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TEXTOS MULTIMIDIÁTICOS NA UNIVERSIDADE Raquel Goulart Barreto 1 Glaucia Campos Guimarães 2 Resumo Este artigo aborda a recontextualização dos diferentes materiais semióticos no ensino superior, incluindo a graduação e a pós- graduação. Partindo das novas configurações textuais que circulam socialmente, analisa as condições da sua apropriação na formação de professores, como espaço de convergência da universidade e da escola. Está organizado em quatro seções. A introdução define a sua filiação teórica. A segunda seção aborda o movimento de mudança-permanência de materiais e de práticas, considerando a presença dos artefatos tecnológicos necessários à sua veiculação, assim como as práticas de linguagem desenvolvidas a partir deles. A terceira focaliza as contradições que têm demarcado o lugar da multimídia nos contextos acadêmicos, explicitando os modos pelos quais os novos textos têm sido pensados e apropriados como materiais didáticos, incluindo falas entreouvidas em vários dos seus espaços. Finalmente, a quarta seção remete a questões relativas à leitura e à produção textual nos contextos educacionais, examinando simplificações correntes e alternativas para a sua superação, através de experiência concreta de pesquisa para enfrentar o desafio das linguagens articuladas na produção, na circulação e na legitimação dos sentidos. Palavras-chave: Multimídia. Ensino superior. Práticas de linguagem. 1. SOBRE TEMPOS E ESPAÇOS DESIGUAIS: UMA INTRODUÇÃO Tratar da multimídia no ensino superior é um desafio bastante peculiar nesta que tem sido posta como era 1 Doutora em Educação. [email protected] 2 Doutora em Educação. [email protected]

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tExtos multimidiáticos na univErsidadE

Raquel Goulart Barreto1

Glaucia Campos Guimarães2

ResumoEste artigo aborda a recontextualização dos diferentes materiais semióticos no ensino superior, incluindo a graduação e a pós-graduação. Partindo das novas configurações textuais que circulam socialmente, analisa as condições da sua apropriação na formação de professores, como espaço de convergência da universidade e da escola. Está organizado em quatro seções. A introdução define a sua filiação teórica. A segunda seção aborda o movimento de mudança-permanência de materiais e de práticas, considerando a presença dos artefatos tecnológicos necessários à sua veiculação, assim como as práticas de linguagem desenvolvidas a partir deles. A terceira focaliza as contradições que têm demarcado o lugar da multimídia nos contextos acadêmicos, explicitando os modos pelos quais os novos textos têm sido pensados e apropriados como materiais didáticos, incluindo falas entreouvidas em vários dos seus espaços. Finalmente, a quarta seção remete a questões relativas à leitura e à produção textual nos contextos educacionais, examinando simplificações correntes e alternativas para a sua superação, através de experiência concreta de pesquisa para enfrentar o desafio das linguagens articuladas na produção, na circulação e na legitimação dos sentidos. Palavras-chave: Multimídia. Ensino superior. Práticas de linguagem.

1. sobrE tEmpos E Espaços dEsiguais: uma introdução

Tratar da multimídia no ensino superior é um desafio bastante peculiar nesta que tem sido posta como era

1 Doutora em Educação. [email protected] 2 Doutora em Educação. [email protected]

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transmidiática, tecida pela “cultura da convergência” (Jenkins, 2009) na “revolução do conhecimento”. Ainda que o referido autor sublinhe que “a convergência não ocorre por meio de aparelhos, por mais sofisticados que venham a ser” (p.30), não é possível prescindir dos artefatos tecnológicos na veiculação dos novos textos.

Mesmo sem entrar aqui no aprofundamento da discussão acerca do quadro de referências em que os novos textos estão inscritos, não nos filiamos àquele que propugna a centralidade da informação pelo descentramento da categoria trabalho. Ao contrário, assumindo a perspectiva de Antunes e Braga (2009), propomo-nos a pensar a “degradação real do trabalho virtual”, discutindo a apropriação dos textos multi/transmidiáticos na formação de professores, concebida como espaço de convergência da universidade e da escola. Ao fazê-lo, pretendemos apontar algumas contradições que têm marcado este espaço no Brasil, considerando não apenas a sua condição de país periférico, mas as desigualdades que o constituem internamente.

Assumiremos que o espaço universitário, constituído pelas contradições da sociedade em que está inscrito, também configura uma relação peculiar com os seus tempos desiguais (Leher, 2000). Assim, não abordaremos um tempo real e um espaço virtual, endossando as inversões representadas pela substituição da lógica da produção pela da circulação e da lógica do trabalho pela da comunicação (Chauí, 1999). Em outras palavras, estaremos tratando da presença dos textos multimidiáticos na universidade como recontextualizações de campo e de escala (Fairclough, 2005; Barreto, 2009), considerando o tempo mais lento da sua ocorrência, como tal, e da sua apropriação no conjunto do trabalho docente, compreendendo desde os artefatos tecnológicos necessários à veiculação dos novos textos até as práticas de linguagem desenvolvidas a partir deles.

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2. mudança-pErmanência

Há cerca de uma década, pensar a multimídia na formação inicial de professores era, de muitos modos, refletir sobre uma falta. Na literatura sobre a temática, havia movimentos como o de Alves (2000, p.34), defendendo “a apropriação, o uso e a criação de multimeios pela professora” como direito; o de Kenski (2000, p.133), propondo a ampliação das concepções de linguagem, de leitura e de escrita, de modo a dar conta das novas mediações envolvidas; e o de Pretto (2001, p.38), perguntando: “Mas quem tem acesso a tudo isso?”

Nos cursos de formação de professores, a questão do acesso era crucial. Na maioria dos casos, um setor de “recursos audiovisuais” abrigava parcos equipamentos a serem disputados pelo corpo docente. Muitas vezes, o agendamento devia ser feito com uma antecedência que acabava interferindo no planejamento. Como não havia aporte tecnológico nos cursos presenciais, os professores, através do financiamento concedido às suas pesquisas, tentavam preencher a lacuna. Os artefatos de fato disponíveis eram destinados à educação a distância, produzindo uma espécie de fosso entre as “modalidades” de formação. Deformação, já que a redução das tecnologias a ferramentas de ensino a distância parecia dispensar a análise dos modos da sua apropriação. Não estando presentes no cotidiano dos cursos de formação inicial presencial, de modo a sustentar alternativas teórico-metodológicas em condições de produção adequadas, as tecnologias na educação tendiam a permanecer como uma “novidade” para os professores, contribuindo para algumas dificuldades e hesitações verificadas no trabalho com elas.

Em se tratando do acesso às tecnologias da informação e da comunicação (TIC), muita coisa mudou. Fora da universidade, houve uma espécie de deslocamento dos computadores para a condição de “eletrodoméstico da vez”, ocupando o espaço que já foi da TV, face aos preços menos

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proibitivos e às possibilidades de financiamento em médio ou longo prazo e, também, por povoar o imaginário social como “a” alternativa de preenchimento para diferentes faltas. Em se tratando das políticas educacionais, a aposta foi até mais longe, creditando a esses artefatos a saída para os mais diversos problemas, de tal modo que eles passaram a ser presença cada vez mais frequente nas diversas instituições de ensino.

Por outro lado, esta presença, ainda que necessária, não é suficiente para superar a permanência de um fosso imenso entre os textos circulando socialmente e os gestos de leitura produzidos nos contextos educacionais. Ainda que textos sejam produzidos para serem lidos, tem sido promovida uma espécie de ruptura entre os dois movimentos pela intervenção de pelo menos três fatores, nas suas múltiplas relações. O primeiro deles diz respeito à seleção dos textos a serem lidos nos espaços educacionais. O segundo, inseparável do primeiro, se refere à concentração praticamente exclusiva na linguagem verbal escrita. O terceiro, articulando os anteriores, é representado pela administração da leitura “correta” por “intérpretes autorizados” (Barreto, 2002, 2009; Guimarães, 2006, 2010).

A seleção dos textos tende a ser produzida a partir dos seus fins didáticos, na intencionalidade constitutiva de gestos específicos de leitura. Ler para adquirir conhecimentos e outras habilidades, como reproduzir, parafrasear, discutir, analisar, criticar, avaliar etc. Ler para identificar o que supostamente está claro no texto; para “desvelar” o sentido correto que, não estando óbvio, demanda interpretação; para captar os sentidos possíveis e compreender as relações entre eles; para atribuir sentidos, com mais ou com menos liberdade, aos textos. Assim, é possível verificar a primazia atribuída aos textos considerados acadêmicos, bem como o estranhamento produzido pela introdução dos que não cabem nos parâmetros que os definem, comumente representado por indagações que, explicitadas ou não, ratificam a intencionalidade da seleção e o ideal da clareza: “O que será que o(a) professor(a) está querendo com isso?”

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Como afirmaram Genouvrier e Peytard (1975, p.22), “o caminho é sempre do escrito para o escrito”. Ler para saber e produzir textos a serem lidos e avaliados pelo professor. Nesta representação da tendência da trajetória empreendida, é preciso considerar que o retorno é posto como a “prova” da aprendizagem e que cabe à leitura/produção textual unir as duas pontas. Entretanto, este caminho, historicamente construído na/pela civilização centrada na escrita, por mais reiterado que seja, pode permanecer na era da multi/transmídia, ou as condições objetivas externas apontam necessariamente para a sua mudança?

Para encaminhar esta questão, desenvolvemos, nas seções seguintes, reflexões acerca de mudança-permanência no discurso pedagógico que, segundo Bernstein (1996), também é marcado pela tendência à estabilidade. Diz ele: “o que temos que explicar a respeito dos sistemas educacionais, das práticas educacionais, não é quão diferentes eles são, de uma sociedade para outra, mas sua avassaladora similaridade” (p. 234).

3. as contradiçõEs QuE marcam o lugar da multimídia

Ao abordar as questões relativas ao controle religioso e estatal dos gestos de leitura, Chartier (1998), analisa também as condições técnicas da produção textual, focalizando a história da relação centro-margens, da disjunção texto-imagem. Afirma que não apenas o Verbo sempre foi central, como, para imprimir caracteres tipográficos e gravuras em cobre, eram necessárias prensas diferentes, duas oficinas, duas profissões e duas competências. Não havia junção possível. Assim, até o século XIX, a imagem permaneceu, até mesmo literalmente, “situada à margem do texto” (p.10), ocupando um lugar de ilustração, em decorrência do próprio suporte para a sua veiculação.

Entretanto, posicionamento e relações entre palavras e imagens superaram a fixidez. Segundo Bakthin (2009, p.128),

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todos os signos não-verbais “banham-se no discurso e não podem ser totalmente isoladas nem totalmente separadas dele”. Segundo Barthes (1990, p.20), “ontem a imagem ilustrava o texto (tornava-o mais claro); hoje, o texto torna a imagem mais pesada, impõe-lhe uma cultura, uma moral, uma imaginação; no passado, havia a redução do texto à imagem; no presente, há uma amplificação recíproca”.

No século XXI, do ponto de vista técnico, é possível afirmar que multimídia é a tecnologia caracterizada por permitir a combinação, em um mesmo programa e sob forma digital, de mídias diversas: palavras, imagens, sons etc. Do ponto de vista discursivo, de acordo com Nunes (1998, p.38), a multimídia pode ser posta como a tecnologia que permite “a coexistência de distintas ordens de materialidade em um mesmo espaço”. Queremos demarcar, todavia, este território multimidiático para além da coexistência de diferentes materiais semióticos (Fairclough, 2006) ou, rompendo com os parâmetros da Linguística, linguagens, no plural, que produzem sentidos na sua articulação.

Temos tratado esta articulação em termos de convergência, divergência e contiguidade (Guimarães; Barreto, 2008). No primeiro caso, palavras e imagens se reforçam mutuamente. No segundo, remetem a sentidos diversos. No terceiro, é a aproximação no tempo e/ou no espaço de configurações textuais que, em princípio, estariam referidas a temas diferentes. Em todos os casos, os novos textos correspondem a configurações cada vez mais complexas, trazendo novas questões para as condições de produção das suas leituras.

Entretanto, no contexto universitário, esta complexidade pode ser incorporada contraditoriamente como simplificação da docência. É como se a sua leitura fosse necessariamente mais fácil, talvez por outra articulação: a da condição de textos didáticos, simplificados em nome da suposta clareza, à presença de ilustrações esclarecedoras. Um imaginário marcado também na crítica de Chauí (2003, p.7) à docência

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“entendida como transmissão rápida de conhecimentos, consignados em manuais de fácil leitura para os estudantes, de preferência ricos em ilustrações e com duplicata em CD-ROM”. Para usar uma expressão popular em circulação no momento: “entendeu ou quer que eu desenhe?” É como se a articulação de linguagens fosse produzida apenas por convergência. É como se houvesse sempre o esclarecimento mútuo. Um imaginário que remete a uma questão: textos multimidiáticos para quê?

Para encaminhar esta questão, é preciso trazer para o centro desta reflexão o terceiro fator explicitado na seção anterior: a administração da leitura “correta” por “intérpretes autorizados”. Em outras palavras, o pressuposto é o de que exista uma única leitura correta, verdadeira, mesmo quando as linguagens que tecem as configurações textuais são articuladas por divergência: quando as palavras apontam em uma direção e as imagens em outra(s). Se a leitura tem o caráter de “prova”, o movimento se aproxima mais da identificação do sentido mais cabível em cada situação, para cada professor etc.

Nesta espécie de ajustamento, a simplificação corresponde à impostura, afastando o sentido primeiro de universidade como abertura para o múltiplo. A unicidade imposta impede a compreensão dos mecanismos constitutivos da luta pela legitimidade dos diferentes sentidos, já que, em meio aos sentidos historicamente possíveis, um tende a ser mais “lido” que os outros: é formalizado e legitimado, enquanto os demais sequer chegam a ser cogitados. Em outras palavras, na perspectiva histórico-discursiva, a ideologia corresponde à hegemonia do sentido (Barreto, 2009, p.22).

Para tentar dar conta das contradições constitutivas do lugar da multimídia na universidade, registramos a seguir algumas falas entreouvidas em vários dos seus espaços físicos:

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1. Na fila do banheiro, uma aluna pergunta a outra: “Tem aula da professora X amanhã?” Resposta: “Aula não. Tem é filme”.

2. No corredor: “Se eu coloco aquelas imagens todas no trabalho ele cresce muito e já está quase pronto”. Reação: “Você vai gastar um cartucho inteiro pra imprimir!”.

3. No corredor: “Mande aquele seu artigo sobre imagens para a revista Y. Só não coloque muitas imagens (duas no máximo) e já mande em preto e branco, tá?”

4. Na cantina: “Eu faço o trabalho todo centrado na multimídia e agora tenho que fazer com que ele caiba naquela velha formatação de teses”?

5. Nas salas de aula, turmas incrédulas diante da proposta de avaliação através de produções multimidiáticas. Uma aluna verbaliza: “Por segurança, vou entregar um texto escrito junto e garantir a minha nota”.

Entre o filme que parece não poder estar inscrito em uma aula, a ideia das imagens como uma espécie de fermento dispendioso, o artigo sobre imagens a ser publicado em papel, a formatação como limite a ser mantido, e o texto escrito como garantia, o lugar da multimídia na universidade não é mesmo fácil de demarcar.

Expostas algumas simplificações e problemas concretos, a contribuição maior deste artigo pretende ser um conjunto de reflexões acerca de alternativas de superação, representadas pela pesquisa “Articulação de linguagens na TV e leitura na escola: a apropriação dos textos multimidiáticos nas práticas pedagógicas”.

4. para muito além das simpliFicaçõEs, uma ExpEriência concrEta com tExtos multimidiáticos

Foi diante do contexto explicitado acima, que a pesquisa que desenvolvemos toma por pressuposto que as práticas/

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discursos escolares tendem a focalizar e privilegiar uma das linguagens, principalmente a verbal escrita, como a única capaz de exprimir a complexidade característica que o conhecimento acadêmico possui. Esta focalização na escrita tende contribuir para aumentar o fosso entre a ponta da produção e da recepção, majorando a lacuna entre textos e leituras, já que os textos são produzidos levando em consideração as linguagens diversas, mas as formas de leitura estabelecidas nas práticas/discursos pedagógicos continuam empobrecedoras, ao privilegiar uma linguagem em detrimento de outras.

A partir deste pressuposto, começamos a desenvolver práticas de leitura que considerasse as linguagens articuladas na graduação e no mestrado em educação da Faculdade de Formação de Professores da UERJ e, ainda, em uma escola pública próxima a esta Faculdade, concomitantemente.

Nestas práticas, tomamos como ponto de partida a análise de campanhas audiovisuais e livros de literatura infanto-juvenis, não para “simplificar as informações”, mas para ampliar as práticas de leitura, rompendo com os parâmetros de leitura relacionados à linguagem verbal escrita em textos didáticos (simplificados em nome da suposta clareza), pois, como já afirmamos, é comum a suposição de que a leitura de um texto audiovisual seja mais fácil e a hipótese de que os materiais, geralmente digitais, ricos em ilustrações, possam promover a rápida transmissão de conhecimentos.

Desta forma, chamamos a atenção para a complexidade das leituras de textos multimidiáticos, que articulam linguagens diversas. Para exemplificar como trabalhamos, partimos de um texto aparentemente simples para chamar a atenção para a complexidade característica das leituras possíveis do texto que articula linguagens, como o intitulado “Tudo bem ser diferente” de Toddy Parr (2002). Algumas das páginas deste livro encontram-se abaixo:

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Nos três níveis de ensino, estimulamos a produção de outras leituras acerca da temática do livro, expressadas em imagens, sons e palavras.

No Mestrado, como estávamos trabalhando o livro de Canclini (2009) “Diferentes, desiguais e desconectados”, Ralph Russo, um dos alunos, fez uma releitura do livro chamando a atenção não somente para as diferenças, mas para as desigualdades e para os desconectados, como nas imagens abaixo:

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Diversas leituras também foram produzidas na graduação. Em uma delas a aluna Elisângela Terra Campos (2010) fez o conto “Por que é tão difícil para os pobres ter o melhor?” Nele ela contava a história de um menino pobre que foi sorteado para estudar em um colégio de aplicação de uma universidade no Rio de Janeiro, mas, além das muitas dificuldades financeiras, não tinha acesso à internet, e foi obrigado a deixar de estudar lá. Ela começa a história dizendo que Marcelo – o protagonista do conto – não era diferente dos outros garotos de sua idade e termina o conto desta forma:

À noite, quando a mãe de Marcelo foi lhe dar um beijo de boa noite, ela ouviu uma pergunta de seu filho que lhe tirou o sono não somente daquela, mas de muitas noites. Marcelo perguntou: Por que é tão difícil para os pobres ter o melhor? A mãe de Marcelo não respondeu à pergunta, mas pensa nela todos os dias.

Na escola as produções dos alunos ampliavam as possibilidades de leitura daquele livro, considerando o contexto e as linguagens com as quais os alunos lidavam cotidianamente. Em conversas posteriores à leitura do livro de Toddy Parr e de campanhas de televisão sobre a mesma temática, as meninas do quinto ano do ensino fundamental elaboraram uma campanha e espalharam cartazes como este ao abaixo:

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Como circulam socialmente os mais variados textos multimidiáticos, veiculados pelas tecnologias da informação e da comunicação, é possível afirmar a democratização do acesso a eles. Entretanto, as leituras destes mesmos textos tendem a não levar em conta a articulação das linguagens que os constituem, sobretudo como são orientados os sentidos para legitimar um hegemônico. Em outras palavras, é perfeitamente possível “ver” TV ou navegar na internet sem que estes movimentos sejam ancorados em uma leitura crítica dos sentidos circulantes e dos modos da sua circulação.

Era o que acontecia no início de nosso trabalho na escola, mesmo produzindo releituras que articulavam imagem, som e palavra em vídeo, o texto verbal era o privilegiado no planejamento feito pelos alunos. As imagens e sons que seriam captados e incluídos quase não eram pensados. Além disso, repetiam temáticas, valores e sentidos que estavam em voga na televisão com uma abordagem também bastante parecida. Por exemplo, em alguns vídeos o tema era o preconceito em relação à pessoa paraplégica, como o tema enfatizado na novela Viver a vida de Manoel Carlos que foi exibida na Rede Globo. Cabe ressaltar que o texto verbal, que foi o único pensado anteriormente, se caracterizava por ser um discurso pedagógico com um tom moralista, chegando às raias do autoritário, como nos títulos “Não tenha preconceito!” e “Cuide dos que têm problemas!”. Somente depois de alguns encontros os alunos da escola começaram a observar outros sentidos para além daqueles constantemente repetidos pela mídia e a pensar na imagem e no som como matérias significantes diferente da forma “usada” na escola, como ilustração ou como confirmação do escrito, do legitimado ou até mesmo como conformação.

Em função da orientação de sentidos que a TV e outras tecnologias da informação e da comunicação acabam produzindo, há os que ainda propõem a separação entre os textos que circulam socialmente e os escolares.

Seria indefensável qualquer proposta de manter a escola longe dos textos que pelos quais nos comunicamos na prática

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social. No entanto, o acesso aos textos não é suficiente. No contexto desta prática de pesquisa foi possível observar que apenas a presença ou a alusão aos textos multimidiáticos no espaço escolar é importante, mas não é suficiente para um trabalho para apropriação das TIC e seus textos pelos sujeitos envolvidos em um processo educativo.

Quando chegamos à escola, uma das professoras que nos acolheu partia do pressuposto de que os textos lidos por ela e por seus alunos nas principais mídias poderiam aproximar o “conteúdo” escolar da vida cotidiana, do mundo externo à escola. Por esta razão, comentava filmes, novelas e programas que eram vistos pelos alunos.

De fato, através desta estratégia ela aproximava os conteúdos escolares dos interesses dos alunos. No entanto, a tendência era destacar valores e temas mediados nestes programas e reforçar a abordagem e posições ideológicas dos discursos midiáticos.

Em conversas de professores, não somente os locados na escola e na universidade em questão, tendem a ser recorrentes expressões como: “usar um vídeo para motivar a discussão sobre temática X”, “trabalhar de forma lúdica, com um jogo multimídia, o conceito matemático Y”, “encontrar um texto na internet ou um programa de TV que trate do problema Z” etc. É razoável ressaltar que estas práticas podem representar um começo, mas não podem se restringir a uma espécie de pílula edulcorada para informar, ensinar e, muitas vezes, conformar.

Por esta razão, foi preciso pensar coletivamente nos modos como estes textos têm sido inscritos nas práticas pedagógicas, com vistas a superar as propostas voltadas para a manutenção dos “mesmos” conteúdos e gestos de leitura, tornados mais atraentes, lúdicos e, portanto, “modernos”.

Então, foi a partir da novela Viver a Vida e da temática sublinhada pela referida professora, que tanto mobilizava os alunos da turma da escola em questão, nos questionávamos sobre a questão e “brincávamos” de fazer com a própria novela, novas narrativas. Um dos jogos propostos era inserir

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a personagem paraplégica em textos/contextos diferentes. Por exemplo, em um conto de fadas, na maioria das histórias criadas, a princesa paraplégica seria rejeitada pelos príncipes da corte. Como moradora de uma comunidade desprivilegiada economicamente, ela somente conseguia superar seu problema por magia, já que não tinha acesso a tratamento adequado nos hospitais públicos. Na pré-história seria caçada por animais predadores do homem. Muitas foram as outras versões que “brincavam” na dança das linguagens.

Fizemos propostas de leitura da personagem cadeirante para retratarem, em desenhos, as imagens que os alunos mais tinham dela na novela. Invariavelmente a personagem aparecia chorando, em condição de dependência, em situação de fragilidade, mesmo quando estava recuperando-se e sendo amada por um dos protagonistas da novela.

Ao analisarmos qual a imagem que mais identificava a personagem, chegamos à conclusão de que era a de “coitada”. A partir desta imagem fomos elencando outros programas televisivos que exploram mais enfaticamente a tragédia alheia, com vistas a atrair mais audiência e discutindo se esta imagem é sempre boa para aqueles que são portadores de necessidades especiais como a personagem em questão.

Nesta e em outras situações, procurávamos estabelecer uma reflexão sistemática acerca da interpelação constante pelos elementos persuasivos da ideia de democratização e da imagem de acessibilidade e consumo de qualquer coisa representada como produto. Uma reflexão baseada na leitura e na produção textual, objetivando a análise dos sentidos hegemônicos veiculados. Um trabalho produzido coletivamente pelas turmas dos diferentes níveis de ensino envolvidos na pesquisa, com base na discussão dos diferentes sentidos possíveis, dos pressupostos assumidos, dos vários lugares sociais e das múltiplas subjetividades.

A tentativa era sempre a de possibilitar a produção de novos sentidos e textos para além dos hegemônicos. E muitas leituras/produções foram elaboradas. Algumas delas estão expostas

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no livro “Colecionando mundos: histórias de quem gosta de ler e escrever em imagens, sons e palavras” (GUIMARÃES; VILHENA; DALUZ, 2010), lançado em novembro de 2010. Desta maneira, produzimos novos textos/leituras que acabaram por desmontar as tramas da interpretação autorizada, no sentido da compreensão e da ampliação da polissemia.

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multimEdiatic tExts at univErsity

AbstractThis article deals with the recontextualization of different semiotic materials in higher education, including both undergraduate and postgraduate levels. Starting from new textual configurations socially developed, it analyzes the conditions under which they tend to be incorporated to teachers’ education, as the convergence of universities and schools. It is divided into four sections. Its theoretical framework is referred to in the introduction. The second section approaches the change-permanence of materials and practices, considering technological device needed, as well as language practices based on them. The third one discusses the contradictions related to multimediatic texts in academic contexts, by eliciting the ways they have been incorporated as didactic materials, including informal speeches overheard. Finally, the fourth section refers to issues concerning reading and text production in such contexts, such as current simplifications and alternatives

Educ. foco,Juiz de Fora,

v. 18, n. 1, p. 127-144,mar. / jun. 2013

Raquel Goulart Barreto

Glaucia Campos Guimarães

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to overcome them, by approaching a concrete research experience to face the challenge of articulated languages in meaning production, circulation and legitimation. Keywords: Multimedia. Higher education. Language practices.

Data de recebimento: fevereiro 2012Data de aceite: maio 2012