo e pelo reconhecimento dos desafios que ainda enfrenta. Recebeu 15 recomendações e se comprometeu voluntariamente a criar um sistema nacional de indicadores de direitos humanos e a elaborar relatórios anuais sobre a situação de direitos humanos no país. Conselho de Direitos Humanos, A/HRC/DEC/8/109 - Outcome of the universal periodic review: Brazil.

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degradante688. No que se refere aos instrumentos de abrangência universal, ou

seja, que se aplicam a todos os estados podemos apontar os seguintes:

a) Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. Adotada e proclamada

pela Resolução nº 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas

em 10 de dezembro de 1948. Assinada pelo Brasil na mesma data.

“Artigo V: Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel,

desumano ou degradante.” 689

b) Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Aprovado em 16

de dezembro de 1966 e promulgado pelo Brasil pelo Decreto No 592 de 6 de julho

de 1992.

“Art. 7°: Ninguém será submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis,

desumanos ou degradantes. Em particular, ninguém será submetido sem seu livre

consentimento a experiências médicas ou científicas.”690

“Artigo 10: Toda pessoa privada de liberdade será tratada humanamente e com o

respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”.

c) Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC).

Aprovado em 16 de dezembro de 1966 e promulgado pelo Brasil pelo Decreto

No 591, de 6 de julho de 1992.

“Art. 2º. Inciso 2: Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a garantir

que os direitos nele enunciados e exercerão em discriminação alguma por motivo

de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem

nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra

situação.”691

688 Sobre o caráter vinculativo e o status supralegal destes instrumentos universais de direitos humanos, ver: PIOVESAN, F., Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 689 Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm. Acessado em: 06/06/2015. 690 Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm. Acessado em: 06/06/2015. 691 Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_dir_economicos.htm. Acessado em: 06/06/2015.

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d) Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e outros Tratamentos ou

Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Aprovada em 10 de dezembro e

ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989.

“Art. 2º, inciso 1: Cada Estado Parte tomará medidas eficazes de caráter

legislativo, administrativo, judicial ou de outra natureza, a fim de impedir a

prática de atos de tortura em qualquer território sob sua jurisdição”692.

e) Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da

Criminalidade e de Abuso de Poder. Resolução nº 40/34 da ONU aprovada em

Novembro de 1985.

“1. Afirma a necessidade de adoção, a nível nacional e internacional, de medidas

que visem garantir o reconhecimento universal e eficaz dos direitos das vítimas da

criminalidade e de abuso de poder.”693

f) A Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas Contra os

Desaparecimentos Forçados. Resolução 47/133 de 18 de dezembro de 1992.

“Art. 1º, inciso 2: Todo ato de desaparecimento forçado subtrai a vítima da proteção da lei e causa grandes sofrimentos a ela e a sua família. Constitui uma violação das normas de direito internacional que garantem a todo o ser humano o direito ao reconhecimento da sua personalidade jurídica, o direito à liberdade e à segurança da sua pessoa e o direito de não ser submetido a torturas nem a outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Viola, além disso, o direito à vida, ou o coloca sob grave perigo”694.

g) Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos

ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (OPCAT). Aprovado pela

Resolução nº 57/199 da ONU e promulgado pelo Brasil através do Decreto n°

6.085 de 19 de abril de 2007.

“Art. 3º. Cada Estado Parte deverá criar, designar ou manter, a nível interno, um ou mais organismos de visita para a prevenção da tortura e outras penas ou

692 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0040.htm. Acessado em: 06/06/2015. 693 Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/tortura/Dec_pincipios_basicos.pdf. Acessado em: 06/06/2015. 694 Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-externa/DecProtTodPesDesFor.html. Acessado em: 06/06/2015.

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tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (doravante denominado mecanismo nacional de prevenção).”695

5.1.1.2 Instrumentos Regionais

Com relação aos instrumentos protetivos de direitos humanos em âmbito

regional, ou seja, com abrangência aos Estados nacionais das Américas696,

destacam-se:

a) Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa

Rica). Adotada em 22 de novembro de 1969 e ratificado pelo Brasil em 25 de

setembro de 1992.

“Artigo 5º, inc. II: Ninguém será submetido a torturas nem a penas ou tratamentos

cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade tem direito a

que se respeite a dignidade inerente à pessoa humana”697.

b) Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Aprovada em

09 de dezembro de 1985 e ratificada pelo Brasil em 20 de julho de 1989.

“Art. 7º. Os Estados Partes tomarão medidas para que, no treinamento de agentes de polícia e de outros funcionários públicos responsáveis pela custódia de pessoas privadas de liberdade, provisória ou definitivamente, e nos interrogatórios, detenção ou prisões, se ressalte de maneira especial a proibição do emprego da tortura. Os Estados Partes tomarão medidas semelhantes para evitar outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”698.

c) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência

contra a Mulher. Aprovada em 09 de junho de 1994 e ratificada pelo Brasil em

27 de novembro de 1995699.

695 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6085.htm. Acessado em: 06/06/2015. 696 Sobre o caráter vinculativo e o status supralegal destes instrumentos regionais, ver: PIOVESAN, F., op. cit. 697 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm. Acessado em: 06/06/2015. 698 Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/tortura.pdf. Acessado em: 06/06/2015. 699 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/D1973.htm. Acessado em: 06/06/2015.

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d) Protocolo à Convenção Americana referente à Abolição da Pena de Morte.

Adotado em 8 de junho de 1990 e ratificado pelo Brasil em 13 de agosto de

1996700.

5.1.1.3 Padrões Internacionais Não-vinculantes701

Há outros padrões internacionais não vinculantes que se aplicam aos

direitos e garantias das pessoas privadas de liberdade. Alguns contêm proibições

explícitas à tortura e maus tratos, outros apresentam padrões e medidas que

contribuem para sua prevenção. Destacam-se os seguintes documentos:

a) Convenção Europeia de Direitos Humanos. Aprovada em 04 de novembro de

1950.

“Art. 3º: Ninguém será submetido a tortura nem a tratamentos ou castigos

desumanos ou degradantes.”702

b) Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos. Resolução adotada em 31

de Agosto de 1955.

Regra 31. “As penas corporais, clausura em cela escura, assim como toda sanção

cruel, desumana ou degradante, ficarão completamente proibidas como sanções

disciplinares.”703

c) Conjunto de Princípios Básicos para a Proteção de Todas as Pessoas sob

qualquer Forma de Detenção ou Prisão. Adotados pela Assembleia Geral das

Nações Unidas em sua resolução 43/173em 09 de dezembro de 1988.

Princípio 3: No caso de sujeição de uma pessoa a qualquer forma de detenção ou prisão, nenhuma restrição ou derrogação pode ser admitida aos direitos do homem reconhecidos ou em vigor num Estado ao abrigo de leis, convenções, regulamentos

700 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2754.htm. Acessado em: 06/06/2015. 701 Sobre o caráter não vinculativo de instrumentos internacionais, ver: PIOVESAN, F., op. cit. 702 Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=536&lID=4. Acessado em: 06/06/2015. 703 Disponível em: http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_12.htm. Acessado em: 06/06/2014.

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ou costumes, sob o pretexto de que o presente Conjunto de Princípios não reconhece esses direitos ou os reconhece em menor grau704.

d) Princípios Básicos para o Tratamento dos Reclusos. Adotados pela

Assembleia Geral das Nações Unidas em sua Resolução nº 45/111 de 14 de

dezembro de 1990.

“Princípio 1: Todos os reclusos devem ser tratados com o respeito devido à

dignidade e ao valor inerentes ao ser humano.”705

e) Regras Mínimas para a Elaboração de Medidas não Privativas de

Liberdade (Regras de Tóquio). Adotadas pela Assembleia Geral das Nações

Unidas na sua resolução 45/110, de 14 de Dezembro de 1990.

“Regra 1.1. As presentes Regras Mínimas enunciam uma série de princípios

básicos tendo em vista favorecer o recurso a medidas não privativas de liberdade,

assim como garantias mínimas para as pessoas submetidas a medidas substitutivas

da prisão.” 706

f) Os Princípios Relativos a uma Eficaz Prevenção e Investigação das

Execuções Extralegais, Arbitrárias e Sumárias. Aprovados pela Assembleia

Geral das Nações Unidas em 15 de Dezembro de 1989, através da Resolução

44/162707.

g) Protocolo de Istambul: Publicado pelas Nações Unidas em 2001.

Manual para investigação e documentação eficazes da tortura e outras penas ou

tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes708.

h) Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e

medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de

Bangkok): Adotadas pela resolução 2010/16 de 22 de julho de 2010709.

704 Disponível: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/sistema-prisional/conj_principios.pdf. Acessado em: 06/06/2014. 705 Disponível: http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_13.htm. Acessado em: 06/06/2015. 706 Disponível em: http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_11.htm. Acessado em: 06/06/2015. 707 Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/exec/exec89.htm. Acessado em: 06/06/2015. 708 Disponível em: http://www.achpr.org/pt/instruments/istanbul-protocol/. Acessado em: 06/06/2015.

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i) Regras de Mandela (Atualização das Regras Mínimas para o Tratamento de

Prisioneiros da ONU, de 1955). Aprovadas em 22 de maio de 2015.

“Assegura-se a independência dos médicos e se estabelece amplas restrições sobre

as medidas disciplinares, como a proibição de aplicar o regime de isolamento por

mais de 15 dias” 710.

j) Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos

humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero (Princípios

de Yogyakarta). Elaborados em novembro de 2006.

k) Recomendações do Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à

Tortura (SPT) e do Comitê da ONU Contra a Tortura (CAT). Recomendações

não vinculativas aos Estados-parte do OPCAT elaboradas pelo SPT e pelo CAT

para adequação das condições de privação de liberdade aos padrões internacionais

de direitos humanos711.

l) Recomendações do Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura, bem

como do Comitê e do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Recomendações não vinculativas aos Estados membros da Assembleia Geral da

ONU, para adequação das condições de privação de liberdade aos padrões

internacionais de direitos humanos712.

709 Disponível em: http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2012/09/Tradu%C3%A7%C3%A3o-n%C3%A3o-oficial-das-Regras-de-Bangkok-em-11-04-2012.pdf. Acessado em: 06/06/2015. 710 “As Regras de Mandela podem ser o anúncio de uma nova era na qual se respeitem plenamente os direitos humanos dos presos”, disse Yuval Ginbar, assessor jurídico da Anistia Internacional, que observou a reunião em Viena. Mais informações disponíveis em: https://anistia.org.br/noticias/regras-de-mandela-sobre-tratamento-dos-prisioneiros/. Acessado em: 14/07/2015. 711 Disponíveis em: http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/OPCAT/Pages/Brief.aspx. Acessado em: 14/07/2015. Anistia Internacional. Combatendo a Tortura – Manual de Ação. Reino Unido, 2003. APT/CEJIL. La Tortura em el Derecho Internacional. Guia de Jurisprudencia. Suíça, 2008. 712 Disponíveis em: http://www2.ohchr.org/english/bodies/chr/. Acessado em: 14/07/2015. Anistia Internacional, Combatendo a Tortura – Manual de Ação. APT/CEJIL. La Tortura em el Derecho Internacional. Guia de Jurisprudencia.

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5.1.2 Parâmetros Protetivos Nacionais

Com relação aos padrões vigentes no plano interno, no que se refere à

previsão de parâmetros protetivos aos direitos das pessoas encarceradas,

destacam-se a Constituição Federal de 1988, a Lei de Execução Penal (Lei

7.210/84) e a Lei do Crime de Tortura (Lei 9.455/97). Apresentam-se ainda como

relevantes, recomendações de órgãos públicos que possuem atribuição legal para o

controle da execução penal no país:

a) Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

A Lei Fundamental consagra aos presos, como sujeitos de direitos, o Princípio da

dignidade humana (art. 1º, III); Garantia de proibição da tortura e tratamento

desumano ou degradante (art. 5º, III); princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX);

princípio da personalidade (art. 5º, XLV); princípio da individualização da pena

(art. 5º, XLVI); princípio da humanidade das penas (art. 5º, XLVII); princípio da

isonomia no sistema penitenciário (art. 5º, XLVIII); Garantia de integridade

psicofísica (art. 5º, XLIV); Garantia de permanência com os filhos (art. 5º, L);

Garantias processuais penais (art. 5º, LIII, LIV, LV, LVII e LXXIV). Estes e

inúmeros outros direitos fundamentais – como vida, saúde, educação, alimentação

adequada e acesso à justiça – são gravemente afrontados pela vexaminosa

realidade dos nossos cárceres713.

b) Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210 de 11 de julho de 1984).

A lei de Execução Penal confere de forma expressa aos presos em geral os

seguintes direitos, dentre outros: 1) direito ao uso do próprio nome (art. 41, XI da

LEP); 2) direito a alimentação, vestuário e alojamento; 3) direito a assistência

médico-odontológica, sendo assegurado o direito de contratar médico de sua

confiança pessoal; 4) direito ao trabalho remunerado; 5) direito de se comunicar

reservadamente com seu advogado; 6) direito a previdência social (auxílio-

reclusão);7) direito a seguro contra acidente de trabalho; 8) direito à proteção

contra qualquer forma de sensacionalismo;9) direito à igualdade de tratamento, 713 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acessado em: 06/06/2015.

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salvo quanto a individualização da pena; 10) direito à proporcionalidade na

distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; 11) direito à

visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;

12) direito a contato com o mundo exterior por meio de leituras e outros meios de

comunicação que não comprometam a moral e os bons costumes714.

c) Lei do Crime de Tortura (Lei nº 9.455 de 07 de abril de 1997).

Confere eficácia ao mandamento constitucional e convencional de criminalização

da tortura, tipificando o crime de tortura na ordem jurídica nacional715.

d) Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil

(Lançado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República

em 2006).

Sistematiza um conjunto de ações que é apresentado aos Estados da Federação

com vistas a constituir uma agenda de políticas públicas e de procedimentos

articulados entre os três Poderes, nos níveis municipal, estadual e federal716.

e) Regulamento Penitenciário Federal (Decreto nº 6.049 de fevereiro de 2007).

Regulamenta o funcionamento do sistema penitenciário federal717.

f) Regulamentos Penitenciários Estaduais.

O Regulamento do Sistema Penal do Estado do Rio de Janeiro foi aprovado

através do Decreto nº 8.897, de 31 de março de 1986. Ressalte-se que o

documento é anterior à Constituição de 1988.718

714 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7210.htm. Acessado em: 06/06/2015. 715 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9455.htm. Acessado em: 06/06/2015. 716Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/pp/a_pdfdht/plano_br_acoes_integradas_prevencao_tortura.pdf. Acessado em: 14/07/2015. 717 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6049.htm. Acessado em: 06/06/2015. 718 Disponível em: http://www.sindsistema.com.br/?pagina=legislacaoviw2&id=88. Acessado em: 14/07/2015. Sobre a trajetória histórica do Regulamento Penitenciário do Rio de Janeiro, ver: ROIG, R. D. E., Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil.

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g) Resoluções de órgãos públicos com atribuição legal de controle da

execução penal.

Resoluções do Conselho Nacional de Justiça719, Conselho Nacional de Política

Criminal e Penitenciária720 e Conselho Penitenciário dos estados, bem como

outros órgãos públicos.

h) Recomendações dos Mecanismos de Prevenção e Combate à Tortura e

outros órgãos de monitoramento.

Recomendações elaboradas pelo Mecanismo Nacional e pelos Mecanismos

Estaduais721, bem como outros órgãos de monitoramento dos locais de privação de

liberdade, como Defensoria Pública, Ministério Público, Conselhos da

Comunidade e Comissões de Direitos Humanos.

Como observado neste panorama dos instrumentos protetivos, desde o

processo de redemocratização do país e em particular a partir da Constituição

Federal de 1988, que tutela com centralidade a dignidade humana722, o Brasil tem

adotado importantes medidas em prol da incorporação de documentos

internacionais voltados à proteção dos direitos humanos 723. Sendo assim, é

possível apontar que, do ponto de vista formal, os direitos humanos das pessoas

privadas de liberdade encontram-se amplamente protegidos no Brasil, panorama

diametralmente oposto à sua observância concreta, em face das diuturnas

violações de direitos no cárcere.

719Disponível em: http://www.cnj.jus.br/sistemas/resolucoes/677-resolucao-46. Acessado em: 14/07/2015. 720 Resolução 14 do CNPCP (1994). Art. 1º. As normas que se seguem obedecem aos princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem e daqueles inseridos nos Tratados, Convenções e regras internacionais de que o Brasil é signatário devendo ser aplicadas sem distinção de natureza racial, social, sexual, política, idiomática ou de qualquer outra ordem. Art. 2º. Impõe-se o respeito às crenças religiosas, aos cultos e aos preceitos morais do preso. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/cnpcp/data/Pages/MJB3298AE3PTBRNN.htm. Acessado em: 14/07/2015. 721 Relatórios do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura podem ser obtidos no sítio da APT na internet. Disponível em: http://www.apt.ch/pt. Acessado em: 14/07/2015. 722 “A dignidade da pessoa humana, (...) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro”. PIOVESAN, F., op. cit., p. 54. 723 Ibid.

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5.1.3 O Divórcio entre o binômio normatividade-realidade no Sistema Penal

Apesar da proclamação de direitos em declarações, convenções,

legislações e princípios relativos à privação da liberdade, os cárceres brasileiros se

transfiguram em porões de sofrimento, invisibilizados e silenciados. As violações

são contumazes e soam como escárnio diante dos compromissos assumidos em

defesa da dignidade humana no cárcere. Como aponta Cesar Barros Leal:

A leitura dos instrumentos do sistema universal e regional de proteção dos direitos humanos (particularmente, no que concerne às pessoas privadas de liberdade), das constituições, dos códigos e das leis que tratam da execução da pena, na América Latina e no Caribe, reafirma uma verdade já sabida e inconcussa: o divórcio, tão triste, quanto grotesco, entre a teoria e a práxis.724

Revela-se, desta maneira, o abismo entre as promessas não cumpridas do

Estado de Direito e a infamante realidade carcerária. Esta noção é corroborada a

partir de declaração do Subcomitê da ONU para a Prevenção à Tortura em visita

ao Brasil:

O SPT concorda com outros mecanismos das Nações Unidas que têm declarado que o quadro jurídico brasileiro sobre a prevenção da tortura é, em grande medida, adequado. A definição de tortura em sua legislação interna, bem como as salvaguardas jurídicas existentes contra a tortura, os maus-tratos e os direitos das pessoas privadas de liberdade, estão, de maneira geral, em conformidade com os padrões internacionais. O SPT preocupa-se, contudo, com a lacuna existente entre o aparato jurídico e sua aplicação na prática, uma vez que a maioria das garantias e dos direitos dispostos na legislação nacional são amplamente ignorados. Conforme observado pelo Relator Especial sobre Tortura, no seguimento de sua visita em 2001, muitas das recomendações meramente solicitavam que as autoridades respeitassem as leis brasileiras existentes725.

Este divórcio presente entre normatividade (teoria) e realidade (práxis) na

execução penal remete ao discurso aos franceses, proferido por Ferdinand Lassale

no século XVIII, no qual o jurista asseverou que a Constituição é a soma dos

fatores reais de poder. Vale destacar a seguinte passagem:

724 LEAL, C. B., Execução Penal na América Latina à luz dos Direitos Humanos, p. 117. 725 Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura. Relatório de Visita ao Brasil - 2011.

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Essa é, em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem um país. Mas, que relação existe com o que vulgarmente chamamos Constituição com a Constituição jurídica? Não é difícil, senhores, compreender a relação que ambos os conceitos guardam entre si. Colhem-se esses fatores reais do poder, escrevemo-los em uma folha de papel, dá-se-lhes expressão escrita e a partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito, nas instituições jurídicas e quem atentar contra eles atenta contra a lei, e, por conseguinte é castigado.726 A tese de Lassale demonstra a diferença entre “constituição de papel” -

mero texto normativo -, e a “constituição real” - os fatores reais de poder. Nesta

esteira, vislumbra-se a distinção entre “constituição formal” e “constituição

material”.

Segundo José Afonso da Silva, constituição material pode ser

compreendida em duas acepções727. Uma primeira, “restrita”, concebe que

constituição material significa as normas constitucionais escritas que regulam a

estrutura do estado, organização de seus órgãos e direitos fundamentais. Em

sentido formal, é um documento escrito elaborado pelo Poder Constituinte apenas

modificável a partir de formalidades especiais. A segunda acepção, a “ampla”, é

identificada com a organização do Estado. É a partir desta classificação de

constituição material, em perspectiva ampla, que se pode compreender como se

processa o divórcio entre as previsões normativas e a realidade da execução penal

no Brasil.

Neste sentido, pretendemos atentar sobre a dinâmica operativa do sistema

penal, não tendo por referência seus dispositivos constitucionais pertinentes, mas,

sim, sua governamentalidade. O pano de fundo desta análise não é o modelo

jurídico institucional (constituição formal), mas o modelo biopolítico do poder

(constituição material) como diz Agamben728, pois o léxico de referência não é

encontrado no Estado Democrático de Direito, mas sim no Estado de exceção.

Nesta perspectiva, Hardt e Negri ao observarem a atual conjuntura política,

no contexto do que chamam de sociedade mundial de controle729, afirmam que a

726 LASSALE, F., O que é uma Constituição?, p. 57-58. 727 SILVA, J. A., Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 37. 728 AGAMBEN, G., Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I, p. 16. 729 Tal conceito é formulado a partir das reflexões de Foucault acerca da disseminação da biopolítica. O autor chega a falar em “sociedade de segurança”. FOUCAULT, M., Segurança, Território e População. Posteriormente, dando continuidade ao trabalho iniciado, Deleuze irá forjar a expressão “sociedade de controle” DELEUZE, G., PostScriptum sobre as sociedades de

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“constituição formal” torna-se obsoleta diante da “constituição material

biopolítica”, que define a excepcionalidade730.

É, portanto, à luz deste Estado de exceção permanente compreendido no

cárcere que se processa a dinâmica operativa do sistema punitivo. Não é por outro

motivo que Elias Neuman afiança, ao analisar o flagrante descumprimento dos

direitos humanos na prisão, que “esses tipos de normas são como os faróis de um

carro que iluminam a rota, porém não o manejam”731.

Contudo, a despeito da fragilidade de sua força normativa no universo

penitenciário, os direitos humanos não podem ser concebidos como utopia no que

tange à efetivação dos direitos mínimos da humanidade, mas devem ser

concebidos, como salienta Zaffaroni, como um verdadeiro programa de longo

alcance, cujo objetivo primordial é proteger a pessoa humana e realizar a

igualdade de direitos732. É justamente esta discrepância entre o ‘real’ e o ‘legal’

que gera condições propícias para a prática recorrente para obtenção de segurança

e disciplina no ambiente carcerário.

5.2 Tortura e Pena Privativa de Liberdade

Nos espaços de confinamento, a tortura, enquanto um crime de

oportunidade733, ganha sua forma mais aguda seja através dos procedimentos de

extrair confissões, nas respostas às reivindicações das pessoas privadas de

liberdade por melhores condições de tratamento, nas intimidações, retaliações e

punições internas, frequentemente marcadas por espancamentos, privações e

humilhações. Portanto, a temática do enfrentamento à da tortura em espaços de

controle. A utilização desta categoria para aludir ao contexto contemporâneo conduz Hardt a nomear a “sociedade mundial de controle” HARDT, M., A sociedade mundial de controle. 730

Na visão dos autores, a fonte de normatividade da gestão biopolítica global alia dois fatores: o Estado de exceção permanente, e as técnicas de poder de polícia. HARDT, M. e NEGRI, A., Império, p. 34. 731 NEUMAN, E., Carcel y Submission, p. 44. 732 ZAFFARONI, E., Em Busca das penas perdidas, p. 149. 733 “Investiga-se a tortura como um crime de oportunidade, pois ela é caracterizada por ser prática racional, funcional e eficaz, resultante de um modelo inquisitorial de investigação criminal, que cria um ambiente propício para a tortura e impede que seja esta investigada, comprometendo, desse modo, o sistema acusatório judicial.” MAIA, L. M., Prevenção, punição e reparação à tortura no Brasil, à luz do direito internacional dos direitos humanos, p. 12.

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privação de liberdade constitui eixo central para a afirmação de uma cultura de

respeito aos direitos humanos. Assim, de acordo com Soares:

A discussão sobre a tortura, onde quer que se dê, envolve aspetos históricos, filosóficos, morais, jurídicos, políticos, psicológicos e sociais. No Brasil, trata-se de questão crucial e mobilizadora na área dos Direitos Humanos, embora negligenciada – ou manipulada em nome de interesses escusos – no debate público. Se o tema provoca aversão e indignação militante e propositiva de um lado, por outro também desvela certo silêncio, mesclado de medo e desconforto, quando não explícita tolerância, além da omissão criminosa de certas autoridades734.

Ao mesmo tempo em que fere corpos e mentes através de práticas

autoritárias e institucionalizadas de medo e terror, a tortura representa também,

conforme destaca Almeida, uma forma nefasta de constituir dominação e

hegemonia, através do fenômeno da violência que:

(...) se expressa sob várias modalidades, envolvendo sujeitos com inserção determinada em um conjunto de relações sociais concretas. Essas relações são constituídas em uma cultura particular e conformam os processos de institucionalização da violência no Brasil. Desse ângulo, a violência não pode ser considerada errática, posto que se instala na vida social, sendo dirigida a indivíduos que corporificam relações sociais determinadas, e não à corporeidade de seres abstratos. Embora o corpo seja o objeto mais imediato da violência, seus efeitos incidem sobre as consciências (Vásquez, 1977) e influenciam as estratégias de luta e resistência dos segmentos sociais que constituem os seus alvos privilegiados – sujeitos de relações múltiplas que se entrecruzam na produção e reprodução da vida, e, portanto, das suas desigualdades e contradições735.

Esta aviltante técnica de desumanização permanece ainda atual e endêmica

nos tentáculos do poder punitivo, a despeito do fato de a tortura ser proibida pelo

Direito Internacional, em termos absolutos, não podendo ser justificada sob

nenhuma circunstância. Convém observar os esforços empreendidos ao

enfrentamento desta permanência autoritária nas agruras do sistema penal.

734 SOARES, M. V., Tortura no Brasil, uma herança maldita, p. 21. 735 ALMEIDA, S., Violência e Direitos Humanos no Brasil, p. 42.

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5.2.1 O Enfrentamento à Tortura

A Declaração Universal dos Direitos Humanos assinada em 10 de

dezembro de 1948 foi o primeiro instrumento a estabelecer princípios

internacionais no que tange à temática da tortura. Com ela, a humanidade

estabeleceu a compreensão mínima de que a Tortura não é aceitável em nenhuma

circunstância, inscrevendo, sob seu artigo 5º, que “ninguém será submetido à

tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano e degradante”.

Em 1966, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU

(PIDCP) reitera a proibição internacional à tortura acrescentando, em seu artigo

7º, a vedação a “experiências médicas ou científicas”736. Três anos após, é

aprovada a Convenção Americana de Direitos Humanos conhecida como Pacto de

San Jose da Costa Rica, na qual a proibição da tortura menciona ainda que “toda

pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade

inerente ao ser humano.”737.

Ressalta-se que tais pactos foram firmados em um período sob o jugo das

ditaduras civis-militares na América Latina, foi marcado pela repressão política,

prisões ilegais, desaparecimentos forçados, execuções e torturas que

vilipendiaram as já “abertas veias da América Latina”. O Estado Brasileiro só veio

ratificar tais instrumentos internacionais mais de vinte anos depois, em 1992.

As décadas de 1960 e 1970 intensificaram a visibilidade do tema da tortura

no mundo, com campanhas importantes, tanto por parte da sociedade civil, como

por organismos internacionais738. Entretanto, o ponto alto desta trajetória

encontra-se em 1984, quando a Assembleia Geral da ONU no dia 10 de dezembro

736 Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, Art. 7º “Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médias ou cientificas”. 737 Convenção Americana de Direitos Humanos. Art. 5º, inc. 2: “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.” 738 Em 1972, a organização Anistia Internacional lançou sua primeira campanha mundial contra tortura e publicou, no ano seguinte, relatório contendo informações sobre tortura e maus tratos em mais de 70 países. A ONU adotou, em 1975, a Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas Contra Tortura que recomenda medidas aos Estados para impedir tal prática. Dois anos depois, é criada a Associação para Prevenção à Tortura (APT) com intuito de estabelecer um sistema internacional de visitas aos locais de privação de liberdade.

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adota a Convenção Contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,

Desumanos ou Degradantes, que apresenta em seu art.1º a seguinte definição:

O termo tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castiga-las por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza, quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de suas funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento e aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.

A Convenção é considerada até hoje o mais importante instrumento

jurídico sobre a matéria no mundo, dando ensejo à posterior criação de

convenções regionais.

A Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA)

em 1985 adota a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.

Em seu texto, a prática de tortura também está restrita à ação dos funcionários

públicos por ação, omissão, por instigação ou indução de terceiros por

funcionários ou empregados públicos739.

Adentrando a década de 90, mais especificamente em 1993, a

Conferência Mundial da ONU sobre Direitos Humanos pautou o tema da luta

contra a tortura com destaque ao fato de sua prática ser mais comum, nos locais

de privação de liberdade, preconizando, portanto a adoção de um sistema de

medidas preventivas740.

739 “Para os efeitos da presente Convenção entender-se-á por tortura todo ato realizado intencionalmente pelo qual se imponham a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fim de investigação criminal, como meio de intimidar, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena, ou com qualquer outro fim. Se entenderá também como tortura a aplicação sobre uma pessoa de métodos que tendam a anular a personalidade da vítima ou a diminuir sua capacidade física ou mental, ainda que não causem dor física ou angústia psíquica. Não estarão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente conseqüência de medidas legais ou inerentes a estas, sempre que não incluam a realização de atos ou aplicação de métodos a que se refere o presente artigo.” Art. 2º. Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. 740 O Programa de Ação de Viena e o movimento internacional de organizações no combate à tortura entendiam que era preciso a criação de órgãos que pudessem realizar monitoramento contínuo nestes locais, sobretudo de maneira preventiva.

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Finalmente, em 18 de dezembro de 2002, a Assembleia Geral das Nações

Unidas adotou o Protocolo Facultativo à Convenção contra Tortura e outros

Tratamentos, penas, cruéis, desumanos e degradantes (OPCAT) com propósito de

estabelecer maiores elementos na prevenção da tortura. O Protocolo Facultativo se

destaca por estabelecer um sistema de visitas periódicas por órgãos independentes

aos centros de detenção dos Estados-parte com a intenção de prevenir a tortura

através de dois pilares: a criação de um Subcomitê Internacional (SPT) e dos

Mecanismos de Prevenção Nacionais (MPN).

5.2.2 Definindo o Conceito de Tortura

A definição de tortura utilizada internacionalmente decorre, sobretudo, do

Art. 1° da Convenção da ONU Contra a Tortura. Seu texto permite apontar seis

elementos caracterizadores:

i) Inflição de dor ou sofrimento físico ou mental: importante observar, que

diferentemente do que apregoa o senso comum sobre o tema, a tortura não é

necessariamente física741. O art. 2º da Convenção Interamericana complementa

esta tipologia, destacando ainda que “se entenderá também como tortura a

aplicação sobre uma pessoa de métodos que tendam a anular a personalidade da

vítima”.

ii) Severidade: a dor ou o sofrimento devem ser agudos742, caso contrário o ato

não se coaduna com o conceito de tortura, podendo caracterizar maus tratos

(outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes743), proibidos pelo

art. 16 da Convenção da ONU Contra a Tortura.

741 Como salienta Maia a possibilidade da tortura decorrer de violência psicológica “conduz ao entendimento que a tortura é instrumento de substituição ou aniquilamento da vontade livre e consciente do torturado. Esta parte do conceito abrange o uso de substâncias químicas, que alteram as expressões de humor”. MAIA, L. M., op. cit., p. 114. 742 A noção de severidade é relativa, devendo levar em conta aspectos como duração do tratamento, seus efeitos físicos ou mentais, bem como as condições da vítima. Corte Europeia de Direitos Humanos. Caso Selmoni v. France, par. 100. 743 “A Corte considera um tratamento ‘desumano’ quando entre outras coisas, foi premeditado, foi aplicado por horas a fio e causou (...) sofrimento físico ou mental intensos. Considera um tratamento ‘degradante’ quando foi suficiente para fazer surgir nas vítimas sentimentos de medo,

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iii) Intencionalidade: a tortura compreende tanto atos comissivos e omissivos744,

mas não se admite a modalidade culposa, apenas dolosa745.

iv) Finalística ou discriminatória: para que o ato seja caracterizado como

tortura, é preciso que seja praticado com um propósito determinado (obter

confissões ou informações; castigar; intimidar ou coagir)746 ou motivado por

qualquer forma de discriminação747.

v) Agente público: o ato deve ser infligido por, ou instigado por, ou com o

consentimento ou aquiescência de um funcionário público ou agente que esteja no

exercício de funções públicas. O Comitê da ONU Contra a Tortura já se

manifestou no sentido de que o agente não necessita estar agindo sob ordens

explícitas de um Estado748.

O Brasil, contrariando os diplomas internacionais que ratificou, ao tipificar

o crime de tortura em âmbito interno, através da Lei nº 9.455/97, admitiu como

angústia e inferioridade capazes de humilhá-las e rebaixá-las”. Corte Europeia de Direitos Humanos. Caso Kudia v. Poland, 26 de outubro de outubro de 2000, par. 92. 744 Comitê da ONU para a Prevenção à Tortura. Conclusões sobre o Chile, UN Doc. CAT/C/CR/32/5 (14 de junho de 2004). 745 Corte Europeia de Direitos Humanos. Caso MAHMUT Kaya v. Turkeya, 28 de março de 2000, par. 117. 746 Comparatto alerta sobre a incompletude desta definição, uma vez que deveriam estar incluídos os crimes de terror praticados pelos Estados aos movimentos políticos considerados subversivos. COMPARATTO, F., A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. No mesmo sentido, Burges e Danelius apontam que talvez um elemento que una as finalidades da tortura dispostas no texto da Convenção seja “alguma conexão com os interesses e políticas do Estado e seus órgãos”. BUGERS e DANELIUS. The United Nations Convention against Torture, p. 119. 747 Compreende-se aqui qualquer forma de discriminação contra minorias e grupos vulneráveis, como em razão de classe social, cor, raça, etnia, gênero, religião, orientação sexual, orientação política, idade, procedência, nacionalidade, condição de pessoa com deficiência, condição de saúde, inclusive a condição de preso ou egresso do sistema penitenciário. SÉGUIN, E., Minorias e grupos vulneráveis: uma abordagem jurídica. 748 Comitê da ONU para a Prevenção à Tortura. Caso Sadiq Shek Elmi v. Australia, 14 de maio de 1999, pars. 6 e 7.

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sujeito ativo, além do agente público, também o agente privado749, acarretando,

assim, perniciosos efeitos750.

vi) Exclusão das sanções ilegítimas: a segunda sentença do Art. 1 afirma que a

definição de tortura não abarca “dores ou sofrimentos que sejam consequência,

inerentes ou decorrentes de sanções legítimas”.

O Relator Especial da ONU sobre Tortura já se manifestou no sentido de

que esta restrição “deve necessariamente se referir àquelas sanções que

constituem práticas amplamente aceitas como legítimas pela comunidade

internacional, como a privação de liberdade através do aprisionamento, comum a

quase todos os sistemas penais”751. Entretanto, ainda que previstas na ordem

jurídica, caso configurem afronta à dignidade humana, “penas cruéis, desumanas

ou degradantes são, por definição, ilegítimas”.

5.2.3 Ampliando o Conceito de Tortura

A compreensão sobre a abrangência do conceito de tortura tem-se ampliado

significativamente desde a Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura em

1984752. As técnicas comumente identificadas como tortura (choques elétricos,

golpes na planta do pé, suspensão em posições dolorosas, espancamentos, estupro,

sufocamento e afogamentos, queimaduras, simulação de execuções, privação de

alimentos, sono e comunicação) passaram a não ser suficientes para dar conta do

conjunto de práticas que devem ser classificadas deste modo.

749 Segundo a legislação brasileira, o particular poderá praticar o delito de tortura nas seguintes hipóteses: Lei 9.455/97, Art. 1º: inc. I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico e mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa. Inc. II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de dois a oito anos. 750 Tal diferenciação tem provocado amplos debates no campo dos direitos humanos no país, entendida como uma forma de diluir os crimes praticados pelo Estado. Além disso, a realidade tem mostrado uma predominância de condenação por crimes cometidos no âmbito privado tais como punições a babás, violência intrafamiliar o que se constitui um paradoxo com o conceito internacional de tortura. Vide: MARQUES DE JESUS, M. G. e CALERONI, V., Julgando a tortura: Análise de jurisprudência nos tribunais de justiça do Brasil (2005-2010). 751 Relator Especial da ONU sobre Tortura. E/CN.4/1997/7, par.8. 752 Anistia Internacional, Combatendo a Tortura – Manual de Ação, p.93.

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Dentre as práticas repressivas que vem sendo interpretadas como tortura ou

maus-tratos por organismos e mecanismos internacionais de direitos humanos,

bem como cortes e comissões regionais de direitos humanos, podem ser

citados753:

a) Intimidação: A noção de sofrimento mental é um componente da definição de

tortura, previsto expressamente no art. 1 da Convenção Contra a Tortura. O

Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura aponta que “o medo da tortura

física pode, por si mesmo, constituir tortura mental”, observa ainda que “a

ausência de marcas de tortura não deveriam necessariamente ser tratadas por

juízes e promotores como sendo prova de que são falsas tais alegações” 754.

Nesse sentido, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas

(ONU) também já se referiu à intimidação como possível forma de tortura755. De

igual sorte, a Comissão de Direitos Humanos da ONU declarou que “intimidação

e coerção, como descrito no art. 1 da Convenção, inclusive ameaças sérias e

verdadeiras, bem como ameaças de morte, ameaças à integridade física da vítima

ou de terceira pessoa, podem ser consideradas como tratamento cruel, desumano

ou degradante, ou ainda como tortura”756.

b) Privação sensorial: A Corte Europeia de Direitos Humanos, no caso Irlanda v.

Reino Unido, defendeu que a utilização de cinco técnicas de privação dos

sentidos, aplicadas conjuntamente em interrogatórios de prisioneiros suspeitos de

terrorismo, correspondiam a tratamento desumano e degradante. No mesmo caso,

a Comissão Europeia de Direitos Humanos havia classificado tal fato como

tortura757.

753 Documentos da Anistia Internacional e da Associação para a Prevenção à Tortura apresentam com profundidade o debate sobre a abrangência do conceito de tortura nos organismos internacionais e sua jurisprudência a respeito do tema. Anistia Internacional. Combatendo a Tortura – Manual de Ação. Reino Unido, 2003. APT/CEJIL. La Tortura em el Derecho Internacional. Guia de Jurisprudencia. Suíça, 2008. 754 Relator Especial da ONU sobre Tortura. Relatório sobre visita ao Azerbaijão, E/CN.4/2001/66/Adic.1, par. 7 e par. 115. 755 Assembleia Geral da ONU. Resolução 56/143, de 19 de dezembro de 2001, par. 1. Ver também: Caso Rojas Garcia v. Colômbia, 3 de abril de 2001, par. 10.5. 756 Comissão de Direitos Humanos da ONU. Resolução 2002/38 de 22 de abril de 2002, par. 6. 757 Comissão Europeia de Direitos Humanos. Ireland v. UK., Relatório da Comissão, 25 de janeiro de 1976, Yearbook, p. 792.

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Outra decisão sobre a matéria veio do Comitê da ONU Contra a Tortura, ao

considerar que a privação sensorial e a “quase total proibição de comunicação” a

qual eram submetidos prisioneiros de uma penitenciária de segurança máxima no

Peru causaram “sofrimento constante e injustificado que corresponde à tortura”758.

c) Condições de detenção: A Comissão Europeia de Direitos Humanos, ao

avaliar a “superlotação extrema” e outras mazelas do sistema prisional na Grécia,

considerou que as condições de detenção correspondiam a tratamento desumano

ou degradante, violando a Convenção Europeia de Direitos Humanos759.

No mesmo sentido, a Corte Europeia de Direitos Humanos tem inúmeros

posicionamentos considerando as precárias condições de detenção como

tratamento desumano ou degradante760. Na visão do Comitê da ONU Contra a

Tortura, certas condições de detenção correspondem a tratamento desumano ou

degradante e outras correspondem especificamente à tortura761. O Comitê da

ONU Contra a Tortura também já constatou condições desumanas ou degradantes

em vários países europeus762.

Para o Comitê de Direitos Humanos da ONU, em muitos cárceres,

verificam-se violações aos artigos 7 ou 10 do Pacto Internacional de Direitos

Civis e Políticos763. Segundo o Relator Especial sobre Tortura, as precárias

condições de detenção podem enquadrar-se como cruéis, desumanas ou

degradantes764, e em alguns casos, como “torturante”765.

Determinadas mazelas do cárcere como superlotação, falta de acesso a

água e alimentação, ausência de cuidados médicos, negação do suprimento das

necessidades básicas de higiene para mulheres, confinamento em solitária por

longa duração, também são objeto de constatação de maus-tratos por organismos

internacionais de direitos humanos.

758 Comitê da ONU Contra a Tortura. A 56/44, par. 186. 759 Comissão Europeia de Direitos Humanos. Greek Case, Relatório da Comissão, Parecer sobre o art. 3, par. 18, Yearbook, p. 505. 760 Caso Dougoz v. Greece, p. 48; Caso Peers v. Greece, p. 75. 761 Resultado da investigação sobre o Peru. A/56/44, pars. 178, 183 e 186. 762 Evans e Morgan, 1998, pp. 243-245. 763 Rodley, 1999, pp. 286-295, 304-305. 764 Relatório sobre visita à Venezuela, E/CN.4/1997/7/Ad.3, par. 81. 765 Relatório sobre visita à Federação Russa, E/CN.4/1995/34/Ad.1, par. 71.

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d) Uso excessivo da força para cumprimento da lei: A Corte Europeia de

Direitos Humanos já manifestou que “no que diz respeito a uma pessoa privada de

sua liberdade, o uso da força física que não tenha sido estritamente motivado pela

conduta da pessoa em questão diminui a dignidade humana e é, em princípio, uma

infração do direito exposto no art. 3 da Convenção (Europeia de Direitos

Humanos)”766.

e) Penas Corporais: O Comitê de Direitos Humanos da ONU afirmou que a

proibição da tortura e dos maus tratos, contida no art. 7° do PIDCP “deve se

estender às penas corporais, o que inclui castigos excessivos determinados como

punição por um crime ou como medida educativa ou disciplinar”767. Nesta

matéria, a Corte Europeia de Direitos Humanos considerou que certos casos de

aplicação legal de castigos corporais constituem pena degradante768.

f) Penas de morte: O Comitê da ONU Contra a Tortura, ao examinar os relatórios

dos Estados-partes na Convenção Contra a Tortura, referiu-se ao uso continuado

da pena de morte como motivo de grande preocupação, ressaltando que a

incerteza de muitas pessoas que aguardam a execução corresponde a “tratamento

cruel e desumano”, por fim, salientando que a pena de morte deveria ser abolida o

quanto antes769.

g) Outras formas de tortura e maus tratos: Os organismos internacionais,

assim como mecanismos e cortes regionais de direitos humanos também

consideram possível caracterização de tortura ou tratamento ou pena cruel,

desumano ou degradante em situações como: formas de tortura baseada no

gênero770, discriminação racial771, desaparecimentos forçados772, destruição

forçada de casas773 e abusos em conflitos armados774.

766 Ribitsch v. Austria, 4 de dezembro de 1995, par. 38. 767 Comentário Geral 20, par. 5. 768 Tyrer v. UK., 23 de setembro de 1998, par. 21. 769 A/54/44, par. 45(i), referindo-se a Belarus; e A/54/44, par. 39(g), referindo-se à Armênia. 770 O Relator Especial da ONU sobre Tortura se referiu a atos de estupro, abuso e assédio sexual, teste de virgindade e aborto forçado como constituindo “formas de tortura baseadas em gênero”. A/55/290, par. 5. 771 A Comissão Europeia de Direitos Humanos sustentou que “a discriminação baseada na raça, poderia, em certas circunstâncias, por si só, corresponder a tratamento degradante, segundo o

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5.2.4 A Tortura no Sistema Penitenciário do Rio De Janeiro

O sistema carcerário representa um terreno fértil para a prática da tortura.

Como anteriormente mencionado, a tortura é classificada como um crime de

oportunidade, condições estas que se tornam amplamente presentes em uma

instituição total, marcada por elevado índice de corrupção, estresse e violência;

invisibilidade ao mundo externo; precariedade estrutural; cultura de autoritarismo;

verticalização de relações de poder e alta vulnerabilidade dos internos. Conforme

observa Luciano Mariz Maia - um dos principais responsáveis pela elaboração do

Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura no país - esta trágica

combinação revela que:

As situações de violência institucional mais relacionadas com ocorrências de práticas de tortura, diretamente, ou como agravamento de situações de aplicação de penas ou tratamento degradantes, desumanos ou cruéis, dão-se em decorrência de superpopulação carcerária; manutenção de presos em delegacias; realização de revistas íntimas degradantes, humilhantes, vexatórias e invasivas da intimidade e privacidade das pessoas; prestação de assistência médica inadequada; fornecimento de alimentação inadequada; prestação de assistência jurídica inadequada. Isoladamente ou tomadas em conjunto, essas situações, que constituem violência institucional, podem resultar em tortura.775

Não é por acaso que a tipificação do crime de tortura no Brasil prescinde

da exigência de finalidade específica na conduta do autor quando se trata de

tortura perpetrada mediante subjugação de preso, ou de quem esteja sujeito à

medida de segurança, como prevê o art. 1º, §1º da Lei 9.455/97: “na mesma pena

sentido do art. 3 da Convenção (Europeia de Direitos Humanos)”. East African Asians v. UK., Relatório da Comissão, 14 de dezembro de 1973, par. 207. 772 O Relator Especial sobre tortura afirmou que “detenção incomunicada prolongada em lugar secreto pode ser considerada tortura como descrito no art. 1 da Convenção Contra a Tortura”. A/54/156, par. 14. A este respeito, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já sustentou que “a mera submissão de um indivíduo a isolamento prolongado e privação de comunicação é, por si mesma, tratamento cruel e desumano”. Velasquez Rodriguez v. Honduras, 29 de julho de 1988, par. 187. 773 O Comitê da ONU Contra a Tortura afirmou que as políticas praticadas por Israel com relação a demolições e bloqueios de casas de palestinos “podem, em certos casos, corresponder a tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”. Terceiro Relatório Periódico de Israel, CAT/C/XXVII/Concl.5, 23 de novembro de 2001, pars. 6(i) e 6(j). 774 Tribunal da Iugoslávia. Prosecutor v. Blaskic, 3 de março de 2000, pars. 738, 743. 775 MAIA, L. M., op. cit., p. 133.

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incorre quem submete pessoa presa ou sujeita à medida de segurança a sofrimento

físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não

resultante de medida legal.”

Esta modalidade não contém o especial fim de agir, nem o intenso

sofrimento, diversamente do que ocorre com as figuras dos incisos I (com a

finalidade de obter informação, ou confissão; para provocar ação ou omissão

criminosa; ou em razão de discriminação) e II (com o fim de aplicação de castigo

ou medida preventiva) do art. 1º. Aqui, o legislador retirou, portanto, os elementos

que distinguem tortura de tratamento desumano, degradante ou cruel, equiparando

as penas. Como salienta Maia, “o pressuposto parece ser que alguém preso, ou

submetido a medida de segurança, seja particularmente vulnerável. Essa

vulnerabilidade presumida faz aumentar o dever de proteção dos agentes do

Estado”776. Ademais, a sanção cabível é ainda majorada caso o torturador seja

agente público (art. 1º, §4º, inc. I).

Esta percepção é reafirmada a partir de relatórios que revelam que a

temática da tortura no Brasil vem sendo regularmente acompanhada por órgãos

públicos, organismos e organizações de direitos humanos, nacionais e

internacionais.777

Em relatório sobre visita realizada ao Brasil em 2000, o Relator Especial

da ONU sobre Tortura, Nigel Rodley, observa que:

A tortura e maus tratos semelhantes são difundidos de modo generalizado e sistemático na maioria das localidades visitadas pelo Relator Especial no país e, conforme sugerem testemunhos indiretos apresentados por fontes fidedignas ao Relator Especial, na maioria das demais partes do País também. A prática da tortura pode ser encontrada em todas as fases de detenção: prisão, detenção preliminar, outras formas de prisão provisória, bem como em penitenciárias e instituições destinadas a menores infratores. Ela não acontece com todos ou em todos os lugares; acontece, principalmente, com os criminosos comuns, pobres e negros que se envolvem em crimes de menor gravidade ou na distribuição de drogas em pequena escala. (...) A consistência dos relatos recebidos, o fato de que a maioria dos detentos ainda apresentava marcas visíveis e consistentes com seus

776 Ibid., p. 118. 777 Além de organizações não governamentais como a Anistia Internacional, e a Human Rights Watch, internacionais, o Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH, a Justiça Global e o Grupo Tortura Nunca Mais – GTNM, nacionais, o tema da tortura já foi objeto de análise no Brasil tanto pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, quanto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, passando por visita do Relator Especial Contra a Tortura, da ONU, Sir Nigel Rodley em 2000, e por visita do Subcomitê da ONU para a Prevenção à Tortura, em 2011.

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testemunhos, somados ao fato de o Relator Especial ter podido descobrir, em praticamente todas as delegacias de polícia visitadas, instrumentos de tortura conforme os descritos pelas supostas vítimas, tais como barras de ferro e cabos de madeira, tornam difícil uma refutação das muitas denúncias de tortura trazidas à sua atenção. 778

O Rio de Janeiro destacou-se também na Comissão Parlamentar de

Inquérito sobre o Sistema Penitenciário em 2005, como um dos estados com o

maior número de denúncias de tortura.779 Ademais, em recente levantamento,

elaborado entre 2012 e 2014, a organização de direitos humanos Human Rights Watch

recebeu 5.431 denúncias de tortura ou tratamentos desumanos e degradantes no país.

Deste total, 84% referiam-se a incidentes nos quais a vítima estava sob custódia do

estado em unidades prisionais, delegacias ou unidades socioeducativas.780 O

documento aponta ainda a superlotação das “medievais” prisões

brasileiras, impulsionada pelo encarceramento massivo, como uma grave

problemática que estimula a tortura que se apresenta em um quadro crônico.

No ano de 2015, o Brasil recebeu nova visita da Relatoria Especial das

Nações Unidas sobre Tortura, com o relator Juan Méndez, que reforçou o

entendimento de que a tortura em prisões brasileiras é “endêmica”, ocorrendo de

forma frequente e constante. "Não estou dizendo que todos os presos são

submetidos [à tortura], mas o número de testemunhos e a contundência dos relatos

me levam a crer que não se trata de um fenômeno isolado", afirmou781.

778 Durante sua missão, o Relator Especial visitou o Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Pará. RODLEY, N., Relatório de visita ao Brasil, no ano 2000. O Relatório foi apresentado em Abril de 2001 à Comissão de Direitos Humanos da ONU, e foi catalogado sob número E/CN.4/2001/66/Add. 2. 779 As alegações foram recebidas no período de funcionamento do SOS Tortura, entre 31 de outubro de 2001 a 31 de janeiro de 2004, totalizando 1.863 casos de tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante. Dentre as alegações, que foram recebidas de todos os estados do país, destaca-se o elevado número proveniente dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Pará, Bahia e Rio de Janeiro. Relatório sobre Tortura no Brasil. Câmara dos Deputados. Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Brasília: Câmara dos Deputados, 2005. 780 "A permanência da tortura é um dos pontos mais sensíveis na proteção de direitos humanos no Brasil. Em pelo menos 64 casos de tortura analisados por nós entre 2010 e 2014 em cinco estados (PR, SP, ES, BA e RJ), mais de 150 agentes públicos, policiais civis, militares, agentes penitenciários e socioeducativos, foram identificados." Human Rights Watch, Relatório a situação dos Direitos Humanos no Mundo 2014-2015. Disponível em: http://www.hrw.org/world-report/2015/country-chapters/brazil. Acessado em: 10/07/2015. 781 O relator apresentará um relatório final ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em março de 2016. Disponível em http://www.dw.com/pt/tortura-em-pris%C3%B5es-brasileiras-%C3%A9-end%C3%AAmica-diz-onu/a-18650619. Acessado em: 17/08/2015.

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A cultura da tortura é tão enraizada como prática institucionalizada que o

próprio senso comum consegue dimensiona-la. Pesquisa da Anistia Internacional

aponta o Brasil como o país onde a população possui maior temor de ser vítima de

tortura. Segundo o levantamento, 80% dos entrevistados temem ser torturados

caso sejam detidos pela polícia. Trata-se do maior índice dentre os 21 países

analisados e quase o dobro da média mundial, de 44%782.

Com relação ao sistema prisional do Rio de Janeiro, os relatórios do

Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura dão conta de uma

realidade sistêmica de múltiplas formas de torturas nos espaços de confinamento.

Há inúmeros relatos de tortura física, perpetrados, sobretudo, através de

espancamentos, uso de taser, barras de madeira e ferro, com imobilização da

vítima por meio de algemas, e outras violências783.

Todavia, verificam-se diversos obstáculos à identificação dos indícios de

autoria e prova da materialidade de tais práticas, por um conjunto de fatores: i)

muitas vezes as lesões decorrentes da violência se perdem dias após, o que

inviabiliza o reconhecimento em exame de corpo de delito; ii) vítima muitas vezes

tem medo de proceder a denúncia, pelo elevado risco de represálias; iii) vítima

pode não ter informações ou não obter condições de acessar os canais de

denúncias; iv) as perícias criminais, de modo geral, são realizadas precariamente;

v) o corporativismo muitas vezes presente nos estabelecimentos prisionais, bem

como nas corregedorias, alimenta uma cultura de não responsabilização do agente

perpetrador da tortura; vi) as delegacias de polícia e representantes do Ministério

Público, na maioria das vezes, não conduzem investigações baseados em prova

testemunhal de presos ou diante da insuficiência de outras provas; vii) o Poder

Judiciário padece de uma tradição de permissividade com tais práticas,

redundando num cenário de não responsabilização.

Este entendimento é compartilhado pelo Relator Especial sobre Tortura das

Nações Unidas, Juan Méndez que observa a "ausência de uma política forte para

lidar com as ocorrências de tortura, a falta de responsabilização nesses casos e a

782 Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/05/140512_brasil_tortura_vale_rb. Acessado em: 06/08/2015. 783 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório Anual 2012. Id., Relatório Anual 2013. Id., Relatório Anual 2014.

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probabilidade de que a situação se perpetue, e até mesmo que esta prática

aumente, tanto em número como em gravidade"784. Dentre os recentes casos emblemáticos de tortura física perpetrada no

sistema prisional fluminense podem ser apontados os seguintes: Violência sexual

e espancamento – Presídio Ary Franco (02.2012)785; Esquartejamento – Presídio

Carlos Tinoco (31.07.13)786; Agressões físicas e perseguição perpetradas pelo

SOE - Cadeia Pública Bandeira Stampa (15.05.2014)787; Tortura coletiva - Cadeia

Pública José Frederico Marques (2014)788; Violência homofóbica – Presídio

Evaristo de Moraes (22.09.2014)789.

Além da forma tradicional de tortura, podem ser verificadas ainda no

ambiente carcerário do Rio de Janeiro, diversas técnicas de imposição de

sofrimento identificadas no bojo do ‘conceito ampliado de tortura’, segundo a

jurisprudência de organismos internacionais.

784 O especialita em direito humanos, em visita ao Brasil em agosto de 2015, apontou que a maioria dos crimes de totura permanece impune: “Não encontramos provas de que esses crimes foram adequadamente investigados, nem processo penal ou punição. Soubemos de casos seríssimos, mas que, evoluíram, no máximo, para prisão, mas logo soltura dos acusados. Não ouvimos notícia de, sequer, uma condenação pelo crime de tortura. Não quer dizer que não ocorreu. Mas, neste período, não constatamos uma condenação formal”. Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/2015/08/14/3046-relator-da-onu-diz-que-tortura-nos-presidios-do-brasil-heranca-da-ditadura-militar. Acessado em: 17/08/2015. 785 Um preso, de 58 anos de idade e graves problemas de saúde, acusado do crime de estupro, fora colocado propositalmente pelos agentes penitenciários em uma cela de triagem com outros presos, para que aplicassem uma “lição” no mesmo. Após tal fato, o preso foi brutalmente espancado, seviciado sexualmente e estuprado, permanecendo internado por mais de um mês. Ver mais em: Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012. 786 Marcos de Souza Silva foi barbaramente torturado e esquartejado por outros presos. O preso foi espancado, teve as duas orelhas cortadas, os testículos arrancados e foi empalado com um pedaço de madeira. A motivação para o esquartejamento do interno pelos outros presos teria sido seu envolvimento no abuso e morte de uma garota de 2 anos de idade. O preso, sabidamente em condição de altíssima vulnerabilidade, fora colocado, de maneira temerária, em cela coletiva. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2013. 787 O MEPCT/RJ ouviu relatos do interno D.S.B. que relata que já sofreu inúmeras agressões físicas perpetradas por um agente do SOE de nome Isaque Medeiros. Afirma que o mesmo busca vingar-se de fato ocorrido extramuros, tendo o ameaçado com arma de fogo. O interno afirma já ter registrado 4 Boletins de Ocorrência contra o agente sem qualquer resultado. Ver mais em: Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2014. 788 Em 2014 a referida unidade tornou-se a porta de entrada do sistema penitenciário, desde então, tornou-se uma espécie de rito de passagem onde sanções informais e violência institucional são habituais. Os relatos apontam que os presos são submetidos a práticas reiteradas de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, desde as condições básicas de detenção quanto às sessões de espancamentos e torturas, configurando gravíssima violação de direitos humanos. Ibid. 789 E. F. S. afirma que ao comunicar ao chefe de segurança que desejava ser transferido de cela, após cumprir castigo em outra galeria, pois não gostaria de ficar no mesmo local que o seu ex-companheiro, o preso foi conduzido até o corredor em frente a sala de segurança, obrigado a tirar toda roupa, foi algemado ao ar condicionado e agredido com sapatadas nas nádegas. O interno relata que 10 agentes penitenciários participaram da sessão de agressão, cada qual desferindo 10 golpes com o sapato. Ele sofreu ainda golpes na face e foi agredido verbalmente. Ibid.

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a) Intimidação: Com relação à tortura psicológica decorrente de intimidação

aterrorizante, pode-se verificar tal prática nas ameaças de represália e na

imposição indiscriminada de sanções disciplinares coletivas e arbtitrárias. Neste

sentido, destacam-se os casos: Sessão de espancamento e ameça de represália –

Presídio Evaristo de Moraes (31.10.12)790; Sanção disciplinar a uma presa em

represália a denúncias ao SPT – Presídio Nelson Hungria (10.2011)791.

b) Superlotação e condições de detenção: As condições degradantes de

aprisionamento verificadas no capítulo anterior são agravadas pela superlotação.

“O cenário de superlotação endêmica é causador de inúmeras violações de direitos

fundamentais das pessoas privadas de liberdade que ocorrem todos os dias no

interior das unidades neste estado”792.

c) Privação sensorial: a tortura decorrente de privação dos sentidos pode ser

verificada, sobretudo, na imposição de sanções disciplinares atentatórias à

dignidade humana, como o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). No Rio de

Janeiro este castigo é implementado, sobretudo, na Penitenciária Laércio da Costa

Pelegrino (Bangu 1). Há ainda registros de castigos com gravosa privação de

sentidos em outras unidades prisionais, como na Cadeia Pública Bandeira

Stampa793. Em relação ao RDD, o MEPCT/RJ aponta que:

São notórios os danos à saúde mental do interno submetido às privações no que se refere a atividades laborativas e educacionais, bem como as restrições no que tange à assistência familiar ao longo do cumprimento de tal sanção. O preso em cumprimento de regime disciplinar diferenciado não pode ter contato físico com

790Ao solicitar ao agente penitenciário a sua transferência de cela em razão de ameaças por dívida, fora espancado, algemado e agredido com socos, chutes e golpes de tênis – para não deixar marcas no corpo. Diante do relato, o MEPCT/RJ requisitou exame de corpo de delito, procedeu a comunicação do fato à autoridade policial e solicitou a transferência de unidade para o apenado. Entretanto, semanas após, o preso desistiu de prosseguir com a denúncia em razão de ameaças de represália que teria sofrido contra si e contra sua família. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2012. 791 Em cumprimento às visitas de seguimento demandadas pelo SPT após sua visita ao Rio de Janeiro, em outubro de 2011, o MEPCT/RJ, ao visitar o Presídio Nelson Hungria, deparou-se com uma situação com forte indício de represália a uma detenta que havia fornecido informações ao Subcomitê quando de sua presença na unidade. Cerca de duas semanas após a visita do SPT a presa fôra transferida de cela, em decorência de suposto abaixo-assinado de outras presas. A versão da presa relata que a transferência deu-se após a mesma reclamar de recorrentes maus tratos por agressão verbal de uma das agentes para com as presas, sobretudo a uma grávida. Ibid. 792 Id., Relatório anual 2013. 793 Id., Relatório de Visita à Cadeia Pública Bandeira Stampa. Ofício MEPCT/RJ nº 0062/2014.

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os visitantes, apenas comunica-se através do parlatório. Ademais, constatou-se que não é possível entrar livro na unidade que não seja da biblioteca794.

d) Formas de tortura baseadas no gênero: Nas unidades prisionais femininas há

um elevado número de agentes penitenciários de sexo masculino, fato que

propicia incidentes de assédio e abuso sexual795. Ademais, no ano de 2011, o

MEPCT/RJ verificou que o Núcleo de Controle de Presos da Políca Interestadual

(POLINTER) Grajaú, unidade masculina, estava custodiando também mulheres,

em celas próximas o que gerava inúmeros constrangimentos e ofensas, colocando

as mulheres em extrema vulnerabilidade796.

e) Uso excessivo da força para cumprimento da lei: O uso indiscriminado da

força é uma realidade feequente no sistema prisional, sobretudo com o emprego

crescente de armamento de baixa letalidade para a contenção de incidentes ou

mesmo para a imposição de castigos. Um caso grave desta forma de violência

institucional doi verificado no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, em 2012,

em intervenção do Serviço de Operações Especiais (SOE) promovendo

espancamento generalizado e disparos de bala de borracha e spray de pimenta no

efetivo carcerário que não esboçava resistência797.

Este conjunto de técnicas de imposição de sofrimento reforça a percepção

da prisão como uma instituição constantemente eivada de ilegalidade e

inconstitucionalidade. Edmundo Coelho798, ao analisar o sistema penitenciário no

estado do Rio de Janeiro durante a década de 1980, o descreve como tendo

atingido “o seu grau mais alto de deterioração”, no qual quase nada mais funciona

794 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2014. 795 Id., Relatório de Visita à Penitenciária Joaquim Ferreira de Souza. Ofício MEPCT/RJ nº 091/2012. 796 Há denúncias de transporte de presas em viaturas juntamente com homens, inclusive sendo compelidas a sentarem no colo. Ademais, o local onde as presas ficavam alojadas era separado do vestiário dos funcionários apenas por uma porta de grade, colocando-as em situação de constrangimento e vulnerabilidade. Id., Relatório anual 2012. 797 Após desastrosa tentativa de busca de telefones celulares, a equipe do Grupo de Intervenções Táticas (GIT) adentrou à unidade realizou inúmeros disparos de bala de borracha nos corredores dos pavilhões e nas celas, de maneira indiscriminada. Excetuando os presos que foram prestar depoimento na 34ª DP, os demais feridos não receberam atendimento médico. Nenhum preso teria reagido à intervenção. Após, os presos relatam que foram obrigados a ficar nus no pátio, sentados, enfileirados. Neste momento alguns agentes agrediram os internos com cinto no rosto enquanto debochavam dos presos. Relatos afirmam que foi utilizado um porrete, e que os agentes afirmavam que “direitos humanos é madeira!”. Ibid. 798 COELHO, E. C., A Oficina do Diabo e outros estudos sobre criminalidade.

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em níveis mínimos de eficiência. O sistema só não teria entrado em colapso por

conta de “soluções irregulares” voltadas a suprir a omissão do Estado na garantia

dos direitos elementares dos presos. Certamente não poderia vislumbrar que a

penalidade na era neoliberal iria assumir contornos ainda mais perversos, tendo

em seu cerne a tortura como prática sistêmica.

Este diagnóstico aterrador sobre a tortura no sistema penitenciário,

inserido num cenário endêmico de violência institucional, pode receber

importantes contribuições da filosofia política, em especial as reflexões pautadas

pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, com os conceitos de “campo” e “homo

sacer”.

5.3 Prisão e Exceção Permanente

Como apontado no Capítulo II, a caracterização do Estado penal na

periferia capitalista deve ter em mente o espectro biopolítico, deve atentar, não

somente ao recrudescimento das estratégias de controle social punitivo

institucionalizado, mas também visualizar as manifestações contemporâneas do

Estado de exceção permanente.

Giorgio Agamben, na obra Estado de exceção, identifica que a produção

de um discurso de emergência tem sido o elemento que salvaguarda o uso de

medidas excepcionais, diante dos impasses colocados em face da política

contemporânea. Diante de situações de crise, a normatividade do Estado de

Direito é suspensa para reafirmar sua soberania, restabelecer a normalidade

institucional valendo-se para tanto de decretos de plenos poderes que autorizam a

suspensão de direitos fundamentais, como se percebe na edição do Patriot Act e

da Millitary Order nos EUA.

Essa transmissão de medidas de caráter provisório e excepcional para

técnicas permanentes de governo passa a apresentar um grau de indeterminação

entre democracia e absolutismo, entre Estado de Direito e Estado de exceção799.

Sob o prisma do Estado de exceção permanente, Agamben analisa a

categoria “campo” como o locus de indistinção entre fato e direito, externo e

799 AGAMBEN, G., Estado de exceção – Homo sacer II, p. 14.

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interno, lícito e ilícito, zoé e bíos, exceção e regra. O campo é o paradigma do

espaço político que se abre quando a política torna-se biopolítica e o cidadão

torna-se o homo sacer (vida nua).

Neste sentido, as lentes da filosofia política agambeniana podem iluminar

criticamente a compreensão sobre a penalidade neoliberal. Para a análise desta

tese, interessa compreender em que medida a categoria campo possui interfaces

com o cárcere, e como a figura do homo sacer pode ser reveladora da condição

vivenciada pelas pessoas privadas de liberdade.

5.3.1 A Prisão no Paradigma do Campo

Agamben refere-se diretamente ao campo de concentração como a

manifestação localizada da exceção, um espaço de produção da vida nua na

contemporaneidade que gerou a mais absoluta conditio inumana da história800.

Para o autor, este território extrajurídico não assenta origens nos campos do

Holocausto.

Ao invés de deduzir a definição do campo a partir dos eventos que aí se desenrolaram, nos perguntamos antes: o que é um campo, qual é sua estrutura jurídico-política, porque semelhantes eventos aí puderam ter lugar? Isso nos levará a olhar o campo não como fato histórico e uma anomalia pertencente ao passado (mesmo que, eventualmente, ainda verificável), mas, de algum modo, como a matriz oculta, o nomos do espaço político no qual ainda vivemos801.

Suas reflexões propõem que na atualidade é o campo de concentração, e

não a pólis, o paradigma biopolítico do Ocidente. Neste particular, parece-nos que

a mensagem transmitida pelo filósofo não quer dizer que o paradigma do campo

tenha substituído o da pólis, mas que, campo e pólis constituem a ambivalência

oculta na gênese da política ocidental.

Segundo Agamben802, é preciso refletir sobre o estatuto paradoxal do

campo enquanto espaço de exceção, pois, para ele, o campo é um pedaço de

território que é colocado estavelmente fora do ordenamento jurídico normal, mas

800 Id., Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I, p. 187. 801 Ibid., p. 173. 802 Ibid., p. 176.

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não é, por essa razão, um espaço externo. Aquilo que nele é excluído é incluído

através da sua própria exclusão.

No campo a quaestio iuris não é mais absolutamente distinguível da quaestio facti e, neste sentido, qualquer questionamento sobre legalidade ou ilegalidade daquilo que nele sucede é simplesmente desprovido de sentido. O campo é um híbrido de direito e de fato, no qual os dois termos tornam-se indiscerníveis803.

Conforme afirma o autor, os historiadores discutem se os primeiros

campos foram criados pelos espanhóis em Cuba em 1896804 ou pelos ingleses na

guerra dos bôeres 805. Negri, por sua vez, localiza que a primeira experiência

histórica do campo dá-se no século XV, na Espanha.806 O campo chega a seu

paroxismo nos lagers da biopolítica nazista, cujo fundamento não tinha base

jurídica, mas era mera custódia protetiva (Shutzhaft)807. Não era preciso a prática

de infração penal, a simples alegação de representar perigo para a segurança do

Estado permitia o envio de milhões de indivíduos aos campos do Holocausto,

reduzidos à mera condição de vida nua, de homini sacri. Como afirmou Hannah

Arendt, “nos campos tudo é possível” 808.

Portanto, a caracterização do campo significa a possibilidade permanente

de acionar a exceção. Não significa que toda concepção de campo seja como

Auschwitz, mas, assim como Theodor Adorno 809, Agamben, observa Auschwitz

como algo ainda presente na política contemporânea 810. Poderíamos perceber

suas permanências em espaços que configuram “um híbrido de direito e de fato,

no qual os dois termos tornam-se indiscerníveis”811.

Por este olhar, algo oculto parece aproximar os lagers nazistas, os campos

de refugiados de guerra, as prisões de Abhu Graib e Guantánamo, a Faixa de

Gaza, os centros de detenção de imigrantes na Europa, os territórios conflagrados

803 Ibid., p. 177. 804 Curioso o fato de que 106 anos depois seja construída em território cubano a prisão de Guantânamo, símbolo maior do campo no tempo presente. 805 Ibid., p. 173. 806 HARDT, M. e NEGRI, A. Campo. 807 AGAMBEN, G., Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I, pp. 75 e 176. 808 ARENDT, H., Origens do Totalitarismo. 809 ZAMORA, J. A., Th. W. Adorno – Pensar contra a barbárie, pp. 40-61. 810 AGAMBEN, G., O que resta de Auschwitz. 811 Id., Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I, p. 177.

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da Colômbia812, os escombros do Haiti, bem como, a violência policial nas favelas

cariocas. Nesta mesma esteira, certamente pode-se visualizar a realidade do

sistema penitenciário brasileiro.

Trata-se da inclusão exclusiva de que fala Agamben. A prisão está dentro

do direito - as pessoas ali privadas de liberdade cumprem uma sanção jurídico-

penal em razão de condenações criminais -, ao mesmo tempo, está fora da lei –

visto que viola amplamente os padrões de detenção estabelecidos no plano

nacional e internacional.

Este paradoxo torna pertinente para o nosso contexto a caracterização do

continuum gueto-prisão que Wacquant aponta ao analisar as consequências da

ascensão do Estado penal para as periferias estadunidenses. Os cárceres brasileiros

propõem a existência de um continuum favela-prisão813. Dois espaços do Estado

de exceção, dois momentos distintos de estigmatização seletiva. O estigma sobre

as favelas e sobre os cárceres conduz à naturalização de sua condição de campo de

concentração da realidade brasileira.

Esta também é a visão de Vera Regina P. de Andrade quando adverte que:

na periferia da modernidade, contando as vítimas do campo de (des)concentração difuso e perpétuo em que nos tornamos; campo que, apesar de emitir sintomas mórbidos do próprio carrasco (policiais que matam, prisões que matam, denúncias que matam, sentenças que matam direta ou indiretamente), aprendeu a trivializar a vida e a morte, ambas descartáveis sob a produção em série do ‘capitalismo de barbárie’, ao amparo diuturno do irresponsável espetáculo midiático, da omissão do Estado e das instituições de controle814.

Além de descortinar a atualidade do paradigma do campo de concentração

nos cárceres, convém analisar as implicações biopolíticas desta realidade para

aqueles que representam a matéria prima desta máquina de segregação seletivo-

punitiva.

812 “Descoberta vala comum com 200 corpos na Colômbia”. Fonte: www.cartamaior.com.br, Acessado em: 02/02/2010. 813 Segundo aponta o Censo Penitenciário Nacional 1994, 65% da massa carcerária é de negros e 95% são pobres. Ministério da Justiça. Censo Penitenciário Nacional 1994. 814 ANDRADE, V. R. P. de, Pelas mãos da criminologia – O controle penal para além da (des)ilusão, p. 32.

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5.3.2 O preso como homo sacer

Um dos mais intrigantes conceitos trabalhados por Agamben é o de homo

sacer, que resgata do direito romano arcaico enquanto figura humana que pertence

a Deus na forma da insacrabilidade e é incluído na comunidade política pela

matabilidade. O homo sacer815 é aquele em relação ao qual todos os homens agem

como soberanos. É a absoluta vida nua, a vida cujo morticínio não configura

homicídio. É uma vida absolutamente matável, objeto de uma violência que

excede tanto a esfera do direito como a do sacrifício. É o indivíduo posto para fora

da jurisdição humana e religiosa. O homo sacer situa-se no cruzamento da

matabilidade com a insacrificabilidade, fora do direito humano e do campo divino.

A categoria homo sacer para o autor pode ser revisitada ao colocar em

análise certas categorias de indivíduos no contexto da política contemporânea.

Agamben propõe a pertinência do conceito para analisar a condição jurídica dos

judeus nos campos de concentração nazista, dos acusados de terrorismo em

Guantánamo, dos imigrantes perseguidos na Europa, e de refugiados em campos

de guerra. O traço comum a tais condições é a redução da vida digna (bíos) à mera

existência biológica (zoé). Para a concepção agambeniana, na política moderna é

decisivo o fato de que

lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político. Assim, exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato, entram em uma zona de irredutível indistinção816.

Agamben aponta a nova soberania da biopolítica como um novo

paradigma, com deslocamento e progressivo alargamento, para além dos limites

da decisão sobre a vida nua. Portanto, a biopolítica converte-se em tânato-política,

que se movimenta por setores da vida social, “naquelas ditas vidas indignas de

serem vividas”817, as quais nem recebem pena e nem recebem direito. Nessa linha

pode-se refletir sobre a condição das pessoas privadas de liberdade. Esse enorme

815 AGAMBEN, G. Homo Sacer: poder o poder soberano e a vida nua I, p. 89. 816 Ibid., p. 16. 817 Ibid., p. 128.

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contingente de “consumidores falhos”818, estes representantes da “ralé

brasileira”819 – jovens, negros e pobres - que serão matéria prima prioritária do

cárcere.

Na vigência perene do Estado de exceção no cárcere, nas masmorras do

sistema carcerário, os prisioneiros que lá se amontoam, são abandonados pelo

Estado. Neste sentido, vale retomar o conceito agambeniano de “bando”. Nas

palavras do autor:

in bando, a bandono significam originariamente em italiano ‘à mercê de (...) ’, e bandido significa tanto ‘excluído, banido’ quanto ‘aberto a todos, livre’... O bando é propriamente a força, simultaneamente atrativa e repulsiva, que liga os dois pólos da exceção soberana; a vida nua e o poder, o homo sacer e o soberano820.

Aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e

indiferente a esta, mas abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco

no limiar em que vida e direito, externo e interno se confundem. Esta perspectiva

oferece elementos para compreender o paradoxo identificado na ausência do

Estado no cárcere no que se refere a garantia de direitos dos presos, em

contrapartida, sua presença rotineira através de medidas voltadas a disciplina e

segurança.

A seletividade punitiva sobre estes segmentos populacionais no mais das

vezes remete à construção do imaginário do inimigo público a ser combatido. O

jurista alemão Gunther Jakobs821 salientava a necessidade de um “modelo ideal”

de exceção que, contrastando com o tipo ideal de garantias, o que denomina de

“Direito Penal do Cidadão”, estabeleça uma nova pauta normativa para o

tratamento punitivo do “indivíduo perigoso”, do “inimigo”. Assim, busca

estabelecer um divisor de águas entre o paradigma regular e inflexível (de

garantias) e o paradigma da exceção, presente no que denomina de “Direito Penal

do Inimigo”. Desta maneira, admite-se um contingente de indivíduos considerados

como subcidadãos ou dotados de uma cidadania negativa 822.

818 BAUMAN, Z., Em busca da política. 819 SOUZA, J. de, A ralé brasileira. 820 AGAMBEN, G., Homo sacer, p. 117. 821 JAKOBS, G. e CANCIO MELIÁ, M., Direito Penal do Inimigo, p. 16. 822 BATISTA, N., Fragmentos de um discurso sedicioso, p. 91.

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Parece-nos que tal proposta, nitidamente avessa aos postulados da

democracia e dos direitos humanos, configura a fundamentação de políticas

criminais contemporâneas que tem por referência não o cidadão, mas o homo

sacer, a vida nua, portanto, não compreendidas nos marcos do Estado de Direito,

mas do Estado de exceção.

Se os inimigos públicos na Alemanha nazista eram os judeus, ciganos e

homossexuais, o inimigo público eleito como ameaça global pela política externa

estadunidense será o “terrorista”, de ascendência árabe. Se o inimigo interno do

Estado Brasileiro nos anos de chumbo era o militante comunista, com a política de

segurança orientada pelo discurso de guerra às drogas o alvo letal a ser combatido

passa a ser a figura do traficante, em sua grande maioria jovens, negros e

moradores de periferia. Neste sentido, relegados ao cárcere, os etiquetados como

“inimigos” e perigosos são imputados ao status de homo sacer, portanto, matáveis,

torturáveis, invisíveis, silenciados e indignos.

Esta percepção se confirma ao nos depararmos com a taxa de mortalidade

intencional nas as unidades prisionais. Segundo aponta o Anuário Brasileiro de

Segurança Pública 2014:

a taxa de mortes intencionais no sistema prisional é de 8,4 mortes para cada dez mil pessoas presas em um semestre, o que corresponderia a 167,5 mortes intencionais para cada cem mil pessoas privadas de liberdade em um ano. Esse valor é mais do que seis vezes maior do que a taxa de crimes letais intencionais verificada no Brasil em 2013823.

Os processos de rotulação, afeitos à teoria do labelling aproach, conduzem

o estigma de homo sacer, vivente na vida nua, aos presos, oriundos em sua

maioria de favelas e comunidades periféricas, tidos como as novas classes

perigosas. Wacquant ao explicitar o que compreende como criminalização da

pobreza, afirmará que essas categorias ontológicas não necessitam mais praticar

823 Considerada a taxa de crimes letais violentos intencionais em 2013, equivalente a 26,6 por cem mil habitantes. Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014, disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/storage/download/anuario_2014_20150309.pdf. Acessado em: 06/06/2015.

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condutas delitivas para serem alvo do poder punitivo estatal, visto que elas

próprias tornam-se crimes824.

5.3.3 O Modelo Penitenciário na Era do Grande Encarceramento

Diante das já verificadas draconianas condições de detenção, a prisão, na

maioria dos países do Ocidente, aos poucos foi abandonando por completo o

projeto humanista vislumbrado pelo sistema penal da modernidade.

Primeiramente, com a derrocada do modelo da prisão-fábrica, presente nas então

chamadas casas de correção. Em um segundo momento, com a falência do modelo

disciplinar/correcional (pautado pelas ideologias ‘re’, como observou Foucault),

que idealizava a pena-tratamento, contendo o ideal ressocializador, mas corroído

pela crise do mundo do trabalho e pela precarização cada vez mais profunda dos

cárceres825. No limiar do capitalismo neoliberal, ao invés de experimentar avanços

civilizatórios, as prisões retrocederam ao obscurantismo da Idade Média.

O complexo penitenciário-industrial-expansionista, implementado nos

EUA e espraiado pelo mundo, sepulta o projeto moderno da prisão, dando ensejo

a uma penalogia de caráter atuarial, como identificado nos trabalhos de Feeley e

Simon826, portanto, uma lógica operativa prisional onde o escopo corretivo que

norteava o penitenciarismo desaparece. Na obra Política Criminal Atuarial,

Mauricio Dieter aponta que “o objetivo do novo modelo é gerenciar grupos, não

punir indivíduos: sua finalidade não é combater o crime – embora saiba se valer

dos rótulos populistas, quando necessário – mas identificar, classificar e

administrar segmentos sociais indesejáveis na ordem social da maneira mais

fluída possível.”827

824 WACQUANT, L., Punir os pobres, p. 49. 825 Como aponta Sozzo: El proyecto normalizador/disciplinario/correccional de la prisión moderna ha sido calificado como un fracaso desde su mismo nacimiento. SOZZO, M., Populismo punitivo, proyecto normalizador y “prisión-depósito” en Argentina. 826 Feeley e Simon argumentam que essa nova penalogia não é transformativa, mas apenas gerencial: ela estabelece uma vasta rede de controle, desde a prisão, para os indivíduos “mais perigosos”, à vigilância e à supervisão de infratores de baixo risco; as grandes expectativas do sistema passado — reinserção, tratamento, em suma, inclusão — são substituídas por protocolos formais internos de performance, sem referência a qualquer objetivo social concreto. FEELEY, M., SIMON, J., The new penology: notes on the emerging strategy of corrections and its implications. 827 DIETER, M., Politica criminal atuarial, p. 8.

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No lugar do projeto normalizador/correcional emerge este novo modelo de

prisão, que pode ser identificado na metáfora ‘prisão-jaula’ ou ‘prisão-

depósito’828. Maximo Sozzo afirma que se trata de verdadeira antípoda, enquanto

tipo ideal, ao modelo normalizador:

Ni una “prisión-fábrica”, ni una “prisión-escuela”, ni una “prisión-monasterio”, ni una “prisión-familia”, ni una “prisión-asilo” o “prisión-hospital”. Una prisión sólo encierro y aislamiento, reglamentación, vigilancia y sanción. Una prisión “segura”. Una “prisión-jaula” o “prisión-depósito”829.

O sistema prisional não se apresenta mais nos moldes da prisão-fábrica -

como à época das casas de correção -, ou a prisão-tratamento - típica dinâmica

prisional do ideário correcionalista ao incorporar a progressão de regime por bom

comportamento, preconizar o trabalho, educação, assistência familiar, religiosa,

entre outros direitos vilipendiados no cárcere.

Na obra El Estado Penal y La Prison-Muerte, Elias Neuman assevera que

na atual quadra a prisão somente serve “como depósito e contenção de seres

humanos, e que aquilo que ensinam as leis vem a ser excelente, porém só no

papel”830. Todo legado teórico correcionalista/disciplinar vai sendo deixado de

lado, ao passo que se consolida uma um projeto de prisão calcado nas ideias de

isolamento, regulamentação, vigilância, segurança e sanção. Trata-se de um

projeto gerencialista831, preocupado com os ideais de segurança e controle de

risco. Segundo Garland, “onde a velha criminologia encaminhava–se mais na

direção do bem–estar e da assistência, a nova insiste no reforço dos controles e na

aplicação da disciplina"832.

828 SOZZO, M., op. cit. 829 Ibid. 830 NEUMAN, E., El Estado Penal y La Prison-Muerte, p. 151. 831 Adota-se uma perspectiva gerencialista que perpassa por três etapas: primeiramente, é preciso identificar os indivíduos com “perfil de risco”; em segundo lugar, é necessário classificar esses indivíduos em busca dos que efetivamente podem ser considerados “perigosos” ou de “alto risco”; por fim, é imprescindível a criação de mecanismos para neutralizar esses indivíduos pelo maior período de tempo possível, sem se preocupar com questões relacionadas à sua ressocialização. DIETER, M., op. cit. 832 Garland observa que, se no passado a criminologia se preocupava com o crime de modo retrospectivo e individual, de modo a isolar o ato ilícito individual e atribuir-lhe uma pena ou um tratamento, hoje o crime é visto de modo prospectivo, e em termos agregados, como forma de calcular riscos e estabelecer medidas preventivas. GARLAND, D., A Indústria do Controle, p. 15.

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O encarceramento massivo, ao chegar no Brasil a partir dos anos de 1990

também irá romper com o ideário ressocializador, aqui incorporado, sobretudo,

pela Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84)833. Em verdade, o projeto moderno da

prisão nunca foi implementado de fato no Brasil, a despeito da incorporação do

discurso da Escola da Defesa Social pugnando pelo mito da ressocialização.

O modelo correcionalista, traduzido no sistema progressivo reafirmado

pela LEP vai sofrendo sucessivas transfigurações na Era do Grande

Encarceramento. Primeiramente, a ruptura com o princípio da igualdade834, com a

Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90). Em seu texto original, proibia a

progressão de regime para os delitos tipificados como hediondos ou equiparados,

só vindo a ser admitida tal hipótese a partir da Lei Nº 11.464/07, entretanto com

prazo mais gravoso835.

Ademais, perniciosamente decisivo ao delineamento do modelo de sistema

penitenciário brasileiro é o advento do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). A

Lei 10.792/03 alterou a LEP, dando ensejo a esta nova modalidade de sanção

disciplinar836 que remonta ao sistema penitenciário filadélfico, visto que preconiza

o isolamento celular prolongado. Por tais motivos, parte significativa da

comunidade jurídica entende se tratar de medida inconstitucional por afrontar o

princípio da dignidade da pessoa humana em sua dimensão prima facie837.

833 Quase todas as leis de execução penal da América Latina e do Caribe foram escritas tomando por base as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, com forte base no ideário correcionalista. LEAL, C. B., Execução Penal na América Latina à luz dos Direitos Humanos, p. 117. 834 CIRINO DOS SANTOS, J., Manual de Direito Penal, p. 280. 835 O Superior Tribunal Federal, ainda que tardiamente, decidiu pela inconstitucionalidade do referido dispositivo legal, por ofensa à individualização da pena e por ferir expressamente o sistema progressivo instituído pelo ordenamento repressivo. Por conseguinte, o Congresso Nacional aprovou a Lei Nº 11.464/07 que alterou passa admitir a progressão de regime aos crimes hediondos, entretanto com prazo mais gravoso para concessão do benefício. Lei de crimes hediondos – Art. 2 - § 2o A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente. (Redação dada pela Lei nº 11.464, de 2007). 836 Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; II - recolhimento em cela individual; III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas; IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol. 837 Em 2012, o Instituto dos Advogados Brasileiros aprovou Parecer pela inconstitucionalidade do R.D.D. Cumpre ainda salientar que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária

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A suposta progressividade norteadora do sistema carcerário adotado no

país é posta em xeque por outras profundas problemáticas, não de natureza

normativa, mas de ordem estrutural. Os alarmantes índices de superlotação

acarretam a escassez crônica de vagas para a garantia da execução penal no

regime adequado. Por este fato, não é raro o apenado preencher os requisitos

objetivos e subjetivos exigidos pela LEP para progressão de regime, no entanto

permanecer no regime mais gravoso do que lhe cabe por direito. Tal anomalia

constitui o denominado desvio de execução838.

Estes elementos apontam para uma realidade carcerária onde a segregação

punitiva prevalece sobre quaisquer ideais correcionais. A despeito da vigência do

sistema progressivo, o modelo penitenciário concretamente em vigor é

eminentemente fechado.

Portanto, claramente vai se observando no Brasil a superação do

paradigma correcional/ressocializador para a afirmação do modelo atuarial, a

prisão-depósito. Entretanto, consideramos que aqui neste “território marginal”, o

modelo da prisão-depósito, típico da penalidade neoliberal, assume contornos

peculiares. Acerca de seus traços característicos, Luiz Flávio Gomes alerta:

O novo modelo de prisão, chamado de prisão-jaula ou prisão-depósito (ou, ainda, de prisão-latrina), é uma prisão sem trabalho, sem educação, sem família, sem observação, classificação e tratamento, sem flexibilização no encarceramento, sem segurança, sem individualidade, sem privacidade, sem respeito aos direitos mínimos das pessoas presas etc839.

Esta trajetória do paradigma penitenciário pode então ser visualizada, de

modo esquemático, conforme o quadro abaixo:

unanimemente apresentou parecer questionando a constitucionalidade da inclusão do R.D.D no texto da Lei de Execução Penal, especialmente os arts. 52, 53, V, 54, 58 e 60. Na mesma esteira, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, através do processo n° 045/2006 opinou pela inconstitucionalidade desta inovação legislativa. A respeito do R.D.D. ver também 838 Segundo Almeida: “É certo que a ausência de vagas no regime adequado para: i) o preso cautelar (custodiado numa Cadeia Pública ou Centro de Detenção Provisória) que venha a ser condenado no regime inicial aberto ou semiaberto; ii) o réu que aguardou solto o trânsito em julgado de igual condenação ou; iii) o condenado no regime fechado, como na maioria das vezes, que obteve a progressão de regime; são situações que caracterizam o nefando desvio de execução. Ocorre que a questão do desvio é um problema crônico no sistema penitenciário nacional”. ALMEIDA, F. L. de. A execução da pena no anteprojeto do Código Penal: uma análise crítica. 839 GOMES, L. F., Sistema carcerário brasileiro: a latrina da justiça criminal. Disponível em: http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2468522/data-venia-sistema-carcerario-brasileiro-a-latrina-da-justica-criminal. Acessado em: 15/07/2015.

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Tabela 14: Quadro comparativo dos Modelos Punitivos

Modelo Sistema penal medieval

Prisão-Fábrica Prisão –Tratamento

Prisão-Depósito Prisão-Tortura

Período Antigo Regime Séc. XVII-XVIII Séc. XVIII-XX A partir dos anos 80 (EUA)

A partir dos anos 90 (Brasil)

Sistema Econômico

Feudalismo/ Mercantilismo

Mercantilismo/ Capitalismo

(1ª Rev. Industrial)

Capitalismo (fordismo)

Neoliberalismo (pós-fordismo)

Neoliberalismo (pós-fordismo no

capitalismo periférico)

Punição Penas corporais e de morte

Prisão com trabalho

Prisão (ideal res-

socializador)

Grande encarceramento (unidades sem superlotação)

Grande encarceramento (superlotação e

tortura sistêmicas)

Funções da Pena

(discurso)

Retribuição Neutralização (pena capital)

Retribuição Ressocialização (exploração do

trabalho prisional)

Retribuição Ressocialização

(declínio do trabalho prisional)

Retribuição Neutralização

Retribuição Neutralização

Característica

Suplícios, penas de morte na

fogueira e forca

Casas de correção Modelo Correcionalista Progressão de

regime prisional

Modelo Atuarial Estado Penal

Modelo Atuarial (condições

degradantes) Estado Penal e

Estado de exceçãoSociedade (Forma de

poder)

Sociedade de soberania

(poder soberano)

Sociedade disciplinar

(poder disciplinar)

Sociedade disciplinar

(poder disciplinar)

Sociedade de controle (biopolítica)

Sociedade de controle (biopolítica)

É preciso ter em mente que o hiperencarceramento levado a cabo nos

EUA, dá ensejo ao que Wacquant denomina de Big Government carcerário, com o

investimento anual da ordem de mais de U$ 250 bilhões, edificando uma

monumental estrutura de penitenciárias de segurança máxima, com taxa de

ocupação atualmente em índice de 102%. Por outro lado, o caso brasileiro é

nitidamente mais grave, como observa Wacquant:

É apavorante o estado das prisões no Brasil, que se parecem mais com campos de concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais, do que com instituições judiciárias servindo para alguma função penalógica (...) O sistema penitenciário brasileiro acumula com efeito as taras das piores jaulas do Terceiro Mundo, mas levadas a uma escala digna do Primeiro Mundo, por sua dimensão e pela indiferença estudada dos políticos e do público840.

Assim é caracterizado o Estado penal brasileiro, marcado por verdadeiras

masmorras medievais, literalmente um depósito humano onde se amontoam

840 WACQUANT, L., As prisões da miséria, p. 13.

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corpos até não mais caber. Além da precariedade infraestrutura, os índices de

superpopulação são assustadores, chegando à média nacional de 161%. Soma-se

este dantesco cenário o reduzido número de profissionais que atuam nesses

estabelecimentos. Trata-se de um quadro crônico de práticas de tortura,

tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. Neste sentido, é possível identifica-

lo como uma faceta mais deletéria da prisão-depósito, a prisão-tortura, o modelo

prisional onde degradação humana do interno é estrutural e sistêmica.

5.3.4 As Funções da Pena na Era do Grande Encarceramento

Até 1984 o legislador brasileiro nunca havia se pronunciado acerca da

finalidade da pena em nosso ordenamento jurídico. Com a reforma penal, no que

tange às funções (manifestas) da pena, consagram-se no art. 59 do Código Penal a

reprovação e a prevenção, compreendendo, portanto, as finalidades delineadas

pelo discurso oficial da pena: retribuição, prevenção geral e prevenção especial.

Parte da doutrina não especifica esta abrangência, de outra sorte, alguns autores

apontam que neste bojo são contidas todas as funções penalógicas: retribuição,

integração da norma penal, intimidação, ressocialização e neutralização841.

A Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), em seu artigo 1º dispõe sobre os

objetivos da execução penal no direito brasileiro, atribuindo-lhe o papel de

“proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado”, além

da efetivação do disposto na sentença condenatória. Constitui, portanto, expressão

da finalidade penalógica preventivo-especial positiva. Nas palavras de Carvalho:

“o advento da Lei de Execução Penal em 1984, inspirada no programa político-

criminal do movimento da nova defesa social, tematiza o projeto punitivo

moldando-o a partir da noção de ressocialização”.842

841 Neste sentido, aponta CIRINO DOS SANTOS: “No Brasil, o Código Penal consagra as teorias unificadas ao determinar a a aplicação da pena ‘conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime’ (art. 59, CP): a reprovação exprime a ideia de retribuição da culpabilidade; a prevenção do crime abrange as modalidades da prevenção especial (neutralização e correção do autor) e de prevenção geral (intimidação e manutenção/reforço da confiança na ordem jurídica) atribuídas à pena criminal”. Segundo o autor, a teoria unificadora é verificada também no Código Penal Alemão, em seus arts. 46 e 47. CIRINO DOS SANTOS, J., Teoria da Pena, p. 12-13. 842 CARVALHO, S. de. Antimanual de Criminologia, p. 259.

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Deste modo, extrai-se que a função da pena exercida pela execução penal

refere-se à prevenção especial, ao passo que a retribuição e a prevenção geral

devem ocorrer em outra fase, no momento da sentença, como definido pelo artigo

59 do Código Penal.

Entendimento corrente na doutrina brasileira, com base no escopo legal

delineado, compreende que entre nós foi adotada a teoria penalógica mista ou

unificadora. Seguindo a classificação de Claus Roxin843, os doutrinadores

observam que a interpretação do art. 59 do Código Penal é padronizada no sentido

da adoção de uma “Teoria Mista Aditiva”, na qual não há prevalência de um

determinado fator. Não há preponderância da retribuição ou da prevenção, ambos

os fatores coexistem, sem constituir uma relação de hierarquia.

O advento da Constituição Federal de 1988, segundo Salo de Carvalho844,

não acompanha o delineamento das funções da pena ensejado pela Parte Geral do

Código Penal, com a reforma legislativa de 1984, e pela Lei de Execuções Penais.

Diferentemente do que se verifica em textos constitucionais alienígenas, a

exemplo de Espanha e Itália, a Carta Política de 1988 não prescreve funções

penalógicas (por que punir?).

“A perspectiva absenteísta sobre os discursos de justificação impõe

critérios limitativos à interpretação, aplicação e execução das penas” (como

punir?). Tais parâmetros limitadores encontram-se constitucionalizados nos

incisos XLV, XLVI, XLVII, XLVIII e XLIX do art. 5º, estabelecendo

respectivamente os princípios da pessoalidade, individualização da pena,

humanidade e respeito à integridade física e mora. Cabe ressaltar a garantia

expressa particularmente na alínea “e” do inciso XLVII, ao estabelecer a vedação

das penas cruéis (além da vedação às penas de morte, perpétua, trabalhos forçados

e banimento, nas demais alíneas). Tal dispositivo constitui, segundo Carvalho, o

princípio da vedação do excesso punitivo845.

A ausência de um discurso justificador, mas tão somente a negativa à

universalização da crença punitiva por parte do constituinte originário, permitiria

843 ROXIN, C., Derecho Penal. Parte General, p. 229. 844 CARVALHO, S. de, op. cit., p. 260. 845 Ibid., p. 260.

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a extrair a interpretação de uma teoria agnóstica da pena a partir do texto

constitucional846.

Novas reformas legislativas voltaram a traçar o perfil das funções

penalógicas em nosso ordenamento jurídico. A incorporação das penas

alternativas (Lei 7.209/84)847, sua posterior ampliação (Lei 9.714/98)848 e a

implementação dos juizados especiais criminais (Lei 9.099/95)849, voltados para

crimes de menor potencial ofensivo, representariam leis penais com ênfase na

função de prevenção especial negativa - sendo possível perceber ainda na Lei

9.099/95 a finalidade retributiva, com foco na reparação do dano.

Estas manifestações seriam, em tese, integradas a uma política criminal

minimalista com o escopo de contenção do poder punitivo. Entretanto, tais

reformas têm alimentado uma eficácia invertida. Paradoxalmente, tem contribuído

para ampliar o controle social punitivo e relegitimar o sistema penal, constituindo,

portanto, um processo de acumulação de poder punitivo.

O crescente fenômeno do populismo penal850, por sua vez, dá ensejo ao

advento de leis penais repressivistas, com a preponderância das funções prevenção

geral negativa e da prevenção especial negativa, como se expressa na Lei de

Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), no Regime Disciplinar Diferenciado (Lei

10.792/03), na Lei de Drogas (Lei 11.343/06) e na recente Lei de Organizações

Criminosas (Lei 12.850/13).

Esta erosão normativa - expressão utilizada por Hassemer para caracterizar

o recrudescimento do Direito Penal em face de direitos e garantias individuais –

denota de um lado, pusilanimidade no que tange ao horizonte de um projeto

penalógico claro, de outro revela a fusão de teorias justificantes contraditórias e

ambíguas. Trata-se de hipertrofia legislativa penal alheia ao fracasso dos discursos

oficiais da pena para conter a crise crescente no sistema penal.

846 Ibid., p. 261. 847 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1980-1988/L7209.htm. Acessado em:

06/06/2015. 848 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9714.htm. Acessado em:

06/06/2015. 849 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm. Acessado em:

06/06/2015. 850 Acerca do conceito de populismo punitivo, ver SOZZO, M., op. cit.

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Cabe ainda refletir sobre as funções penalógicas mais claramente

assumidas na Era do Grande Encarceramento. A adoção das teorias legitimadoras

da pena já revela não encontrar ressonância na realidade social no que se refere à

sua efetividade, restringindo-se a uma perspectiva meramente normativista e

idealista. Uma vez constatado caráter ilusório e mítico das funções declaradas da

pena (retribuição, prevenção geral e especial), é necessário buscar identificar suas

funções reais sob a égide do empreendimento neoliberal, o capitalismo vídeo-

financeiro. Em Punir os pobres, Loic Wacquant aponta que:

o explosivo aumento do alcance e da intensidade da punição – nos EUA nos últimos 30 anos, e na Europa Ocidental nos últimos 12 anos – preenche três funções inter-relacionadas, correspondendo, cada uma delas, grosso modo, a um “nível” da nova estrutura de classes, dualizada pela desregulamentação econômica.851

Em resumo, o autor aponta que o encarceramento massivo tem como

funcionalidades:

i) a neutralização e depósito físico de “frações excedentes da classe

operária, notadamente os membros despossuídos dos grupos estigmatizados que

insistem em se manter ‘em rebelião aberta contra seu ambiente social’”852.

ii) “a função econômica e moralmente inseparável de impor a disciplina do

trabalho assalariado dessocializado entre as frações superiores do proletariado e os

estratos em declínio e sem segurança da classe média, através, particularmente, da

elevação dos custos das estratégias de escape ou de resistência que empurram

jovens do sexo masculino da classe baixa para os setores ilegais da economia de

rua”853.

iii) “a missão simbólica de reafirmar a autoridade do Estado e a vontade

reencontrada das elites políticas de enfatizar e impor a fronteira entre os cidadãos

de bem e as categorias desviantes, os ‘pobres merecedores’ e os ‘não-

merecedores’”854, os que devem ser inseridos e os que devem ser excluídos.

Desta maneira, consolida-se nas últimas décadas o questionamento à

legitimidade do sistema penal, conduzindo o Estado a assumir um discurso

851 WACQUANT, L., Punir os pobres, pp. 16-17. 852 Ibid. 853 Ibid. 854 Ibid.

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gerencialista855 que, em suma, acomoda-se em afirmar não haver saída menos pior

do que a prisão. O debate sai do âmbito das soluções aos problemas, para o

âmbito do gerenciamento das crises. O modelo correcionalista, que antes

preponderava ênfase na função ressocializadora, cada vez mais dá lugar a um

modelo atuarial – a prisão-depósito -, dirigido, sobretudo, à retribuição e à

neutralização dos condenados.

No modelo atuarial, abandona-se completamente a função declarada de

correção do condenado, coloca-se um fim às ilusões ‘re’, abraçando outros

objetivos como legitimação da sua própria existência. Entretanto, permanece viva

a noção de retribuição do dano causado pelo delito por meio da imposição

intencional de sofrimento ao preso. Por outro, de forma prioritária, a incapacitação

ou neutralização do preso, durante um lapso de tempo mais ou menos prolongado,

de forma tal que não possa reincidir no delito, protegendo o público, gerando

segurança. Nas palavras de Dieter, busca-se “utilizar a pena criminal para o

sistemático controle de “grupos de risco mediante neutralização” de seus

membros salientes, isto é, a gestão de uma permanente população “perigosa”, pelo

menor preço possível.”856

No Grande Encarceramento brasileiro, seria acrescido ainda mais um

elemento: a tortura como prática sistêmica. Para entender a teleologia da tortura e

maus tratos nos cárceres da periferia capitalista, é preciso dimensionar a distinção

entre as condições dos estabelecimentos prisionais do Leviatã penal estadunidense

e as ‘masmorras medievais’ do arquipélago penitenciário no Brasil e demais

países da América Latina. Neste sentido, convém mencionar a percepção de De

Giorgi:

O controle atuarial como controle apropriado ao estado penal tem como seu princípio mais importante o "Cost- Benfits Analysis". Este princípio nasce de um desencanto criminológico. Um desencanto proveniente de uma tendência criminológica que percebe o sujeito criminoso como um indivíduo plenamente em grau de decidir se tem ou não um comportamento desviante857.

855 “Em um modelo regido pela lógica gerencialista, o mapeamento das zonas e dos grupos de risco e o cumprimento das metas político-criminais que invariavelmente resultam em encarceramento são os indicadores da eficiência das políticas de controle” CARVALHO, S. de, Penas e Medidas de Segurança, p. 108. Neste sentido, ver ainda, GARLAND, D., A Cultura do Controle; e DIETER, M., Política Criminal Atuarial. 856 DIETER, M., op. cit., p. 100. 857 DE GIORGI, A., A miséria governada pelo sistema penal.

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Portanto, uma vez que não se dispõe de sólidas estruturas com vigilância,

paredes, grades e vagas suficientes à neutralização dos internos, o quadro crônico

de tortura tem o condão utilitário de promover a inocuização total do preso ao

submetê-lo a uma realidade sistêmica de tortura, tratamentos cruéis, desumanos e

degradantes. Esta seria decorrente de uma cost-benfits analysis em nosso sistema

carcerário. Trata-se da aniquilação total da subjetividade através da violência

institucional, cumprindo vezes de gerencialismo penitenciário, no modelo atuarial

à brasileira.

Nesses termos, uma vez tendo identificado a penalidade neoliberal nos

marcos da prisão-tortura, cabe analisar as possíveis estratégias para a contenção

do paroxismo punitivo da prisão na Era do Grande Encarceramento.

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6 Estratégias de contenção do Grande Encarceramento: contribuições da Criminologia Cautelar

Una análisis real y radical de las funciones efectivamente ejercidas por la cárcel, el conocimiento del fracaso histórico de esta institución en cuanto a los fines del control de la criminalidad y la reincorporación del desviado en la sociedad, de la incidencia que ella tiene, no solo en el proceso de marginalidad de los sujetos en forma individual, aun el exterminio de las fases marginales de las clases obreras, no pueden sino llevarnos a una conclusión radical en la individualización de los objetivos finales de una estrategia alternativa. Este objetivo es la abolición de las instituciones carcelarias. Derribar los muros de la cárcel tiene para la nueva criminologia el mismo significado pragmático que los muros del manicomio para a nueva siquiatria.(Alessandro Baratta)858

Como interromper o grande encarceramento? Como conter os tentáculos

do Estado penal brasileiro? Como superar o paradigma da prisão-tortura?

Perguntas que parecem não encontrar luz no fim do túnel, em meio às densas

trevas que se erguem no cárcere, diante do adverso horizonte impregnado de

retribucionismo e clamor punitivo.

O pensamento de Deleuze e Guattari contribui nesta problematização. Os

autores consideram que as tecnologias corporais, nas suas formas mais variadas de

aplicação, podem ser tomadas no interior de uma dupla dobra, pois, além de serem

produto do controle, são ao mesmo tempo “linhas de fuga”859, que representam a

ruptura ou pequenas transgressões do tempo presente.

858 BARATTA, A., Criminología y Sistema Penal, p. 372. 859

Deleuze descreve, de maneira mais específica, três linhas segundo as quais somos compostos: a linha de segmentaridade dura, ou de corte molar, a linha de segmentação maleável ou de fissura molecular e uma espécie de linha de fuga ou de ruptura. Essas linhas nos atravessam, compondo nossos mapas. Nos termos de Deleuze e Guattari: “de todas essas linhas, algumas nos são impostas

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Ainda que microscópicas, as resistências existem, e insistem em lutas

constituintes, encontram linhas de fuga, manifestam-se como um contra-poder. Na

visão de Foucault, a resistência não seria o subproduto das relações de poder “sua

marca em negativo, formando, por oposição à dominação essencial, um reverso

inteiramente, passivo, fadado à infinita derrota” 860. A resistência antecede o poder,

é primeira. Se fosse apenas oposição ou secundária ao poder, não haveria

resistência. No sentido utilizado por Foucault861, “para resistir, é preciso que a

resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele.

Que, como ele, venha de ‘baixo’ e se distribua estrategicamente”. Nesse sentido,

as resistências para Foucault têm o primado nesse campo das correlações de força,

permanecendo superior a todas as forças do processo.

Assim, para interromper o Grande Encarceramento que se processa na

governamentalidade das “vidas nuas”, das classes subalternas, da “ralé brasileira”,

é preciso identificar as manifestações de resistência aos arbítrios do poder

punitivo que buscam constituir uma nova sociabilidade que aponte para a

superação da segregação punitiva.

Neste capítulo apontaremos um conjunto de medidas que podem

representar parte desta resistência. Inicialmente, buscaremos apontar as

contribuições da perspectiva da Criminologia Cautelar, proposta por Zaffaroni,

como prevenção do massacre no sistema penal.

Em um segundo momento, iremos abordar as possíveis estratégias de

contenção do encarceramento massivo. Neste bojo, verifica-se a importância do

Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura, dando

ensejo aos Mecanismos de Prevenção à Tortura. Posteriormente, será analisado o

debate sobre o Estado de Coisas Inconstitucional e aplicabilidade à realidade

carcerária brasileira. No segundo item, trataremos das recentes discussões em

torno da Responsabilidade Civil do Estado diante de superlotação, condições

desumanas e degradantes no sistema prisional, bem como a possibilidade de uma

de fora, pelo menos em parte. Outras nascem um pouco por acaso, de um nada, nunca se saberá por quê. Outras devem ser inventadas, traçadas, sem nenhum modelo ou acaso: devemos inventar nossas linhas de fuga se somos capazes disso, e só podemos inventá-las traçando-as efetivamente, na vida”. DELEUZE, G., e GUATTARI, F., Mil Platôs. vol. 3, p. 76. 860

FOUCAULT, M., História da sexualidade I: a vontade do saber, p. 91. 861

Id., Microfísica do poder, p. 241.

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nova modalidade de remição. Em seguida, traremos a lume a Audiência de

Custódia, como possível medida desencarceradora. Ademais, será colocada em

questão a possibilidade de contenção do poder punitivo ou de sua ampliação, com

o advento das Penas Alternativas e Alternativas Penais, bem como outros

dispositivos potenciais redutores do sistema penal.

Por fim, no terceiro tópico, será visitado o debate entre as perspectivas

minimalistas e abolicionistas, no ensejo de analisar as reais possibilidades de

enfrentamento às mazelas da Era do Grande Encarceramento.

6.1 Por uma Criminologia Cautelar

Coloca-se premente a necessidade de estabelecer limites claros ao poder

penal. Conforme assinala Vera Regina de Andrade, é preciso como nunca

compreender as entranhas do controle penal decifrando a própria dinâmica do

poder ou dos poderes econômico, financeiro, midiático, político, punitivo oficial

(poder legislativo, policial, ministerial, judicial, acadêmico) e micropoderes

sociais862.

Este desafio pode encontrar suporte teórico nos marcos da “Criminologia

Cautelar”, preconizada por Raúl Zaffaroni. O jurista portenho afirma que estamos

passando por uma nova fase, a qual denomina "criminologia da precaução" ou

“Criminologia Cautelar”, que se origina de “Cautio”, significando cautela,

prudência, limitação no exercício do poder punitivo863. Em última análise, como

aponta o autor, se trata de:

militar activamente por la aplicación científica de conocimientos en una acción constante dirigida a evitar cadáveres anticipados y masacres, que en su camino

862 ANDRADE, V. R. P. de, Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão, p. 161. 863 Zaffaroni apresenta um detalhado programa político criminal de controle do poder punitivo, inspirado em Cautio Criminallis de Friedrich Spee von Langenfeld, de 1631, que visa controlar , reduzir e limitar os instintos vingativos do sistema de justiça penal e promover a prevenção cautelar da violência criminal. ZAFFARONI, E. R., A Palavra dos Mortos: conferências de criminologia cautelar, p. 553-554.

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debe ocuparse también –como paso necesario- de abatir los niveles de violencia social864.

Constitui um olhar criminológico que “proporcione la información

necesaria y alerte acerca del riesgo de desborde del poder punitivo susceptible de

derivar en una masacre”865. Trata-se, portanto, de uma criminologia antiviolência,

voltada à prevenção dos massacres presentes nos cárceres, voltada à superação da

barbárie institucionalizada no sistema penal, visto que “o sistema penal é um

massacre em potencial”.866

Necessário se faz refletir sobre as estratégias que podem ser adotadas para

conter a violência do sistema penal, sobretudo na América Latina. Cabe pensar a

prevenção dos massacres não através da importação de modelos do centro para a

periferia, mas formular as saídas diante de nossa realidade marginal, que por sinal,

historicamente é muito mais marcada pelas vozes e corpos subjugados pelos

massacres.

A criminologia cautelar representaria, assim, uma militância

criminológica, dotada de um ativismo que a permita sair da confortável torre de

marfim, e disputar a hegemonia do modelo de política criminal. Uma perspectiva

menos disposta às infindáveis filigranas teóricas e dogmáticas, e mais voltada à

práxis, uma criminologia que ocupe as ruas, que dispute os meios de comunicação

e o sentido das agências do sistema de justiça criminal.

Deste modo, Zaffaroni lança o manifesto por essa criminologia que

incorpore as lutas em defesa dos invisíveis, dos silenciados, dos indignos, do

homo sacer matável nos massacres da letalidade policial aos torturáveis

amontoados nos cárceres, ou seja, por uma ruptura com o processo de alienação

construído desde o positivismo criminológico e expandido no tempo presente com

o senso comum da criminologia midiática867. Assim, Zaffaroni propõe reconstruir

o saber cautelar com o objetivo de prevenir os massacres.

864 “Militar ativamente pela aplicação do conhecimento científico em uma ação constante para evitar cadáveres antecipados e massacres, em vistas também - como passo necessário – de reduzir os níveis de violência social” (trad. nossa) Ibid. 865 “Fornecça as informações necessárias e alerte sobre o risco de que o poder punitivo suscetível de transbordar para o massacre”. Ibid., p. 497. 866 “O sistema penal é um massacre em potencial”. Ibid., p. 553. 867 Ibid., p. 467.

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Neste sentido, como alude a organização de direitos humanos Anistia

Internacional “A superlotação é hoje um dos mais graves problemas nas prisões e

outros locais de detenção. Em muitos países, reduzir o número de pessoas

mantidas sob custódia ou encarceramento seria a maneira mais simples e

econômica de diminuir a superlotação e melhorar as condições de detenção”868.

Em célebre reflexão, Foucault afirmara que “enquanto o sistema punitivo

clássico não for totalmente reconsiderado, haverá muito poucas críticas radicais da

tortura”869. Assim, diante dos tempos difíceis que marcam a Era do Grande

Encarceramento, cabe, portanto, o compromisso teórico e prático de resistência

frente à barbárie institucionalizada que jorra do poder punitivo, cabe identificar as

estratégias que possam constituir o ‘dique de contenção’ ao Estado penal.

6.2 Estratégias de contenção do encarceramento massivo

Apesar do sucesso fulgurante do Estado penal, incorporado sem

parcimônia na periferia segundo a cartilha político-criminal do capitalismo

neoliberal, há também importantes movimentos de resistência. Essas linhas de

fuga podem ser percebidas em intensos embates sobre os rumos das agências

punitivas. Atualmente, emergem com cada vez maior consistência estratégias que

podem representar a superação do encarceramento massivo. Buscaremos transitar

por alguns destes discursos e políticas que se colocam como alternativa concreta

para este “dique de contenção” do poder punitivo.

6.2.1 Mecanismos de Prevenção à Tortura a) Sistema Internacional de Prevenção à Tortura

Uma importante medida de política criminal que pode contribuir para a

limitação do poder punitivo consiste na consolidação do denominado Sistema

Internacional de Prevenção à Tortura. O Protocolo Facultativo à Convenção

contra Tortura e outros Tratamentos, penas, cruéis, desumanos e degradantes

868 Anistia Internacional, Combatendo a Tortura – Manual de Ação, p. 134. 869 FOUCAULT, M., Vigiar e Punir, p. 36.

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(OPCAT), aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 2002, vem materializar

uma longa luta das organizações de direitos humanos pela implementação de

uma efetiva política de enfrentamento à tortura e outros maus tratos870. Seu

objetivo principal, como dispõe seu art. 1º é: “(...) estabelecer um sistema de

visitas periódicas a cargo de órgãos internacionais e nacionais independentes

aos lugares em que se encontrem pessoas privadas de liberdade, com o fim de

prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou

degradantes”.

A expectativa era de que o OPCAT pudesse atender aos anseios expressos

na seguinte análise de Nigel Rodley, ex-relator Especial sobre Tortura das Nações

Unidas:

O relator especial está convencido de que há a necessidade de uma transformação radical nas ideias da sociedade internacional a respeito da natureza da privação de liberdade. O paradigma fundamental, tomado como certo há pelo menos um século, é o de que prisões, delegacias de polícias e afins, são lugares fechados e secretos, onde se realizam atividades escondidas do conhecimento público. (...) O que se faz necessário é substituir o paradigma da opacidade pelo da transparência. Deve-se promover o acesso livre a todos os lugares de privação de liberdade.871

Com a implementação do Protocolo, busca-se a constituição de um sistema

internacional de prevenção à tortura, baseado em um monitoramento aos locais de

privação de liberdade, através de dois pilares: a criação de um Subcomitê

Internacional (SPT) e dos Mecanismos de Prevenção Nacionais (MPN).

Atualmente 79 Estados-parte já ratificaram o Protocolo Facultativo à Convenção,

sendo que 61 já criaram seus Mecanismos Preventivos Nacionais (MPN).

Atualmente, segundo dados da Associação para a Prevenção à Tortura872, há 51

870 “Inspirado pelos resultados das visitas a prisões durante os tempos de guerra conduzidas pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), o filantropo suíço Jean-Jacques Gautier buscou criar um sistema de visitas regulares a todos os centros de detenção ao redor do mundo. Seguindo um processo longo e árduo de negociações, um sistema preventivo foi finalmente elaborado em 18 de dezembro de 2002, quando o Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Protocolo Facultativo) foi adotado pela Assembléia Geral da ONU.” IIDH/APT . Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes – Manual de implementação, p. 9. 871 Sir Nigel Rodley Ex-relator Especial sobre Tortura das Nações Unidas 3 de julho de 2001, A/56/156, § 35. 872 Levantamento feito pela Associação para a Prevenção à Tortura, organização não governamental que em matéria de direitos humanos no âmbito internacional, fomentando maior

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MPNs designados, em sua grande maioria situados na Europa e na América

Latina873.

O Subcomitê para a Prevenção da Tortura e Outros Tratamentos ou Penas

Cruéis, Desumanos ou Degradantes, é um órgão composto por vinte e cinco

membros independentes propostos e eleitos pelos Estados-Partes do Protocolo.

Em seu trabalho, o Subcomitê tem a atribuição de monitorar os locais de privação

de liberdade874 nestes países, guiado pelos princípios do “sigilo, imparcialidade,

não seletividade, universalidade e objetividade” (Artigo 2°). Atuação similar

deverá ser desempenhada pelos Mecanismos Nacionais de Prevenção à Tortura,

no âmbito interno (Artigo 3º).

Destaca-se a importância da atuação destes órgãos, sobretudo no contexto

do Grande Encarceramento, visto que as pessoas privadas de liberdade se

encontram em altíssima vulnerabilidade, expostas ao maior risco de sofrer

violações aos direitos humanos. Sua segurança e bem-estar estão sob a

responsabilidade do Estado que os custodia, “que deve garantir condições de

detenção que assegurem o respeito aos direitos humanos dos detentos. Portanto, o

monitoramento das condições de detenção constitui parte integral do sistema de

proteção de pessoas que se encontram privadas da liberdade”875.

A atuação do Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção à Tortura

(SPT) e dos Mecanismos centra-se na noção de um “mandato preventivo”,

entendendo-se como prevenção da tortura e de outros tratamentos ou penais

cruéis, desumanos e degradantes:

desde a análise de instrumentos internacionais de proteção até o exame das condições materiais de detenção, considerando políticas públicas, orçamentos, regulações, orientações escritas e conceitos teóricos que explicam os atos e

efetividade ao OPCAT em todo o mundo. Disponível em: http://www.apt.ch/en/. Acessado em: 14/07/2015. 873 No tocante à América Latina, catorze países já haviam ratificado o Protocolo Facultativo: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Costa Rica, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai. 874 A noção de centros de detenção ou locais de privação de liberdade abarca o conjunto de estabelecimentos públicos ou privados, como prisões, delegacias, unidades de internação de crianças ou adolescentes, hospitais psiquiátricos, centros de detenção militar e até mesmo abrigos. Art. 4º do OPCAT: “Para os fins do presente Protocolo, privação da liberdade significa qualquer forma de detenção ou aprisionamento ou colocação de uma pessoa em estabelecimento público ou privado de vigilância, de onde, por força de ordem judicial, administrativa ou de outra autoridade, ela não tem permissão para ausentar-se por sua própria vontade”. 875 IIDH/APT, op. cit., p. 4.

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omissões que impedem a aplicação de princípios universais em condições locais.876

Para tanto, o propósito fundamental dos mandatos preventivos é o de

“identificação dos riscos de tortura”877 e, a partir da ação proativa de

monitoramento de centros de privação de liberdade, prevenir que as violações

sejam perpetradas. O enfoque preventivo se baseia na premissa de um diálogo

cooperativo com as autoridades competentes para coibição da tortura e outros

tratamentos degradantes e cruéis à pessoa privada de sua liberdade878.

O monitoramento preventivo pressupõe a transmissão oral ou escrita dos

resultados das investigações às autoridades competentes e, em alguns casos, a

outros atores envolvidos na proteção das pessoas privadas da liberdade em nível

nacional ou internacional, e aos meios de comunicação. Ademais, inclui o

monitoramento da implementação das recomendações dirigidas às autoridades

com o fulcro de adequar as condições de detenção aos parâmetros nacionais e

internacionais.

Esta função precípua conduz ao debate acerca da classificação da tortura

como um crime de oportunidade, fortemente influenciado pelos fatores

situacionais. Na concepção de Maia, a concepção de uma política criminal de

prevenção à tortura deveria orientar-se pelas contribuições da denominada

Criminologia Ambiental, através das “Teorias das Oportunidades para Práticas de

Delitos” (Crime Opportunity Theories)879, com base nos trabalhos de Marcus

876 Ibid., p.73. 877 Declaração do Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU ao apresentar o segundo relatório anual do SPT ao Comitê contra a Tortura. Vide “Committee against Torture meets with Subcommittee on Prevention of Torture”, Comunicado de imprensa de 2 de maio de 2009, disponível em: www.unog.ch.http://www.unog.ch/80256EDD006B9C2E/(httpNewsByYear_en)/02A16C255B95E900C12575B40051FA5A?OpenDocument. Acessado em: 10/05/2013. 878 Desta forma, como expressa o inciso II, do art. 2º da Lei estadual 5.778/2010 que institui o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, busca-se a “articulação, em regime de colaboração, entre as esferas de governo e de poder, principalmente, entre os órgãos responsáveis pela segurança pública, pela custódia de pessoas privadas de liberdade, por locais de longa permanência e pela proteção de direitos humanos”. 879 “Teorias das Oportunidades para Práticas de Delitos” (Crime Opportunity Theories), como teorias causal-explicativas, privilegiam a adoção de políticas públicas de prevenção dos delitos, ao tempo em que fornecem condições para fortalecer mecanismos de punição e reparação. Elas se baseiam em quatro pilares fundamentais: medidas destinadas a tornar mais difícil a prática do delito; medidas destinadas a aumentar os riscos de punição; medidas destinadas a reduzir as recompensas pela prática do delito; medidas destinadas a retirar as desculpas para prática do

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Felson e Ronald Clarke, na obra “A Ocasião faz o Ladrão”880. Contudo, esta

perspectiva de análise incorre nos equívocos da etiologia do crime, característicos

dos estudos de Sociologia Criminal inspirados na Escola de Chicago.

A relevância do enfoque preventivo para a erradicação da tortura pode ser

abordada por outro viés, no escopo da Criminologia Cautelar, proposta por

Zaffaroni. Como aponta o jurista argentino na obra La Palabra de Los Muertos:

“puede pensarse que el sistema penal es un caldo de cultivo de masacres, en el

que inexorablemente aparecen las larvas, pero el símil sería falso. Las larvas no

son entes extraños al sistema penal, sino que lo integram”.881 Por este viés, pode-

se depreender que a prática da tortura não é simplesmente fruto da escolha

racional do agente torturador, mas sim inserida em uma dinâmica operativa do

sistema penal “seletivo, repressivo e estigmatizante”882.

b) Sistema Nacional de Prevenção à Tortura

O Brasil recebeu no ano 2000 visita do Relator Especial sobre Tortura da

Comissão de Direitos Humanos da ONU, Sr. Nigel Rodley, no qual foi relatada883

a prática reiterada de tortura e maus tratos praticados pelos agentes do Estado

Brasileiro, bem como as condições degradantes dos locais de detenção.

No ano de 2011 o Subcomitê da ONU para a Prevenção à Tortura realizou

sua primeira visita ao Brasil884, inclusive o estado do Rio de Janeiro, a fim de

monitorar os estabelecimentos de privação de liberdade. Ao abordar a temática da

superpopulação no sistema prisional, o relatório aponta que:

delito”. MAIA, L. M., Prevenção, punição e reparação à tortura no Brasil, à luz do direito internacional dos direitos humanos, p. 16. 880 FELSON, M.; CLARKE, R. V., Opportunity Makes the Thief: practical theory for crime prevention. 881 “Pode-se pensar que o sistema penal é um celeiro de massacres, nos quais inexoravelmente larvas aparecem, mas o inverso seria falso. As larvas não são estranhas às autoridades de justiça penal, mas as integram”. ZAFFARONI, E. R., A palavra dos mortos, p. 553. 882 BATISTA, N. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p. 25-26. 883 Informe do Relator Especial: http://acnudh.org/wp-content/uploads/2011/01/Report-of-the-Special-Rapporteur-on-Torture-Visit-to-Brazil-2001.pdf Português: http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj044773.pdf 884Relatório da visita do SPT ao Brasil em 2011: http://coletivodar.org/wp-content/uploads/2012/06/relatorio_do_SPT.pdf. Resposta do governo brasileiro: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/tortura/resposta-do-governo-brasileiro-as-recomendacoes-do-subcomite-de-prevencao-da-tortura-da-onu-outubro-2012

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97. O SPT insta o Estado Parte a reavaliar suas políticas de segurança pública e a tomar as medidas apropriadas, no curto e no longo prazo com vistas a reduzir a superlotação nas prisões. Os internos devem ser acomodados em consonância com padrões internacionais, com a devida atenção ao conteúdo cúbico de ar e ao mínimo espaço de chão, dentre outros. Cada prisioneiro deveria ter uma cama separada e roupa de cama limpa.

Em março de 2014, o SPT encaminhou ao Governo Brasileiro sua primeira

réplica885 a respeito da resposta do Brasil ao relatório das visitas de 2011 e dentre

outros aspectos, destacamos: justificativa excessiva sobre a estrutura federativa do

país a intervir na gestão penitenciária dos Estados; falta de respostas mais

contundentes em relação a ações de adoção das recomendações; demora para

implementação do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura;

diferenças sobre a adoção de leis e sua aplicabilidade e ausência de ações

contundentes para o fechamento do Presídio Ary Franco, já apontado em

inspeções também do MEPCT/RJ.

O país possui um membro no Subcomitê para Prevenção à Tortura da

ONU, Sra. Margarida E. Pressburguer, com mandato até o ano de 2016 e o

membro focal do SPT para o Brasil é o Sr. Felipe Villavicencio Terreros886. A

realização de visitas e o processo de monitoramento regular estabelecidos pelo

SPT são importantes no sentido de fomentar no país a criação e empoderamento

de seu sistema nacional de prevenção.

A criação do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura

(SNPCT) no Brasil nos moldes do OPCAT passou por diversas etapas até chegar a

sua configuração atual, na qual se deu à instalação através de escolhas dos

membros do Comitê e Mecanismo federal. De acordo com um estudo realizado

pela APT887, as discussões oficiais em torno da criação do Mecanismo Nacional

de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) iniciaram em 2005 antes até mesmo

da ratificação do país ao protocolo.

Em 2006 o governo brasileiro aprova o Plano de Ações Integradas para a

Prevenção e Combate à Tortura criando o Comitê Nacional de Prevenção e

885Primeira Resposta do SPT, disponível em: http://www.apt.ch/content/files/npm/americas/Brazil_SPT%20response%20to%20Brazil%20replies_May2013.pdf 886 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório Anual 2012. 887 “A situação de implementação do Protocolo Facultativo à Convenção contra Tortura (OPCAT)”. Genebra: APT, 2014.

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Combate à Tortura (CNPCT). Já em 2007, o Brasil ratifica o Protocolo Facultativo

à Convenção Contra a Tortura da ONU através do Decreto nº 6.085, fato que

obriga o Estado brasileiro a implementar o Mecanismo Preventivo Nacional. Em

2010, é aprovado pelo Presidente da República o Programa Nacional de Direitos

Humanos (PNDH-3)888 que recomenda a criação de Mecanismos de Prevenção à

Tortura no âmbito federal e nos estados da federação, objeto do PL nº 2.442/2011.

A despeito deste fato, em 2010, a partir de amplo debate com diversas

organizações e movimentos sociais, foi promulgada no Rio de Janeiro a Lei

Estadual Nº. 5.778 que prevê a criação do Comitê e do Mecanismo Estadual de

Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, um avanço pioneiro no

enfrentamento a este tipo de violência889. Trata-se do primeiro mecanismo

preventivo do país, notabilizando-se ainda por ser o primeiro mecanismo em nível

estadual e o primeiro vinculado ao Poder Legislativo, em todo o mundo.

O Comitê é formado por 16 instituições, sendo sua composição paritária

entre Estado e sociedade civil. Por sua vez, o Mecanismo Estadual de Prevenção e

Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ) é composto por seis membros

eleitos a partir de processo de escolha realizada pelo Comitê Estadual –

respeitando em sua composição os critérios estabelecidos no Protocolo

Facultativo da ONU890 – e é vinculado administrativamente à Assembleia

Legislativa do Rio de Janeiro. Os membros do MEPCT/RJ foram empossados em

julho de 2011. Desde então, o Mecanismo tem realizado centenas de visitas aos

locais de privação de liberdade deste estado e obtido resultados importantes no

enfrentamento à tortura e outros maus tratos891.

888 Disponível em: http://www.pndh3.sdh.gov.br/. Acessado em: 06/06/2015. 889 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, op. cit. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/topicos/23558089/lei-n-5778-de-30-de-junho-de-2010-do-rio-de-janeiro. Acessado em: 06/06/2015. 890 Dentre os critérios encontram-se a independência no processo de eleição dos membros do Mecanismo, a garantia de remuneração e exclusividade, e que a composição atenda aos equilíbrios de raça/etnia e gênero de caráter interdisciplinar. 891 A relação de locais de privação de liberdade, bem como situações de tortura e outros maus tratos, podem ser identificados em: Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório Anual 2012. Rio de Janeiro: ALERJ, 2012; bem como nos relatórios anuais de 2013 e 2014.

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Finalmente, no ano de 2013, entrou em vigor a Lei Nº 12.847/13892, o mais

importante marco legal brasileiro sobre a matéria, que cria formalmente o Comitê

e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, bem como institui o

Sistema Nacional de Prevenção à Tortura, do qual os mecanismos estaduais são

parte integrante. No mesmo ano, foi definida a regulamentação sobre o

funcionamento do CNPCT, através do Decreto Presidencial Nº 8.154893.

O ano de 2014 demarcou a composição dos membros do Comitê Nacional

nos moldes dos novos marcos legais e o processo de seleção e eleição dos

membros para composição da primeira equipe do Mecanismo Nacional de

Prevenção e Combate à Tortura894. O Mecanismo Nacional iniciou suas inspeções

em julho de 2015895.

Devido ao pacto federativo e à dimensão continental do país, outros

estados desde então tem se movimentado para criação de comitês e mecanismos

que atendam os pressupostos do Protocolo Facultativo. A criação e o

estabelecimento do CEPCT e do MEPCT no Rio de Janeiro é um referencial

exemplar desta trajetória. Se por um lado, o país possui 19 comitês oficializados,

apenas sete unidades federativas possuem decreto ou legislação estadual para

instalação do mecanismo. Além do Rio de Janeiro, somente o estado de

Pernambuco possui Mecanismo Preventivo em funcionamento896.

A implantação dos Mecanismos preventivos nacionais e estaduais no

Brasil vem a somar-se junto ao importante trabalho desempenhado por outros

órgãos que exercem o Controle da Execução Penal, como o Conselho Nacional de

Justiça; Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária; representações do

Ministério Público, Defensoria Pública e Tribunais de Justiça; Conselho

892 Lei 12.847/2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12847.htm. Acessado em: 06/06/2015. 893Decreto nº 8.154/2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Decreto/D8154.htm 894 Editais de 2014 do processo de escolha do CNPCT e MPNPCT se encontram em: http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/sistema-nacional-de-prevencao-e-combate-a-tortura-snpct/editais-do-sistema-nacional-de-combate-a-tortura 895 Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório de Visita à Penitenciária Feminina do Distrito Federal. 896 O MEPCT/RJ vem contribuindo com implementação de CEPCT e MEPCT no país, nos quais destacamos as participações na capacitação dos membros eleitos do Mecanismo do estado de Pernambuco, em setembro896, de um seminário e capacitação no estado de Minas Gerais, em março, em conjunto com o Ministério Público/MG e APT e da audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo sobre a importância da criação do sistema estadual naquele estado, em setembro último. Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório Anual 2012.

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Penitenciário dos estados; Conselhos da Comunidade; diversas Comissões de

Direitos Humanos; bem como entidades de classe, como Ordem dos Advogados

do Brasil, Conselhos Regionais de Serviço Social e Psicologia, e organizações de

direitos humanos, nacionais e internacionais, que atuam nesta temática.

Trata-se da possibilidade de potencializar um trabalho em rede, com o

objetivo de reduzir os danos do sistema penitenciário, através de visitas regulares

e ação estratégica, que possa resultar na obstaculização da prática da tortura, bem

como pressionar as autoridades públicas, em âmbito federal, estadual e municipal,

a adotar uma agenda político-criminal redutora do encarceramento.

No ano de 2015, estão programadas para o segundo semestre uma visita do

Relator Especial sobre Tortura, Juan Mendez, bem como uma nova visita do SPT,

com o intuito de analisar novas graves denúncias sobre as condições de detenção

no Brasil.

Apesar do atraso de quase cinco anos, a implementação do Comitê e

Mecanismo Nacional, bem como a possibilidade de criação de outros mecanismos

estaduais representam um fundamental avanço no país em adotar um dos mais

importantes documentos de diretos humanos do mundo, aqui representado pela

adesão ao Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura

e, sobretudo, na construção de ferramenta eficaz de prevenção e combate à tortura,

ainda mais em um contexto sociopolítico de acirramento das práticas

criminalizadoras e incremento do superencarceramento, levadas a cabo no Estado

penal brasileiro.

6.2.2 A tese do Estado de Coisas Inconstitucional

Em maio de 2015, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), protocolou a

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 347 junto ao

Supremo Tribunal Federal. A ação, fruto de parceria com a Clínica de Direitos

Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ, sob coordenação do professor

Daniel Sarmento, defende que um Plano Nacional seja elaborado pelo governo

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federal “visando à superação do Estado de Coisas Inconstitucional do sistema

penitenciário brasileiro, dentro de um prazo de três anos”897.

No âmbito do Direito Comparado há importantes exemplos de intervenção

da jurisdição constitucional diante de graves falhas estruturais nas políticas

públicas voltadas à proteção de direitos fundamentais. Há experiências fecundas

nesta área, advindas de Estados Unidos, África do Sul e União Europeia.

Especialmente na experiência do Constitucionalismo latino-americano, a Corte

Constitucional da Colômbia, um dos tribunais constitucionais com maior destaque

na defesa dos direitos humanos, que vem dando ensejo ao reconhecimento do

denominado Estado de Coisas Inconstitucional898.

Trata-se de inovadora técnica decisória, voltada ao enfrentamento de

violações graves e sistemáticas da Constituição, decorrentes de falhas estruturais

em políticas públicas que envolvam um grande número de pessoas, e cuja

superação demande providências variadas de diversas autoridades e agências

estatais.

O Estado de Coisas Inconstitucional não está expressamente previsto na

Constituição ou em qualquer outro instrumento normativo. Trata-se de uma

construção doutrinária e jurisprudencial que permite à Corte Constitucional impor

aos poderes do Estado a adoção de medidas tendentes à superação de violações

graves e massivas de direitos fundamentais, e supervisionar, em seguida, a sua

efetiva implementação.

Uma vez que o reconhecimento desta técnica constitucional confere ao

Tribunal uma ampla gama de poderes, tem-se entendido que só deve ser manejada

em hipóteses excepcionais, em que, além da séria e generalizada afronta aos

direitos humanos, haja também a constatação de que a intervenção da Corte é

essencial. Portanto, é necessário identificar um “bloqueio institucional” para a

garantia dos direitos, o que leva a Corte a assumir um papel atípico, sob a

897 Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=292996. Acessado em: 14/07/2015. 898 Veja-se, a propósito, César Rodríguez Garavito. “Más Allá del desplazamiento, o cómo superar un estado de cosas inconstitucional”. In: Más allá del desplazamiento – Políticas, derechos y superación del desplazamiento forzado en Colombia. Bogotá: Ediciones Uniandes, 2009; Carlos Alexandre de Azevedo Campos. Da Inconstitucionalidde por Omissão ao “Estado de Coisas Inconstitucional”. Tese de doutorado aprovada na Faculdade de Direito da UERJ sob a orientação do Prof. Daniel Sarmento, 2015. OLIVEIRA, D. A. J. M. de; et all, O Novo Constitucionalismo Latino-Americano: Paradigmas e Contradições, p. 185-214.

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perspectiva do princípio da separação de poderes, que envolve uma intervenção

mais ampla sobre o campo das políticas públicas899.

Para reconhecer o Estado de Coisas Inconstitucional, a Corte

Constitucional da Colômbia exige que estejam presentes os seguintes requisitos:

(i) vulneração massiva e generalizada de direitos fundamentais de um número

significativo de pessoas; (ii) prolongada omissão das autoridades no cumprimento

de suas obrigações para garantia e promoção dos direitos; (iii) a superação das

violações de direitos pressupõe a adoção de medidas complexas por uma

pluralidade de órgãos, envolvendo mudanças estruturais, que podem depender da

alocação de recursos públicos, correção das políticas públicas existentes ou

formulação de novas políticas, dentre outras medidas; e (iv) potencialidade de

congestionamento da justiça, se todos os que tiverem os seus direitos violados

acorrerem individualmente ao Poder Judiciário900.

Foi na Sentencia de Unificación (SU) – 559, de 1997, que a Corte

Constitucional Colombiana declarou, em primeira oportunidade, o Estado de

Coisas Inconstitucional901. Desde então, esta técnica já foi empregada em pelo

menos nove casos, tendo um deles versado exatamente sobre o sistema prisional

do país. Tratou-se do processo T-153 de 1998, em que se reconheceu o Estado de

Coisas Inconstitucional daquele sistema penitenciário902.

Na histórica decisão, a Corte colombiana destacou que: “os cárceres

colombianos se caracterizam pela superlotação, graves deficiências em matéria de

serviços públicos e assistenciais, império da violência, extorsão, corrupção, e

carência de oportunidades e meios para a ressocialização dos reclusos”, podendo

se deduzir, desta situação, “a violação de um leque de direitos fundamentais como

a dignidade, a vida, a integridade pessoal e os direitos à família, à saúde, ao

trabalho e à presunção de inocência, etc”903.

899 LIBARDO, J. A., “The Economic and Social Rights of Prisioners and Constitutional Court Intervention in the Penitenciary System in Colombia”, p. 129. 900 Ver mais em CAMPOS, C. A. de A., Da Inconstitucionalidade por Omissão ao Estado de Coisas Inconstitucional, pp. 134-138. 901 Ibid. 902 Outra decisão importante em que a Corte Constitucional colombiana reconheceu o estado de coisas inconstitucional foi relacionada ao problema dos “deslocados” (desplazados) – que são cerca de 3 milhões de colombianos que foram forçados a se deslocar, em razão da guerrilha e da escalada de violência que atingiu várias regiões daquele país. 903 COLÕMBIA. Corte Constitucional. 23 Sentencia T-153/1998, de 28/4/1998.

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A decisão impôs uma série de medidas direcionadas a inúmeros órgãos

públicos904. Entretanto, foi também alvo de críticas por ter priorizado, para o

equacionamento do Estado de Coisas Inconstitucional, a construção de novos

presídios, sem enfrentar o processo de hiperencarceramento, também vivenciado

na Colômbia, e por não ter monitorado a implementação das medidas adotadas

pelo Estado905.

A partir da experiência colombiana, a ideia do controle do Estado de

Coisas Inconstitucional foi também adotada pela jurisdição constitucional de

outros Estados, como o Peru906. Recentemente, a jurisprudência do STF

recepcionou a técnica do reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional. O

Ministro Luís Roberto Barroso, no voto-vista que proferiu na Questão de Ordem

suscitada nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs) nº 4.357 e nº 4.425,

atinente à modulação temporal da decisão que reconheceu inconstitucionalidades

na Emenda Constitucional nº 62, que tratara do pagamento de precatórios, aludiu

ao “estado de inconstitucionalidade grave e permanente que se instaurou no país,

em relação ao pagamento de condenações judiciais contra a Fazenda Pública”907.

Nos EUA também há registros de importantes decisões da Suprema Corte

no enfrentamento a graves e sistemáticas afrontas a direitos fundamentais. Além

das históricas sentenças na tentativa de superação da segregação racial, destacam-

se os recentes prison reform cases em que cortes federais norte-americanas

chegaram a declarar a inconstitucionalidade dos sistemas prisionais de 41 Estados.

O Poder Judiciário, além de nomear interventores na administração das unidades

prisionais, decidiu formular um amplo código para a administração das prisões,

com diretrizes no que se refere às condições de detenção908. Apesar das profundas

mazelas do Leviatã neoliberal estadunidense, segundo Sabel e Simon:

904 LIBARDO, J. A., “The Economic and Social Rights of Prisioners and Constitutional Court Intervention in the Penitenciary System in Colombia”. 905 CAMPOS, C. A. de A., op. cit., pp. 134-138. 906 HUAROTO, B. M. R., Estado de Cosas Inconstitucional’ y sus Posibilidades como Herramienta para el Litigio Estratégico de Derecho Público. Una Mirada en la Jurisprudencia Colombiana y Peruana. 907 A Corte, ao final, decidiu atribuir ao CNJ a função de elaborar proposta normativa para equacionamento de alguns aspectos do problema, bem como o papel de monitorar e supervisionar o cumprimento das medidas que impusera aos entes públicos. Questão de Ordem nas ADIs 4.357 e 4.425, Rel. Mini. Luiz Fux, julg. 25/03/2015. 908 Questões como instalações, saneamento, alimentação, vestuário, assistência médica, disciplina, contratação de pessoal, atividades de trabalho e educação passaram a ser alvo de controle judicial.

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de modo geral, estes casos provocaram significativas melhoras. Especialmente nos sistemas mais duros do Sul, a intervenção levou à eliminação da tortura rotineira e autorizada (...) e gerou, no mínimo, modestas melhorias nas instalações físicas do confinamento909.

Ainda nos EUA, no ano de 2011, a Suprema Corte julgou o caso Brown v.

Plata, em que manteve decisão proferida por corte da Califórnia, que determinara

a soltura de 46 mil prisioneiros de menor periculosidade, em razão da crônica

superlotação dos presídios daquele Estado. Os juízes californianos determinaram,

com base nessa constatação, que as autoridades do Estado formulassem um plano

para a redução da superlotação, para no máximo 137,5% da capacidade das

prisões do estado910.

Outra experiência similar no que tange aos direitos fundamentais de presos

pôde ser observada na Argentina. No denominado “caso Verbitsky”, um habeas

corpus coletivo foi impetrado a favor de todas as pessoas privadas de liberdade na

província de Buenos Aires que estavam detidas em estabelecimentos policiais

superlotados. No julgamento, a Corte Suprema do país, depois de reconhecer a

inconstitucionalidade de tal situação, impôs diversas medidas imediatas, mas

também a elaboração de um plano para a província de Buenos Aires, em diálogo

com a sociedade civil. O plano deveria preconizar mudanças nas políticas

criminais e prisionais, de modo a ajustar a situação dos detentos às regras mínimas

sobre tratamento de presos das Nações Unidas911.

Também há exemplos de emprego de técnica semelhante na Corte

Europeia de Direitos Humanos. As chamadas “decisões piloto” (arrét pilot),

buscam apontar problemas sistêmicos e indicar aos Estados soluções genéricas,

que podem envolver a reformulação de políticas públicas, indicando prazos para a

FEELEY, M. M. e RUBIN, E. L.. Judicial Policy Making and the Modern State: How Courts Reformed America’s Prisons, pp. 40-41. 909 SABEL, C. e SIMON, W. H., “Destabilization Rights: How Public Law Litigation Succeeds”, p. 1035. 910 A partir de casos relativos ao acesso à saúde de presidiários e ao tratamento dado a detentos com deficiência física, a justiça californiana detectara o grave quadro de superlotação das prisões californianas – a Califórnia tinha cerca de 156.000 presos, com capacidade para apenas aproximadamente 80.000. CAMPOS, C. A. de A., op cit. 911 ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nación, Verbitsky Horacio c/ s/ Habeas Corpus, Fallos 328:1146, julg. 3.5.2005. Ver mais em COURTIS, C., “El caso ‘Verbitsky’: ¿nuevos rumbos en el control judicial de la actividad de los poderes políticos?”.

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sua implementação. Em 2013, esta iniciativa foi utilizada como forma de enfrentar

o problema da superlotação no sistema penitenciário italiano. Uma série de

medidas foram implementadas para superar o quadro de hiperencarceramento que

havia levado os presídios italianos à cifra de 151% de sobreocupação de vagas.

Estas experiências de tribunais constitucionais alienígenas permitem

concluir que o Supremo Tribunal Federal teria elementos suficientes para atuar

diante de cenários de grave e massiva violação de direitos, decorrentes de

debilidades estruturais em políticas públicas, com o fulcro de dar efetividade ao

texto da Constituição. Como leciona Campos:

Apesar de haver diferenças institucionais importantes entre o STF e a Corte Constitucional Colombiana, a prática da declaração do Estado de Coisas Inconstitucional e da formulação de ordens estruturais, flexíveis e sob monitoramento, pode ser uma boa maneira de nosso Tribunal Maior passar a lidar com essas falhas estruturais prejudiciais à efetividade dos direitos fundamentais dos brasileiros. Isso significa, também, que boas medidas institucionais podem ser encontradas fora do eixo tradicional Estados Unidos-Europa Ocidental912.

Este é o caso presente na demanda pelo reconhecimento do Estado de

Coisas Inconstitucional em face das mazelas do sistema penitenciário brasileiro,

para que, desta forma, imponha a adoção de uma série de medidas voltadas à

promoção da melhoria das condições das unidades prisionais brasileiras e à

contenção e reversão do processo de hiperencarceramento que vem sendo levado a

cabo nas últimas décadas. Em recente voto, o Ministro Luís Roberto Barroso

manifesta que:

(...) o quadro crônico de omissão e descaso com a população carcerária exige que este Supremo Tribunal Federal assuma uma postura ativa na construção de soluções para a crise prisional, impulsionando o processo de superação do atual estado de inconstitucionalidade que envolve a política prisional do país. Sua intervenção estaria plenamente justificada na hipótese, porque se daria para proteger e promover os direitos fundamentais de uma minoria que, além de impopular e estigmatizada, não tem voto. Faltam assim, incentivos para que as instâncias representativas promovam a melhoria das condições carcerárias913.

Na ADPF Nº 347, o pedido direcionado à Suprema Corte brasileira,

demanda que o Governo Federal formule de um Plano Nacional para a superação

912 CAMPOS, C. A. de A., op. cit. 913 Voto-vista proferido no R.E.580.525.

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do Estado de Coisas Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, dentro de

um prazo de três anos, que:

deverá conter propostas e metas específicas para a superação das graves violações aos direitos fundamentais dos presos em todo o país, especialmente no que toca à (i) redução da superlotação dos presídios; (ii) contenção e reversão do processo de hiperencarceramento existente no país; (ii) diminuição do número de presos provisórios; (iii) adequação das instalações e alojamentos dos estabelecimentos prisionais aos parâmetros normativos vigentes, no que tange a aspectos como espaço mínimo, lotação máxima, salubridade e condições de higiene, conforto e segurança; (iv) efetiva separação dos detentos de acordo com critérios como sexo, idade, situação processual e natureza do delito; (v) garantia de assistência material, de segurança, de alimentação adequada, de acesso à justiça, à educação, à assistência médica integral e ao trabalho digno e remunerado para os presos; (vi) contratação e capacitação de pessoal para as instituições prisionais; (vii) eliminação de tortura, de maus tratos e de aplicação de penalidades sem o devido processo legal nos estabelecimentos prisionais; (viii) adoção de medidas visando a propiciar o tratamento adequado para grupos vulneráveis nas prisões, como mulheres e população LGBT.914

A petição demanda que sejam ainda formulados planos estaduais e um

plano para o Distrito Federal, que se harmonizem com o Plano Nacional

homologado, e que contenham metas e propostas específicas para a superação do

Estado de Coisas Inconstitucional na respectiva unidade federativa. Ademais,

pleiteia que o plano seja fruto de participação democrática, sendo submetido à

análise de diversos órgãos públicos, além de permitir voz à sociedade civil, por

meio de audiências públicas.

A declaração do Estado de Coisas Inconstitucional pode ser uma fecunda

experiência do ativismo judicial para enfrentar as mazelas estruturais do sistema

prisional brasileiro, permitindo a implantação de um conjunto medidas que venha

a conter a voracidade do Estado penal.

914 STF. ADPF 347 de 2015, de autoria do Partido Socialismo e Liberdade. Relator: Ministro Marco Aurélio de Mello.

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6.2.3 Responsabilidade civil do Estado por superlotação e condições degradantes de encarceramento

a) Reparação pecuniária: indenização

O tema da responsabilidade civil do Estado pelos danos morais causados

aos presos em decorrência da superlotação e do encarceramento em condições

desumanas ou degradantes tem se acentuado no Poder Judiciário brasileiro. A

jurisprudência dos tribunais superiores, apesar de divergências, vem

posicionando-se favorável a tal questão915.

O debate sobre o eventual cabimento de reparação pecuniária estatal na

matéria deve, precipuamente, partir da premissa que o sistema de responsabilidade

civil tem sua fonte primária na Constituição Federal. Ao atribuir centralidade ao

princípio da dignidade da pessoa humana, a Lei Fundamental de 1988 assegura a

ampla indenização pelos danos materiais ou morais decorrentes de violações a um

conjunto de valores essenciais, como a intimidade, a vida privada, a honra e a

imagem, consagrados no art. 5º, incs. V e X. Conforme salienta Bodin de Moraes,

a dignidade humana e os danos morais correspondem a duas faces de uma

moeda916.

Na doutrina brasileira, de modo geral, compreende-se o sistema de

responsabilidade civil fundado em três elementos: o dano, a culpa e o nexo

causal917. Com base na teoria do risco administrativo, a Constituição de 1988, em

seu art. 37, § 6º, afastou o elemento da culpa para a configuração do dever de

ressarcimento do Estado por danos que seus agentes causarem a terceiros. Nessa

hipótese, basta a comprovação do dano e do nexo de causalidade com a conduta

estatal para que seja deflagrada a responsabilização do ente público918.

915 RE 466.322 AgR/MT, Segunda Turma, Rel. Min. EROS GRAU, DJe de 27/04/07). No mesmo sentido: RE 272.839, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 08/04/05. 916 BODIN DE MORAES, M. C., Danos à Pessoa Humana: uma leitura civil constitucional dos danos morais, p. 326. 917 Ibid. 918 Há controvérsia acerca do tema das condições degradantes da execução penal. Há duas correntes, uma primeira considera que se trata de responsabilidade civil do Estado em razão de ato omissivo, já o segundo entendimento, considera-o ato comissivo, uma vez que, o Estado ciente das mazelas do cárcere não titubeia em depositar cada vez mais internos em unidades superlotadas. A exemplo da primeira corrente: ARE 662.563 AgR/GO, DJe de 02/04/2012, o Min. Gilmar Mendes, relator, afirmou em seu voto que “ (…) a jurisprudência dominante desta Corte que se firmou no

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Entretanto, este dano moral deve ser demonstrado a partir de elementos

concretos da realidade do preso, como exemplo o espaço físico individual

disponível na cela, a salubridade do ambiente, as condições estruturais do presídio

e as deficiências na prestação das assistências material, de saúde, laborativa,

educacional e as eventuais lesões à sua integridade psicofísica919.

Uma vez privados de liberdade, os internos estão submetidos aos

regramentos disciplinares do cárcere, como instituição total busca submetê-los

inteiramente ao controle do poder público. Portanto, nas unidades prisionais o

Estado assume uma ‘posição especial de garantidor’ em relação aos presos,

circunstância que lhe confere deveres específicos de vigilância e de proteção de

todos os direitos dos internos que não foram afetados pela privação de liberdade,

em especial sua integridade física e psíquica, sua saúde e sua vida920.

O status de “garante” submete o Estado a uma responsabilidade

diferenciada, de caráter eminentemente objetivo, que decorre da existência de um

dever individualizado de garantia da integridade dos presos, sob pena de dano

moral, assegurado pelo art. 5º, inc. V e X, da Constituição de 1988. Por este viés,

ainda que o dano moral causado decorra de uma omissão estatal, tratando-se do

descumprimento do dever constitucional de guarda, o poder público é obrigado a

repará-lo. Neste sentido, há vasta jurisprudência em casos de omissão estatal

diante da posição de garantidor921.

sentido de que a negligência estatal no cumprimento do dever de guarda e vigilância dos detentos configura ato omissivo a dar ensejo à responsabilidade objetiva do Estado, uma vez que, na condição de garante, tem o dever de zelar pela integridade física dos custodiados (...)”. Esposando, a segunda visão, entende o Ministro Barroso: “Diferentemente do que alegam as partes, entendo que, na hipótese em exame, a responsabilidade civil do poder público é por ação, e não por omissão. Afinal, o Estado, ciente das péssimas condições de detenção, envia pessoas a cárceres superlotados e insalubres”. Voto-vista do Ministro Luis Roberto Barroso. STF. RE 580.252/MS. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE580252LRB.pdf. Acessado em: 15/07/2015. 919 No Brasil, a LEP prevê que o condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório e que deve ter a) ambiente salubre pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; e b) área mínima de 6,00m2. No entanto, ainda não foram identificados critérios objetivos para que se possa avaliar quando a pena passa a ser ilegítima à luz da dignidade humana. 920 Neste sentido, vide: Art. 41 da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) e Comisión Interamericana de Derechos Humanos, Informe sobre los Derechos Humanos de las Personas Privadas de Libertad en las Américas - 2011. 921 Neste sentido, vide responsabilidade civil do Estado em caso de morte de detento por colegas de carceragem (RE 272.839), de lesões corporais sofridas por menores internados em centro socioeducativo em decorrência de incêndio (ARE 669001) e de suicídio de detento (ARE 700.927).

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Percebe-se também a ampla negação da legitimidade de invocação da

cláusula de “reserva do possível”922 para obstaculizar, sob o argumento de limite

orçamentário, o dever ressarcitório nesta matéria. O dever de reparação decorre de

norma constitucional, e independe da execução de políticas públicas, diante do

caráter sistêmico das graves mazelas do sistema penitenciário923.

Apesar de não representar medida com repercussão direta na contenção do

hiperencaramento, a reparação pecuniária estatal perante as disfunções do sistema

penitenciário pode ter um efeito positivo ao promover o debate público sobre a

ilegitimidade das condições da execução penal, bem como constranger gestores

públicos a pensar em políticas criminais alternativas, tendo em vista os possíveis

prejuízos ao orçamento público decorrente das ações indenizatórias.

b) Reparação não pecuniária: por uma nova modalidade de remição de pena

Recentemente veio a público o debate em torno de uma possível reparação

não econômica em razão de danos morais para presos submetidos a superlotação

ou a condições degradantes no cárcere. Ao analisar o Recurso Extraordinário (RE)

580.252, com repercussão geral, em que se discute a responsabilidade civil do

Estado por danos morais decorrentes de superlotação carcerária, o Ministro Luís

Roberto Barroso propôs, em voto-vista924, a remição de dias da pena, em

substituição à indenização que seria aplicável ao caso.

O referido julgamento teve início em dezembro de 2014, ocasião em que o

relator, Ministro Teori Zavascki, votou no sentido de dar procedência ao pedido,

por considerar que o Estado tem responsabilidade civil ao deixar de garantir as

condições mínimas de cumprimento das penas nos estabelecimentos prisionais925.

922 A teoria da reserva do possível aponta que o Estado não pode obrigar-se a assumir compromissos em políticas públicas que seu orçamento público não comporta. BARROSO, L. R., O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 923 Voto-vista do Ministro Luis Roberto Barroso. STF. RE 580.252/MS. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE580252LRB.pdf. Acessado em: 15/07/2015. 924 Ibid. 925 Voto-vista do Ministro Teori Zavascki. STF. RE 580.252/MS. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE580252.pdf. Acessado em: 15/07/2015.

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O Ministro Barroso concordou com o voto do relator quanto à

responsabilização civil do estado e o dever de indenizar. Todavia, ao invés de

aderir ao pagamento da indenização em pecúnia, o ministro apresentou proposta

alternativa de pagamento, reparando o dano por meio da remição de dias de pena

cumpridos em condições degradantes, aplicando, por analogia, o artigo 126 da Lei

de Execução Penal926.

A justificativa do voto ministerial assenta-se no entendimento de que o

pagamento de indenizações pecuniárias não resolve o problema nem do indivíduo

nem do sistema, podendo mesmo agregar complicações, já que não foram

estabelecidos quaisquer critérios. Além disso, eventual decisão do STF

confirmando a possiblidade de indenização pecuniária abriria precedente para a

deflagração de centenas de milhares de ações em diferentes estados do Brasil, de

presos requerendo indenizações.

Neste sentido, ao analisar os impasses da responsabilidade civil no Brasil,

Anderson Schreiber aponta que mais do que ineficaz para reparar os danos

sofridos, a exclusividade conferida ao caminho da compensação pecuniária

produz diversas distorções. Acaba por acarretar “uma tendência à precificação dos

direitos da personalidade e da própria dignidade da pessoa humana e induz à

adoção de um cálculo utilitarista, de custos e benefícios, na produção dos danos”

927.

O Direito Comparado e o Direito Internacional dos Direitos Humanos

podem servir de inspiração para a questão. Caso semelhante ao aventado no

Recurso Extraordinário (RE) nº 580.252 ocorreu no “julgamento piloto” em

relação ao sistema carcerário da Itália. No caso Torreggiani et al. v. Itália928,

diversos detentos que cumpriam pena em celas superlotadas ingressaram com

requerimentos de condenação do Estado ao pagamento de indenizações. A Corte

926 Lei de Execução Penal, no artigo 126: “O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. § 1o A contagem de tempo referida no caput será feita à razão de: I – 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar – atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional – divididas, no mínimo, em 3 (três) dias; II – 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho”. 927 SCHREIBER, A., Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil Brasileira. Id., Reparação Não Pecuniária dos Danos Morais. 928 CEDH, Caso Torreggiani et. al v. Itália, j. em 08.01.2013.

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Europeia de Direitos Humanos (CEDH), além de determinar a reparação dos

danos morais causados aos requerentes, aplicou o procedimento do julgamento

piloto, por ter identificado que a superpopulação carcerária na Itália possuía

caráter estrutural. Como consequência, determinou que o governo italiano

adotasse, no prazo de um ano, um conjunto de medidas aptas a reduzir a

superlotação, que compreendesse remédios tanto preventivos, quanto

compensatórios.

O caso foi exitoso ao acarretar repercussão positiva sobre as condições de

encarceramento no país. Atendendo à decisão da CEDH, a Itália apresentou à

Corte um plano de ação e adotou diversas medidas de reforma de seu sistema

prisional929.

No que se refere especificamente aos remédios compensatórios, o governo

italiano estabeleceu um mecanismo de reparação in natura dos danos morais

causados aos presos, consistente na remição de um dia de pena para cada dez dias

de detenção em condições degradantes ou desumanas930. Apenas os detentos que

não estiverem mais sob custódia do Estado, ou cuja pena a cumprir não permita a

dedução da totalidade da remição concedida, podem pleitear uma indenização

pecuniária.

Ao analisar a medida, a CEDH concluiu se tratar de “uma reparação

adequada em caso de más condições materiais de detenção”, com “a vantagem

inegável de contribuir para o problema da superlotação”931. Segundo

entendimento da Corte, houve evidências suficientes de que as medidas adotadas

pelo governo italiano foram eficazes para atacar o problema da superlotação e

para garantir os direitos dos presos, inclusive à reparação dos danos causados932.

Na proposta aventada pelo Ministro Barroso os danos morais causados a

presos por superlotação ou condições degradantes devem ser reparados,

929A título exemplificativo, estimulou a adoção de medidas alternativas à prisão, ampliou as hipóteses de cabimento da prisão domiciliar, sobretudo para crimes de menor potencial ofensivo, previu a expansão do uso da monitoração eletrônica, criou uma ouvidoria nacional das pessoas presas, reduziu as penas de crimes relacionados a drogas leves e ampliou as oportunidades de trabalho para os detentos. CEDH, Caso Torreggiani et. al v. Itália, j. em 08.01.2013. 930 Vide Decreto-Lei nº 92/2014, convertido na Lei nº 117/2014. 931 CEDH, Caso Rexhepi et al. v. Italie, j. em 16.09.2014. 932 De acordo com informações prestadas pela Itália, em 2014 não havia mais nenhum detento que cumprisse pena em cela com espaço individual inferior a 3 m2. CEDH, Stella et al. v. Italie e Rexhepi et al. v. Italie, j. em 16.09.2014.

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preferencialmente, pela remição de parte do tempo da pena – à razão de um dia de

remição para cada 3 a 7 dias cumpridos sob essas condições precárias. Assim, em

seu voto propõe a seguinte tese de repercussão geral:

O Estado é civilmente responsável pelos danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos presos em decorrência de violações à sua dignidade, provocadas pela superlotação prisional e pelo encarceramento em condições desumanas ou degradantes. Em razão da natureza estrutural e sistêmica das disfunções verificadas no sistema prisional, a reparação dos danos morais deve ser efetivada preferencialmente por meio não pecuniário, consistente na remição de 1 dia de pena por cada 3 a 7 dias de pena cumprida em condições atentatórias à dignidade humana, a ser postulada perante o Juízo da Execução Penal. Subsidiariamente, caso o detento já tenha cumprido integralmente a pena ou não seja possível aplicar-lhe a remição, a ação para ressarcimento dos danos morais será fixada em pecúnia pelo juízo cível competente.

Para o Ministro, é legítimo computar o tempo de prisão sob condições

degradantes com mais valia, usando a técnica da remição. Este entendimento

compartilha da reflexão precisamente apresentada por Juarez Tavares933, acerca da

dicotomia presente entre o conceito de pena real (sanção materialmente aplicada

na execução penal) e o conceito de pena ficta (sanção formalmente prevista em

lei).

No caso do preso já ter cumprido integralmente sua pena, não havendo

como aplicar a remição, o ministro disse que é possível, então, o ajuizamento de

ação civil para requerer indenização por danos morais, em forma de pecúnia.

O Ministro Teori questiona a viabilidade da medida, em razão de

representar uma inversão de natureza penal e civil da forma de indenização, fato

que poderia atentar contra o princípio da legalidade. Em resposta, o Ministro

Barroso, adenda que não se pode refutar o remédio proposto ao argumento de que

equivaleria à concessão da remição em hipótese não prevista em lei. Aponta que a

proposta se insere no campo da responsabilidade civil, salientando ainda que a

própria remição penal pela leitura foi concedida durante muitos anos por decisões

judiciais, sem que houvesse expressa previsão legal934.

933 TAVARES, J., Parecer sobre as Condições do Sistema Prisional Brasileiro. 934 A hipótese é regulada pela Portaria Conjunta Depen/CJF nº 276, de 2012, que prevê a possibilidade de redução de 4 dias de pena por obra lida por mês pelo detento, no limite de 48 dias de remição de pena por ano, e foi objeto da Recomendação nº 44/2013, do CNJ, que orientou os Tribunais estaduais a reconhecerem a remição pela leitura

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Por fim, em seu voto, o Ministro destaca ainda que “a abreviação do prazo

para a extinção da pena possui um efeito ressocializador importante, diminuindo o

estigma que pende sobre o indivíduo que cumpre pena, tornando-o menos

vulnerável a abordagens policiais e facilitando o reingresso no mercado de

trabalho”935.

Neste sentido, ao abreviar a duração da pena, o remédio proposto pode

cumprir o papel de restituir ao detento o exato “bem da vida” lesionado, sua

liberdade e sua dignidade. Como aponta Ana Messuti, o tempo é o “verdadeiro

significante da pena”936, portanto, a liberdade antecipada por remição faz cessar as

violações suportadas pelo preso no cárcere.

6.2.4 Audiência de Custódia

Como anteriormente apontado, uma das mais graves mazelas que maculam

o sistema penitenciário no Brasil é o elevado número de presos provisórios, que

vem agravar o cenário de superlotação estrutural. No bojo do expressivo

contingente de pessoas privadas de liberdade sem condenação criminal definitiva,

há um considerável índice de prisões desnecessárias, arbitrárias e ilegais. Institui-

se assim um processo de banalização da prisão cautelar, com a flagrante afronta ao

direito à liberdade e à presunção de inocência937.

Uma vez que os indicadores revelam um percentual de presos provisórios

equivalente a 41% da população prisional, confirma-se a afirmação de Zaffaroni

ao apontar que no Brasil “pune-se pela dúvida”938. Este cenário que, como aponta

Ferrajoli, converteu o processo penal em um instrumento diretamente punitivo939,

pode ser atenuado com a implementação da denominada audiência de custódia.

Esta medida consiste na pronta apresentação do preso ao juiz, para que

este decida sobre a juridicidade da prisão. Além de aprimorar o controle sobre a

legalidade da prisão, evitando constrições desnecessárias ou abusivas à liberdade,

ela permite que se detectem eventuais maus-tratos praticados contra o preso, o que

935 Voto-vista do Ministro Luis Roberto Barroso. STF. RE 580.252/MS. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE580252LRB.pdf. Acessado em: 15/07/2015. 936 MESSUTI, A., O tempo como pena. 937 KATO, M. I. B., A (des)razão da prisão cautelar. 938 ZAFFARONI, E. R. Prólogo. In ROIG, R. D. E., Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil, p. 12. 939 FERRAJOLI, L., Direito e Razão, p. 770.

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se afigura fundamental, especialmente em um país em que a tortura ainda é prática

corriqueira940.

Segundo aponta a organização de direitos humanos Human Rights Watch,

“o risco de maus-tratos é frequentemente maior durante os primeiros momentos

que seguem a detenção quando a polícia questiona o suspeito”941. Desta forma, a

não apresentação imediata do preso ao Poder Judiciário, “torna os detentos mais

vulneráveis à tortura e outras formas graves de maus tratos cometidas por policiais

abusivos”942.

O direito à audiência de custódia está expressamente previsto no plano do

Direito Internacional dos Direitos Humanos. A Convenção Americana de Direitos

Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) dispõe em seu art. 7.5 que “Toda

pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um

juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais (...)”. Na

mesma direção, informa o art. 9.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e

Políticos, que “qualquer pessoa presa ou encerrada em virtude de infração penal

deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade

habilitada por lei a exercer funções judiciais (...)”943.

O Brasil aderiu à Convenção Americana, promulgada através do Decreto

nº 678, em 6 de novembro de 1992. No mesmo ano, o país promulgou o Pacto

Internacional dos Direitos Civis e Políticos, na forma do Decreto nº 592. Após

mais de duas décadas da incorporação de tais diplomas em nossa ordem jurídica

interna, as garantias para a realização da audiência de custódia não foram

efetivadas, apesar de gozar de status supralegal944.

940 A Anistia Internacional, ressalta que: “A exigência de apresentar os detentos a uma autoridade judicial (...) após a prisão é uma salvaguarda essencial para que se preservem os direitos humanos dos prisioneiros. É um meio de garantir que as detenções sejam legais e necessárias. É também uma salvaguarda contra a tortura: um juiz pode verificar se há algum sinal perceptível de maus-tratos e pode ouvir algo que o prisioneiro queira dizer. É ainda uma maneira de supervisionar a detenção por meio de controle judicial, eliminando o poder absoluto sobre um prisioneiro, que, do contrário, os funcionários poderiam exercer”. Anistia Internacional, Combatendo a Tortura. Manual de Ação, p. 11. 941 CANINEU, M. L., O direito à ‘audiência de custódia’ de acordo com o Direito Internacional, p. 3. 942 Ibid. 943 Além de expressa previsão normativa previsão normativa nos sistemas global e interamericano de direitos humanos, a audiência de custódia também está assegurada na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujo art. 5.º, 3, dispõe que “Qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no § 1, alínea c), do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais (...)”. 944 GOMES, L. F.; MAZZUOLI, V. de O. Comentários à Convenção Americana de Direitos Humanos, p. 33.

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A implementação da medida se justifica ainda para assegurar garantias

processuais penais previstas no plano interno, como a garantia do direito de ser

julgado em um prazo razoável (art. 5.º, LXXVIII da CF), a garantia da defesa

pessoal e técnica (art. 5.º, LV da CF) e do contraditório (recentemente inserido no

âmbito das medidas cautelares pessoais pelo art. 282, § 3.º, do CPP).

A discussão acerca da implementação da medida veio à tona com vigor

recentemente no país945. Trata-se de inovação que pode representar importantes

avanços ao sistema de justiça criminal brasileiro. Como apontam Aury Lopes Jr. e

Caio Paiva:

São inúmeras as vantagens da implementação da audiência de custódia no Brasil, a começar pela mais básica: ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Confia-se, também, à audiência de custódia a importante missão de reduzir o encarceramento em massa no país, porquanto através dela se promove um encontro do juiz com o preso, superando-se, desta forma, a “fronteira do papel” estabelecida no art. 306, § 1º, do CPP, que se satisfaz com o mero envio do auto de prisão em flagrante para o magistrado.946

A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos tem se

manifestado no sentido de que o controle judicial imediato assegurado pela

audiência de custódia consiste em medida efetiva com o fulcro de evitar prisões

arbitrárias e ilegais, uma vez que nos marcos do Estado de Direito cabe ao

julgador “garantir os direitos do detido, autorizar a adoção de medidas cautelares

ou de coerção quando seja estritamente necessário, e procurar, em geral, que se

trate o cidadão da maneira coerente com a presunção de inocência”947.

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos já manifestou também o

entendimento de que a audiência de custódia constitui de medida fundamental

“para a proteção do direito à liberdade pessoal e para outorgar proteção a outros

direitos, como a vida e a integridade física”948.

945 A este respeito ver CHOUKR, F. H., PL 554/2011 E a necessária (e lenta) adaptação do processo penal brasileiro à convenção americana de direitos do homem. no mesmo sentido, LOPES JR., A. e PAIVA, C., Audiência de Cstódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal. 946 LOPES JR., A. e PAIVA, C., op. cit. 947 Neste sentido caminhou a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos nos casos: Caso Acosta Calderón Vs. Equador. Sentença de 24.06.2005. Caso Bayarri Vs. Argentina. Sentença de 30.10.2008; Caso Cabrera Garcia e Montiel Flores Vs. México. Sentença de 26.11.2010; Caso García Asto e Ramírez Rojas Vs. Perú. Sentença de 25.11.2005. 948 Corte IDH. Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de 22.11.2005.

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A realidade de banalização da prisão cautelar no Brasil permaneceu

inalterada mesmo após quase quatro anos de vigência da Lei 12.403/2011949. A

chamada Lei das Medidas Cautelares introduziu algumas mudanças significativas,

como a substituição do binário, prisão-liberdade, por nove medidas cautelares

alternativas. Entretanto, a prisão provisória continua a ser a principal medida

cautelar adotada pelo Judiciário950.

Neste sentido, faz-se ainda mais necessária a implantação da audiência de

custódia. Tramita no Congresso Nacional o PLS 554/2011951, que busca

regulamentar a tão esperada medida e torná-la obrigatória em todo o país. O

projeto busca alterar o art. 306 do CPP, obrigando que o preso em flagrante delito

seja conduzido à presença do juiz no prazo de 24 horas após a prisão, quando,

então, ouvidos o Ministério Público, um defensor e o próprio preso, serão

examinadas a legalidade do flagrante e a necessidade cautelar da custódia.952

Entretanto, a tramitação encontra-se paralisada no Congresso Nacional, em

um adverso cenário diante de uma composição parlamentar conservadora, movida

aos impulsos do populismo punitivo.

Não obstante os obstáculos para a produção legislativa, o Conselho

Nacional de Justiça (CNJ), através de iniciativa do Presidente, Ministro Ricardo

Lewandowski, vem tendo protagonismo na implantação da audiência de custódia

no país. No dia 09 de abril de 2015 o CNJ, o Ministério da Justiça e o Instituto de

Defesa do Direito de Defesa (IDDD) assinaram três acordos que têm por objetivo

incentivar a difusão do projeto Audiências de Custódia em todo o País, o uso de

949 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12403.htm.

Acessado em: 06/06/2015. 950 Este processo pode ser constatado em pesquisa empírica, conforme: LEMGRUBER, J., e FERNANDES, M., Impacto da assistência jurídica a presos provisórios: um experimento na cidade do Rio de Janeiro. 951 Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=102115.

Acessado em: 06/06/2015. 952 Altera o §1º do artigo 306 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal) para dispor que no prazo máximo de vinte e quatro horas após a realização da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz competente, juntamente com o auto de prisão em flagrante, acompanhado das oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública. (BRASIL. Projeto de Lei do Senado nº 554 de 2011. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=102115.>)

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medidas alternativas à prisão e a monitoração eletrônica. As medidas buscam

combater a cultura do encarceramento que se instalou no Brasil953.

Até o fim de setembro, dezoito unidades da Federação já terão implantado

audiências de custódia, considerando os estados de São Paulo, Espírito Santo e

Maranhão, que aderiram ao programa anteriormente954. São Paulo foi o primeiro

estado a implantar as audiências de custódia, no final de fevereiro deste ano. Já no

primeiro mês de implantação da medida foi registrada uma redução de 43% no

número total de prisões cautelares no estado955.

O Rio de Janeiro vem buscando implantar a medida. Em 13 de abril de

2015, foi realizada Audiência Pública na ALERJ, promovida pelo Deputado

Estadual Marcelo Freixo (PSOL), Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos

Humanos e Cidadania.956 Na ocasião estiveram presentes representantes da

sociedade civil, Defensoria Pública, instituições policiais e do Tribunal de Justiça

do Rio de Janeiro. O Poder Judiciário fluminense vem avançando parceria com o

CNJ no sentido de criar as condições para iniciar as audiências de custódia ainda

no segundo semestre957.

No bojo da discussão pela implantação da audiência de custódia, alguns

doutrinadores, bem como autoridades das instituições policiais, manifestam o

entendimento de que a ‘autoridade judicial’ que deverá apreciar a legalidade da

953 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia. Acessado em 14/07/2015. 954 Em todos estes estados serão seguidas as diretrizes do projeto desenvolvido pelo CNJ, que incluem, além das audiências feitas com um juiz no prazo máximo de 24 horas, a criação ou o fortalecimento de centrais integradas de alternativas penais, centrais de monitoramento eletrônico, centrais de serviços e assistência social e câmaras de mediação penal. Essas estruturas são responsáveis por apresentar ao juiz opções ao encarceramento provisório. 955 De acordo com notícia publicada no jornal O Estado de São Paulo, cerca de 40% das prisões em flagrante realizadas pela Polícia foram invalidadas pelo TJ/SP, no primeiro dia de experiência com a audiência de custódia naquele tribunal. Disponível em: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,audiencia-de-custodia-revoga-40-dasprisoes,1655034. Acessado em: 05/07/2015. 956 Audiência Pública realizada na ALERJ em 13/04/2015. Disponível em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br. Acessado em: 14/07/2015. 957 Notícia publicada pela Assessoria de Imprensa do TJ/RJ informa que “o desembargador Paulo Baldez, presidente do Grupo de Trabalho das Varas Criminais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), vai promover no Fórum da capital, nesta sexta-feira, dia 24, na sala 911 do Departamento de Apoio e Assessoramento Técnico aos Órgãos Colegiados Administrativos (Deaco), reunião com representantes de diversas instituições estaduais com o objetivo de buscar maior integração para a implementação da Audiência de Custódia no Estado do Rio de Janeiro”. Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/18210?p_p_state=maximized. Acessado em: 23/07/2015.

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prisão cautelar diante da audiência de custódia, deve ser o próprio delegado de

polícia958. A este respeito, André Luiz Nicolitt observa que:

(...) analisando de forma crítica a proposição delineada pelo Des. Nucci, de que na atual conjectura legal do processo penal brasileiro teria a atribuição de garantia irrestrita de liberdade, ter-se-ia, na esteira da clássica definição do filósofo alemão [Jürgen] Habermas uma contradição performativa, eis que a própria proposição não se coaduna com os pressupostos pragmáticos do ato de fala que a incorpora.959

Revelar-se-ia, portanto, medida contraproducente e tornaria inócua a

inovação processual. Neste sentido, Lopes Jr. e Morais da Rosa destacam como o

pensamento autoritário que paira sobre consideráveis setores da academia e dos

tribunais é avesso à implantação da audiência de custódia:

Mark Twain escreveu que “Se a única ferramenta é o martelo, todos os seus problemas serão pregos.” Se a única ferramenta é a prisão (cautelar), não restaria outra opção. Daí que houve a reforma de 2012, inserindo-se cautelares diversas da prisão (CPP, artigo 319), os quais apresentam indicam modelos múltiplos de garantia do processo e não de antecipação de pena. Mas a mentalidade que somente procura pregos, não consegue compreender que está nos levando à falência com os custos do sistema que abastece.960

Em visita ao Brasil no ano de 2015, o Relator Especial sobre Tortura da

ONU, Juan Méndez, dentre outras medidas, recomendou às autoridades brasileiras

competentes a expansão imediata da aplicação de audiências de custódia em todo

o país, e seu redesenho, para encorajar as vítimas a falar e permitir a

documentação eficaz da tortura e de maus-tratos961.

Desta forma, a implementação da audiência de custódia pode significar um

avanço na direção de um processo penal democrático. Pode representar uma

página importante na busca pela superação da cultura do encarceramento no

Brasil, através da redução do número de prisões provisórias, bem como

958 TJSP – HC n. 2016152-70.2015.8.26.0000- Rel. Guilherme de Souza Nucci, em 12.05.2015. 959 NICOLITT, A.; MELO, B. C. E RIBEIRO, G. R., Análise crítica do voto do Des. Guilherme de Souza Nucci – tjsp: o delegado de polícia não faz audiência de custódia. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/analise-critica-do-voto-do-des-guilherme-de-souza-nucci-tjsp-o-delegado-de-policia-nao-faz-audiencia-de-custodia-por-andre-nicolitt-bruno-cleuder-de-melo-e-gustavo-rodrigues-ribeiro/. Acessado em: 14/07/2015. 960 LOPES JR, A. e MORAIS DA ROSA, A., Não sei, não conheço, mas não gosto da audiência de custódia. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jul-10/limite-penal-nao-sei-nao-conheco-nao-gosto-audiencia-custodia. Acessado em: 14/07/2015. 961 Disponível em: http://nacoesunidas.org/especialista-da-onu-insta-brasil-a-resolver-superlotacao-das-prisoes-e-agir-contra-tortura/. Acessado em: 15/08/2015.

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instrumento eficiente para apuração de casos de tortura perpetrados na apreensão,

no interrogatório ou na custódia policial.

6.2.5 Penas Alternativas e Alternativas Penais

a) Penas e Medidas Alternativas

Outro debate fundamental acerca das estratégias de contenção ao

encarceramento massivo reside nas penas e medidas alternativas. Esta temática

emerge no âmbito internacional, sobretudo no 8º Congresso da ONU em 1990,

com a aprovação das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de

Medidas não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio). Tal fato representa um

esforço internacional para a adoção de medidas alternativas à privação da

liberdade. É o que se depreende em sua Regra 1.2:

as presentes regras têm por objetivo promover uma maior participação da comunidade na administração da justiça penal e, muito especialmente, no tratamento do delinquente, bem como estimular entre os delinquentes o senso de responsabilidade em relação à sociedade962.

Já de acordo com o disposto na Regra 2.5, “procurar-se-á, no respeito das

garantias jurídicas e das regras de direito, tratar o caso dos delinquentes no seio da

comunidade evitando o recurso a um processo formal ou aos tribunais”963.

Sob influência destas diretrizes, inúmeros países irão incorporar em sua

ordem jurídica interna dispositivos não-privativos de liberdade em substituição ao

encarceramento, através de penas e medidas alternativas. Em elucidativa pesquisa

intitulada Substitutivos Penais na Era do Grande Encarceramento Salo de

Carvalho busca analisar:

até que ponto os substitutivos penais efetivamente diminuem o impacto do carcerário sobre os grupos vulneráveis, ou seja, se efetivamente são incorporados pelos sistemas político-legislativo, jurídico e executivo como alternativas ao processo criminal e à prisão ou se constituem instrumento aditivo de ampliação do controle social punitivo964.

962 Disponível em: http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_11.htm. Acessado em:

06/06/2015. 963 Ibid. 964 CARVALHO, S. de, Substitutivos Penais na Era do Grande Encarceramento.

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No caso brasileiro, o ideal ressocializador/correcionalista afirmado no

texto da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), bem como as inovações da

Reforma da Parte Geral do Código Penal (A lei 7.209/84), com a abolição das

penas acessórias e previsão de novas penas patrimoniais, não representaram o

arrefecimento do poder punitivo, sobretudo diante do hiperencarceramento que irá

se acentuar no contexto neoliberal, a partir da década de 1990. A incorporação de

medidas minimalistas no escopo das Regras de Tóquio no Brasil se dá, de fato, a

partir de duas legislações: a Lei 9.099/95, que cria os Juizados Especiais

Criminais, e a Lei 9.714/98, que amplia o rol de Penas Alternativas (Penas

Restritivas de Direito)965.

Primeiramente, a Lei Nº 9.099/95 inova na ordem jurídica brasileira ao

trazer medidas despenalizadoras, formas alternativas de resolução do conflito sem

a imposição de uma sentença criminal condenatória. No seu bojo, encontram-se a

composição civil (Arts. 72 a 74)966, a transação penal (Art. 76)967, para os crimes

de menor potencial ofensivo (pena máxima de até 2 anos), e a suspensão

condicional do processo (Art. 89)968, também chamado sursis processual, para

crimes de médio potencial ofensivo, ou seja, com pena mínima de até 1 ano.

Com a Lei Nº 9.714/98 ampliam-se as espécies e o âmbito de aplicação

das penas alternativas, ou penas restritivas de direito. Apesar de constituírem

sanções penais, tratam-se de medidas desencarceradoras, para penas não

superiores a quatro anos. Além das cinco modalidades já existentes, são

incorporadas mais quatro com o novo diploma legal969.

Assim, diante da incorporação de tais dispositivos, caberia analisar o real

impacto dos substitutivos penais sobre o sistema penal brasileiro. Ou seja, requer

avaliar se, de fato, estas inflexões minimalistas implicam na redução do

965 CIRINO DOS SANTOS, J. Teoria da pena, p. 156. 966 Acordo feito entre a vítima e o imputado de compromisso de reparação do dano causado. 967 Proposta de aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa oferecida pelo Ministério Público ao autor do delito que poderá aceitá-la ou recusá-la 968 Evita a própria aplicação da pena, mediante a observância de certas condições. 969 A Lei nº 7.209/84 previu as seguintes modalidades de penas alternativas: prestação de serviços à comunidade, limitação de fim de semana, proibição do exercício de cargo ou função, proibição do exercício de profissão e suspensão da habilitação para dirigir veículo. Com a Lei nº 9.714/98 foram incluídas a prestação pecuniária em favor da vítima; prestação pecuniária inominada; perda de bens e valores; proibição de frequentar determinados lugares. Com a Lei 12.550/11 foi incluída ainda a proibição de inscrever-se em concurso, avaliação ou exame públicos.

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encarceramento massivo, ou, a contario sensu representam novos tentáculos ao

Estado penal. Neste sentido, convém analisar os indicadores do encarceramento

no Brasil, desde a implementação dos substitutos penais incorporados à ordem

jurídico-penal:

Figura 16: Comparativo entre o crescimento do número de Penas e Medidas Alternativas e População Prisional no Brasil (1995-2009)

Fonte: Ministério da Justiça970

Em 1995, quando havia apenas quatro núcleos especializados, chegou-se a

um total de 80.364 penas e medidas alternativas (PMAs) aplicadas no Brasil, em

comparação com uma população prisional à época de 148.760 presos. Em

escalada exponencial, as PMAs vão praticamente igualar o contingente carcerário

em 2007. Já em 2009, o vertiginoso aumento chega a um total de 671.078 PMAs

diante de um efetivo penitenciário de 473.626.

Como se observa, a incidência das penas e medidas alternativas não

representa qualquer inflexão na diminuição da pena privativa de liberdade. Salo

de Carvalho, ao apontar as conclusões de sua análise afirma que:

no âmbito das agências punitivas não basta a publicação de leis que garantam direitos ampliando os espaços de liberdade, como ocorreu no Brasil com o aumento das possibilidades de aplicação de penas alternativas (Lei 9.714/98) e a criação de alternativas ao processo penal (Lei 9.099/95). A centralidade do carcerário, como visto, provocou o aumento da rede de controle não prisional sem diminuir os níveis de encarceramento971.  

970Disponível em: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJ47E6462CITEMID38622B1FFD6142648AD402215F6598F2PTBRIE.htm. Acessado em: 14/05/2015. 971 CARVALHO, S. de, Substitutivos Penais na Era do Grande Encarceramento.

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Recente pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)972

revela que além de não representar alternativa à privação da liberdade, as penas e

medidas alternativas são aplicadas seletivamente em razão da cor do acusado. Tais

constatações permitem inúmeras objeções formuladas por outros teóricos da

Criminologia Crítica973. Nas palavras de Vera Malaguti:

Neste cenário surgem as penas alternativas, ao invés de surgirem as alternativas à pena, como diria o saudoso Alessandro Baratta. Pensadas como estratégias de desafogamento da justiça penal, elas acabaram por impor um controle social mais capilarizado, mais minucioso, que vai estender os tentáculos do poder punitivo aos pequenos conflitos do cotidiano, bem no espírito da devassa inquisitorial que o fundou. A juridicização do cotidiano vai criar um conjunto de dispositivos biopolíticos: da lei Maria da Penha no Brasil à Justiça Terapêutica dos Tribunais de Drogas, o controle dos conflitos privados vai demandar juristas e demais especialistas para se tornar o centro da vida política974.  

Neste sentido, a despeito da implementação dos ditos substitutivos penais,

tais medidas não implicam na redução do encarceramento no Brasil, significando,

ao revés, uma acumulação de poder punitivo, o aprofundamento da ‘judicialização

da vida’, buscam, portanto, "não punir menos, mas punir melhor"975, reforçando a

administração seletiva das ilegalidades populares.

b) Justiça Restaurativa e Alternativas Penais

Em contraponto ao modelo tradicional de justiça penal, circunscrito a um

paradigma puramente punitivo-retributivo976, no qual a pena é a única resposta à

972 Segundo a pesquisa "A aplicação de penas e medidas alternativas no Brasil", realizada pelo Ipea, aponta que enquanto 41,9% dos acusados em varas criminais eram brancos, 57,6% eram negros. Já nos juizados especiais --que analisam casos de menor potencial ofensivo--, a ordem é inversa, com 52,6% dos réus eram brancos e 46,2%, negros. Disponível em: http://apublica.org/wp-content/uploads/2015/02/pesquisa-ipea-provisorios.pdf. Acessado em: 10/07/2015. 973 Segundo Cirino dos Santos: “os substitutos penais não enfraquecem a prisão, mas a revigoram; não diminuem sua necessidade, mas a reforçam; não anulam sua legitimidade, mas a ratificam: são instituições tentaculares cuja eficácia depende da existência revigorada da prisão, o centro nevrálgico que estende o poder de controle, com a possibilidade do reencarceramento se a expectativa comportamental dos controlados não confirmar o prognóstico dos controladores”. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Manual de Direito Penal, p. 299. 974 BATISTA, V. M., Adesão subjetiva à barbárie. 975 FOUCAULT, M., Vigiar e punir, p. 79. 976 A noção de paradigma é trabalhada por Howard Zehr como o modo específico de construir a realidade, de compreender os fenômenos e o mundo. Em sua ótica, o paradigma molda a forma como definimos problemas e o que reconhecemos como soluções apropriadas. ZEHR, H., Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça, p. 62.

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conflitividade social, tem se apresentado as contribuições da Justiça Restaurativa

como um novo modelo de solução de conflitos. Segundo aponta Howard Zehr, um

dos principais pensadores desta temática:

A busca de alternativas à privação de liberdade representa uma outra tentativa de remendar o paradigma. Ao invés de procurar alternativas à pena, o movimento em prol de alternativas oferece penas alternativas. (...)Contudo, pelo fato de constituírem apenas outro epiciclo, não questiona os pressupostos que repousam no fundamento da punição. E por isso não tem impacto sobre o problema em si – a superlotação carcerária –, problema para o qual pretendiam ser a solução977.

Ainda que diante da flagrante crise de legitimidade, o sistema penal resiste

e segue inabalável a qualquer tentativa de reforma mais radical, aberto tão

somente à introdução de medidas pontuais que não alteram seu status de falência

estrutural.

Cabe reconhecer a necessidade de contenção do poder punitivo,

substituindo o sistema penal por alternativas eficientes para solução dos conflitos

sociais. Trata-se, assim, não de clamar por penas alternativas, mas pela

formulação de efetivas alternativas penais. É, portanto, necessário, criar condições

para um sistema de justiça criminal compatível com o Estado Democrático de

Direito, insculpido pela Carta Política de 1988, em oposição ao Estado penal que

se dissemina através agências repressivas.

A superação do paradigma retributivo, direcionado apenas à retribuição do

mal causado, sem representar qualquer vantagem à comunidade, ao infrator e,

sobretudo, à vítima, exige, como aponta Zehr, “trocar as lentes pelas quais

enxergamos o crime e a justiça”978.

O autor procura demonstrar que historicamente havia práticas comunitárias

de justiça, com mediação e características restaurativas, tanto é que a Justiça

Restaurativa é um resgate de algumas dessas práticas, sobretudo indígenas e

aborígines, consolidadas por séculos979.

Paul McCold e Ted Wachtel980, afirmam que a Justiça Restaurativa

constitui "uma nova maneira de abordar a justiça penal, que enfoca a reparação

977 ZEHR, H., op. cit., p. 90. 978 Ibid., p. 90. 979 Ibid. 980 MCCOLD, P. e WACHTEL, T., Restorative Practices Typology.

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dos danos causados às pessoas e relacionamentos, ao invés de punir os

transgressores"981. Seu postulado fundamental é: "o crime causa danos às pessoas

e a justiça exige que o dano seja reduzido ao mínimo possível".

A Justiça Restaurativa é, em sua visão, um "processo colaborativo que

envolve aqueles afetados mais diretamente por um crime, chamados de ‘partes

interessadas principais’, para determinar qual a melhor forma de reparar o dano

causado pela transgressão"982.

Conforme salienta Pedro Scuro Neto, a implementação de um efetivo

programa de Justiça Restaurativa necessita que sejam incorporados, "por via

legislativa, padrões e diretrizes legais para a implementação dos programas

restaurativos, bem como para a qualificação, treinamento, avaliação e

credenciamento de mediadores, administração dos programas, níveis de

competência e padrões éticos, salvaguardas e garantias individuais"983.

No Brasil, apesar de não haver um programa de Justiça Restaurativa

institucionalizado, há alguns dispositivos legais que permitem a introdução do

paradigma restaurativo. A suspensão condicional do processo, previsto no art. 89

da Lei 9.099/1995, pode ser implementada através do encaminhamento do caso à

Justiça Restaurativa, uma vez seu § 2.º984 permite a especificação de “outras

condições” para a aplicação do substitutivo penal. O Estatuto da Criança e do

Adolescente (ECA), Lei 8.089/90985, também propicia a aplicação da Justiça

Restaurativa, ao incorporar a possibilidade de remissão ao ato infracional, em seu

art. 126986. O ECA também abre margem ao paradigma restaurativo ao propiciar,

dentre as modalidades de medidas socioeducativas, previstas no art. 112 e

seguintes, a reparação do dano causado. Há ainda quem considere cabível a

981 Id., Em Busca de um Paradigma: Uma Teoria de Justiça Restaurativa. Disponível em: www.restorativepractices.org/library/paradigm_port.html. Acessado em: 05/04/2015. 982 Ibid. 983 NETO, P. S., Modelo de Justiça para o século XXI. Disponível em: www.trf2.gov.br. Acesso em: 26 jan. 2015. 984 Lei 9.099/95: Art. 89, § 2.º: O juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão condicional do processo, desde que adequadas ao fato e a situação pessoal do acusado. 985 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm. Acessado em:

06/06/2015. 986 Lei 8.069/90. Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menos participação no ato infracional. Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo.

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aplicação do modelo restaurativo pelo instituto do perdão judicial, previsto nos

arts. 107, inciso IX987 do Código Penal.

Algumas iniciativas exitosas já vêm sendo desenvolvidas em projetos-

piloto como em São Caetano do Sul/SP, Porto Alegre/RS e Brasília/DF. Ademais,

as práticas restaurativas tem recebido apoio de importantes instâncias

governamentais como o Conselho Nacional de Justiça, com a Resolução nº

125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estimula a busca por

soluções extrajudiciais para os conflitos, e o Ministério da Justiça, com a Portaria

nº 2.594, de 2011, que cria a Estratégia Nacional de Alternativas Penais,

preconizando parcerias com os estados para implementação de iniciativas de

Justiça Restaurativa.

Ademais, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 7006/2006

que propõe alterações no Código Penal, no Código de Processo Penal e da Lei dos

Juizados Especiais Criminais para facultar o uso de procedimentos de Justiça

Restaurativa no sistema de justiça criminal. Trata-se de uma inovação legislativa

que pode representar importante passo à instituição de uma cultura restaurativa no

país. Segundo analisa Daniel Achuti:

a justiça restaurativa, desde que bem estruturada, e tendo os responsáveis pela sua implementação consciência dos desafios e obstáculos que terão de ser enfrentados, pode ser um instrumento útil tanto para reduzir a atuação danosa do sistema penal no Brasil, quanto para potencializar a democracia na gestão dos conflitos interpessoais988.

Neste sentido, é necessário ter em mente a preocupação de Vera Malaguti

Batista ao apontar que: “as estratégias de mediação e restauração aparecem como

alternativas à pena na conjuntura das décadas de 1970 e 1980. Seu maior risco é,

ao invés de desjudicializar os procedimentos, acabam expandindo a mentalidade

judicial para os “novos operadores”989. É tarefa crucial criar condições sólidas

para a implantação da Justiça Restaurativa no país, sem, no entanto, alimentar a

fome de punição do Leviatã neoliberal.

987 Art. 107. Extingue-se a punibilidade: (...) IX – pelo perdão judicial, nos casos previstos em lei. 988 ACHUTTI, D., Justiça Restaurativa e Abolicionismo Penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 989 BATISTA, V. M., op. cit.

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6.2.6 Outros dispositivos redutores do hiperencarceramento

Apesar da sanha punitiva que alimenta o Leviatã neoliberal, pontualmente

florescem outras importantes construções doutrinárias e jurisprudenciais que

podem contribuir efetivamente para contenção do grande encarceramento.

a) Progressão de regime per saltum

A suposta progressividade norteadora do modelo penitenciário adotado no

Brasil, inspirado no sistema progressista irlandês, é posta em xeque por outras

profundas problemáticas, não somente por razões de natureza normativa, mas,

sobretudo, em virtude de mazelas estruturais do sistema penitenciário.

Os alarmantes índices de superlotação acarretam a sistêmica escassez de

vagas para a garantia da execução penal no regime adequado. Por este fato, não é

raro o apenado preencher os requisitos objetivos e subjetivos exigidos pela Lei de

Execução Penal, no entanto permanecer no regime mais gravoso do que lhe cabe

por direito. Tal anomalia constitui o denominado ‘desvio de execução’990. Como

alerta Felipe Almeida:

É certo que a ausência de vagas no regime adequado para: i) o preso cautelar (custodiado numa Cadeia Pública ou Centro de Detenção Provisória) que venha a ser condenado no regime inicial aberto ou semiaberto; ii) o réu que aguardou solto o trânsito em julgado de igual condenação ou; iii) o condenado no regime fechado, como na maioria das vezes, que obteve a progressão de regime; são situações que caracterizam o nefando desvio de execução. Ocorre que a questão do desvio é um problema crônico no sistema penitenciário nacional991.

Esta vicissitude crônica conduz a um conjunto de ilegalidades na execução

penal, tornando a pena privativa de liberdade um instrumento massivo de violação

à dignidade humana. Frente a esta violência institucional, surgiu uma corrente

990 Segundo Almeida: “É certo que a ausência de vagas no regime adequado para: i) o preso cautelar (custodiado numa Cadeia Pública ou Centro de Detenção Provisória) que venha a ser condenado no regime inicial aberto ou semiaberto; ii) o réu que aguardou solto o trânsito em julgado de igual condenação ou; iii) o condenado no regime fechado, como na maioria das vezes, que obteve a progressão de regime; são situações que caracterizam o nefando desvio de execução. Ocorre que a questão do desvio é um problema crônico no sistema penitenciário nacional”. ALMEIDA, F. L. de, A execução da pena no anteprojeto do Código Penal: uma análise crítica. 991 Ibid.

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jurisprudencial que passou a admitir a aplicação da progressão de regime “por

salto”, ou “per saltum”, segundo leciona Luis Carlos Valois992.

Portanto, inexistindo vaga adequada disponível para o regime semiaberto

(colônias agrícolas ou industriais, conforme o art. 91 da LEP) ou no regime aberto

(casas de albergado, art. 93 da LEP), urge verificar o que seria mais equitativo,

isto é, acomodar o condenado em dependência prisional imprópria (desvio de

execução) ou conceder-lhe, excepcionalmente, a prisão albergue domiciliar (art.

117 da LEP)993.

A concessão da prisão albergue domiciliar pode ainda ser cumulada, em

alguns casos, com a monitoração eletrônica, introduzida na execução penal pela

Lei n° 12.258/10, a despeito das inúmeras críticas suscitadas, uma vez que não

tem representado alternativa à privação da liberdade, mas tão somente, a

ampliação da malha de controle do sistema penal994.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já vem admitindo o

entendimento de que não se pode aplicar regime mais gravoso do que se deve por

direito ao apenado995. No mesmo sentido, também se posicionam alguns

precedentes do Superior Tribunal de Justiça996. Portanto, nestas hipóteses seria

admitida progressão de regime fechado, diretamente ao aberto, na hipótese de

ausência de vagas, ou mesmo a concessão da prisão albergue domiciliar.

992 VALOIS, L. C., Execução Penal e Ressocialização, p. 119-120. 993 A Lei de Execução Penal prevê a prisão albergue domiciliar em apenas 4 hipóteses: Art. 117. Somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de: I - condenado maior de 70 (setenta) anos; II - condenado acometido de doença grave; III - condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental; IV - condenada gestante. 994 PEDRINHA, R. D.; LIBANO, T., Reflexões críticas acerca do projeto de lei do monitoramento eletrônico dos apenados no Estado do Rio de Janeiro. 995 Neste sentido caminha o HC 109244/SP, tendo como relator na Suprema Corte o Ministro Ricardo Levandowski. Este tema hoje enseja grande debate no âmbito do Supremo, tendo suscitado a realização de recente audiência pública com fulcro de ampliação do uso da prisão albergue domiciliar. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/05/stf-decide-no-2-semestre-se-manda-preso-para-casa-quando-nao-tiver-vaga.html. Acessado em: 14/07/2015. Na mesma direção, encontram-se inúmeros julgados na jurisprudência dos tribunais inferiores, vide: TJMG - Rec-Ag 1.0000.06.436713-9/001 - 4ª C. Crim. - Rel. Conv. p/ Ac. Des. Ediwal José de Morais - DJ 25.07.2006. 996 STJ – RHC 15136 – MG – 5ª T. – Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca – DJU 02.02.2004 – p. 00338. Configura manifesto constrangimento ilegal submeter o paciente a regime mais rigoroso do que o estabelecido na condenação. Precedentes do STJ. Ordem concedida para que o paciente cumpra sua pena em prisão domiciliar, até que surja vaga em estabelecimento apropriado ao regime aberto. (STJ – RHC 14193 – MG – 6ª T. – Rel. Min. Paulo Medina – DJU 17.11.2003 – p. 00380).

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Atualmente, esta matéria enseja grande debate no âmbito do Supremo

Tribunal Federal, tendo suscitado a realização de recente audiência pública997,

presidida pelo Ministro Gilmar Mendes. Na audiência, o advogado da Pastoral

Carcerária da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, Massimiliano Antônio

Russo, defendeu a garantia da prisão domiciliar sempre diante da inexistência de

vagas:

A experiência que a Pastoral Carcerária tem das visitas semanais demonstram que o problema persiste para todo o lado, todas as regiões do Brasil. A decisão [do STF] vai contribuir para a melhoria porque os estados vão ter de deixar de ser omissos. (...) Soltar presos, para a mídia e para o governo, tem peso muito grande em nível de votos. (...) Uma decisão desse tribunal pode dar força para que juízes tomem decisões a favor da legalidade, da dignidade da pessoa humana e da Constituição Federal. 998

Certamente, uma decisão da Suprema Corte brasileira poderia oferecer

condições concretas para que o Judiciário enfrente o tema do grande encarceramento

diante do fenômeno da “refiladelfização” (prevalência do regime fechado sobre os

demais), impedindo que seja açambarcada a garantia da progressão de regime, e, por

conseguinte diminuição dos elevados índices de superpopulação prisional.

b) A dicotomia Pena Real/Pena Ficta e suas implicações no Sistema Prisional

Em eminente parecer sobre as condições do sistema carcerário brasileiro,

Juarez Tavares destaca a necessidade de estabelecer a distinção entre os conceitos

de pena real e pena ficta:

Podem ser distinguidos dois conceitos de pena: a pena ficta, isto é, um valor numérico que representa, primariamente, a criminalização abstrata decorrente da avaliação discricionária do Poder Legislativo e, secundariamente, a medida de individualização da conduta realizada; e a pena real, qual seja, uma assimilação realista das (precárias) condições locais de cumprimento da privação de liberdade.999

997 Para subsidiar o julgamento de um recurso, o Ministro Gilmar Mendes coordenou audiência pública sobre o tema da prisão albergue. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/05/stf-decide-no-2-semestre-se-manda-preso-para-casa-quando-nao-tiver-vaga.html. Acessado em: 14/07/2015. 998 Ibid. 999 TAVARES, J., Parecer sobre as Condições do Sistema Prisional Brasileiro.

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Neste sentido, traduz em palavras a inequívoca percepção de que pena

formal (pena ficta), privando, no plano hipotético, o condenado tão somente de

sua liberdade e garantindo-lhe os direitos previstos na LEP, é infinitesimalmente

menos severa do que a pena material (pena real), na qual o apenado padece de

todas as disfunções do dantesco universo carcerário brasileiro. Assim, salienta que

“é possível e necessário considerar a vivência concreta no cárcere como dado

empírico deslegitimante do poder punitivo”, ou seja, cabe ao Poder Judiciário

redimensionar da pena a ser aplicada na sentença condenatória, em razão do

excesso punitivo na execução penal. Desta maneira, agregar em tal equação as

condições concretas de cumprimento da pena corresponde a um legítimo

confronto empírico às ilusórias categorias penalógicas tradicionais.

Em sua visão, a criminalização secundária (exercida pelo julgador ao

definir o quantum da pena), e a criminalização terciária (execução penal), não

pode ater-se à mera ‘cominação abstrata da pena’ e do limite máximo de sua

individualização, devendo considerar, o ‘valor dinâmico que a pena assume com o

passar do tempo’ e com a mudança nas condições prisionais nas quais se encontra

o apenado. Portanto, entende ser necessário:

em primeiro lugar, levar em conta, na análise do art. 59 do Código Penal, essa circunstância objetiva das condições insalubres e degradantes da prisão a que se destina o condenado para diminuir-lhe ou mesmo suspender-lhe a pena. Em segundo lugar, já na fase de execução, em revisão criminal ou por meio do remédio do habeas corpus, comutar-lhe ou diminuir-lhe a pena, em face de aplicação analógica do art. 66 do Código Penal, quando essas mesmas condições se verificarem no estabelecimento em que a esteja cumprindo. Em terceiro lugar, em vista das precárias condições do sistema prisional brasileiro, tornar factível a relativização dos requisitos objetivos para a progressão de regime, livramento condicional, indulto ou comutação de penas, saídas temporárias ou ainda da punição proveniente do cometimento de uma falta grave, bem como de outros incidentes da execução penal. Por fim, uma vez verificado o funcionamento do sistema carcerário (...), entendo possível a não imposição das medidas cautelares privativas de liberdade (ou sua redução significativa) em vista da necessidade de expurgá-las do teor penal latente que lhe emprestam as agências punitivas.1000

Desta forma, Tavares lucidamente aponta que o Estado não pode olvidar-se

das mazelas sistêmicas que corroem a legitimidade do sistema penal ao exercer

seu jus puniendi. Por esta razão, elenca quatro implicações decorrentes da

incorporação do conceito de pena ficta, tanto ao processo de conhecimento como 1000 Ibid.

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ao processo de execução em matéria penal: i) menor severidade na dosimetria

penal; ii) aplicar comutação da pena ou diminuir sua duração, na fase da

execução; iii) flexibilização de critérios para concessão da progressão de regime e

substitutivos penais; iv) redução das hipóteses de prisão cautelar.

O citado parecer menciona importante decisão da Corte Suprema de Israel,

na qual decidira que uma pessoa condenada por roubo, que teve que ficar em

isolamento, em razão de sua condição de transgênero, deveria ter sua pena

diminuída em 1/3 do total da condenação, tendo em vista a maior severidade das

condições prisionais.

Em recente debate no plenário do STF acerca da responsabilidade civil do

Estado em razão de condições degradantes de encarceramento, o Ministro Luis

Roberto Barroso também coloca em questão a dimensão gravosa do cumprimento

de pena em condições aviltantes à dignidade humana:

o tempo de pena cumprido em condições degradantes e desumanas deve ser valorado de forma diversa do tempo cumprido nas condições normais, previstas em lei. Parece nítido que a situação calamitosa dos cárceres brasileiros agrava a pena imposta ao preso e atinge de forma mais intensa a sua integridade física e moral. Nesse sentido, a redução do tempo de prisão nada mais é do que o restabelecimento da justa proporção entre delito e pena que havia sido quebrada por força do tratamento impróprio suportado pelo detento.1001

Nesta esteira, o desajuste entre as condições de efetivo cumprimento da

pena e aquelas impostas pela ordem jurídica, deve ser mensurado pelo juiz de

conhecimento e pelo juiz da execução penal. Assim, a título exemplificativo,

poderia considerar-se que “as condições de uma instituição são tão degradantes,

que cada três dias cumpridos naquela prisão equivalem a quatro dias de pena”1002.

Por outro lado, uma unidade prisional em condições adequadas não faria jus à

medida. De modo que, seria assegurada efetividade ao princípio da

proporcionalidade ao arrefecer a severidade da duração das penas em condições

desumanas, bem como razoabilidade ao conceder direitos essenciais para abreviar

o retornar do condenado ao convívio social.

1001 STF. Min. Luis Roberto Barroso. Voto-vista no R.E. 580.252. 1002 STF. ADPF 347 de 2015, de autoria do Partido Socialismo e Liberdade. Relator: Ministro Marco Aurélio de Mello.

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c) A Política Criminal de drogas e o encarceramento massivo

Faz-se imprescindível abordar, ainda que em breves linhas, a política

criminal de drogas e seus impactos no encarceramento massivo. Ao longo das

últimas décadas, a despeito do expressivo recrudescimento do controle penal do

comércio e uso de substâncias entorpecentes, contido na insígnia “guerra às

drogas”, não se verifica nenhuma mudança significativa à realidade dos

dependentes químicos e eventuais usuários, que continuam a movimentar o

mercado subterrâneo destas substâncias.

As abordagens presentes, sobretudo, nos trabalhos de Rosa del Olmo1003,

Nilo Batista1004, Vera Malaguti1005, Salo de Carvalho1006 e Orlando Zaccone1007

permitem concluir que os impactos do proibicionismo se revelam cada vez mais

atentatórios aos direitos fundamentais, sem demostrar resultados eficazes. A

“política criminal com derramamento de sangue”1008, além de produzir alarmantes

estatísticas de mortes por armas de fogo, contribui para consolidar o grande

encarceramento no Brasil. Como observa Salo de Carvalho:

a permanência da lógica bélica e sanitarista nas políticas de drogas no Brasil é fruto da opção por modelos punitivos moralizadores e que sobrepõem a razão de Estado à razão de direito, pois desde a estrutura do direito penal constitucional, o tratamento punitivo ao uso de entorpecentes é injustificável1009.

Desde a promulgação da Lei nº 11.343/061010, que dá nova conformação

jurídica à criminalização do comércio e uso de drogas, o encarceramento vem

aumentando expressivamente.

1003 DEL OMO, R., A face oculta da droga. 1004 BATISTA, N., Punidos e mal pagos, p. 66 1005 BATISTA, V. M., O Tribunal de Drogas e o Tigre de Papel, p. 191-192. 1006 CARVALHO, S. de, A Política Criminal de Drogas no Brasil. 1007 ZACCONE, O., Acionistas do nada. 1008 BATISTA, N., Política criminal com derramamento de sangue. 1009 CARVALHO, S. de., A política criminal de drogas no Brasil, p. 253. 1010 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm.

Acessado em: 06/06/2015.

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Figura 17: Presos por tráfico no Brasil (2006-2012)

Fonte: Ministério da Justiça/DEPEN.

Em dezembro de 2005 havia 31.520 presos acusados de tráfico de

entorpecentes no país, já em junho de 2013 este contingente chegava a 138.366

encarcerados, representando cerca de 25% da população prisional brasileira. Neste

sentido, ao abordar a política criminal de drogas, Maria Lucia Karam alerta que:

No Brasil, os mais atingidos são os muitos meninos, que, sem oportunidades e sem perspectivas de uma vida melhor, são identificados como “traficantes”, morrendo e matando, envolvidos pela violência causada pela ilegalidade imposta ao mercado onde trabalham. (...) Não vivem muito e, logo, são substituídos por outros meninos igualmente sem esperanças. Os que sobrevivem, superlotam as prisões brasileiras1011.

As vozes da Criminologia Crítica consideram salutar a superação do

paradigma proibicionista, pugnando por medidas como a descriminalização,

despenalização e descarcerização. Segundo aponta Cirino dos Santos:

o programa de reforma penal da Criminologia crítica propõe mudanças em duas direções principais: a) no sistema de justiça criminal, um programa de descriminalização e de despenalização radicais; b) no sistema carcerário, um programa de descarcerização radical, com a máxima humanização das condições de vida no cárcere1012.

Diferentemente de outros países, como Uruguai, Holanda e alguns estados

norte-americanos, que passaram a apostar em políticas antiproibicionistas, o

1011 KARAM, Maria Lúcia. Guerra às drogas encarcera mais negros do que apartheid. Brasil de Fato, São Paulo, 10 dez. 2010b. Disponível em: <www.brasildefato.com.br>. Acesso em: 25 ago. 2011. 1012 CIRINO DOS SANTOS, J., A Criminologia Crítica e a reforma da legislação penal, p. 7.

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Brasil permanece atrasado, atrelado ao modelo bélico. Entretanto, importantes

setores da sociedade civil tem envidado esforços nessa direção. Destacam-se os

trabalhos da LEAP-Brasil (Law Enforcement Against Prohibition)1013 e da

Plataforma Brasileira de Política de Drogas1014.

Esta pauta recentemente chegou ao Supremo Tribunal Federal no

julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635.6591015. No caso, um preso foi

flagrado com aproximadamente três gramas de maconha dentro da prisão para

consumo próprio. Francisco Benedito de Souza fora condenado a dois meses de

prestação de serviços à comunidade. No recurso, a Defensoria Pública de São Paulo

questiona a constitucionalidade do artigo 28 da lei de drogas (lei 11.343/06)1016, que

criminaliza a condição de usuário. O recurso sustenta, em síntese, que “à conduta de

portar drogas para uso próprio falta a necessária lesividade”. A este respeito,

manifestou-se o Ministro Luis Roberto Barroso:

Acho que a questão de droga tem que levar em conta em primeiro lugar o poder que o tráfico exerce sobre as comunidades carentes e o mal que isso representa. Em segundo lugar, um altíssimo índice de encarceramento de pessoas não perigosas decorrente dessa criminalização. E em terceiro lugar também a questão do usuário. Não é um debate juridicamente fácil nem moralmente barato, mas precisa ser feito.1017

De modo semelhante, o Ministro Marco Aurélio de Mello já antecipou que

considera que o tema “é um problema de saúde, não é um problema penal”. O caso

tem gerado grande expectativa na comunidade jurídica, bem como na sociedade

brasileira como um todo. A despeito do fato de não tratar da descriminalização do

comércio de substâncias entorpecentes, a decisão pode representar uma passo

importante na superação da política criminal proibicionista. Esta agenda, bem

1013 Disponível em: http://www.leapbrasil.com.br/. Acessado em: 06/06/2015. 1014 Disponível em: http://pbpd.org.br/wordpress/. Acessado em: 06/06/2015. 1015 Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciarepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4034145&numeroProcesso=635659&classeProcesso=RE&numeroTema=506. Acessado em: 15/08/2015. 1016 Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:I - advertência sobre os efeitos das drogas;II - prestação de serviços à comunidade;III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. 1017 Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2015/08/stf-decide-se-considera-crime-porte-de-drogas-para-consumo-proprio.html. Acessado em: 17/08/2015.

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como outras medidas descriminalizantes são imprescindíveis à contenção do

encarceramento massivo e à redução dos danos da segregação prisional.

6.3 Entre o Minimalismo e o Abolicionismo Penal: sobre a controvérsia tática-estratégia

Segundo aponta Vera Regina de Andrade “nenhum método punitivo,

nenhum sistema penal na história, veio para ficar e ficou, e de nenhum se pôde

dizer, como Vinícius de Moraes, que “seja eterno enquanto dure”, pois essa

eternidade (a pena) é violência e dor” 1018.

É neste sentido, que ao nos debruçarmos sobre a profunda deslegitimação

do sistema penal, sua hipertrofia ao paroxismo diante da globalização neoliberal e

o debate sobre as estratégias de contenção a este poder punitivo sem limites,

somos remetidos a enfrentar o tema das perspectivas minimalistas e

abolicionistas1019. Necessário identificar estes campos teórico-práticos no plural,

uma vez que “’o’ abolicionismo e ‘o’ minimalismo, no singular, não existem.

Existem diferentes abolicionismos e minimalismos”.

A perspectiva abolicionista como constructo teórico-prático que tem em

seu horizonte uma sociedade sem prisões, portanto, a desconstituição do sistema

penal enquanto mediador dos conflitos sociais e a abolição das penalidades de

sequestro. Em que pese a existência de distintas variantes abolicionistas, o legado

da obra e trajetória de pensadores como Michel Foucault, Louk Hulsman, Nils

Christie, Thomas Mathiesen e Sebastian Scheerer, muitas vezes acusados pelo

discurso criminológico pragmático de não apontar uma direção propositiva,

possuem a potência crítica de ousar pensar para além do paradigma da pena.

Pelo prisma do minimalismo, há também que se diferenciar os distintos

modelos que se apresentam. “Há minimalismos como meios para o abolicionismo,

que são diferentes de minimalismos como fins em si mesmos, e de minimalismos

1018 ANDRADE, V. R. P. de, Minimalismo e abolicionismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. 1019 Trata-se do “abolicionismo radical do sistema penal, ou seja, sua radical substituição por outras instâncias de solução de conflitos, que surge nas duas últimas décadas como resultado da crítica sociológica ao sistema penal“. ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, p. 97. E, neste sentido, difere de outros abolicionismos em sentido estrito, historicamente existentes, como a abolição da pena de morte e da escravidão.

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reformistas”1020. As principais contribuições encontram-se nas proposições de

Alessandro Baratta, Eugenio Raúl Zaffaroni e Luigi Ferrajoli.

Com distintos diagnósticos acerca do “quê fazer?” em face da

deslegitimação estrutural do sistema penal, enquanto as vertentes abolicionistas

pugnam por sua suplantação e preconizam formas alternativas de solução de

conflitos, as perspectivas minimalistas, compromissadas ou não com a utopia

abolicionista, defendem sua retração ao mínimo possível. Do ponto de vista

estratégico, há que se perguntar se os projetos minimalista e abolicionista são

antagônicos e em que medida podem cooperar entre em si ou esvaziar-se um ao

outro.

Zaffaroni bem identifica que a perspectiva abolicionista requer um

pensamento estratégico, que tem como ponto de partida uma situação concreta, de

modo que sua ação é sempre local1021, ainda que seu horizonte seja societário.

Portanto, o abolicionismo valoriza as lutas no campo micro, práticas

abolicionistas cotidianas, em vistas à superação do sistema penal, como projeto

final.

As vertentes minimalistas, em suma, preconizam a retração do poder

punitivo, pugnando por políticas alternativas. Vera Regina identifica, claramente,

duas linhas:

a) modelos que partem da deslegitimação do sistema penal (concebida como uma crise estrutural de legitimidade) para o abolicionismo ou minimalismos como meio; e b) modelos que partem da deslegitimação (concebida como uma crise conjuntural de legitimidade) para a relegitimação do sistema penal ou minimalismos como fim em si mesmo1022.

No primeiro plano, os modelos que compartilham do diagnóstico de

deslegitimação estrutural do sistema penal, e comungam do devir abolicionista.

Tratam-se dos minimalismos como meio, portanto, discursos e práticas voltados a

objetivos de curto e médio prazo que se inserem na transição para rumo à abolição

do sistema penal, expressas, sobretudo, nas contribuições de Baratta

1020 ANDRADE, V. R. P. de, op. cit. 1021 Ibid., p. 107. 1022 ANDRADE, V. R. P., op. cit.

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(Minimalismo Radical)1023 e Zaffaroni (Realismo Marginal)1024. Como aponta o

jurista argentino:

Em nossa opinião, o direito penal mínimo é, de maneira inquestionável, uma proposta a ser apoiada por todos os que deslegitimam o sistema penal, não como meta insuperável e, sim, como passagem ou trânsito para o abolicionismo, por mais inalcançável que este hoje pareça1025.

Por outro lado, o modelo minimalista apresentado por Luigi Ferrajoli

(Garantismo Penal)1026, que identifica a profunda deslegitimação do sistema

penal, no entanto, crê na possibilidade da sua relegitimação por um direito penal

mínimo, como horizonte futuro, portanto, compreendendo o minimalismo como

fim em si mesmo. Como identifica Vera Malaguti, “o que os separa na verdade é o

grande divisor de águas na criminologia e no direito penal: teorias legitimantes ou

deslegitimantes da pena”1027.

Segundo aponta Vera Regina de Andrade:

Enquanto o minimalismo teórico crítico tem se dialetizado com o abolicionismo, o minimalismo pragmático reformista tem se dialetizado com o eficientismo e relegitimado, paradoxalmente, a expansão do sistema penal. E isto significa que os diferentes minimalismos (teóricos e reformistas) são pendulares, apresentando diferentes potencialidades de apropriação, pela razão abolicionista ou pela razão eficientista; para fins transformadores ou conservadores. Daí resultam combinatórias, pares explicitados ou silenciados1028.

Deste modo, ao delimitar as ações concretas direcionadas à superação da

penalidade carcerária, e do sistema penal como solução de conflitos sociais, é

preciso ter clareza de quais iniciativas apontam para a superação do sistema penal,

1023 Delineado como Política criminal alternativa. Esclarece-nos o próprio Baratta, quem deixou claro, já na passagem da década de 1970 para a década de 1980, sua posição substantivamente abolicionista: “O princípio cardeal do modelo de uma política criminal alternativa não é a criminalização alternativa, mas a descriminalização, a mais rigorosa redução possível do sistema penal.” BARATTA, A., Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal, p. 159. 1024 O modelo de Zaffaroni, denominado “Realismo Marginal Latino-americano” foi enunciado sobretudo em seu também clássico “Em Busca das Penas Perdidas” (em resposta e em homenagem latino-americana ao clássico “Penas Perdidas”, de Louk Hulsman). ZAFFARONI, E. R., op. cit., p 106. “Deste ângulo, o direito penal mínimo apresentar-se-ia como um momento do caminho abolicionista.” Ibid., p. 105. 1025 ZAFFARONI, Em busca das penas perdidas, p. 106. 1026 FERRAJOLI, L., Direito e Razão. 1027 BATISTA, V. M., Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. 1028 ANDRADE, V. R. P. de, op. cit.

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e quais medidas servem tão somente à re-legitimação das penalidades, retro-

alimentando sua indigitada eficácia invertida.

Como assinala Mathiesen, verifica-se a necessidade de “uma tática

baseada na distinção estratégica entre reformas políticas (que servem para

conservar o sistema nas suas funções reais) e reformas negativas (que produzem

reais transformações qualitativas do sistema e servem para o ultrapassar

parcialmente)”1029.

Assim, tanto a perspectiva da Redução de Danos, compreendida no escopo

minimalista, bem como o horizonte abolicionista podem convergir em estratégias

que apontem para reformas negativas, ou seja, voltadas à deslegitimação do

sistema penal. Cabe citar emblemática passagem de Julita Lemgruber nesta

perspectiva:

acho importante enfatizar que a defesa da melhoria do sistema penitenciário não deve ser considerada uma postura reacionária ou idealista, na medida em que se advogam mudanças em uma instituição reconhecidamente falida, que serve para manter a lógica do Sistema de Justiça Criminal e o status quo. Enquanto não for possível nos livrarmos desse equívoco histórico que é a pena de prisão, não podemos, simplesmente, ficar de braços cruzados. Homens e mulheres são condenados à prisão todos os dias e não acredito que procurar minorar o sofrimento dessas pessoas corresponda a legitimar a ideologia que defende o aprimoramento do sistema prisional para continuar legitimando seu uso, com a justificativa hipócrita de que os infratores vão para as prisões para serem ‘ressocializados’1030.

Desta maneira, a despeito dos perigos do expansionismo punitivo, verifica-

se a possibilidade de convergência prática em estratégias minimalistas e

abolicionistas. Na mesma direção, Alessandro Baratta refere que:

cualquier paso que pueda darse para hacer menos dolorosas y menos danosas las condiciones de vida en la cárcel, aunque sea sólo para un condenado, debe ser mirado con respecto cuando esté realmente inspirado en el interés por los derechos y el destino de las personas detenidas, y provenga de una voluntad de cambio radical y humanista y no de un reformismo tecnocrático cuya finalidad y funciones sean legitimar a través de cualquier mejoramiento la instituición carcelaria en su conjunto1031.

1029 MATHIESEN, T., Juicio a la prison. 1030 LEMGRUBER, J., Cemitério dos vivos: análise sociológica de uma prisão de mulheres, p. 161. 1031 “Qualquer passo que possa ser tomado para tornar as condições de vida menos dolorosas e menos prejudiciais na prisão, mesmo que apenas para um condenado, deve ser visto com respeito quando se está realmente inspirado pela preocupação com os direitos e o destino dos detidos, e decorra de uma vontade de trasformação radical e humanista, não de um reformismo tecnocrático,

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Aquilo que se convencionou chamar de Redução de Danos, não pode

esvair-se em uma suposta estratégia de ‘humanização do cárcere’, recaindo no

“isomorfismo reformista” denunciado por Foucault. É preciso não perder de vista

a potência crítica, reduzindo-se a mera legitimação do sistema punitivo que resulte

em reforçar sua eficácia invertida. A contenção do sistema penal deve ter por

horizonte não seu aprimoramento biopolítico, mas sim um passo à frente para sua

desconstrução. Como ressalta Luiz Antônio Bogo Chies, é necessário partir da

premissa que:

(...) o ‘bom presídio’ é um mito... Mesmo as mais adequadas e salubres estruturas, acompanhadas de dignos serviços de hotelaria e do acesso aos direitos da utopia da pena neutra, não retiram – apenas anestesiam – os efeitos perversos do sequestro. A prisão é uma instituição antissocial, deturpa qualquer possibilidade de reprodução de condições mínimas de sociabilidade saudável, motivo pelo qual é muito difícil se realizar análises que, ao final, concluam por uma solução de seus paradoxos. Nenhuma conclusão será pelo melhor, mas sim pela maior possibilidade de redução de danos ou por sua abolição.1032

Vera Malaguti lança-nos a pergunta, também formulada por Salo de

Carvalho, “é possível, nos tempos do grande encarceramento, ter o abolicionismo

como meta e o garantismo como estratégia?”1033

Metaforicamente, cabe aqui trazer o dilema entre as noções de tática e

estratégia originariamente conceitos militares incorporados à tradição marxista.

Lênin1034 identifica como estratégia o objetivo principal a ser atingido em uma

revolução e estabelece os alvos e as forças motrizes para tal. Por sua vez, a tática

determina a linha política por um período relativamente curto, orientando-se de

acordo com a correlação de forças em jogo. Deste modo, a tática deriva da

estratégia e orienta-se para realização desta1035.

cujas finalidades e funções sejam legitimar qualquer melhoria da instituição prisional em seu conjunto” (trad. nossa). BARATTA, A., Resocialización o Control Social: por un concepto crítico de reintegración social del condenado, p. 254 1032 CHIES, L. A. B., A questão penitenciária, pp. 15-36. 1033 BATISTA, V. M., Introdução Crítica à Criminologia Brasileira, p. 111. 1034 Lênin, V. I. As Duas Táticas da Social-democracia na Revolução Democrática. 1035 A estratégia é relativamente fixa e apenas modifica-se quando uma revolução passa de uma fase a outra. Ao passo que, a formulação da tática está intimamente ligada à conjuntura e à correlação de forças políticas. Esse é o aspecto essencial da concepção tática leninista. Ibid.

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Por este prisma, poder-se-ia apontar a superação da prisão e do sistema

penal como a estratégia de fundo, como horizonte maior, e as disputas sobre

distintas políticas criminais no sentido de minimização do modelo punitivo, como

tática. A priori pode-se considerar que o sistema penal não pode ser sobrepujado

de assalto, tendo em vista o fato de a questão criminal edificar-se como um grande

projeto político, supostamente suprapartidário, “gerido pela mão invisível do

Leviatã neoliberal”.

Neste sentido, pode-se considerar a luta pela contenção do poder punitivo

como inserida em um conjunto de ações no plano micro, nestas disputas

criminológico-críticas de trincheira, que encontra o minimalismo como tática e o

abolicionismo como estratégia, como horizonte pela superação do sistema penal, e

das agruras da segregação prisional.

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7 Conclusão

Na jornada trilhada por esta tese, não se busca propor uma conclusão

peremptória, com pretensões de verdade absoluta ou uma resposta reducionista e

miraculosa. A análise que propomos se insere em desdobramentos ainda em curso.

O acúmulo da reflexão crítica não pode guiar-se a atingir uma meta, trata-se de

um trajeto tortuoso e contínuo, que se faz no caminhar.

Este percurso nos permite apontar que o cárcere, desde sua gênese até o

presente, revela-se em permanente crise de legitimidade. Tanto a invenção da

prisão, bem como os modelos penitenciários e as terias fundamentadoras da pena,

teriam como alicerce a noção de racionalidade e civilização, voltados à retribuição

e prevenção do delito. Entretanto, à luz da Criminologia Crítica, percebe-se que

em mais de 200 anos de vigência, a instituição carcerária apresenta uma eficácia

invertida, produz tão somente sofrimento e barbárie, em meio às eternas

promessas não cumpridas de seu isomorfismo reformista.

Percebemos que a tese esposada por Rusche e Kirchheimer, que aponta a

intrínseca relação entre os sistemas penais e os sistemas econômicos, necessita ser

atualizada, mas revigora-se no contexto do capitalismo pós-industrial. Diante de

suas crises cíclicas, o sistema capitalista busca se aprofundar, em novas dimensões

de acumulação, lucrando com suas mazelas.

Sob a égide do campo burocrático neoliberal, preconizado como solução

para a crise do Estado de Bem Estar Social, o controle penal é ampliado ao

paroxismo. O Leviatã neoliberal que, como observou Wacquant, catapultou o

grande encarceramento nos EUA, terá reflexos diretos na periferia do capitalismo.

Entretanto, a análise da incorporação do Estado penal no Brasil evidencia

relevantes peculiaridades. É preciso perceber as permanências autoritárias – tanto

das matrizes ibéricas que desenharam o sistema penal da Colônia e do Império,

como das ditaduras do século XX -, que se revelam no acirramento da violência

institucional, mesmo após a reabertura democrática, com a estratosférica

letalidade policial e o encarceramento massivo. Também é determinante a

ausência histórica de welfare state no país e o incremento de políticas sociais em

paralelo à ofensiva punitiva.

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Desta forma, para entender o Estado penal brasileiro, consideramos que o

paradigma biopolítico é também imprescindível. O conceito de Estado de exceção

trabalhado por Agamben contribui para compreender as grandes contradições do

Estado de Direito, sobretudo na América Latina, a terra das “veias abertas”.

Este panorama da penalidade neoliberal é percebido claramente no Brasil,

com o crescimento de 575% em sua população prisional entre 1990 e 2014.

Cenário que tende a agravar-se tendo em vista que nos últimos anos a velocidade

do crescimento do efetivo carcerário brasileiro esteve abaixo somente da

Indonésia, chegando ao exército de 607 mil presos, em 2014, a quarta maior

população carcerária do mundo, caminhando para ser a terceira no ano de 2018,

caso mantenha estes indicadores.

O Leviatã neoliberal se materializa contundente, em particular no Rio de

Janeiro. A adoção de um programa político criminal inspirado nos moldes

“tolerância zero”, aliado ao fato de sediar megaeventos de interesse primordial do

grande capital nos últimos anos, dá ao estado ares de laboratório biopolítico do

punitivismo. Entre 2010 e 2014, a população prisional do Rio de Janeiro cresceu

56%, mais do que o dobro do aumento do efetivo penitenciário do país. Neste

sentido, caminha na contramão de Nova Iorque, considerada outrora como o

laboratório vivo da penalidade neoliberal nos EUA, que desde 2006 vem

diminuindo progressivamente.

A cartografia do cárcere fluminense, através do exame de 29 unidades

prisionais permite identificar os reais impactos desta onda punitiva, revelando um

quadro crônico de violações de direitos, de modo que a superlotação opera como

um meta-problema que resulta na precariedade estrutural do arquipélago

carcerário.

Analisando o conceito de tortura, verifica-se que tal prática é percebida de

modo mais recorrente em instituições totais, nas celas escuras dos locais de

confinamento. De acordo com os entendimentos mais recentes de organismos

internacionais, seu conceito deve ser ampliado no ensejo de conferir máxima

proteção à pessoa humana. Neste sentido, percebe-se claramente que a realidade

carcerária observada no Rio de Janeiro permite apontar que a pena privativa de

liberdade configura um quadro sistêmico de tortura e outras formas de maus

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tratos. Assim, pode-se conceber o cárcere na figura do “campo” e o preso na

condição de homo sacer.

Desta maneira, refletindo sobre as transfigurações do modelo prisional,

percebe-se a absoluta falência do modelo correcionalista (prisão-tratamento),

dando ensejo ao advento do modelo atuarial (prisão-depósito), como identificado

por De Giorgi e Dieter. Consideramos que, diante das profundas mazelas da

questão penitenciária no Brasil, como país de capitalismo periférico, podemos

visualizar um padrão ainda mais pernicioso, o modelo da prisão-tortura.

Neste sentido, diante da reinvenção da prisão na penalidade neoliberal, as

funções declaradas da pena, sobretudo a função preventivo-especial positiva

(ressocialização), são abandonadas, incorporando-se no discurso oficial

inequivocamente a assunção da função neutralizante, o gerencialismo de riscos no

sistema prisional. No cárcere da periferia capitalista a tortura, a violência

institucional e os castigos, são acrescidos como instrumentos de obtenção de

segurança e disciplina, cumprindo papel de neutralização e inocuização das

pessoas privadas de liberdade. Na prisão como metáfora do “campo”, em

condições aviltantes de aprisionamento, a tortura é empreendida para o

aniquilamento da subjetividade dos encarcerados.

Contudo, a despeito do agigantamento do Estado penal, percebem-se

resistências, linhas de fuga que permitem apontar estratégias para a superação do

encarceramento massivo. A Criminologia Cautelar preconizada por Zaffaroni

alerta sobre esta necessidade de adoção de medidas que possam representar um

dique de contenção do poder punitivo. A tese do Estado de Coisas

Inconstitucional, a implementação da Audiência de Custódia e de alternativas

penais, a responsabilidade civil do Estado por superlotação e condições

degradantes, bem como a superação do modelo proibicionista de drogas podem

contribuir com este propósito. Proposições que, sejam elas movidas pelo

minimalismo como tática ou pelo abolicionismo como estratégia, devem ser

dirigidas a aprofundar a deslegitimação do sistema penal.

Nesta esteira, o percurso até aqui nos oferece, mais do que a clareza

daquilo que se quer, a certeza daquilo que não se quer. O grande encarceramento é

insustentável. Insustentável sob as mais distintas perspectivas, do ponto vista ético

e humanitário, do ponto de vista orçamentário e do ponto de vista pragmático.

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Respectivamente, devido ao fato de que promove tortura sistêmica e violações

contumazes à dignidade humana das pessoas privadas de liberdade, elevadíssimos

custos ao erário público, e resultados absolutamente contraproducentes em razão

de sua ‘eficácia invertida’.

Segundo Arthur Schopenhauer, filósofo alemão do séc. XIX, "toda verdade

passa por três estágios: primeiro, ela é ridicularizada; segundo, sofre violenta

oposição; terceiro, ela é aceita como auto-evidente"1036. A crítica radical do

cárcere já foi outrora ridicularizada e já recebeu violenta oposição, como na

reação aos estudos de Foucault, Hulsman, Baratta, Christie, Zaffaroni e tantos

outros. Não tardará a chegar a hora em que o grande encarceramento será uma

falácia auto-evidente.

Esperamos que esta tese tenha contribuído nesta direção. Neste sentido,

vale relembrar Theodor Adorno quando se refere à necessidade atual de um novo

imperativo categórico que pode romper com a barbárie engendrada pela razão

instrumental do Ocidente Moderno. Em suas palavras, trata-se de “orientar o

pensamento e a ação de modo que Auschwitz não se repita, que não volte a

ocorrer nada semelhante” 1037. Ocorre que Auschwitz já está se repetindo, nos

verdadeiros campos de concentração do arquipélago penitenciário. Desta forma,

por este novo imperativo, a dignidade humana deve estar acima de qualquer

fundamento do Estado, de disciplina e segurança, de lei e ordem. Portanto, não

pode estar de acordo com o ideal civilizatório a existência das masmorras

medievais, em meio às torturas, assassinatos, corrupção, neutralização e

aniquilamento da subjetividade dos homini sacri encarcerados. Os cárceres

embrutecidos pela superlotação e condições aviltantes são expressão não da

racionalidade e modernidade, mas sim da barbárie, do “excesso de civilização”

que impõe à parcela da população sobrante da sociedade de consumo a segregação

punitiva.

Nestes termos, relembrando a metáfora da mitológica caixa de Pandora, a

esperança, que restava no fundo da arca, pode representar justamente que o

horizonte de esperança e civilização se encontra fora dos muros da prisão. É

1036 SCHOPENHAUER, A., O mundo como vontade e como representação, tomo I. 1037 MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz: atualidade e política, p. 124.

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preciso “desumanizar” o cárcere, é preciso retirar de suas grades obscuras os

humanos.

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