súmula 603-stj · a conduta de instituição financeira que desconta o salário do correntista...

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Súmula 603-STJ – Márcio André Lopes Cavalcante | 1 Súmula 603-STJ Márcio André Lopes Cavalcante DIREITO DO CONSUMIDOR PRÁTICA ABUSIVA Banco não pode descontar verbas de natureza salarial depositadas na conta bancária para quitar mútuo comum Súmula 603-STJ: É vedado ao banco mutuante reter, em qualquer extensão, os salários, vencimentos e/ou proventos de correntista para adimplir o mútuo (comum) contraído, ainda que haja cláusula contratual autorizativa, excluído o empréstimo garantido por margem salarial consignável, com desconto em folha de pagamento, que possui regramento legal específico e admite a retenção de percentual. STJ. 2ª Seção. Aprovada em 22/2/2018, DJe 26/2/2018. Imagine a seguinte situação hipotética: João é servidor público aposentado e recebe seus proventos no banco “Moreal”. João fez contrato de mútuo com o banco, tendo tomado emprestado R$ 40 mil. O mutuário pagou quase todo o empréstimo, mas ficou devendo R$ 11 mil. No contrato havia uma previsão de que a dívida decorrente do empréstimo poderia ser descontada diretamente da conta-corrente que João mantém no banco “Moreal”. A cláusula dizia mais ou menos o seguinte: “O MUTUÁRIO autoriza o MUTUANTE a debitar na conta-corrente de que é titular, até quanto os fundos comportarem, todas as quantias devidas em função do empréstimo tomado.” Ocorre que, em vez de buscar os meios judiciais para receber a dívida, o banco passou a reter o valor de toda a aposentadoria de João (R$ 1.500) todas as vezes que ela era depositada, até quitar integralmente a dívida. A conduta do banco foi lícita? NÃO. O STJ entende que é ilegal a conduta do banco de se apropriar do salário do cliente, depositado na conta-corrente, ainda que seja para pagar um mútuo (empréstimo) contraído com esta instituição financeira e mesmo que exista essa autorização no contrato. Nesse sentido: STJ. 4ª Turma. AgRg nos EDcl no AREsp 429.476/RJ, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 18/09/2014. Mas esse desconto foi autorizado pelo contrato assinado? Ocorre que o STJ entende que esta cláusula que autoriza o desconto é abusiva. Por que é abusiva? A conduta de instituição financeira que desconta o salário do correntista para quitação de débito contraria o art. 7º, X, da Constituição Federal e o art. 833, IV, do CPC, pois estes dispositivos visam à proteção do salário do trabalhador, seja ele servidor público ou não, contra qualquer atitude de penhora, retenção, ou qualquer outra conduta de restrição praticada pelos credores, salvo no caso de prestações alimentícias. Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: X - proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa;

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Súmula 603-STJ – Márcio André Lopes Cavalcante | 1

Súmula 603-STJ Márcio André Lopes Cavalcante

DIREITO DO CONSUMIDOR

PRÁTICA ABUSIVA Banco não pode descontar verbas de natureza salarial depositadas

na conta bancária para quitar mútuo comum

Súmula 603-STJ: É vedado ao banco mutuante reter, em qualquer extensão, os salários, vencimentos e/ou proventos de correntista para adimplir o mútuo (comum) contraído, ainda que haja cláusula contratual autorizativa, excluído o empréstimo garantido por margem salarial consignável, com desconto em folha de pagamento, que possui regramento legal específico e admite a retenção de percentual.

STJ. 2ª Seção. Aprovada em 22/2/2018, DJe 26/2/2018.

Imagine a seguinte situação hipotética: João é servidor público aposentado e recebe seus proventos no banco “Moreal”. João fez contrato de mútuo com o banco, tendo tomado emprestado R$ 40 mil. O mutuário pagou quase todo o empréstimo, mas ficou devendo R$ 11 mil. No contrato havia uma previsão de que a dívida decorrente do empréstimo poderia ser descontada diretamente da conta-corrente que João mantém no banco “Moreal”. A cláusula dizia mais ou menos o seguinte: “O MUTUÁRIO autoriza o MUTUANTE a debitar na conta-corrente de que é titular, até quanto os fundos comportarem, todas as quantias devidas em função do empréstimo tomado.” Ocorre que, em vez de buscar os meios judiciais para receber a dívida, o banco passou a reter o valor de toda a aposentadoria de João (R$ 1.500) todas as vezes que ela era depositada, até quitar integralmente a dívida. A conduta do banco foi lícita? NÃO. O STJ entende que é ilegal a conduta do banco de se apropriar do salário do cliente, depositado na conta-corrente, ainda que seja para pagar um mútuo (empréstimo) contraído com esta instituição financeira e mesmo que exista essa autorização no contrato. Nesse sentido: STJ. 4ª Turma. AgRg nos EDcl no AREsp 429.476/RJ, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 18/09/2014. Mas esse desconto foi autorizado pelo contrato assinado? Ocorre que o STJ entende que esta cláusula que autoriza o desconto é abusiva. Por que é abusiva? A conduta de instituição financeira que desconta o salário do correntista para quitação de débito contraria o art. 7º, X, da Constituição Federal e o art. 833, IV, do CPC, pois estes dispositivos visam à proteção do salário do trabalhador, seja ele servidor público ou não, contra qualquer atitude de penhora, retenção, ou qualquer outra conduta de restrição praticada pelos credores, salvo no caso de prestações alimentícias.

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: X - proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa;

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Art. 833. São impenhoráveis: IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º; (...) § 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º, e no art. 529, § 3º.

Perceba, portanto, que esta cláusula que autoriza o desconto concede ao banco a posição de credor ultraprivilegiado, considerando que ele poderia “executar” extrajudicialmente a dívida sem estar preso à limitação legal do art. 833, IV, do CPC. Ora, se o banco ingressasse com uma execução pedindo a penhora do salário depositado de João, o juiz não poderia deferir essa medida por conta da vedação do art. 833, IV, do CPC. Logo, com muito mais razão não pode o banco fazer ele próprio a penhora dos valores depositados. Como afirmou a Min. Nancy Andrighi, “Se nem mesmo ao Judiciário é lícito penhorar salários, não será a instituição privada autorizada a fazê-lo.” (Resp 1.012.915/PR) A previsão contratual nesse sentido é, portanto, ilícita por representar uma fraude, uma burla ao art. 833, IV, do CPC. Indenização por danos morais Vale ressaltar que, neste caso, o banco poderá ser condenado a pagar indenização por danos morais por conta de sua conduta ilícita. A retenção de verba salarial com o objetivo de saldar débitos existentes em conta-corrente mantida pela própria instituição financeira credora é conduta passível de reparação moral. Existe algum percentual baixo que o banco está autorizado a reter (ex: 30% do salário)? Essa possibilidade existe? NÃO. É vedado ao banco mutuante reter, em qualquer extensão, os salários, vencimentos e/ou proventos de correntista para adimplir o mútuo (comum) contraído. “Em qualquer extensão” significa aqui “qualquer que seja o percentual”. Desse modo, mesmo que seja um percentual baixo (10%, 20%, 30% do salário), ainda assim essa prática será considerada abusiva. O que o banco deve fazer nestes casos? A instituição financeira terá que buscar a satisfação de seu crédito pelas vias judiciais próprias (ajuizar ação de cobrança, monitória ou de execução, a depender do caso concreto). Esse contrato celebrado por João e que foi explicado acima é aquilo que se chama de “empréstimo consignado”? NÃO. O contrato feito por João não se trata de consignação em folha de pagamento (“empréstimo garantido por margem salarial consignável” ou simplesmente “empréstimo consignado”). Em que consiste o empréstimo consignado? O empréstimo consignado também é proibido? NÃO. No empréstimo consignado, o mutuário autoriza o desconto dos valores da sua folha de pagamento. Antes mesmo de a pessoa receber sua remuneração/proventos, já há o desconto da quantia, o que é efetuado pelo próprio órgão ou entidade pagadora.

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Em outras palavras, há um desconto direto no salário, remuneração ou aposentadoria, com a participação do empregador/órgão público. No empréstimo consignado em folha de pagamento, se é depositada na conta do devedor uma quantia referente a outra fonte de renda (ex: um “bico” feito pelo mutuário) ou a doação de amigo, tal quantia não entrará no desconto. O empréstimo consignado é autorizado pelo art. 45 da Lei nº 8.112/90 e pela Lei nº 10.820/2003. Trata-se, portanto, de prática permitida (lícita). Por que o contrato de empréstimo consignado é válido? Porque o tomador do empréstimo se beneficia de condições vantajosas, como juros reduzidos e prazos mais longos, motivo pelo qual a autorização para o desconto na folha de pagamento não constitui cláusula abusiva. Além disso, conforme já ressaltado, o empréstimo garantido por margem salarial consignável com desconto em folha de pagamento possui regramento legal específico e a própria Lei admite a retenção de determinado percentual.