suplemento regrasso às aulas

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6 “Vinha da Austrália e nem sabia falar português por isso foi complicado” 6 “No primeiro dia de aulas jogámos ao lenço e foi muito divertido” 5 foto arquivo O MIRANTE faz parte integrante da edição n.º 948 deste jornal e não pode ser vendido separadamente SEMANÁRIO REGIONAL - DIÁRIO ONLINE O MIRANTE REGRESSO ÀS AULAS 2010 Alexandrina tem apenas 44 anos de idade e não sabe ler nem escrever. O drama do analfabetismo no país dos computadores Magalhães Algumas recomendações para fazer do seu filho um bom aluno Primeiro dia de aulas causa nervoso miudinho às crianças e aos pais Entrada no mundo das responsabilidades e de ruptura em relação à família 2 “Em Portugal perde-se mais tempo a preencher papéis que a dar aulas” 6 Crianças só não gostam da escola quando a escola não gosta delas “É uma pena não se estimular mais a criatividade dos estudantes” 7 “Assustei-me com o professor mascarado de palhaço e fartei-me de chorar” “Os jovens de hoje vivem num mundo muito competitivo e exigente” 5 As crianças e jovens precisam de pais esclarecidos e esforçados e de professores bem preparados e motivados para virem a ser bons cidadãos. E um país sem bons cidadãos não pode ser um país desenvolvido. Vai começar um novo ano lectivo e como todos os anos há muitas mudanças. Os testemunhos que publicamos neste suplemento deveriam ser lidos com atenção por quem tem que decidir. 6 7 4

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Suplemento Regrasso às aulas

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O MIRANTE | 09 Setembro 2010 REGRESSO ÀS AULAS | 1

6 “Vinha da Austrália e nem sabia falar português por isso foi complicado” 6

“No primeiro dia de aulas jogámos ao lenço e foi muito divertido” 5

foto arquivo O MIRANTE

faz parte integrante da edição n.º 948 deste jornal e não pode ser vendido separadamenteSEMANÁRIO REGIONAL - DIÁRIO ONLINE

O MIRANTESEMANÁRIO REGIONAL - DIÁRIO ONLINE

O MIRANTE REGRESSO ÀS AULAS 2010

Alexandrina tem apenas 44 anos de idade e não sabe ler nem escrever. O drama do analfabetismo no país dos computadores Magalhães

Algumas recomendações para fazer do seu fi lho um bom aluno

Primeiro dia de aulas causa nervoso miudinho às crianças e aos paisEntrada no mundo das responsabilidades e de ruptura em relação à família 2

“Em Portugal perde-se mais tempo a preencher papéis que a dar aulas” 6

Crianças só não gostam da escola quando a escola não gosta delas

“É uma pena não se estimular mais a criatividade dos estudantes” 7

“Assustei-me com o professor mascarado de palhaço e fartei-me de chorar”

“Os jovens de hoje vivem num mundo muito competitivo e exigente” 5

As crianças e jovens precisam de pais esclarecidos e esforçados e de professores bem preparados e motivados para virem a ser bons cidadãos. E um país sem bons cidadãos não pode ser um país desenvolvido. Vai começar um novo ano lectivo e como todos os anos há muitas mudanças. Os testemunhos que publicamos neste suplemento deveriam ser lidos com atenção por quem tem que decidir.

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O ano lectivo 2010/2011 arranca segunda-feira no ensino básico e secundário. Para muitas crianças é a entrada num mundo novo. Para muitos pais é também uma nova realidade que se apresenta. Um especialista em Filosofia da Educação, Adalberto Dias de Carvalho, deixa alguns conselhos.

Ao entrarem para o 1.º ano naque-le que será o primeiro dia do resto das suas vidas no mundo das responsabili-dades, as crianças vivem momentos de ansiedade, mesmo se já passaram pelo jardim-de-infância. Mas também a família tem trabalho de casa para fazer.

“É um momento importante desde logo para a criança, mas também pa-ra os pais. Isto é um aspecto que não podemos esquecer e por vezes não é valorizado”, defende o especialista em Filosofia da Educação, Adalberto Dias

Primeiro dia de aulas causa nervoso miudinho às crianças e aos paisEntrada no mundo das responsabilidades e de ruptura em relação à família

de Carvalho.Tudo tem a ver com a condição hu-

mana: se o novo nos atrai também nos inquieta, crianças e adultos incluídos. Mas o que parece simples pode com-plicar-se se a angústia e ansiedade dos pais for projectada nos filhos, o que acontece frequentemente, segundo o catedrático do Porto.

“Quando os pais vêem os miúdos preocupados, inquietos, pensam que é uma preocupação apenas deles, mas muitas vezes está em conexão directa com o temor que os próprios pais têm e não identificam, mas as crianças as-similam de uma forma muito eviden-te”, refere.

A família vê normalmente a entrada na escolarização “também como um mo-mento de desapego, de desvinculação, de ruptura em relação à própria família e isso é sempre vivido de uma forma al-go complexa, pouco tranquila”.

“Era necessário os pais encararem ou identificarem as suas reservas, os seus temores para lidarem com eles bem pa-ra as crianças também lidarem correc-tamente”, sustenta.

Daí que a entrada na escola tenha muito a ver com tudo o que se passa antes de lá chegar. Se a criança já es-teve num jardim-de-infância e teve a experiência da ausência da família, a educadora terá um papel importante se lhe mostrar a escola nova e falar da tran-sição de uma forma adequada, criando curiosidade. Se assim for, a transição pode ser mais suave.

Mas mesmo nestes casos, a experi-ência do jardim-de-infância é mais tu-telar e próxima do tipo familiar do que a que vão encontrar no 1.º ano do en-sino básico.

“A mudança, esta alteração de es-tatuto, de expectativas, vai criar com-portamentos com alguma complexida-de”, explica.

Em casa, os pais devem ter o cuidado de falar com a criança sobre o que vem a seguir, prepararem com ela os mate-riais novos e criarem-lhe progressiva-mente autonomia, “um aspecto muito importante”.

“Autonomia é uma coisa que se cons-trói juntamente com as famílias e que não seja apenas por revolta, por sepa-ração abrupta. Se for construída por pequenos gestos e atitudes (a comer,

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vestir e calçar, por exemplo), a crian-ça vai enfrentar estes primeiros dias de uma maneira mais suave, mais natural”, afiança Adalberto Carvalho.

Recordando Freud, e não querendo dramatizar, o especialista recorda que a educação se faz por frustrações. “Te-mos de nos habituar desde cedo a en-frentar frustrações porque a vida não é apenas isso, mas vai-nos proporcionar muito isso”.

É “inevitável” a criança no primeiro dia de aulas sentir “o peso da ruptura, dos receios, das dúvidas e a frustração de não estar perto da família, da antiga

educadora, dos antigos colegas”, mas o fundamental é que “perceba, sinta e saiba que quando chegar a casa vai ter oportunidade de conversar sobre o que se passou na escola” e que já tenha ha-vido conversas antes, frisa.

É igualmente aconselhável, as crian-ças verem os encarregados de educa-ção a falar com os professores uns dias antes para se sentirem seguras.

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foto O MIRANTE

Quando se pensa em analfabetismo pensa-se em pessoas idosas. Pessoas que nasceram e cresceram antes da revolução de Abril. Não é o caso de Alexandrina Pereira. Tem 44 anos de idade e vive em Tomar. Abandonou a escola aos seis anos para tomar conta dos irmãos. Apesar de ser saudável e bem-disposta, não esconde a mágoa de não saber ler. Uma história da vida real num país em que as crianças já aprendem inglês e vão para a escola com computadores.

Elsa Ribeiro GonçalvesQuando estacionámos o carro de

O MIRANTE em frente a casa de Ale-xandrina Pereira, moradora no Bairro 1.º de Maio em Tomar, mesmo sem anun-ciarmos presença, a porta abriu-se de imediato. A mulher esboça um sorriso e convida-nos a entrar. Após dizermos ao que vamos mostra-se desapontada: “Ah! Pensava que me vinha oferecer empre-go”. Não identificou a repórter, apesar de esta se fazer transportar num carro identificado com letras garrafais. Primei-ro sinal do fardo que Alexandrina Pereira carrega aos 44 anos, fruto de nunca ter aprendido a ler nem escrever.

Natural de Tomar, Alexandrina che-gou a frequentar a 1.ª classe mas a mãe, que trabalhava sozinha no campo de sol a sol, precisava de alguém pa-ra tomar conta dos irmãos mais novos. Aos seis anos fazia a lida da casa, cozi-nhava, apanhava azeitona e ia ao mato buscar feixes de lenha à cabeça, conta quem só em adulta aprendeu a assinar o nome e a copiar palavras às quais não

Alexandrina tem apenas 44 anos de idade e não sabe ler nem escreverO drama do analfabetismo no país dos computadores Magalhães

atribui significado. Os tempos eram ou-tros, as prioridades também e os dias foram passando sem que regressasse aos bancos da escola. Melhor destino tiveram os seus irmãos que aprende-ram a ler e a escrever.

Quando recebe uma carta pede às filhas que a leiam e vai sempre ao su-permercado acompanhada pelo mari-do para não se enganar nas compras e, especialmente, nas contas. “Com o dinheiro já sei lidar melhor. Memorizei as cores das notas, o problema são as moedas pretas que não consigo ainda distinguir”, exemplifica. Atento à conver-sa, o marido, José Pereira, interrompe para contar um episódio. “Uma vez deu uma nota de cinco contos para pagar mil escudos e vinha-se embora sem o troco”, recorda de dedo em riste. “Foi uma tia que estava por perto que deu conta do engano”.

Mãe de quatro raparigas, avó de uma neta, Alexandrina casou cedo e como apenas conhecia a vida do campo teve dificuldade em arranjar emprego fora de casa. “Sabia que não podia esperar muito pois quem não lê é como quem não vê, pelo que tudo o que viesse era bom”. Foi o marido que tratou de lhe arranjar trabalho na Citaves, uma uni-dade de produção industrial de aves na Zona Industrial de Tomar e era ali que se sentia bem. Acabou por ficar dez anos até o desemprego lhe voltar a bater à porta.

“Um dia deram-me um papel para assinar e perguntei para que era por-que pensava que me estavam a mandar embora”, recorda. Afinal era o contra-to para ficar por tempo indeterminado. Um tempo indeterminado que já teve o seu termo. Agora procura trabalho. Qualquer trabalho que não implique saber ler ou escrever. Uma coisa mais difícil de encontrar do que agulha num

palheiro. Antigamente os empregadores pediam a 4ª classe. Agora o mínimo é o 9º ano. O analfabetismo é um estigma. Uma limitação. Uma prisão. Consultar os preços nas montras. Ver o horário do autocarro. Identificar as ruas pelos no-mes. Ler um aviso. Saber o nome de um café ou de uma loja através do letreiro na fachada. Levantar dinheiro ou fazer pagamentos no Multibanco. Perceber as instruções de um novo equipamen-to. Ler uma mensagem num telemóvel ou identificar quem está a ligar.

Alexandrina não assina nada sem perguntar para que é, um conselho que lhe deram e que faz questão de seguir. Quando tem que aviar uma receita pe-de sempre ao farmacêutico para escre-ver na caixa como deve tomar a medi-cação. Em casa o marido ajuda-a a de-cifrar a dosagem. Nunca lhe aconteceu nenhuma situação porque está sempre acompanhada. Um amparo, como al-guém precisa a quem falta um membro do corpo, para entender melhor o mun-do que a rodeia. E para que o mundo a entenda melhor também porque é difícil explicar que não sabe ler, lacuna atri-

buída normalmente a quem já tem cãs na cabeça ou mora em lugarejos mais recônditos.

“Quero muito aprender a ler”, refor-ça quem vai sabendo das notícias pela boca de quem a rodeia ou prefere ficar informada pela televisão, já que a ou-vir também se aprende. Ignora o que dizem as legendas mas quando sen-te curiosidade pergunta o que está lá. Quando olha para alguma revista cor-de-rosa apenas se pode limitar a apre-ciar o corte de cabelo ou a indumentária de quem aparece na capa. A memória vai sendo a sua melhor aliada no dia-a-dia. Os seus dias, agora, são passados a cuidar das flores.

Actualmente a frequentar a escola D. Nuno Álvares Pereira à noite no âmbito do programa “Novas Oportunidades”, Alexandrina Pereira está a fazer uma se-gunda tentativa para aprender a ler e a escrever. O ano passado já tinha tenta-do mas não lhe passaram o diploma por acharem que ainda tinha poucos conhe-cimentos adquiridos. Não conhece mais ninguém na sua situação mas não tem vergonha e sente que pode ser útil na sociedade se lhe derem uma oportuni-dade ou, seja, um emprego. “Seja nas limpezas ou a cozinhar”afirma.

MOTIVAÇÃO. Aos 44 anos, Alexandrina Pereira está a fazer uma segunda tentativa para aprender a ler e a escrever

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O primeiro dia de aulas de Ana Gas-par foi um dia “tenso”. “Estava muito nervosa, não sabia o que ia encontrar”, descreve. A própria ideia da figura do professor assustava-a. “Mas passou depressa”, conta. “Foi um dia de mui-ta socialização. Lembro-me que os pro-fessores fizeram uma roda e fizemos o jogo do lenço. Acabou por ser um dia fantástico”.

Ana Gaspar sempre gostou de estu-dar, embora considere que algumas das disciplinas que teve ao longo do seu per-curso escolar talvez fossem “dispensá-veis”. Não foi o caso das aulas do profes-sor Celso, seu docente no 11º e no 12º ano. “Além da matéria, foi um homem que nos deu lições de vida”. “Aprendi muito com ele”, refere, destacando que leccionava história e filosofia. “A estra-tégia dele era simples. No contexto da matéria, procurava adequar os conteú-dos à realidade. Foi um homem espec-tacular”, diz com entusiasmo.

A educadora de infância sublinha que nunca se arrependeu do tempo de estu-do, salientando que este lhe deu as ba-ses para a vida prática. Hoje vê os mais pequenos a darem os primeiros passos

“No primeiro dia de aulas dia jogámos ao lenço e foi muito divertido”Ana Gaspar, 42 anos, directora Colégio Jardinita, Alcanede

O primeiro dia de aulas de Fátima Pi-res foi “emocionante”. “Fui estudar para o Colégio de Santa Maria, aqui na cidade. Já conhecia algumas meninas e foi emo-cionante porque a ânsia de aprender era muita e era tudo novo”, conta.

Daquele seu primeiro dia recorda, apenas que lhe chamou a atenção o facto da professora ser freira. “A Irmã Estela, que morreu o ano passado. Te-

“Os jovens de hoje vivem num mundo muito competitivo e exigente”Fátima Pires, 50 anos, secretária English 4 U, Torres Novas

no mundo do conhecimento e nota que a maioria regressa das férias com mui-tas saudades do colégio.

nho muito boas memórias”. Foi através dessa religiosa que acabou por entrar para as Guias de Portugal, uma organi-zação do tipo escutista.

Outro professor que a marcou foi Na-tal da Luz, um docente de História com o qual aprendeu a gostar da disciplina. “Ele dava aulas de uma forma muito lúdica”, comenta. “Tinha uma manei-ra de ensinar as coisas que fazia com que nunca nos fossemos esquecer. Era como se fosse brincadeira. Era cativan-te”, afirma.

Formada em Assessoria e Gestão de Empresas diz que valeu a pena todo o seu percurso escolar. “Mesmo que a pessoa em termos profissionais não venha a ter o reconhecimento que achava que devia ter, vale sempre a pena pelo conhecimen-to que se adquire. São coisas que ficam e está-se sempre a aprender”.

Os jovens estudantes de hoje não são muito diferentes dos do seu tempo. “A característica essencial é a mesma, mas o contexto onde vivem é diferente”. “Têm mais distracções e talvez seja mais difí-cil”, refere. No entanto reconhece que a tarefa dos estudantes de hoje é mais complicada que a da sua geração. “Esta época é mais exigente. Os jovens têm acesso a muito mais informação. Exige-se-lhes muito. Há mais pressão. Por ou-tro lado existe mais competição a nível escolar e nem sempre ela é tão saudá-vel como seria conveniente”.

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É espanhola, “catalã em primeiro lu-gar”, com formação nas ciências sociais, mas é em Torres Novas que trabalha. Maria Dolores Barbera lembra que o seu primeiro dia de aulas foi muito tranqui-lo, uma vez que foi estudar para uma escola onde a mãe era professora. “Não tive medo porque ia para um sítio que conhecia. Só no 5º ano é que houve aquele receio, porque era tudo desco-nhecido”.

Foram os tempos no colégio de frei-ras que mais a marcaram. “Lembro que levávamos uniforme, era um colégio di-ferente, um mundo completamente di-

ferente da escola primária. Talvez por isso a imagem mais marcante enquan-to jovem estudante, tenha sido a de um grande grupo de freiras, à espera que todas as alunas entrassem na sala.

Recorda sobretudo as religiosas mais divertidas e as aulas de bordados, que ninguém gostava. “Tínhamos uma co-lega que gostava de bordar e que nos passava os bordados já feitos”, comenta rindo. “Foi um tempo muito bom”.

Já na universidade teve colegas que a cativaram de alguma forma pela sua amizade e convivência, mas recorda so-bretudo o professor de Filosofia e Psi-

José Rui Belo não se recorda do seu primeiro dia de aulas. “Eu não estava em Portugal”, explica. Os seus primeiros passos no mundo do conhe-cimento foram na Austrália e só aos oito anos veio para Portugal. Desses tempos pós-regresso lembra-se bem.

“Vinha da Austrália e nem sabia falar português por isso foi complicado”José Rui Belo, 35 anos, director Colégio Alto Pina, Rio Maior

“Em Portugal perde-se mais tempo a preencher papéis que a dar aulas”Maria Dolores Barbera, 50 anos, proprietária English 4 U, Torres Novas

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Todas as crianças são inteligentes e ser mau aluno não é sinónimo de in-competência, pode é resultar da falta de motivação e por isso é que estudantes muito maus podem passar a muito bons, garantem os especialistas. “As crianças só não gostam da escola quando a es-cola não gosta delas”, afirma o psicólogo Eduardo Sá, assegurando que “todas as crianças são inteligentes” e que os maus alunos são “sintoma ou consequência de factores educativos, familiares e de oportunidades”.

O segredo para alterar percursos parece ser a motivação: “Quando as cri-anças sentem que alguém se interessa por elas e reconhece as suas capaci-dades, ficam motivadas. Todos nós só nos sentimos motivados quando estamos a ganhar”, alerta Eduardo Sá.

Pedro Rosário, investigador da Escola de Psicologia da Universidade do Minho, explica que “a motivação não existe à cabeça, gera-se pela cumplicidade com os conhecimentos” e para a alcançar,

Como se faz um bom aluno

cologia. Foi aquele que a fez perceber “que por vezes as coisas não são tão reais quanto pensamos”.

“Teria estudado mais”, destaca, mas como namorava um português teve que fazer uma opção. “Gosto muito de dar aulas, todos os alunos são diferentes, mas gosto de sentir que querem apren-der mais”.

Entre Portugal e Espanha, não no-ta grandes diferenças no ensino. “É a mesma coisa. Varia muito é a burocra-cia. Em Portugal perde-se muito tempo a preencher papéis em vez de se dar aulas como deve ser”.

às vezes, é preciso trabalho acrescido. O especialista lidera um grupo respon-sável por projectos de desenvolvimento de competências (disponíveis em www.guia-psiedu.com) e explica que as pes-soas “têm vários níveis de competências” que precisam de desenvolver a veloci-dades diferentes.

“A competência é como se fosse um músculo, desenvolve-se. Há alunos que conseguem aprender determinada coisa numa hora e outros que precisam de qua-tro. É como no treino físico”, sublinha. Assim, “os maus alunos que passaram a ser bons já tinham a competência, mas não estava desperta a apetência, ou porque as matérias não estimulavam ou porque os professores não eram mo-tivadores”.

Álvaro Almeida Santos, ex-presidente do Conselho de Escolas, professor há 27 anos, considera que um aluno com uma boa aprendizagem nos dois primeiros anos de escolaridade, “normalmente mantém-se motivado nos restantes”. Quando essa base não existe, os prob-lemas aparecem na transição para o ter-ceiro ciclo, “bastante mais exigente”, e “se o aluno não tem capacidade para trabalhar, a adaptação é difícil”.

Com um “apoio próximo e diferen-

ciado”, a escola consegue, por vezes, fazer a diferença, sempre com o apoio da família, que deve “encorajar, não re-criminar e responsabilizar”. “Quando o aluno encontra uma zona de desenvol-vimento próxima consegue cumprir de-terminados objectivos. Motiva-se e fica preparado para outros objectivos e pos-sibilidades”, refere o docente.

Para resolver o insucesso escolar, Luís Picado, especialista em Psicologia da Educação, defende “uma escola difer-ente”, formada por professores, pais e outros técnicos (educadores sociais, ani-madores socioculturais e psicólogos). “Acredito num trabalho transdisciplinar, onde as pessoas pensam em conjunto sobre os problemas e soluções, e no en-tendimento de uma escola comunidade. Só as escolas apelativas para os alunos e famílias podem promover o sucesso educativo”, refere o autor do estudo “A Indisciplina em Sala de Aula” e do livro “Ansiedade na Profissão de Docente”.

Referindo que “está provada a im-portância da motivação na aprendizagem e da falta da mesma no insucesso esco-lar”, Luís Picado alerta que “a habilidade” nesta matéria “consiste em promover os motivos certos que conduzam o aluno a agir, e a agir bem”.

te estudou Biologia em casa, sozinho, e assistiu a aulas de Química à noite. Entrou em Psicologia na universidade, profissão que também exerce. Fora este pequeno percalço, não se arre-pende de ter estudado e do caminho que escolheu. Na memória recorda o professor de Química e um professor do 4º ano do curso de Psicologia, do-centes que tinham muita facilidade em transmitir o conhecimento. “Saber co-municar com os alunos é muito impor-tante”, realça.

Comparando os jovens de hoje com os do seu tempo, comenta que já hou-ve alturas em que notou mais diferen-ça no comportamento. “A maior parte dos alunos já volta a respeitar a esco-la, os professores”, nota. “É a minha opinião formada a partir do que vou observando”, justifica.

“Foram tempos complicados. Não fa-lava português; não conhecia ninguém e como lá os currículos eram muitos diferentes foi difícil. Em língua portu-guesa estava mal. Noutras matérias estava mais avançado que os meus novos colegas”, explica.

Com o tempo rapidamente se adap-tou à nova língua. Da sua época de es-tudante apenas lamenta ter seguido a área da contabilidade no secundário. Quando finalmente se apercebeu que não poderia estudar mais nada além da área da Economia, decidiu dar uma volta a esse destino. No ano seguin-

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A sua vida académica começou nos Es-tados Unidos da América e só aos 15 anos veio para Portugal. Do seu primeiro con-tacto com a escola memorizou sensações. “As sensações de medo e de inseguran-ça. De não querer largar a mão da minha mãe”.Mas o receio foi atenuado por uma outra sensação que lembra a sorrir. “Re-parei também numa rapariga, foi logo ali uma paixão”, refere rindo. E foi sobretudo um dia de descoberta, pois até ali havia vivido muito fechado em casa.

Do ensino americano para o portu-guês notou grandes diferenças quando, já adolescente, se viu num sistema mais exigente do que aquele que estava habi-tuado. “Nos Estados Unidos havia menos rigor em termos de avaliações, mas nas aulas havia muita criatividade”, explica.

“É uma pena não se estimular mais a criatividade dos estudantes”David Almeida, 33 anos, professor de Inglês na “Linguacultura”, Santarém

“Fartei-me de chorar”, refere logo Fi-lipa Duarte quando lhe perguntam pelo seu primeiro dia de aulas. A razão não era propriamente o separar-se da mãe, mas o facto de um professor se ter mascara-do de palhaço. “Fartei-me de chorar por causa dele. Fiquei sentada sozinha numa carteira e ele veio sentar-se ao meu la-do”. O terror só terminou quando a mãe foi pedir ao professor que se fosse embora e sentou-se com ela.

Terminou há pouco o 12º ano e aguarda agora os resultados da candidatura à uni-versidade, para o curso de Contabilidade e Fiscalidade. Com um percurso académico com alguns sobressaltos, afirma contudo que vale sempre a pena aprender. “Acho que o saber não ocupa lugar”.

“Até ao 6º ano fui sempre boa aluna e estava regularmente no quadro de ex-celência. Com a morte da minha avó que me acompanhava nos estudos, a instabi-lidade fez com que o cenário se alteras-

se. Daí para a frente foi um desastre. E as más companhias também não ajuda-ram”, confessa.

E tem outros arrependimentos na lista. “Se voltasse atrás e soubesse o que sei hoje, não teria seguido a área de Huma-nidades. A professora de Físico-Química do 9º ano embirrou comigo e deu-me a única negativa que tirei naquele ano. Isso fez com que eu acabasse por não seguir para ciências”.

Dos inícios dos tempos de estudante tem na memória o professor João Maria de Oliveira. “Foi o melhor professor que podia ter tido”, sublinha. “Ainda era do método antigo e nós aprendemos o que tínhamos que aprender. Não se limita-va ao plano curricular e procurava puxar por nós”. O docente deveria ter-se refor-mado quando Filipa Duarte estava no 2º ano, mas os encarregados de educação pediram-lhe para que permanecesse com a turma até que seguissem para o 2º ci-

“Assustei-me com o professor mascarado de palhaço e fartei-me de chorar”Filipa Duarte, 24 anos, funcionária da Livraria Garrett, Cartaxo

clo e assim foi.Olhando os mais novos, nota que estes

pouco se esforçam nas aulas. “Tentam ser adultos mais cedo e isso pode prejudicá-los”, alerta.

“Tivemos a oportunidade de escrever po-esia, acho que o meu prazer pela leitura começou na escola”.

Já em Portugal, apesar de notar à par-tida um sistema de ensino mais exigente, este acabou por ser “uma desilusão”. “Não se estimula a criatividade”, nota. Apesar de algumas dificuldades a nível da escri-ta do português, acabou por achar tudo bastante fácil e tirou boas notas.

Formado em Português-Inglês, um

curso que tirou porque “gostava” e não a pensar num emprego futuro, refere que o gosto pela leitura se desenvolveu com uma professora da 4ª classe. “Incentiva-va os alunos, até com pequenas compe-tições para ver quem lia mais e não fazia juízos de valor quanto ao tipo de leitura. Tudo valia, mesmo que fosse banda-de-senhada. Foi óptimo” declara.

“A geração de hoje tem muitas mais distracções. Há excesso de informação e há que fazer várias tarefas ao mesmo tempo. É uma pena que não consigam es-tar quietos e em silêncio consigo próprios porque o desenvolvimento da identidade passa por isso também”, conclui.

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