suplemento pernambuco - entrevista com amilcar bettega

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  • 7/25/2019 Suplemento Pernambuco - Entrevista com Amilcar Bettega

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    Suplemento Cultural do Dirio Oficial do Estado de Pernambuco n - Dezembro - Distribuio gratuita - www.suplementopernambuco.com.br

    MANUAL DE LEITURA DE NUVENS | A CLNICA DO AFETO DE ALISON BECHDEL

    KARINA

    FREITAS

    TRS ESCRITORES FALAM DO ASSOMBRO DA CRIAO LITERRIA

    PALAVRA FANTASMA

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    PERNAMBUCO, DEZEMBRO

    CARTA DO EDITOR

    com a definiopalavra fantasma quea jornalista Julya Vasconcelos d incio

    matria de capa deste ms do Pernambuco.A reprter viajou pelo interior do Estado en-

    trevistando autores que fogem das expecta-tivas da palavra escrita e fazem sua literaturacom o corpo. Ou mesmo com a alma. Paul

    Zumthor, estudioso das poticas da voz,

    dedicou bastante energia aos estudos do usoda palavra falada nas produes literrias.O autor pesquisou, dentre outras coisas, asperformances dos griotsdo Burkina-Faso, dosrakugokado Japo e dos repentistas brasileiros.Ele explica que, na Idade Mdia, os termosliterattie iliterattino estavam exatamente li-gados ao saber ou no escrever. Eram na

    realidade dois comportamentos diferentesem relao palavra. Um ligado autori-

    dade, outro ligado s sensibilidades. Formasdistintas de regulao da conduta: uma pelo

    raciocnio, outra pelo corpo, aponta Julyana sua investigao diante de como a palavra

    se manifesta para alm da escrita.Nessa edio, o mestre em comunicao

    Rafael Dias prope uma leitura curiosa: a das

    nuvens que aparecem nos filmes de Gus Van

    Sant. Brumas que so linguagem.

    GALERIA

    GOVERNO DO ESTADO

    DE PERNAMBUCO

    Governador

    Eduardo Campos

    Secretrio da Casa Civil

    Francisco Tadeu Barbosa de Alencar

    COMPANHIA EDITORA

    DE PERNAMBUCO CEPE

    Presidente interino

    Brulio Meneses

    Diretor de Produo e Edio

    Ricardo Melo

    Diretor Administrativo e Financeiro

    Brulio Meneses

    CONSELHO EDITORIAL

    Everardo Nores (presidente)

    Lourival Holanda

    Nelly Medeiros de Carvalho

    Pedro Amrico de Farias

    SUPERINTENDENTE DE EDIOAdriana Dria Matos

    SUPERINTENDENTE DE CRIAOLuiz Arrais

    EDIORaimundo Carrero e Schneider Carpeggiani

    REDAODebra Nascimento, Gilson Oliveira e Mariana Oliveira(reviso), Mariza Pontes e Marco Polo (colunistas)

    ARTEJanio Santos e Karina Freitas (diagramao e ilustrao)Sebastio Corra (tratamento de imagem)

    PRODUO GRFICAEliseu Souza, Joselma Firmino, Jlio Gonalvese Sstenes Fernandes

    MARKETING E PUBLICIDADEAlexandre Monteiro, Armando Lemos e Rosana Galvo

    COMERCIAL E CIRCULAOGilberto Silva

    PERNAMBUCO uma publicao daCompanhia Editora de Pernambuco CEPERua Coelho Leite, 530 Santo Amaro RecifeCEP: 50100-140

    Contatos com a Redao3183.2787 | [email protected]

    O elemento figurativo, ou aquilo que pode

    conter de linguagem narrativa, cede lugar,

    assim, para as possibilidades do indizvel,um tipo decontar contemporneo rarefei-

    to. Nesse caso, e tambm Elefante(2003), quecompleta dez anos de lanamento, aps serlaureado com a Palma de Ouro no Festival de

    Cannes, compondo, com ltimos dias(2005),a Trilogia da morte(Death trilogy), Van Sant pa-rece querer nos comunicar algo, dizendopouco. Diferente de seus filmes anteriores

    que oscilavam entre atributos abertamentecomerciais, como Gnio indomvel(1997) ouUm sonho sem limites(1995), e os dilogos coma literatura da Gerao Beat, a exemplo de

    Drugstore cowboy(1989) e At as vaqueiras ficamtristes(1993), a imagem vansantiana em Gerryagencia uma disposio esttica desviante,com seus movimentos dilatados, tomadasde longa durao e poucos dilogos., atesta

    Rafael em seu ensaio.Nessa edio, ainda, Raimundo Carrero

    faz anlises duplas: investiga a linguagem de

    Virginia Woolf e se debrua sobre a estreia

    literria de Rogrio Pereira, editor do Rascunho.

    Boa leitura e at 2014!

    COLABORADORES

    E M A I S

    DANIEL ANTNIOGALERIAO Borges do jornalista Daniel Antnio foi encontrado caminhando pela

    estao de metr Cit, em Paris.

    Instagram: danielantonio

    Rafael Dias, jornalista e

    mestre em comunicao

    social pela UFPE

    Adelaide Ivnova, fotgrafa e jornalista, escreve para o blog vodcabarata.blogspot.com. Chico Ludermir, jornalista e fotgrafo, participou do ltimo Spa das Artes com aexposio Entre. Diogo Guedes, jornalista de literatura do Jornal do Commercioe mestre em Comunicao Social pela UFPE. Reginaldo Pujol Filho, jornalista, ps-graduado

    em Artes da Escrita na Universidade Nova de Lisboa e autor dos livros Quero ser Reginaldo Pujol FilhoeAzar do personagem, no?

    Ana Paula Maia, autora

    de vrios livros, como

    Entre rinhas de cachorros

    e porcos abatidose O

    trabalho sujo dos outros

    Julya Vasconcelos,

    jornalista e mestranda em

    artes visuais pela UFPE

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    Ana Paula Maia

    Fazia tempoque eu queria escrever sobre o tema:matadouro. Depois de escrever livros sobre bom-beiros, cremadores, lixeiros, operadores de bri-tadeira, retomei ao tema, abatedores, abordadono meu terceiro romance Entre rinhas de cachorrose porcos abatidos, mas de uma forma mais intensa.Decidi que era a hora de escrever sobre algo queme atingisse com mais fora. Queria o confrontoem nvel mais pessoal. Esse era o momento paraescrever no somente sobre a morte, mas sobreaqueles que se alimentam dela, ou seja, eu e voc,que comemos carne.

    O incio disso tudo, se deu em idas ao aouguedo supermercado. Enquanto eu permanecia nafila aguardando por alguns bifes, s conseguiapensar no boi. E principalmente, no sujeito queo havia matado.

    s vezes, na fila, eu desistia e ia embora. Outrasvezes, eu levava os bifes e comia, sem pensar emnada disso.

    Aos poucos, o assunto foi crescendo dentro demim e decidi escrever. Foi ento que surgiu umproblema: eu no conseguia entrar no matadouroe encarar o boi; no era possvel desafi-lo.

    Esperei.Meses depois, recebi um convite do escritor Ldo

    Ivo, para escrever um conto para a Revista Brasi-leira, editada pela Academia Brasileira de Letras.Eu podia escrever sobre qualquer tema. Tinha totalliberdade. Em poucos dias escrevi o que, hoje, o primeiro captulo do livro, salvo a insero dealgumas pginas tempos depois.

    Na poca, pensei: se vou publicar na revista daAcademia pela primeira vez, que seja na companhiado meu parceiro, Edgar Wilson.

    E foi assim, que ele, o Edgar, entrou na estria ecomo bom parceiro de fico que ele , me pegoupela mo e consegui finalmente meter os dois ps nomatadouro para confrontar a mim mesma, e para aminha surpresa, o prprio Edgar Wilson, confrontaa si de um modo que eu ainda no conhecia.

    Sua presena vital neste livro. Fazia tempo,desde o meu terceiro romance, que no escreviamais longamente sobre ele. Confesso que aindaestou impregnada deste romance, impregnada docheiro dessa fazenda de abate e do olhar vagueantee cinzento do Edgar. Hoje, eu o conheo melhor.

    O Edgar Wilson nasceu h quase dez anos. Namaioria dos meus livros, ao menos em algum mo-mento, tem o olhar perpassado por ele. Enxergoatravs dele e ao mesmo tempo estabeleci umalegtima relao de confiana com esse sujeito.

    Matadouro Touro do Milo o nome do matadourofictcio do livro. Eu me mudei para aquele cenrio e

    observava a vida daqueles homens, ainda que poruma hora, diariamente.

    Helmuth, Bronco Gil, Burunga, Velho Emetrio,Milo, Santiago, Vladimir, entre outros, foram envol-vidos numa trama, em que o estranho comporta-mento do gado atinge os homens daquele lugar e osmoradores da regio.

    Pela primeira vez, o elemento sobrenatural apareceem um dos meus livros. algo que eu j queria terusado faz tempo, mas nunca se adequava estria.Sem contar que, usar um elemento sobrenatural nasminhas estrias muito delicado, j que transito numuniverso naturalista na maior parte do tempo.

    Esse era o desafio: Como fazer? Tentei no dar im-portncia a esse elemento, no torn-lo a questo aser resolvida no livro, mas me concentrar naquilo quemais gosto: os personagens.

    Aos poucos, os dias e as noites transcorrem entre

    dilogos e a rotina da linha de abate. Assim, quaseinsuspeito, o sobrenatural encontra seu lugar, entrana estria, sem desestabilizar a naturalidade do textoou da trama. Tudo se encaixou como eu queria, comsutileza, mistrio, e algumas lacunas a serem preen-chidas pelo leitor.

    Foi arriscado, mas eu precisava assumir os riscoscomo escritora.

    De gados e homenstem um pouco dos meus dois l-timos livros, mas ainda assim, uma narrativa quese adequou ao espao-tempo daquele matadouro.Confesso que h muito de mim derramado nos par-grafos do livro, mas eu nunca confesso por completo,pois o que h de mais pessoal eu no digo onde est.Assim, tudo fica encoberto, ainda que parcialmente,e eu posso continuar espiando atrs de um arbusto arotina dos meus personagens.

    Durante todo o processo de pesquisa e escrita, deixeide comer carne. Era uma prtica impossvel naquelesdias. Cheguei a pensar que nunca mais o faria.

    Meses depois de concludo o livro, voltei a comercarne. Ainda estranho. s vezes, desisto, em outrosmomentos, sigo em frente. Mas sempre penso no boi.E no sujeito que o abateu. De certo, fao parte de todaa matana cada vez que como um hambrguer.

    De quandos conseguiapensar no boiEm seus livros, a autoragosta de colocar ospersonagens em situaes

    extremas. Desta vez, olimite acontece no ambientesufocante de um matadouro

    BASTIDORESSXC/ DIVULGAO

    De gados e homens

    EditoraRecordPginas 128PreoR$ 30,00

    O LIVRO

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    RESENHA

    trabalho nada sedentria da personagem, que antes de tudo uma estratgia de fuga: precisa fazermuito, o tempo inteiro, para no precisar pensar,para desabar para dentro do sono sem madrugadasde barulhento silncio. Mas os detalhes do seuincmodo aparecem aos poucos. A infeco estapenas no comeo. So muitas pginas at que ossintomas da derrocada de Dore comecem a emergir.

    Dore uma camareira de hotel assombrada porpalavras: as cartas que recebe do marido na priso,tentando explicar que estrangulara seus trs filhosno por um acesso de loucura; pelo contrrio: poruma Convico com maisculas de que essa era anica coisa a ser feita.

    Encurralada por palavras absurdas, em determi-nada altura, Dore se envergonha das suas prpriaspalavras e acaba confessando: Eu sei que essaspalavras j esto mortas de to gastas. Mas con-tinuam verdadeiras. No fundo, todas as palavrasesto mortas de gastas h tempos. No entanto, do esforo de ressuscitar o sentido do bvio que feita a literatura de Alice Munro. De vidas gastas esecas so extradas as grandes interjeies.

    Quando Alice Munro foi anunciada vencedorado Prmio Nobel de Literatura, muito se falou dofato de termos uma contista, enfim, sentada notopo do mundo literrio. Mas o que me chamouateno foi outro detalhe: a vitria para uma prosacontida, sem (aparentemente) grandes inovaes,sem bandeiras polticas ostensivas; apenas munidada crueldade com que observa seus personagensentrarem em estado de putrefao. Diante disso,talvez outra escritora canadense fosse bem maisinteressante para o Nobel, Margaret Atwood, essasim detentora de uma literatura exuberante e cheia

    Contista, Alice Munro no tem pressa. J queconsiste um clich sem tamanho a mxima deque o conto deve vencer o leitor por nocaute; aescritora canadense nos conforta ao lembrar queregras at se aplicam, mas so desnecessrias,coitadas, em termos de arte. Ento, por que noum conto vagaroso, um poema que d de ombrospara a conciso da palavra ideal ou um romancedescrente de tarefa de abocanhar um universointeiro? Foram algumas perguntas que me fiz, halguns anos, quando me deparei com as histriasarrastadas de Felicidade demais obra que me fisgou jpelo ttulo, com sua coragem de igualar a felicidadeao enfado de tudo aquilo que se excede ou que seexcede ainda que pela ausncia.

    Alice Munro no s tem pouca pressa. Tambmescreve tal e qual uma infeco silenciosa, que vaiocupando um corpo inteiro, prolongando a apariodos sintomas iniciais. Uma doena que ganha tempopara no perder a vtima. Em seus textos, so rarasas imagens retumbantes ou os planos abertos.

    Observe os primeiros pargrafos de Dimen-ses, narrativa que abre Felicidade demais:

    Dore teve que pegar trs nibus um para Kin-cardine, onde esperou o que ia para Londres, ondeesperou um de linha que a levou ao local. Comearaa viagem num domingo s nove da manh. Devidoaos perodos de espera entre os nibus, levou quaseat as duas da tarde para percorrer aqueles poucomais de cento e sessenta quilmetros. Todo aqueletempo sentada, tanto no nibus quanto nas esta-es, no era algo que a incomodasse. Sua jornadade trabalho no era nada sedentria.

    A partir desse incio em pequena angular, co-meamos a entrar em contato com a jornada de

    JANIO SANTOS SOBRE FOTO DE DIVULGAO

    De vidasannimas feita a ficoA dor banal de todosos dias nutre a obra da

    canadense Alice MunroSchneider Carpeggiani

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    a impresso de que esteja falando dela prpriaou de algum em particular. como se o tema dasua narrativa fosse j to de domnio pblicoque particulariz-lo soaria de uma redundnciaarrasadora. Sua velhice substantivo comum, substrato de anonimato.

    Mais que um susto, na verdade, a velhice umritual qualquer do cotidiano, tal e qual frequentaro culto, reencontrar os de sempre, perder e reno-var pessoas ou despertar e anoitecer. Como seuspersonagens vivem existncias diminutas, banais,as fases da vida merecem rituais, porque no hnada fora dela, no h nada fora do que j existe.

    Um dos contos de Querida vida, que a Companhiadas Letras lana este ms (a traduo ficou por

    conta de Caetano Galindo, que traduziu o Ulisses,do Joyce), a morte fsica colocada no foco da tra-ma, j em seus ltimos momentos, amortecendoe aniquilando tudo o que o leitor acompanharanas pginas anteriores. S ao final do texto quedescobrimos que ele trata do ritual de uma crianaa caminho de ver seu primeiro morto. No caso, suabab, uma personagem de vida fora dos padres dargida sociedade em que Alice Munro faz semprequesto de ilhar seus personagens.

    Como se trata da importncia de uma viso eno necessariamente da importncia da vida pre-gressa dos envolvidos , o conto batizado apenascom o solitrio e carnal substantivo O olho, ttuloque parece enfatizar o clmax do primeiro encontrode algum com a morte para alm de qualquermetfora amortecedora:

    Tinha um caixo na sala o tempo todo mas eu

    estava achando que era outra coisa. Por causa daminha falta de experincia eu no sabia exatamentea cara de uma coisa dessas. Uma prateleira de aco-modar flores, aquele objeto de que a gente estavase aproximando podia ser, ou um piano fechado.

    Talvez as pessoas que estavam em volta tivessemdado algum jeito de disfarar o tamanho e o formatoe a funo real daquilo. Mas agora as pessoas es-tavam respeitosamente abrindo caminho e minhame falou com uma nova voz, muito baixinha.

    Agora, vem ela me disse. A delicadeza dela mesoou odiosa, triunfante.

    Ela se abaixou para olhar meu rosto, e isso, eutinha certeza, era para evitar que eu fizesse exata-mente o que tinha acabado de me ocorrer ficarcom os olhos bem apertados. A ela desviou o olharde mim mas ficou com minha mo bem presa nasua. Eu acabei conseguindo baixar as plpebras

    assim que ela tirou os olhos de mim, mas no fecheiat o fim por medo de tropear ou de que algumme empurrasse bem para onde eu no queria ir.Pude ver s um borro das flores rgidas e o brilhoda madeira envernizada.

    Quando a criana olha bem aquilo que se en-contra dentro do caixo, tentando encontrar algumvestgio da bab que um dia conhecera, que um diaestivera ao seu lado, Alice Munro nos infeccionapela derradeira vez, mas no com o espanto fantas-magrico que poderia emergir de um corpo cercadode flores num caixo. Mas pelo que separa e rachaao meio os que esto aqui dos que j foram ou dosque precisam ir, desesperadamente ir:

    Alguma coisa se mexeu. Eu vi, a plpebra delaque estava do meu lado mexeu. No estava abrindoou abrindo pela metade, nada assim, mas erguendos um nadinha como que para permitir, se voc

    fosse ela, se voc estivesse l dentro dela, quevoc conseguisse enxergar por entre os clios. Spara distinguir talvez o que era claro l fora e oque era escuro.

    Eu no fiquei surpresa na hora e nem um poucoassustada. Imediatamente, essa viso se encaixouem tudo que eu sabia da Sadie e de alguma ma-neira, tambm, no que quer que a experincia mereservasse de especial.

    A minha Alice Munro mais assustadora, no en-tanto, justamente a das histrias de O amor deuma boa mulher, ttulo que poderia soar como umaironia, mas que, no decorrer da leitura, percebemoso quanto ele guarda apenas o que suas palavrasguardam: o amor pode ser bom; a vida que nosabe o que fazer com ele. O amor de uma boa mulherum livro assustador, pois um livro de constataesirremediveis: uma idosa percebe a degradao queos anos trouxeram ao seu corpo, um casal se deparacom a vertiginosa perda de interesse sexual... Olhare perceber a decadncia consiste, na verdade, nagrande trama de horror que um autor pode contar.Mas para nos convencer a abrir os olhos, precisocalma. Pacincia. E at alguma seduo. Por issorepito: Alice Munro no tem pressa alguma.

    de sinuosidades. Alice Munro , h dcadas, umaobservadora esttica diante do mesmo ponto.

    Num artigo publicado no Guardiansobre a con-terrnea, Margaret Atwood escreveu que nos anos1940 e 1950 era quase impossvel pensarmos numaescritora canadense. E mais: numa canadense bem-sucedida. As duas constituem vozes de exceo,ainda que distintas. Se Margaret Atwood se interes-sou na investigao at mesmo da fico-cientfica;Alice Munro preferiu o assombroso de olhar o banale encontrar nele algum tipo de Graa (no sentidoreligioso e de alumbramento do termo).

    No trabalho de Munro, emoes irrompem.Preconceitos so lanados por terra. Surpresasproliferam. O inslito toma conta. Atos maliciososacabam tendo consequncias positivas. A salvaochega quando menos esperada, e das formasmenos peculiares, escreveu Atwood.

    VOYEUR DA MORTE curiosa certa proximidade da canadense comoutro nome sempre levado em conta na corridapelo Nobel, o norte-americano Philip Roth. Emambos, o foco de interesse parece ser o desejo decolocar uma lupa na degradao fsica e moral(ambas, em geral, ocorrendo de forma paralela).Roth, em seus ltimos livros, tem se dedicado ainvestigar os (usaremos um termo mais ameno)inconvenientes da velhice, como se estivessedescrevendo a si prprio, contando para os leitoreso que encontra a cada dia no espelho. Sua obra setornou o olhar assustado sobre si prprio.

    No entanto h uma diferena crucial entre osdois na forma de colocar a velhice no centro dainvestigao literria: Alice Munro jamais passa

    Assim como PhilipRoth, a ganhadorado Nobel deliteratura desteano coloca a mortecomo um dos temas

    do seu trabalho

    Vida querida

    EditoraCompanhia das LetrasPreoR$ 37,00

    O LIVRO

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    Recorrncias,

    repeties etramas circulares

    ENTREVISTAAmlcar Bettega

    Entrevista a Reginaldo Pujol Filho

    Barreira talvezuma palavra universal, comgrafia e pronncia semelhantes em diversosidiomas (barriere, barrera, bary, bariraetc.),conta Amlcar Bettega Barbosa. E nos diz quetambm so universais as barreiras presentesno seu primeiro romance, Barreira, sejam elasas impostas pela palavra (ou por sua ausn-cia), pela distncia, pelas geraes, culturas,ideias de representao do real. Ou mesmo abarreira entre o livro que se quer escrever eaquele que se consegue escrever, como dizo escritor, hoje residente em Pequim. No seiqual livro pretendia Amlcar, mas sei do livroBarreira, que arrisco definir como uma esculturaliterria, feita sobretudo por sua forma e por

    Aps um livro de contos que ganhou o Prmio PortugalTelecom de Literatura, o autor retorna com o desafio do seuprimeiro romance, em que ironiza com vrios clichs

    seus espaos vazios. Ou como 253 pginaspreenchidas com o fracasso da palavra, oucom o ressabio do fracasso para citar umade suas epgrafes. O certo que este livroque o autor acha que pede certa parceria doleitor, no sentido de que nem sempre a leituravai ser fluida, prazerosa, que s vezes ele, oleitor, pode at ser tentado a largar o livroou que imperfeito, bastante imperfeito,com alguns excessos de um lado e lacunasde outro, trata-se de um dos grandes ro-mances brasileiros de 2013, que merece seranalisado alm da coleo Amores Expressos,que permite diversas e intensas leituras. Emotivou a seguinte conversa com o autor.

    Nota de rodap: este um papo entredois gachos, prepare-se para ler tu foi,tu fez, tu escreveu etc.

    EmBarreira, surgem vrios nveis de clichs:do turismo (e guias de viagem), das artesplsticas (e sua crtica), contracapas deromances etc. Acha que os dias de hojeso regidos por falas vazias de sentido eautomatizadas?S no sei dizer se isto privilgio do nossotempo. Talvez haja uma acentuao dissoagora, no sei. Tenho a impresso que a falavazia, o bla-bl mecnico, a repetio declichs, faz parte da nossa, por vezes patticae quase sempre fracassada, maneira de(tentar) comunicar. Para dar um exemplono muito longe no tempo, Beckett fez desse

    tema a sua obra (estupenda). Claro que sema genialidade de Beckett, e minha maneira,falo disso tambm no Barreira. A barreirana comunicao uma questo presenteno livro inteiro, um dos seus pilares.Agora, importante ter em conta queo clich est sempre baseado em umfundo de verdade, ou de realidade; oproblema quando esse fundo real secristaliza (e justamente vira clich), comose fosse uma parede, e impede de ver arealidade que continua a se mover portrs. Porque a realidade no fixa, alis,toda a tentativa de retrat-la, como umromance, ou um filme ou uma fotografia,tem que levar em conta essa mobilidade.Mais uma coisa sobre clichs: apesar da nossacrtica, eles fazem parte de uma espcie deestratgia de comunicao, so usados, porexemplo, para preencher silncios que, seintransponveis, poderiam pr fim a umacomunicao que, levada adiante dessaforma, at pode chegar a avanar sobre basesmais autnticas depois. Tambm servem deterreno comum quando os interlocutoresso totalmente desconhecidos, podemservir como espao de aproximao.

    Em 2012, te perguntei E o ttulo do livro?.Lembro que tu contou a histria que envolvea palavra barreira. Pode falar sobre isso?Bariera, assim mesmo, em polons, ottulo do filme que o personagem assisteno final e que lhe permite uma espcie deinsight. A descrio que l est corresponde

    FOTO: DIVULGAO

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    Se tu estiverdisposto a deixar delado a estradinhabem asfaltadinha,o romance ofereceuma elasticidadeincrvel

    No passandouma semana

    percorrendo ospontos indicadospor seu guia quevoc vai conheceruma cidade

    exatamente s cenas do filme. Eleme marcou justamente porque,quando assisti, praticamenteno li as legendas, pareceramtotalmente acessrias, atprejudiciais. um filme toplstico, imagtico, to bonitonisso, que as palavras ali,pareceu-me, estragavam. Maistarde, li uma entrevista do JerzySkolimowski, diretor do filme,onde ele diz mais ou menos isso,que queria fazer um filme queno sendo mudo, prescindisse

    das palavras. Como acho queproblematizo essa questo dapalavra no livro, achei pertinentetrazer esse filme pra dentro.Alm disso, s por curiosidade,a palavra barreira mantm oseu radical em vrias lnguas,como pude constatar depois.Todo mundo diz barreira maisou menos do mesmo jeito.

    Me parece que na estruturacircular, de recorrncias, cenasque se repetem por outrosngulos,Barreira(emboraromance) traz ecos de Os ladosdo crculo(embora contos).Consegue ver isso?Sim. Sou fascinado por narrativascirculares, recorrncias,repeties. No saberia explicarbem o porqu. E essa estruturacircular acaba acontecendo meionaturalmente quando escrevo,seja nos contos ou, agora,neste romance. Nos contos, aestrutura circular, ou uma ideiade circularidade, ainda maisnatural, acho, porque o contotraz um pouco isso embutidono prprio DNA do gnero, uma das suas caractersticas.De uma forma ou de outra ofinal de um conto sempre acabaremetendo para o seu incio.

    Robert diz Mudavam ascidades, mas o que eu via eramsempre as mesmas coisas. Tu jviveu em Porto Alegre, interiordo RS, Paris, Lisboa, agora estem Pequim. E j contou quecaminha muito pelas cidades.Tambm v as mesmas coisas,ou acha que as pessoas emgeral esto anestesiadas comfamiliaridades postias?Evidente que hoje em dia, coma diminuio das distnciasgeogrficas, a circulao da

    comunicao, tudo est muitouniformizado, inclusive ascidades, ainda que isso funcionemuito na fachada. Algum medisse esses dias que um livro temseu prprio tempo de resposta.Acho que isso se aplica tambms cidades. No passando umasemana percorrendo os pontosindicados pelo seu guia quevoc vai conhecer uma cidade.Ela tem o seu tempo, exige essetempo para comear a te dizeralguma coisa. E no se trata nemde conhecer aqueles lugaresque no esto nos guias, ques locais conhecem (alis,os guias j trazem sees scom estes lugares). Trata-se desentir como seus habitantesse movem l dentro, comousam a cidade, seus espaos,sua geografia, sua luz etc.

    Barreiraest longe de serpolicial, mas por vezes,nos mistrios, buscas einvestigaes, faz lembrarlivros sobre detetives. E emOs lados do crculoh contosque passam perto do gnero.Tu leitor de policiais? verdade, me dei conta destalevada policial quando escreviaa terceira parte, quando Robert

    volta a Istambul e se v no rastrodessa figura voltil de Ahmet. Econcordo que em Os lados do crculoaparecem alguns contos comesse ar policial. Mas a verdade que no leio, nem nunca lipoliciais. No me atrai muito essacoisa de ler para descobrir quem o assassino. Claro que fao aquiuma baita generalizao, masmuito do gnero polical passapor a. Por outro lado, h aquiloque o Piglia (acho que ele) diz:mais ou menos, seria que toda

    narrativa ficcional funciona emuma estrutura prxima da de uminqurito policial, a linguagemliterria assemelhando-se auma linguagem cifrada queconstri o texto como uma sriede pistas deixadas pelo autora um desconhecido leitor que,interpretando e relacionandoas pistas entre si, poderclarificar pelo menos algumasdas zonas de sombra do texto,extraindo-lhe sentidos. Seriacomo decifrar uma mensagemaps longo estudo dos indcios.

    Tu tem trs livros de contos.Barreira o primeiro romance.A impresso, pela estruturano convencional, pelos riscosnarrativos que tu corre, de quetu te sentiu confortvel fora doscontos. Foi assim?Sim. Apesar de ter sido difcil amudana dessa prtica do conto,a qual eu j estava habituadoe at meio viciado, a partir domomento em que comecei aavanar no texto, me senti muito vontade. Acho que porque oromance oferece uma liberdademuito grande, muito maior doque o conto, que um gneromais rigoroso, inclusive no quediz respeito sua forma. Se tu

    estiver disposto a deixar de ladoa estradinha bem asfaltadinhae segura das narrativasconvencionais, o romanceoferece uma elasticidade incrvel.Barreiraintegra tua tesede doutorado em EscritaCriativa (PUCRS, cotutela comSorbonne Nouvelle ParisIII). A estrutura lacunar, avariao da voz do mesmonarrador na primeira parte, omais (muito mais) perguntar

    do que oferecer possiblidadesde resposta, o questionamentodo lugar comum, entreoutros aspectos, trazemem si uma ideia de crticaou reflexo literria sobrelimites e forma do romance?Se h reflexo sobre a forma doromance, consequncia. O fatode o livro fazer parte da minhatese em Escrita Criativa noquer dizer que foi pensado nostermos da teoria literria ou parase enquadrar em um trabalhoacadmico. Est totalmentedesvinculado disso. Tanto que oensaio que acompanha a ficona minha tese no tem o Barreiracomo tema. algo que abordaa formao do escritor, relaoentre leitura e escrita, oficinasliterrias, e tambm a escrita decontos e romances, mas semnunca entrar em uma anlisedos mecanismos adotadosno Barrreira. Por outro lado,parece-me impossvel escreversem pensar na forma, semquestion-la a todo momento. isso que d o carter estticoou literrio (no bom sentidoda palvra) coisa. Costumodizer que literatura forma. Eentendo por forma a linguagem,a manipulao de elementos da

    linguagem e de elementos danarrativa de maneira a construirum universo nico e autnomoe, esteticamente, intrigante. Aexpresso literria esttica,antes de ser de ideias. No a historinha que interessa.

    Poucas cidades se prestamtanto ao clich quanto Istambul,e tu diz isso no livro. E, emum ms, creio ser impossvelsuperar os chaves da cidade.Criar personagens com olhar

    estrangeiro sobre a cidade foiestratgia para, mais do queevitar o risco do clich, utiliz-loa favor da narrativa?As duas coisas. Em certomomento, vi que no tinhasada: no tinha como falardesde o ponto de vista de umturco que viveu a vida inteira emIstambul, impossvel, o ponto devista tinha de ser do estrangeiroque sou. E, como estrangeiro,tambm era impossvel nopassar pelos clichs. Fatalmenteapareceriam. Ento pensei nesteautor de guias de viagens, poisno h mais forte reprodutorde clichs do que a indstria doturismo, sobretudo o turismode massa, do qual os guias deviagem que a gente compraem aeroportos e megalivrariasso um dos produtos. Foi amaneira que encontrei paratrazer o clich, inevitvelno caso, para o meu lado.

    Escrever tambm imporbarreiras ao leitor?As barreiras esto a parao escritor e para o leitor. Oimportante fazer a viagemjuntos, o trajeto, noimporta se todas as barreirassero ultrapassadas.

  • 7/25/2019 Suplemento Pernambuco - Entrevista com Amilcar Bettega

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    PERNAMBUCO, DEZEMBRO

    Enquanto escreviaAo farol, rumo ao farol, um poucoantes, talvez, Virginia Woolf lia, com entusiasmo ecarinho, os primeiros volumes de Em busca do tempoperdido, de Proust, dizem os bigrafos da escritorainglesa. Da no ser difcil encontrar neste roman-ce, especialmente, alguma influncia do francs,sobretudo em suas frases longas, por assim dizer,distendidas, em que o tempo e a obra se encontrampara forjar um mundo psicolgico, eivado de refe-rncias psicolgicas, que vo do tristonho e solitrioao eufrico e entusistico. Diga-se de passagem,uma influncia e nunca uma imitao ou cpia. Atporque Virginia no tinha um mtodo racional emAs ondas como procuramos demonstrar aqui emartigo anterior mas escrevia de corpo inteiro, nosomente com a mente ou com os dedos, mas com osnervos. Jogando-se inteira na obra, nas palavras, nasfrases, nos personagens, com a incrvel habilidade de

    quem conhece e ama o destino humano, revolvendoos escombros para ilumin-los delicadamente, semrasgos dramticos, mas com habilidade, suavidadee ternura.Mesmo quando recorria a estratgias for-mais, em geral submetidas condio psicolgica.

    Ainda assim, Virginia busca conscientementeuma estratgia ficcional em Ao farol, at por causa dainfluncia e faz isso com enorme competncia. Nos pelas estratgias, mas sobretudo porque elas, asestratgias, esto submetidas criao nervosa daescritora. Em escritores menos interessantes, a estra-tgia formal est acima das caractersticas criadorasdo autor; em autores como Virgnia, no entanto, aestratgia existe de acordo com a exigncia nervosa.

    No posfcio a esta nova edio de Ao farol EditoraAutntica, traduo de Tomaz Tadeu, Belo Horizonte,2013 Hermione Lee defende, por exemplo, a ne-cessidade de tcnicas para a construo do trabalho

    ficcional. Afirma Como a fico no msica oupintura ou cinema ou um conjunto de pensamentosdesarticulados, ela exige estratgias formais parapoder ser vrias coisas ao mesmo tempo.

    Alis, no posfcio Hermione mostra com clarezaas estratgias de Virginia para Ao farol, que consolidao que acabamos de dizer.A pintura de Lily um doselementos da narrativa foi a maneira que Woolfencontrou de inserir no romance um comentriosobre seu prprio processo de criao. As imagensde Lily para a sua arte via a cor ardendo numamoldura de metal; a luz da asa de uma borboletarepousando sobre os arcos de uma catedral re-montam viso que Virginia teve da catedral deSanta Sofia, em sua visita a Constantinopla, regis-trada em seu dirio de 1906. Fina como um vidro,moldada em generosas curvas e to sobrenaturalquanto uma pirmide. Aquela forma em cpula,

    que combina o slido com o etreo era a essnciado seu plano para o livro.

    Percebemos, assim, de forma muito clara que,em Virgnia, a estratgia formal est submetida aocarter psicolgico e no ao contrrio como ocorre

    RaimundoCARRERO

    O que iluminaos escombrosdo ser humanoSob a influncia de Proust,

    Virginia Woolf conduz anarrativa com sentimentos

    BELL ROCK LIGHTHOUSE, DE WILLIAM TURNER

    na maioria dos autores. Da porque ela escreve emondas, como destacamos na coluna anterior. Ocorreque, em autores convencionais, as tcnicas estosempre em busca da moda e, por isso, fracassam. EmVirginia Woolf, a tcnica nascida da necessidadenarrativa e no ao contrrio.

    O artigo da professora e crtica inglesa impor-tante para mostrar que no se escreve apenas com avontade ou o desejo de escrever, mas com o domniodas tcnicas e dos movimentos interiores de umaobra de arte. Mesmo quando o livro escrito por

    MERCADOEDITORIAL

    MarcoPolo

    Alagoano crescido no Recife eagora radicado em So Paulo,o jornalista Lula Falco (foto)estreou na fico com o divertidoromance Todo dia me atiro do trreo,cuja herona era viciada emliteratura, vodca e miojo. Em seusegundo romance, Iber segundoPaulo(Editora Nhambiquara)retoma o estilo farsesco esarcstico para retratar umadupla de crpulas: o pastorIber e seu ghost-writer, Paulo.

    STIRA

    Em seu segundo romance, Lula Falco retrata dupla detrambiqueiros que tenta usar a religio para se dar bem

    FOTO:REPRODUO

    O primeiro, um sem-teto quedecide virar pastor e enriquecercom uma igreja, o segundo umescritor fracassado e cnico quese dispe a ajud-lo na empresa.O resultado uma sucesso deeventos folhetinescos, com altasdoses de xtase religioso, sexo,drogas e conhaque barato, almde tramoias e traies. Apesardo tom satrico, a narrativadeixa, no final, um gosto amargona boca do leitor.

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    I Os originais de livros submetidos Cepe,exceto aqueles que a Diretoria considera

    projetos da prpria Editora, so analisados

    pelo Conselho Editorial, que delibera a partir

    dos seguintes critrios:

    1. Contribui o relevante cultura.

    2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,

    que privilegia:

    a) A edio de obras inditas, escritas ou

    traduzidas em portugus, com

    relevncia cultural nos vrios campos

    do conhecimento, suscetveis de serem

    apreciadas pelo leitor e que preenchamos seguintes requisitos: originalidade,

    correo, coerncia e criatividade;

    b) A reedio de obras de qualquer gnero

    da criao artstica ou rea do

    conhecimento cientfico,

    consideradas fundamentais para o

    patrimnio cultural;

    3. O Conselho no acolhe teses ou

    dissertaes sem as modificaes

    necessrias edio e que contemplem a

    ampliao do universo de leitores, visando a

    democratizao do conhecimento.

    II Atendidos tais critrios, o Conselho emitir

    parecer sobre o projeto analisado, que ser

    comunicado ao proponente, cabendo

    diretoria da Cepe decidir sobre a publicao.

    III Os textos devem ser entregues em duas vias,

    em papel A4, conforme a nova ortografia, em

    fonte Times New Roman, tamanho 12, com

    espao de uma linha e meia, sem rasuras e

    contendo, quando for o caso, ndices e

    bibliografias apresentados conforme as

    normas tcnicas em vigor. As pginas

    devero ser numeradas.

    IV Sero rejeitados originais que atentem contra

    a Declarao dos Direitos Humanos e

    fomentem a violncia e as diversas formas de

    preconceito.

    V Os originais devem ser encaminhados

    Presidncia da Cepe, para o endereo

    indicado a seguir, sob registro de correio ou

    protocolo, acompanhados de

    correspondncia do autor, na qual

    informar seu currculo resumido e

    endereo para contato.

    VI Os originais apresentados para anlise no

    sero devolvidos.

    Companhia Editora de Pernambuco

    Presidncia (originais para anlise)

    Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro

    CEP 50100-140

    Recife - Pernambuco

    CRITRIOS PARARECEBIMENTO E APRECIAODE ORIGINAIS PELOCONSELHO EDITORIAL

    A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

    A escritora pernambucana PatrciaTenrio acaba de lanar pela EdituraArs Longa, num livro bilngue(francs e romeno), uma coletneade seus textos sob o ttulo duplo Sansnom/Fara nume. Segundo o prefciode Christian Tamas, a prosa e osversos de Patricia surpreendempela delicadeza e pelo modo comosaem em busca de elevar o mundoe de fazer subir superfcie a luzdo outro. O livro ser lanado naFrana e na Romnia.

    Embora negue a pretensopica, por ser a essncia dopoema muito mais lrica, JosRodrigues faz parfrases deCames e obedece estruturado gnero: verso decasslabo, aoitava rima e a elaborao de dezcantos. Utiliza ainda colagemdos versos de Dante, Jorge deLima, Fernando Pessoa e outrospoetas, maneira de Eliot.Entretanto, cada canto pode serlido como um poema autnomo

    NO MUNDO

    Patrcia Tenrio lanacoletnea bilngue

    PICO

    Edies Bagao relanam o poema pico do portugusradicado no Recife Jos Rodrigues de Paiva

    e refere-se, fundamentalmente, vida e alma do prpriopoeta. Assim, o mar em quesua epopeia se desenrola omar da existncia. A variedadedas imagens e a introduo deelementos contemporneosservem para dar um brilhoextra ao longo poema, que,mais que no espao, transcorreno tempo. Outro destaque a fluidez que o percorre e dleveza ao que profundo.

    algum que se chama Virginia Woolf, sem dvidaum dos gnios da literatura universal.

    Nunca demais destacar que toda obra de arte trabalhada em dois campos o campo espiritual,que rene a inspirao, a intuio, o sublime e ocampo material, que estabelece a tcnica, a maneira

    de contar, os dilogos, as cenas, os cenrios, enfim,o material estratgico, e que escolhido conformeo esprito do criador.

    Tal era a preocupao de Virginia, que ela escre-veu um ensaio chamado Como se deve ler um romance?,

    onde ela compara os trinta e tantos captulos deum romance a uma tentativa de construir algoto formal e controlado quanto um edifcio; maspalavras so mais implacveis do que tijolos.Tamanha conscincia artstica mostra o quantoViginia considerava decisivo o trabalho de construir

    uma obra de arte, ainda que os nervos estivessemno comando. O fundamental destacar sempreque, por tudo isso, Ao faroltransformou-se, deimediato, na principal obra da extraordinria es-critora inglesa.

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    PERNAMBUCO, DEZEMBRO

    Palavras perambulamfeito sombras por a

    Julya Vasconcelos

    As histrias de trs escritoresque escrevem com ocorpo as suas narrativas

    CAPA

    sou mais que um vulto, quase no pode mais en-xergar. Peo que me deixe entrar para que eu possaexplicar as duas batidas que dei na madeira ocada porta da frente. Prende o cabelo grisalho e liso,abotoa a cala jeans sem sucesso. No, hoje eu noconsigo dizer poesia, no t boa da cabea. Deixepra outro dia, diz quase inaudvel enquanto tentame decifrar apertando os olhos, impondo a condi-o da minha entrada antes mesmo de destravar oferrolho. A casa plida, com uma cama de ferroencostada na parede prxima janela. Um mos-quiteiro pende do teto, uma caixa dgua repousanuma das quinas e trs gatos sem nome dormemcomo pequenos reis. V-se um quintal ao fundo,sem plantas, cancelado. Quem nasce pra sofrertraz a vida atrapalhada, atesta com um verso queno pretendia me dizer, olhando-me olhando volta. Da sepultura aberta ainda vejo o retrato /Ea morte me dizendo: um dia eu sempre te mato.

    Palavra fantasma. Perambula feito sombra im-precisa das coisas, mesmo quando se quer plenae cheia de contornos. Ns, bichos to verbais, vi-vemos em busca daquela palavra exata que caibano vo do peito, no transbordar das coisas, nobilhete que rompe, no incio do captulo, na frasecurta da caixa-postal. Luta v, j disseram aotravar essa mesma batalha. E quando no grafada,diz-la parece fantasma ainda mais impalpvel,msica que vibra de um corpo colado no espaoe no tempo. Mas h quem faa literatura com essamassa sonora e fugidia, moldando versos no atoda fala e guardando tudo em caixas secretas e in-ternas. Severina e Mariano fazem, sagradamente,mal rompe a manh.

    No pequeno povoado de Mundo Novo, cravadona divisa entre Pernambuco e Paraba, o sol entraarredio pelas brechas das casas. Severina olha eno v atravs da sua janela aberta. Para ela no

    KARINA FREITAS

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    PERNAMBUCO, DEZEMBRO

    A obra de SeverinaGomes de Souzaleva a umaquesto polmica:como algumque no escrevefaz literatura?

    poeta de Sertnia. Foi assim at perder a viso, hpoucos anos, provavelmente por conta de lcool ediabetes, segundo suspeita seu amigo do outro ladoda fronteira, o tambm poeta Tadeu Cassiano, dacidade de Ouro Velho. Sentia um calor nos olhos,um calor insuportvel, conta Severina. Hoje pre-cisa que algum a ampare para que caminhe pelasruas da cidade pela qual vagueou exaustivamentea vida inteira.

    Nessa poca, conta que criou um mote que vi-rou um clssico da poesia de improviso. Um diaatreveu-se a chegar perto de uma mesa onde doispoetas improvisavam, e ficou observando, encos-tada na parede. Sempre admirou a poesia. Munidosde violas, eles diziam versos engenhosos, numabatalha ritmada. Em um momento de silncio,algum sugere que Severina d um mote. O mote um verso, uma espcie de tema metrificado,

    que vai guiar a criao dos poetas. A literaturavira uma espcie de jogo de armar. De supeto, aento prostituta diz: O silncio da noite quemtem sido/Testemunha das minhas amarguras.Nunca havia feito poesia antes.

    LITERATI E ILITERATIA pergunta que se impe: como algum que noescreve produz literatura? A resposta implcita:com o corpo.

    Paul Zumthor, estudioso das poticas da voz,dedicou bastante energia aos estudos do uso dapalavra falada nas produes literrias. O autorpesquisou, dentre outras coisas, as performancesdos griotsdo Burkina-Faso, dos rakugokado Japoe dos repentistas brasileiros. Ele explica que, naIdade Mdia, os termos literattie iliterattino estavamexatamente ligados ao saber ou no escrever. Eram

    na realidade dois comportamentos diferentes emrelao palavra. Um ligado autoridade, outroligado s sensibilidades. Formas distintas de re-gulao da conduta: uma pelo raciocnio, outrapelo corpo.

    Em seu O Ser e o tempo da poesia, Alfredo Bosi tam-bm aproxima corpo e palavra, utilizando a ideia deSausurre da linguagem como pensamento-som.Escreve: O dom do signo guarda, na sua area eondulante matria, o calor e o sabor de uma viagemnoturna pelos corredores do corpo. Assim, essaobra pensada e dita, e s revista quando reditapor quem a fez ou por quem, prodigiosamente,a decorou, vai exatamente aonde seu autor e amemria podem ir. s vezes as vozes dessa li-teratura oral no vo muito longe ou perdem-seno registro frgil da memria.

    Essa insubordinao da fala em relao palavra

    escrita muito comum por todo o interior do Nor-deste, onde perdura o analfabetismo e a tradioda poesia oral. Poetas conhecidos como Patativado Assar e Joo Paraibano, por exemplo, nuncaescreveram seus versos. Dizem que no momentoda criao, Patativa contorcia violentamente osmsculos do rosto, at que dizia, de uma s res-pirao, um poema inteiro. O artista seu prprioateli, seu corpo tambm seu espao de criao,alm de seu espao de propagao.

    RAINHA DO EGITO E DO CABARCerta vez, por conta de uma briga por dinheiro,Severina Branca levou uma facada. Foi socorridaem estado grave. Sozinha no hospital comps seuprimeiro poema inteiro. Eu tava deitada na mesadepois da cirurgia, e o nico jeito que eu conseguiapensar era em poesia. Pensava que h que se terpacincia com a vida, mas que ela no tem com agente no. A poesia veio em versos decasslabos,que a mtrica utilizada por quase todos os poetassertanejos e improvisadores. Tudo o que Severinaconhece de literatura foi composto assim, com asdez slabas que do um ritmo caracterstico poesiaproduzida no serto. Mas no lugar do rio Paje,da seca e de um olhar ampliado sobre o serto, osversos da mulher que mal sabe assinar o prprionome fazem lao forte com a melancolia e com ovazio da vida. Indiscutivelmente autobiogrfica,toda vez que dita, a poesia de Severina a faz chorare resmungar baixo, explicativamente: Voc estentendendo, no ? porque isso a minha vidaque eu estou contando nos versos. Recordando opassado eu sofro duas vezes. A Severina ficcio-nalizada to inconsolvel quanto a Severina real.

    Nos anos 1970 Severina Gomes de Souza erajovem. Conhecida na regio do serto do Pajecomo Severina Branca, tinha as unhas pintadasde vermelho, a pela clara (motivo pelo qual osmeninos lhe deram o apelido) e as mas dorosto salientes, prontas para sorrir. Mas dizemque s dava para rir mesmo quando tinha hlitoe equilbrio de cachaa. A vida era um jogo pe-rigoso com pitadas de deleite e drama, onde oscenrios eram os cabars, os forrs, as ruas deSo Jos do Egito, a bodega de Paj, os audes pramergulhar e esquecer. Prostituta famosa na regio,era possvel encontr-la perambulando sozinhapelas cidades prximas ou cada dormindo nocho, a qualquer hora do dia ou da noite. Tantofazia ser numa calada prxima a um bar, comona estrada do sitio que a conduzia sua casa. EmSo Jos do Egito, quem no nada, sobrinho deAugusto dos Anjos, diz sio Rafael, pesquisador e

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    PERNAMBUCO, DEZEMBRO

    CAPA

    preocupao de catalogar, organizar, no perder.Mariano no teme por sua memria: uma coisaespantosa, no h maneira de eu esquecer essasanedotas que invento. Basta uma palavra pra quevenha tudo de uma vez. A anotao mais umcardpio, um sirva-se. Ao escolher, Marianorespira e inicia a sua performance. Todo dia, s11h, a bodega est cheia de gente para ouvi-lo ev-lo dizer sua literatura, que para ele no passade anedotas feitas para rir.

    Na situao de oralidade pura (...) a formaose opera pela voz, que carrega a palavra; a primeiratransmisso obra de um personagem utilizandoem palavra sua voz viva, que , necessariamente,ligada a um gesto. A recepo vai se fazer pelaaudio acompanhada da vista, uma e outra tendopor objeto o discurso assim performatizado: , comefeito, prprio da situao oral, que transmisso erecepo a constituam um ato nico de partici-pao, copresena, esta gerando o prazer. Esse atonico a performance, escreve Paul Zumthor.

    SOBRE PALAVRAS E PALAVRAS QUE CAEMNo Japo existe uma modalidade de literatura oral,humorstica, que tem como centro a apresentaode um contador de histrias. Sentado em um tatamesobre um palco, munido apenas de um leque depapel, ele faz um monlogo onde narra histriascomplexas, geralmente com vrios personagens.Essa literatura tradicional, que existe desde o pe-rodo Edo (1603-1868), chama-se Rakugo, que emuma traduo literal significa palavras cadas. Oschamados rakugokaspassam por um longo perodode preparao, tendo que ser aceitos por um mestre

    Eu no tenholeitura, eu souignorante, masesses so os meusversos, avisaSeverina sobreseus decasslabos

    KARINA FREITAS

    A morte da irm, a prostituio, a misria, abebida, o passado, o destino, o sofrimento, a filhadeixada sozinha em casa. A poesia de Severinano faz concesses e nem tem bons sentimentos.Ela cria como forma de expurgo e registro de umavida. Eu no tenho leitura, eu sou ignorante, masesses so meus versos, explica-se. Sua literaturaconfessional e marginal, para utilizar os termosclichs de um tipo de literatura urbana dos anos1970 em diante, toma um caminho distinto dapoesia sertaneja falada de um modo geral. Seustemas so particulares, por vezes hermticos, e quepara alm da melancolia apontam para a figura deuma mulher livre e frente do seu tempo.

    Sou mulher de sentimentoAs duas da madrugadaLevando a chave na mo

    Deixando a porta trancadaE uma filha na cama

    Sem esperana de nada.

    No sentamos durante toda a conversa. Ficamosde p no meio do primeiro cmodo da casa, atque Severina aponta uma cadeira plstica, des-sas de bar. Olha os gatos e diz que no conseguecuidar bem deles (por isso no lhes deu nomes,esto l porque querem e no porque so seus), eque est perto da hora de uma vizinha trazer seucaf. Quando digo que fui cidade de Verdejante,Severina sorri: Lugar de nome mais bonito, no? Pertinho de Salgueiro, j andei muito por ali,tomava banho na barragem, e arruma de novoo cabelo. Vejo as unhas roxas descascadas, umar cansado invade a conversa. Trancada em casa,a poesia de Severina no atravessa mais a rua,

    no vai bodega, no cai deitada no cho paratodo mundo ver. Ouvi-la, e portanto conhec-la,tornou-se raro.

    A BOCA DIZ: UM CULOS DE VER DELRIO

    O sonho ver as formas invisveisda distncia imprecisa, e, com sensveis

    movimentos da esperana e da vontade,buscar na linha fria do horizonte

    a rvore, a praia, a flor, a ave, a fonte os beijos merecidos da verdade[Fernando Pessoa]

    Apesar do nome, h quatro anos no chove emVerdejante. O cho vai ficando cada vez mais fir-me, a plantao seca, a pele queima, e a palavraali: um monolito que j no se reconhece bem.

    A pequena cidade pernambucana gradada emtons de laranja, amarelo e cinza, como os filmesde Sergio Leone. E nunca o cinza srio, mas ocinza refletido de sol. E no verdeja, apesar debonita e viva, com algumas rvores heroicas pelocaminho, cheia de gente na rua. Cadeiras proli-feram em frente s casas, ocupando as caladascom gente falante, ora eufrica, ora preguiosa. Apalavra verdejante, que viceja at no ritmo dasslabas, desdiz, teima em fabular o que todo mundosabe ser serto. Devagar e com a clara sensao desempre (o tempo muito piedoso por aqui), seuMariano tambm sabe fabular.

    A bodega que fica numa das principais ruas deVerdejante curiosa. Uma geladeira vermelhaabre-alas para uma parede inteira de aguardentesPit e cajunas So Geraldo. No cho um tapete demelancias d as boas-vindas, com algum humor.Atrs do balco, ou sentado numa cadeira en-costada na porta de entrada, seu Mariano Jos daSilva, o Mariano do aio, finca presena de caraamarrada. Entre ano, sai ano, um chapu pretolhe decora a cabea dando ainda mais gravidade sua expresso. A camisa de botes, uma calade linho, um chinelo. Mas entre cabeas de alhoe pedaos de rapadura, um caderno desses deescola, pequenos, com espiral, guarda uma lista.Os ttulos de 60 contos constam ali, dividindolugar com as anotaes de fiado e contas com-pridas somando muitos 50 centavos. Um amigolhe fez o favor de anotar os ttulos para que ficassemais fcil das pessoas escolherem a histria quedesejam ouvir. Mariano no aprendeu a escrever,trabalhou pesado desde criana no stio Oiticica,que fica a 4km dali. Ao anotar tudo, no havia a

    que considere que tenha potencial suficiente parapraticar a arte, para receber essas palavras quecaem, e transmiti-las.

    Ela vem, diz Severina sobre o processo decriao da sua poesia. No sabe dizer de que for-ma a cria, mas tem a impresso de que chegade outro lugar e se manifesta atravs da sua voz.Para Mariano, a histria chega pronta, como umailuminao que lhe invade. Para ele um presentedivino para ajudar a enfrentar a vida. Se chegacoisa boa na nossa cabea Deus que manda. Euagradeo. A ideia de palavras que caem, como se revelia de quem as diz, como que vindas de cima, uma citao recorrente dos poetas/contadores

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    PERNAMBUCO, DEZEMBRO

    das tradies orais. H a crena na inspirao ena arte como atividade sublime, conectada como divino.

    H cinco minutos de Mundo Novo, em Pernam-buco, fica Ouro Velho, na Paraba. A linha quedivide os estados passa bem ali, entre os dois povo-ados. L, Tadeu Cassiano tambm acredita que aspalavras tm vida prpria. s vezes ela foge, a svezes vem aquela onda doce e voc encontra tudoo que queria, todas as palavras que voc queria.Aqui a gente acredita que tem poesia at no jeitoque o vento sopra. Tadeu sorri sinceramente aofazer a comparao, envaidecido com a quasepoesia que cria na resposta. magro e sorridente,de olhar doce por trs dos culos de grau. O poeta,que ao contrrio de Severina e Mariano, dominaa escrita, optou deliberadamente durante muitotempo pela palavra falada. Deixava escrito svezes s o primeiro verso de um poema, para meajudar a lembrar. Eram vrios papis espalhadospela casa, com uma linha s escrita, recorda.Tadeu faz parte de uma parcela grande de poetassertanejos que falam seus versos, improvisadosou no, por opo.

    H muitos anos Tadeu trabalhava de telefo-nista na extinta Telpe. Sabia todos os cdigos daempresa decorados, todas as listas que lhe caamnas mos. Poesias dos outros tambm aos mon-tes, mas tentava trazer tona um poema seu ato fim, e perdia-se no meio dos versos. Decoravaos outros, entre atento e brio, mas os seus fica-vam engavetados, travados em algum lugar turvo.Nessa poca Tadeu bebia durante o dia inteiro. Ainspirao j a tinha, mas era como se o corpo

    no acompanhasse a mente. Comeava a dizera poesia e me perdia no meio, a lngua enrolava,no conseguia completar, conta. Assim comoos rakugosas, era preciso ser capaz de transmitiras palavras cadas.

    Recentemente Tadeu recebeu uma pessoa inte-ressada em public-lo, que o fez reunir os rastrosde poesia escondidos pela casa. Depois de gavetase memria reviradas, Tadeu vai lanar seu pri-meiro livro este ano.

    A literatura falada, que segundo Paul Zumthoralia a sonoridade da voz, a performance, os rit-mos, dentre outros fatores, quando transportadapara o lugar da escrita, que tem tambm suasidiossincrasias, vira outra literatura. No pode serrealizado apenas um transporte. Talvez Tadeu sejaagora autor de duas obras, feitas com dois tipos depalavras. Os Ew, populao do sul da Nigria,que possui antigas e ricas tradies, distinguem,segundo as regies, cinco, seis, ou nove funesdiferentes, em limites bem traados, daquilo quens reunimos sob o nome de palavra. Os Dogonestudados por Genevieve Calame-Griaule dis-tinguem 48!, afirma Zumthor.

    O FANTSTICOAssim como Severina Branca, os acontecimen-tos da vida de Mariano so matria-prima demuitas das suas criaes. Por onde eu passo,de uma coisa eu gero uma histria, conta. Masao contrrio do sabor amargo e realista que tema poesia de Severina, as narrativas do senhor deVerdejante so delirantes. A seca tem um papelcentral na sua inspirao, pois parece ser das

    impossibilidades que ela imprime que surge anecessidade da inveno.

    Uma lagarta adverte que comer a plantao demilho com uma frase precisa escrita ao longo da suacoluna: tanto plante como eu como. Uma vacausa culos de lentes verdes para que ao enganar avista engane tambm o estmago, e possa devorar osmatos secos da roa. Logo acima da bodega de Ma-riano, um avio parado no meio do cu para trocarum pneu furado sem causar espanto a ningum. Asituao dura horas, o piloto pede ajuda, acha umpedao de pau no meio das nuvens. Mariano com-pe um universo mgico, que nasce da coexistnciado universo sertanejo e do delrio. Exatamente nessainterseo, que provoca a hesitao, que consistea caracterstica maior da literatura fantstica, se-gundo Todorov. Mariano desestabiliza a seca e otdio de Verdejante. A fantasia e o devaneio so aimaginao movida pelos afetos. Esse movimentosdas imagens poder circular apenas pelos espaosda viso. Mas poder tambm aceder ao nvel dapalavra, afirma Alfredo Bosi.

    Os contos esto sempre em primeira pessoa,Mariano o protagonista absoluto, e o tom da suavoz, que sobe e desce com alguns picos agudos,humorsticos, nos diz, juntamente com o textoque profere, que ali tudo se trata da mais prosai-ca realidade. Isso uma mentira danada! EsseMariano muito contador de histria!, disparaum dos senhores sentados na bodega, entre umtrago de cigarro e uma bicada na cachaa. No no, aconteceu desse jeito mesmo que estoucontando, defende-se Mariano enquanto servemais uma dose.

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    ENSAIO

    entender o que ela nos coloca de reflexo. Afinal, aautora mesmo reitera: no h nada de errado empor-se parte e pensar (com a imagem).

    Mas o que esse esvaziamento do drama? O que

    o fenmeno de conteno narrativa que se vinculaao culto da imagem e que, ao mesmo tempo, rechaao espetculo (o visual) e a verborragia (a voz)? Ondese situam as subjetividades nessa paisagem aparen-temente nula, de peas humanas que parecem noquerer se conectar, pelo menos verbalmente (emtermos textuais, francamente expressos) ou pelacerteza das aes de causa-efeito pr-determinadas? evidente que existem contribuies oportunasnesse sentido, sobretudo no campo culturalista, queso efetivas para se pensar nos mecanismos que noslevam ao contexto da superexposio da imagem,da saturao e das tenses ideolgicas na sociedadeatual, pontos preconizados por Fredric Jameson,Zygmunt Bauman, entre outros. Contudo, o que sequer enfatizar, com base no tempo antinarrativo (emque nada acontece) e no apelo forma, apontaroutra coisa: uma soluo, caminho este que nem pura abstrao nem representao direta da realidade.As nuvens, pedra-de-toque vansantiana desde o seuprimeiro filme, Mala noche(1985), passam a orientar, apartir de Gerry, o cinema do diretor norte-americanoem direo a uma mudez progressiva, mas no menoseloquente com o campo das artes plsticas.

    possvel pensar, deste modo, em dois aspectosenfeixados: a pictorialidade e o afeto da imagem, namaneira como foram retrabalhados conceitualmen-te por Gilles Deleuze (1925-1995), particularmenteem dois livros, Francis Bacon: lgica da sensaoe AImagem-tempo (Cinema 2). A noo de uma presenapictrica na arte moderna guarda relao com o queDeleuze concatenava em torno do conceito de umaimagem como intensidade. Ao pensar a tradioda pintura e na sua funo clssica da represen-tao, o filsofo francs ir vislumbrar uma nova

    A tela, cortada em formatoCinemaScope, com asbordas laterais ampliadas, comea no azul. Desaten-tos ou apressados em funo de certa ligeireza doolhar podemos no perceber essa no tela (ou tela

    cromtica, de azul-celeste) que se espraia sobre osprimeiros momentos de Gerry(2002). Coisa pouca,onze segundos, imagem que fica latente, silenciosa,antes dos acordes iniciais da trilha de Philip Glass edo travellingsobre o carro com Matt Damon e CaseyAffleck rumo ao deserto. Neste plano puramentepictrico, o filme de Gus Van Sant antecipa aquiloque seria um detalhe mais adiante: o dilogo coma paisagem. Cu e nuvens, no um cenrio slido,palpvel, mas aquilo que pode se intercambiar,iro marcar o encadeamento potico da obra van-santiana nesta fase dos anos 2000. Est em jogo aforma como pensamento, a beleza da matria quese desfaz, repousa e vagueia, impassvel.

    O elemento figurativo, ou aquilo que pode conterde linguagem narrativa, cede lugar, assim, para aspossibilidades do indizvel, um tipo de contarcontemporneo rarefeito. Nesse caso, e tambmElefante(2003), que completa dez anos de lana-mento, aps ser laureado com a Palma de Ourono Festival de Cannes, compondo, com ltimosdias(2005), a Trilogia da morte(Death trilogy), Van Santparece querer nos comunicar algo, dizendo pouco.Diferente de seus filmes anteriores que oscilavamentre atributos abertamente comerciais, comoGnio indomvel(1997) ou Um sonho sem limites(1995)e os dilogos com a literatura da Gerao Beat, aexemplo de Drugstore cowboy(1989) e At as vaqueirasficam tristes(1993), a imagem vansantiana em Gerryagencia uma disposio esttica desviante, comseus movimentos dilatados, tomadas de longadurao e poucos dilogos. Como dizia Susan Son-tag, no livro A dor dos outros, a questo no focara imagem em si, imp-la um preo tico e moralquanto a um estatuto de mediao; e, sim, tentar

    Nuvens:possibilidadesde leiturasEnsaio trata doadensamento de imagensna obra de Gus Van Sant

    Rafael Dias

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    No h nada de

    errado em por-se parte e pensar(com a imagem),nos avisou a crticanorte-americanaSusan Sontag

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    (escanso da superfcie, varredura da tinta etc), VanSant opera com o corte e o (des)foco dos planos paracriar um efeito de suspenso, no qual o corpo atualse virtualiza e torna-se massa pictural.

    O corpo reinventa-se, fluxo. Ele existe, est ali.Mas no mais figura, nem chega a ser abstraopura. Em uma das cenas de Gerry, filme que mos-tra dois jovens rapazes, praticamente annimos aolongo da histria (infere-se apenas que eles tm20 e poucos anos de idade e que chamam um aooutro pelo mesmo apelido, Gerry), perdidos emum deserto, os corpos de Damon e Affleck ganhamo valor de imagem de intensidade. At mesmoo lugar desterritorializado, j que somente pelasmarcas visuais no h como aventar a origem ou otrao identitrio do espao filmado. verdade queVan Sant propicia esse desconforto. Usa locaesvariadas, numa colagem de cenas colhidas em Salta,na Argentina, e nos desertos de Utah e de Moja-

    ve, na Califrnia. Dessa forma, a desconstruo dapaisagem, retratada inicialmente de acordo com atradio dos westerns, como um ambiente mtico ehostil, desviada para a retrica da nuvem que ir

    se aderir massa corprea das personagens. Ela,massa nebulosa, em dado momento, ser o filmeem si, silncio puro.

    Este momento figural, de algo que aponta parao domnio das sensaes e no mais do narrativo,pode ser visto quando os dois Gerry atravessama plancie em direo regio das montanhas, de-pois de se depararem com pegadas de animais. Aoultrapassarem uma grande cortina de rochas paraprocurarem gua, eles alcanam uma espcie dedeserto de sal. Cumprindo a sina da caminhada, oshomens deriva, sempre acompanhados de pertopela cmera, passam a ser perscrutados junto aorosto, em uma tomada em close up. nesse instanteque se efetua um plano desconcertante: com as duasfaces perfiladas, que se movem uma sobre a outra,sobre um plano de fundo branco quase invisvel, oefeito do corte vansantiano sugere um estado pict-rico. Vemos movimentos dentro de um microcosmoceleste metafrico (o sal que parece nuvem), efeitoinduzido em virtude de um cenrio sem horizonte,cortado. Em outras cenas, a intuio do detalhe serepete. Por fraes de segundos (seria necessrioparar oframepara visualizar com exatido), vemostambm o corpo de Damon borrar a tela, em meioao calor delirante e lenta degradao fsica e moral(nimo) das personagens.

    A metamorfose das nuvens em tempo e no ma-tria emblemtica em Gerry. Ao longo dos 103minutos do filme, paira uma imagem nebulosa,que cresce, avoluma-se. No entanto, v-se a recor-rncia desse tipo de imagem tambm em Elefante,principalmente na caminhada rotineira dos estu-dantes pela escola. medida que o evento trgicose aproxima, minutos antes da chacina, os alunos

    forma de pintura que se liberta dos compromissosda fidelidade dos traos e dos esquemas figurativos.

    O pintor irlands Francis Bacon (1909-1992), comseus quadros que conjuram corpos, espaos e cores

    distorcidos, seria um modelo de esttica aplicada aum ideal de imagem deleuziana contra os clichsnarrativos. Telas como o trptico Trs estudos para umacrucificao(1962) ensejam algo em que nada acon-tece, mas um algo que se passa. No ilustram, masapresentam. Mostram corpos sem rgos (colunasvertebrais que fogem da pele), toda uma estruturalivre por onde s passam fluxos potncia de afetos,intuies e desejos de uma realidade vivida que spode ser explicada dentro da ordem da sensao.Ainda segundo a anlise deleuziana, os corpos, osobjetos e o espao no contam histria alguma, nemmesmo quando os corpos so colocados prximos umao outro. Trata-se da ideia do figural, resgatando,nisso, um conceito de Jean-Franois Lyotard, reapro-priado por Deleuze para refletir o estatuto filosfico daimagem no campo do sensvel, que temporariamenteabandona o domnio da linguagem.

    As nuvens e a mise-em-scnede Gerry, cercadas deuma tessitura delicada, e no do grotesco e do hor-ror do mundo, funcionariam tematicamente comoantpodas ao universo angustiado de Bacon. Noque a Trilogia da mortede Van Sant esteja apartadade temas crucialmente humanos. Elefantese insere,particularmente, no limiar da violncia e do absurdo,ao reconstituir livremente o massacre da Escola deColumbine, ocorrido em 1999 nos Estados Unidos. preciso, porm, atestar a semelhana entre osprojetos de Bacon e Van Sant na quebra do clichnarrativo. Compartilham, de forma anloga, respei-tando evidentemente as diferenas tcnicas e prticasprprias ao campo do cinema e das artes visuais, uminteresse pela mancha e pela imagem borrada. En-quanto Bacon mostra faces e figuras contorcidas pormeio da interveno fsica sobre as formas pintadas

    JANIO SANTOS SOBRE FOTO DE DIVULGAO

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    ENSAIO

    que perambulam pelos corredores ganham o statusde uma imagem baconiana. Com o simples uso defrestas de luz e distores fora de foco, os corposexperimentam um abismo, um estado de pr-morte

    que se avizinha. como se a imagem condensasseo todo que ir culminar logo adiante. Assim com noquadro da crucificao de Bacon, h o prenncio dohorrendo. O trgico, antes mesmo de acontecer, jestava ali. O abismo est no meio de ns.

    Condensar a imagem no reduzi-la, mas am-pli-la, escav-la, abri-la em diferentes espectros.Perceb-la no como julgamento, olhar imediato,porm como um pr-juzo da percepo. Este o segundo aspecto. O espao afetivo imagtico olugar do choque. No livro A imagem-tempo, Deleuzeconverge pensamento e movimento para destacara imagem que se move sobre si mesma. Portanto,a imagem condensada no est parada. A imagemsobre imagem embate, reflexo pura. A pintura,por dialogar com a imaginao, lida com o esp-rito que, por sua vez, leva ao movimento. Mas ocinema precisa de algo que o force a acontecer: umpensamento-afeto. Segundo a viso deleuziana,particularmente presente no livro Mil Plats, coescritocom Flix Guattari, o afeto no uma afeco, ouseja, um sentimento, uma faculdade mental ou umpensamento concluso. Pode at ser condio paraum dado subjetivo, ao analisarmos obras de arte quenos provocam emoes ou intuies individuais.Mas afeto enquanto devir onda de choque, algoque leva a algum sentir coisas que no sentia, vercoisas que no via e pensar coisas que no pensava.Constitui uma potncia (e no somente uma possi-bilidade) em criar subjetividades, em permitir queo outro desenvolva seu prprio raciocnio sobrevivncias que o afligem ou inquietam.

    A nuvem em Van Sant prope o choque deleuziano.Desconcerta a viso, chacoalha a perspectiva, emba-a, desnorteia. Corre sobre o cu, filmada de longe,

    em slowmotionoutime-lapse. Nesse tipo de abordagempotica, muito comum em seus primeiros filmes,como Garotos de programa(1991), j se introduzia a ideiado pensamento-afeto. Tais intenvenes nebulosas

    retornam na Trilogia da morte, durante os anos 2000,acrescidas de maior presena. A massa de vapor noapenas adquire estatuto de personagem (e no apenaspaisagem) como tambm de sujeito, de matria leveque age sobre a cena. Em uma cena, Van Sant reapro-pria-se do contra-plonge, a tomada de cmera de baixopara cima, tcnica imortalizada por Leni Riefenstahl.Pela proposta original da cineasta alem, o uso de umngulo excessivamente baixo tendia a um propsitoespecfico, que era conotar um apelo grandeza docorpo ariano e o apoio propaganda nazista. Tal re-curso resignificado em Gerry, com Damon e Affleckfilmados de baixo para cima no deserto, olhando ocho. Atrs deles, nuvens esparsas em um cu todoesbranquiado, de azul plido. Em vez de mitific--los, a cmera os humaniza, os apequena diante dodestino irrefutvel de uma natureza que os espreita.Em ltimos dias, filme inspirado livremente nos diasfinais que antecederam a morte do msico Kurt Co-bain, ex-vocalista do Nirvana, a onipresena dasnuvens d-se na forma de reflexos (em para-brisasde carros, janelas etc), todos elevados a categoriasdo visvel. O filme atm-se tanto nuvem, que, svezes, a tela se transfigura totalmente. Enquadradopor longos minutos, o para-brisa de um veculo, emum dia de sol, faz desaparecer aqueles que esto nobanco da frente: o corpo puro fluxo. Nada escapa indicialidade da nuvem. Ela um fantasma, que nosindaga, provoca a todo instante.

    Enquanto elemento pictrico, a nuvem ocupaum posto de tradio na pintura que remonta desdea Antiguidade, isto , no um motifexclusivo aocinema e fotografia, embora o padro gasosodetenha um estatuto peculiar na arte moderna. Arepresentao do cu, com seus cirros ou cmulo-

    -nimbos, j se dava em afrescos de Pompeia, da-tados de mais de dois mil anos, antes de a cidadeser soterrada pelo Vesvio. Desenhos de nuvens,elemento metamrfico e intangvel, aparecem,

    ainda, em quadros de Domenico Fetti (1589-1623) eLuca Giordano (1634-1705), no Barroco italiano; nastelas impressionistas de Vincent van Gogh (1853-1890); ou reprocessados em obras tridimensionais,incluindo A lheure de lobservatoire les amoureux(1934),de Man Ray, e na instalao Silver Clouds(1966), deAndy Warhol (em recente comercial para divulgaro lbum Artpopem Londres, a cantora Lady Gagafez um pastiche dessa obra warholiana). Antesdisso, no movimento da fotografia pictorialista, nocomeo do sculo 20, Alfred Stieglitz elege a nuvemcomo seu tijolo esttico. Na srie Equivalents, produ-zida por quase dez anos (1925-1934), o fotgrafonorte-americano registra centenas de imagens,em preto e branco, que capturam evanescncias erastros de nebulosas. O recorte to radical que seperde a noo de espao e tempo. Quebra-se a linhado horizonte, enxergam-se apenas as filigranas deuma realidade.

    O professor da Nouvelle Sorbonne, em Paris,Philipe Dubois, analisa a pictorialidade da nuvemno livro O ato fotogrfico e outros ensaios: A nuvem ,antes de mais nada, uma substncia corpuscu-lar sem contorno, sem forma definida, sem cor-po prprio, uma espcie de vu, de cortina, umlenol de vapores, um condensado de auras esobretudo algo que no existe por si s. (...) Elaprpria, incolor, aquilo que, pela graa da refle-xo, proporciona matria luz, a atualiza, a tornavisvel: como assinala Aristteles, as nuvens tma propriedade que faz com que elas funcionem emsua massa como espelhos, mas como espelhosque s devolvem cores o efeito pr-do-sol, sequisermos. Ora, Dubois se refere nuvem comoum afeto deleuziano, um nada, uma coisa sem

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    significado algum, mas uma massa matricial, ori-gem csmica, gua em forma rudimentar que poderefratar pensamento, um devir que sempre muda.Alm de afetos, Deleuze pensa em termos como

    intuies e sensaes, assim define o professorda UFRJ Roberto Machado, no livro Deleuze a arte ea filosofia. Afetos, intuies, sensaes, isso o quea imagem nos conta.

    O deserto de sal em Gerry, portanto, uma nvoacondensada. Se afastarmos o olhar para uma visomacro, repetindo o gesto ensaiado pela cmerade Van Sant, do micro para o todo emolduradopor montanhas, paisagem seca e monocromtica(em tom branco-gelo j no final do filme), iremosperceber que o filme um relicrio de nuvens,potncia de afetos. Evm relao ideia de umaimagem pura, desatrelada da narrativa, da cro-nologia e do figurativo, inscreve um tipo de ima-gem a que Deleuze chama de imagem-cristal.Trata-se de um modelo de imagem, destitudo demovimento evidente, mas que carrega, em si, acoalescncia de experincias e memrias. O cristalseria essa estrutura bifacial, indiscernvel, que aomesmo tempo revela e esconde os fiapos do tempo.A contrao dos acontecimentos em uma nicacena, e no apenas uma imagem, tambm podeser entendida como um substrato de durao queno se legitima por um tempo puramente abstra-to mas espacializvel. O tempo, assim, torna-seespao e afeto. Vemos essa situao na disposiolabirntica dos corredores da escola em Elefante, ouna casa do msico Blake em ltimos dias, e tambmem outras cenas, em que movimento de cmera epersonagem se anulam e coexistem.

    Na tradio do cinema, Gus Van Sant no inau-gura uma categoria de preocupao com as nu-vens (Robert Bresson, D. W. Griffith e Theo An-gelopoulos j seguiam uma linha de propenso aimagens etreas), muito menos de ruptura com o

    tempo e a narrativa convencional (Chris Marker,com seus mltiplos pontos de vista; Yasujiro Ozu,e suas cenas do cotidiano moderno de Tquio;e Alain Robbe-Grillet, que leva os princpios doNoveau Romanpara a imagem, perfilam um statusde pioneirismo na experimentao imagtica). ATrilogia da mortevansantiana finca-se em outro lugarparticular, mais vinculado a um cinema contem-porneo transcultural (ao lado do taiwans HouHsiao-hsien, do hngaro Bla Tarr e do mexicanoCarlos Reygadas), que opta pelo tempo dilatado epela pausa. Falar sobre silncio, cenas de suspensocontra a ligeireza, o medo e as lacunas de memria;a nuvem contra a ao, as violncias, as certezasestanques e frgeis; tudo isso, o contrafluxo, podeser um elogio leveza, pontua o professor deComunicao da UFRJ Denilson Lopes, em A de-licadeza esttica, experincias e paisagens, ao discorrersobre cinema a exemplo de Hsiao-hsien.

    Em um de seus artigos, Lopes tece um discursoem prol do cinema de borda, capaz de questionarconvenes de linguagem e de forma, um cinemaque busca paisagens efmeras e que traduzem

    toda uma sutileza de afetos. Citando o escritor PaulAuster, ele demarca a eptome do que, na arte, parecepropor sermos, ns prprios, uma nuvem: Precisa-mos aprender a parar de sermos ns mesmos. a quecomea, e tudo o mais continua neste ponto. Devemosevaporar, deixar nossos msculos se entorpecerem,respirar at sentir a alma sair de nosso corpo. E depoisfechar os olhos. assim que se faz. O vazio dentrodo nosso corpo se torna mais leve que o ar ao redor.Aos poucos, comeamos a pesar menos do que nada.Fechamos os olhos. Abrimos os braos. Evaporamos.E ento, aos poucos, subimos no ar. Assim.

    A imagem da nuvem , dessa forma, um estado depresena constante. Matria em formao que nopara de mover-se e de cessar. Por isso, no possvelexplicitar suas razes, nem caberia delimit-las.Exatamente esse utilitarismo na interpretao daarte que Susan Sontag critica, em Contra a interpreta-o, advogando, de outro modo, um erotismo noolhar: A finalidade de todo comentrio sobre arteseria fazer obras de arte e, por analogia, nossaprpria experincia mais reais, e no menos, parans. A funo da crtica deveria ser mostrar comoisto o que , ou mesmo que isto o que , do quemostrar o que isto significa. a fragilidade do bvioda vida, o afeto que nada, o amor que iluso, tobem explicitada pelo escritor panamenho, radicadomexicano, Carlos Fuentes (1928-2012), no livro decontos Inquieta companhia. Assombrado pelos fan-tasmas de suas tias ancis, o jovem Alex (do contoA boa companhia) pergunta a elas por que ele deveentrar e sair s escondidas, pela porta dos fundos, eno pela porta da frente. um enigma, respondeuma das tias. De fato, isto: a nuvem um enigmaem forma de bruma.

    O vazio dentro

    do nosso corpo setorna mais leve queo ar ao redor. Aospoucos comeamosa pesar menos doque nada.

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    O MAR DE FIOTEMaringela Haddad

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    IN

    DITO

    S

    ChicoLude

    rmir

    A cidade se comprime.Nos deprimimos. A cidadegrita, a gente grita de volta, mas ningum se escuta. Acasa demolida, somos demolidos juntos. Porque nosdesapropriamos, desapropriamos a cidade.

    H sangue, sim, correndo no concreto, em cimaou embaixo dos viadutos, pulsando junto com pneus.Existe pele revestindo cada edifcio, veias, nervos,glndulas sudorparas. Existe lao, calor, abraos nasfachadas e pelos arrepiados no teto e no cho.

    Sim! O corpo extenso da cidade.

    Com os ns dos nossos dedos, revestimos paredes:azulejaria de falanges. Com ladrilhos, cobrimos oventre, com cermica a plvis. Substncias de baixocalor especfico compem a membrana do peito; nascostas, tatuamos janelas.

    ! A cidade a continuao do corpo.Nesse hbrido interdependente, o hurbano, nos

    modificamos um ao outro. O eu-humano desiguala,discrimina. O eu-urbano espreme, angustia. O eu-corpo se repudia ao repudiar a cidade. Em troca ocorpo sente, sofre.

    Somos os dois. Porque somos um.Nessa projeo de urbe sobre epiderme, o movi-

    mento de um reflete no outro. Reverbera nos cinzas,nas formas, nas cores e nas curvas. Em cada rudo.Nos fios e na face. Construes e expresses.

    Nesse quadro de M. C. Escher, no d pra saberquem desenha quem. Qual escada levou outra. mesmo indefinido. Por que no assumimos? Por queteimamos em separar.

    Transpomos nossas dores, faltas e medos para aquiloque planejamos. Mais alto, mais distantes, mais s.Assim somos. Fugimos para condomnios, cidadesmenores, mais rurais, mais silenciosas como quemfoge de si. L construmos de novo aquilo que estamos.

    O processo de criao da exposio Entre premiadono SPA das Artes deste ano e em cartaz at o dia 8de dezembro partiu desse cho, desse hbrido dehurbano. No museu Murillo La Greca, a fachada e asparedes se revestiram de fotos de um ensaio meu, quehavia sido batizado de EntreCorpos. Cotovelos, braos,peito, costas superdimensionados confundiam asescalas. De dentro de monculos, paisagens mnimas;miniatura do gigante cidade, que, por vezes, vemosem sobrevoos. Quem maior?

    Por trs dos tapumes, a possibilidade de brechar,adentrar. Por trs do vu usado nas reformas de prdios,a critica quilo que deixamos de ver nessa cidade quecresce to rpida quanto ns enlouquecemos.

    Se, por um lado, a pele se imprimiu no concreto,numa sala escura fotos de outro ensaio, agora com onome de EntrePrdios, foram projetadas em corpos depessoas. Cada movimento, cada passo, cada danafaziam mexer sobre o homem esquadrias, postes,prdios inteiros. Os corpos coreografados como plan-

    tas que correm em direo luz do sol, corriam paraa luz dos prdios. Cada mudana de foto cobria deoutras cores e texturas as peles dos modelos vivos. Aperformance do Hurbano escancarou a possibilidadede interferncia recproca cidade-homem.

    Voc se veste de mim, meu corpo tocar no seu,E do que h em mim, te dou uma parte daquilo que voc dizem as frases da jornalista Carol Almeida, co-ladas em uma das paredes da exposio. Carol, quandoescreveu o texto, falou do encontro dos corpos entresi; pele com pele. Mas, nesse outro contexto, ao ladoda ilustrao de Adeildo Leite, o significado de quenos vestimos de metrpole. O alicerce do homem parecido com aquele que usa para projetar seu espao.

    Tambm performtico, o vdeo nossa casa?misturadores. De um vis, uma casa desapropriada, demolidapara dar lugar ao progresso. Mais vias, mais car-ros. Um no lugar substituindo um lugar. De quem mesmo esta casa se o fim dela determinado por umainstncia de poder que extrapola as paredes do lar? Dooutro vis um relacionamento de um casal tambm rui.E a casa e o homem nus sentem a destruio iminente.

    A estrutura destruda mais uma metfora de comoa cidade cresce, a despeito da vontade de alguns, para ointeresse de outros. O namoro que se finda, com marcasna parede, d lugar a um vazio branco. No museu, obarulho do trator trilha sonora. E o visitante assistea tudo sentado no sof da minha sala.

    Mas o sol h de brilhar mais uma vez. Sempre bri-lha. Nem que seja em brechas, frestas, entre prdios.Fazendo um bal de se espremer entre os cimentos.

    Conhea as imagens da exposio Entre, de Chico

    Ludermir, que teve curadoria de Olivia Mindelo, no

    endereo cargocollective/chicoludermir

    Voc se veste de mim

    CHICO LUDERMIR

  • 7/25/2019 Suplemento Pernambuco - Entrevista com Amilcar Bettega

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    PERNAMBUCO, DEZEMBRO

    IN

    DITO

    S

    AdelaideIvnova

    Nico, o maisimportante tambmera o voo, porquedestino no haviaDrama of exile um disco, um nome de disco. Podiaser uma poesia, podia ser um outdoor, podia seruma tatuagem. Dificilmente se conseguiria definiro que o exlio em to poucos toques. Fiona Appletem um ttulo de lbum com 90 palavras e entroupro Livro dos Recordes. Nico, a dona de Drama of exile, noentanto, nunca ganhou prmio pela conciso. Somoschegados a exageros, aumentos, superaes. Mas oexlio apenas isso, minha filha, drama. No seprecisa de 90 palavras pra explicar.

    O curioso que no se sabe muito bem qual odrama do exlio de Nico, e em relao qual cidadeele (o drama) estaria relacionado. Veja, a questocentral do exlio no para onde se vai, mas o quese deixa para trs. Mas onde est o drama, quandoaquilo que se deixa pra trs lhe indiferente? Desdequando ciganos sentem saudade?

    Nico saiu de Berlim na dcada de 1950, comochegou porque deu. Ela nunca mais voltou a viverna cidade. Em 1940, ela veio com me, aos 2 anos,fugindo da Colnia destruda durante a SegundaGuerra. Veio de uma cidade em runas para outra,porque o que estava em decadncia era mais a vidado que as coisas.

    E em 1956 ela foi embora para Paris e, da em dian-te, Nico, nascida Christa Paeffgen, criada nas ruaselegantes da Berlim ocidental e americanizada, vi-veu em pelo menos mais cinco cidades: Paris, sim,e mais Nova York, Londres, Manchester, Ibiza. Notinha endereo fixo, as correspondncias retornavama seus remetentes.

    A condio do exilado seja ele exilado por necessi-dade, como Neruda, ou por desgosto, como Saramago que sua nostalgia geogrfica, e nisto est tudo.

    Mas em Drama of exile, embora o ttulo seja o que, em nenhum momento Nico trabalha com perda,abandono ou saudade de um lugar. Das sete canescompostas por ela, seis usam repetidamente a palavralight. No total, o termo repetido 10 vezes. A mimme parece, ento, que mais do que um lar, Nico sentiasaudade de algo maior no isso que saudade ,afinal?, a falta de tudo? Na poca que lanou o lbum,Nico vivia em Manchester. Manchester, diz ela numaentrevista de 1975, parece com Berlim em muitosaspectos, mas no diz quais.

    O nico lugar que merece meno, num disco quese chama drama do exlio, o aeroporto. Em Orlyflight, um poeminha besta sobre as luzes da cidade

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    de Paris quando vistas de cima, ela at revela paraonde vai Madrid mas cita a cidade de maneirato frvola que como se o mais importante fosse ovoo, e no o destino.

    No por acaso, com a frase Ela era uma verda-deira cigana que seu filho, Ari Pffgen, a define, nodocumentrio Nico icon.

    ***

    Em 1964, quando j vivia em Nova York, Nico foiapresentada a Andy Warhol. Diz-se que a primeiracoisa que ela falou, enquanto mordia uma laranjavinda de sua taa de ponche, foi: Eu s gosto de frutasquando elas esto boiando no lcool.

    Uma dcada depois, Nico foi visitar seu filho, queela no via h 36 meses. O menino era criado pelaav, me de Alain Delon, em Paris. Nico veio de NovaYork para turn europeia e passou em Bourg-la-Reinepara v-lo. O nico presente que a cantora trouxepara o filho: uma laranja.

    ***

    Uma semana depois da morte de Lou Reed, numdomingo de manh (quando mais?), achei por bemvisitar o tmulo de Nico, que foi enterrada ao lado dame, no Cemitrio-floresta de Grunewald. Eu acho im-portante ritualizar as coisas. a chance que a gente temde deixar a vida vivvel. Pouco importa se o cemitriofica 14km da minha casa e o website da companhiade transporte de Berlim sugira que eu pegue um bonde,um trem e um nibus, pelo qual deveria esperar umhora, e que depois ande mais uns 20 minutos no meioda floresta, num trajeto que leva duas horas e meia,dentro da mesma cidade. J que pra ritualizar, entoque se faa assim, demoradamente.

    Eu poderia ter ido de bicicleta, o que me tomariaapenas uma hora. Mas no se anda de bicicleta em

    Berlim, em outubro. Fiquei pensando: se estivesse emBerlim, em vez de Ibiza, Nico teria morrido? assim:a morte circunstancial, ou absoluta?

    Quando Nico morreu, eu tinha seis anos e acabara

    de ganhar minha primeira bicicleta, e andava em cr-culos na rua sem sada em que morava, no Espinheiro,porque no tinha sido autorizada, pelas 300 mulheresque me criavam, a sair da rua. A o mais importantetambm era o voo, porque destino no havia.

    ***

    Eu levei uma vida pra chegar nas redondezas doterreno que era, outrora, necrpole dos suicidas. Osmortos chegaram primeiro eram enterrados oujogados por ali, no meio da floresta, ao acaso, semlpide, porque um suicida era uma vergonha parafamlia. A definio daquele espao como sendo umcemitrio, no entanto, s veio depois, em 1920, quan-do se decidiu que toda cidade deveria ter um cemitriono vinculado Igreja, de modo que suicidas e outrosmortos de pouca honra pudessem ter um enterrodigno. Em 1929, por seu carter idlico, defuntos demorte morrida comearam a ser enterrados nolocal. Nico chegou em 1988 e foi sepultada com seunome de batismo, ao lado da me.

    Quando eu desci do trem, na antepenltima parteda minha viagem, o mundo cheirava a pinheiro, e deide cara com estacionamento de bicicleta, que estavacheio. Ali, aboletada ao lado de no-sei-quantasmagrelas, esperei uma eternidade pelo nibus. queele s passa uma vez por hora, nos finais de semana.Nos dias teis