sumÁrio 1 introduÇÃo 10 2 aprofundamento … tese... · esser e a equivalência homemórfica em...
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SUMRIO
1 INTRODUO................................................................................................................... 10 2 APROFUNDAMENTO METALINGUSTICO: MATRIZ EPISTEMOLGICA, REFERENCIAL TERICO E JUSTIFICATIVA DO TRABALHO ............................. 17
2.1 MATRIZ EPISTEMOLGICA............................................................................... 17 2.2 JUSTIFICATIVA E REFERENCIAL TERICO: A INDECIDIBILIDADE ENTRE VINCULAO E DISCRICIONARIEDADE NO DISCURSO DOS DIREITOS HUMANOS EM UMA SOCIEDADE POLICONTEXTURAL........................................ 30
2.2.1 A transposio da distino entre contexto de descoberta e contexto de justificao ao mbito das decises judiciais............................................................ 31 2.2.2 A tenso indecidvel entre vinculatividade e discricionariedade....................38 2.2.3 Metaeixo paranoico: a justia jurdica e a parania mtua entre Luhmann e Derrida......................................................................................................................... 42 2.2.4 Eixos poltico (Douzinas), compreensivo (Esser), analtico (Peczenik) e cultural (Panikkar e Boaventura Santos)................................................................. 56 2.2.5 O transconstitucionalismo de Marcelo Neves e as irritaes recprocas entre ordens jurdicas estatais e ordens jurdicas locais extraestatais.............................70
3 VNCULOS DE ANCESTRALIDADE: INSPIRAES PARA OS EIXOS POLTICO, COMPREENSIVO, ANALTICO E CULTURAL...................................... 84
3.1 ANCESTRAIS POLTICOS: A JURISPRUDNCIA PRAGMTICA DE JHERING E A JURISPRUDNCIA DOS INTERESSES DE HECK................................................ 84
3.1.1 Jhering e a luta poltica pelo direito................................................................. 84 3.1.2 A Jurisprudncia dos Interesses e a heterorreferncia do sistema jurdico 89
3.2 INSPIRAO COMPREENSIVA: PANORAMA SOBRE A EVOLUO DO PENSAMENTO JURDICO ESTADUNIDENSE (DE HOLMES AO REALISMO)...... 95
3.2.1 Llewellyn e sua lista de fatores de estabilizao........................................... 106 3.3 ANCESTRAL ANALTICO: O REALISMO DE ALF ROSS E A PERPECTIVA SEMNTICA DE VALIDADE........................................................................................ 118 3.4 ANCESTRAL CULTURAL: AS INVARIANTES AXIOLGICAS E A NOO DE CONJETURA NO TRIDIMENSIONALISMO DE MIGUEL REALE............................128
3.4.1 Aspectos gerais do tridimensionalismo concreto de Miguel Reale ............. 128 3.4.2 A aporia entre verdade e conjetura na perspectiva de Reale sobre a justia......................................................................................................................... 134 3.4.3 Morris Cohen: vinculao e discricionariedade como opostos polares...... 138
4 EIXOS COMPREENSIVO E ANALTICO: O MODELO HERMENUTICO DE ESSER E SUA COMPLEMENTAO APOFNTICA PELA TEORIA DIALGICA DA ARGUMENTAO DE PECZENIK......................................................................... 142
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4.1 ESSER: COM E CONTRA O REALISMO ESTADUNIDENSE.............................. 142
4.2 O PENSAMENTO NEO-REALISTA ESCANDINAVO DE PECZENIK................ 158 4.2.1 Convergncias e divergncias entre Peczenik e o realismo de Alf Ross..... 158 4.2.2 Coerentismo, justificao e transformaes.................................................. 164 4.2.3 Equilbrio reflexivo, derrotabilidade e scientia iuris................................ 175 4.2.4 Justificao profunda da Dogmtica Jurdica.............................................. 192
4.3. ANALOGIA, ABDUO E FORMULAO DE HIPTESES: KAUFMANN, ESSER E PECZENIK....................................................................................................... 201
4.3.1 O raciocnio jurdico como raciocnio analgico na obra de Kaufmann.... 201 4.3.2 A relao analgico-abdutiva entre contexto de descoberta e contexto de justificao................................................................................................................. 206
4.4 A FORMULAO DE VERDADE COMO DETERMINAO DO INDECIDVEL NA RELAO ENTRE VINCULAO E DISCRICIONARIEDADE........................ 223
4.4.1 As formulaes de verdade e a virada hermenutica personalista de Pareyson.................................................................................................................... 223 4.4.2 Vinculao, sentido fraco de discricionariedade e coerncia narrativa das formulaes de verdade............................................................................................ 226
4.5 A EQUIVALNCIA FUNCIONAL DOS CONCEITOS EM ESSER E A COMUNICAO ATRAVS DAS FRONTEIRAS CULTURAIS EM PECZENIK.... 240
5 EIXOS CULTURAL E POLTICO: HERMENUTICA DIATPICA E VOS DE SENTIDO NO DISCURSO DOS DIREITOS HUMANOS............................................. 244
5.1 PANORAMA SOBRE O ENTRELAAMENTO POLTICO-CULTURAL NO DISCURSO DOS DIREITOS HUMANOS...................................................................... 245 5.2 EIXO CULTURAL: A HERMENUTICA DIATPICA......................................... 255
5.3 EIXO POLTICO: OS VOS DE SENTIDO DO SIGNIFICANTE DIREITOS HUMANOS..................................................................................................................... 267
5.4 OS INSIGHTS DIATPICOS DE ESSER E PECZENIK..................................... 275 5.4.1 Meta-equivalncia funcional: a equivalncia de conceitos e instituies em Esser e a equivalncia homemrfica em Panikkar................................................ 275 5.4.2 Descrio analtica da aproximao diatpica entre jogos de linguagem e formas de vida luz de Peczenik e Aarnio............................................................. 278
5.5 ESBOO ALEGRICO SOBRE A RE-ENTRY DOS VOS DE SENTIDO DO SIGNIFICANTE DIREITOS HUMANOS NO SISTEMA JURDICO....................... 291
6 METAEIXO PARANICO: ENTRE OS COMPELIMENTOS SISTMICOS E A TRANSCENDNCIA RADICAL...................................................................................... 302
6.1 ANCESTRAL SISTMICO: A LIVRE INVESTIGAO CIENTFICA DE GNY................................................................................................................................ 302
6.2 ANCESTRAL DESCONSTRUTIVO: O (QUASE-)VOLUNTARISMO NO KANTOROWICZ DO MANIFESTO PELO DIREITO LIVRE...................................... 312
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6.3 DIMENSO META-AXIAL AUTOPOIETICA: A TEORIA DOS SISTEMAS DE LUHMANN...................................................................................................................... 326
6.3.1 O direito na teoria dos sistemas autopoieticos de Luhmann....................... 326 6.3.2 A argumentao jurdica luz da teoria dos sistemas de Luhmann.......... 331
6.4 DIMENSO META-AXIAL DA DIFFRANCE: DERRIDA E A DESCONSTRUO........................................................................................................ 359 6.5 TEUBNER E A MTUA PARANIA ENTRE LUHMANN E DERRIDA............ 372
7 UMA LEITURA DESCONSTRUTIVO-CONSTRUTIVA DAS INDECIDIBILIDADE VINCULAO/DISCRICIONARIEDADE, CONTEXTO DE DESCOBERTA/CONTEXTO DE JUSTIFICAO E UNIVERSALISMO/MULTICULTURALISMO: O POTENCIAL DE JUSTIA-JURDICA-POR-VIR DO MAL-ENTENDIDO CRIATIVO NO INTERVALO ENTRE ESTOCADAS E BLOQUEIOS.......................................................................................... 392
7.1 AS INDECIDIBILIDADES VINCULAO/DISCRICIONARIEDADE E CONTEXTO DE DESCOBERTA/CONTEXTO DE JUSTIFICAO: ENTRELAANDO PARANOICA E DIATOPICAMENTE OS COMPELIMENTOS SISTMICOS E O HUNCH ORIENTADO A UMA JUSTIA POR-VIR................. 392
7.1.1 Entrelaando os eixos compreensivo e analtico em torno do metaeixo paranoico................................................................................................................... 393
7.1.1.1 Uma explorao do potencial construtivo da argumentao jurdica luz da parania mtua entre autopoiese e desconstruo.......................................... 393 7.1.1.2 Os limites desconstrutivos da argumentao jurdica luz do metaeixo paranoico............................................................................................................. 397 7.1.1.3 Uma leitura desconstrutivo-construtiva sistmico-iterativa dos steadying factors: pontos de apoio de uma metodologia reflexiva diante da discricionariedade envolta no intervalo redundncia/variao........................... 407
7.1.2 Entrelaando os eixos poltico e cultural em torno do metaeixo paranoico................................................................................................................... 419
7.1.2.1 O papel dos interesses em uma concepo de argumentao jurdica como comunicao sistmica........................................................................................ 419
7.1.2.2 Thrust-and-parry: entre vinculao e discricionariedade, entre a re-entry cientificamente livre do dado no construdo e a livre justia responsiva s irritaes geradas pelo Outro.............................................................................. 423 7.1.2.3 A abertura irracionalidade da justia por-vir como condio de (uma tentativa inexoravelmente imperfeita de) racionalidade de um sistema jurdico permeado por conflitos entre ordens jurdicas estatais e ordens jurdicas locais extraestatais a respeito do significado dos direitos humanos.............................. 438
7.2 A RE-ENTRY DO COSTUME COMO MAL-ENTENDIDO CRIATIVO........... 452
7.2.1 Uma leitura sistmico-iterativa do novo pluralismo jurdico ................. 453 7.2.2 As patentes da rvore neem e do p turmrico como expedientes logocntricos de canibalizao epistmica ............................................................. 465
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7.3 A DISPUTA ENTRE O MUNICPIO DE PORTO ALEGRE E OS INDGENAS KAINGANG PELO MORRO DO OSSO: LENDO DESCONSTRUTIVO-CONSTRUTIVAMENTE O THRUST-AND-PARRY DA INDECIDIBILIDADE.... 479
7.3.1 Uma leitura desconstrutiva das justificaes interna e externa da deciso liminar........................................................................................................................ 481 7.3.2 Uma leitura desconstrutivo-construtiva em forma de esboo diatpico aquiliano: o mal-entendido criativo como propulsor iterativo da justia por-vir............................................................................................................................... 498 7.3.3 Uma leitura desconstrutiva da fundamentao diatpica do voto do relator do agravo de instrumento interposto pelo Ministrio Pblico Federal............... 526 7.3.4 Uma leitura desconstrutiva da espiral entre os contextos de descoberta e de justificao da deciso liminar e da sentena......................................................... 548!
8 CONCLUSO................................................................................................................... 565
8.1 A DINMICA ITERATIVA DO RASTRO E A RELAO APORTICA ENTRE VINCULAO E DISCRICIONARIEDADE................................................................. 566
8.1.1 A relao entre Luhmann e Derrida como uma parania mtua estruturada nos moldes de um jogo concertado de thrust-and-parry.................................. 566 8.1.2 A aportica tentativa de responder simultaneamente razo e pela razo: a busca pelo equilbrio reflexivo como esforo de justificao coerentista possvel apenas como impossvel............................................................................................ 572
8.2 SISTEMATIZAO DOS RESULTADOS OBTIDOS: RESPONDENDO AS QUESTES ORIENTADORAS...................................................................................... 595
8.3 CONCLUSO EM SENTIDO ESTRITO: CONFIRMAO OU REFUTAO DA (HIP)TESE?.................................................................................................................... 640
REFERNCIAS................................................................................................................... 643
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1 INTRODUO
Este trabalho tem como objetivo geral propor, luz da parania mtua descrita por
Teubner entre a autopoiese luhmanniana e a desconstruo derridariana, um modelo
hermenutico adequado ao enfrentamento dos intervalos vinculatividade/discricionariedade,
contexto de descoberta das decises judiciais/contexto de justificao das decises judiciais e
universalismo/multiculturalismo no cenrio do discurso dos direitos humanos desenvolvido
em uma sociedade policontextural que apresenta crescentemente conflitos entre ordens
jurdicas estatais que tm como um de seus traos tpicos o autoreconhecimento da
diferenciao funcional do sistema jurdico e ordens jurdicas locais extraestatais cujos
pressupostos antropolgico-culturais no apresentam a reflexividade tpica do
constitucionalismo de Estado1.
O escrito justifica-se e caracteriza-se como inovador ao pretender preencher a
lacuna cientfica quanto a uma resposta ao seguinte problema de pesquisa: como pode ser
estruturado um modelo hermenutico descritivo-enquanto-normativo que, embora no sendo
restrito aporia (jurdico-)pluralista, oferea uma abordagem integrada sobre as
indecidibilidades vinculatividade/discricionariedade, contexto de descoberta das decises
judiciais/contexto de justificao das decises judiciais e universalismo/multiculturalismo
idnea a catalisar uma construtiva desconstruo dos tpicos moldes mutuamente paranoicos
das relaes entre ordens jurdicas estatais e ordens jurdicas locais extraestatais?
O cumprimento da tarefa ora assumida ser desenvolvido mediante a adoo, como
matriz epistemolgica, da desconstruo derridariana, entendida esta de modo
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1 Sobre a noo de sociedade multicntrica ou policontextural, tpica do vocabulrio da teoria dos sistemas, vejamos a explicao de Marcelo Neves (2009, p. 23-4): Isso significa, em primeiro lugar, que a diferena entre sistema e ambiente desenvolve-se em diversos mbitos de comunicao, de tal maneira que se afirmam distintas pretenses [...] de autonomia sistmica. E, em segundo lugar, na medida em que toda diferena se torna centro do mundo, a policontexturalidade implica uma pluralidade de autodescries da sociedade, levando formao de diversas racionalidades parciais [...]. Falta, ento, uma diferena ltima, suprema, que possa se impor contra todas as outras diferenas. Ou seja, no h um centro da sociedade que possa ter uma posio privilegiada para sua observao e descrio; no h um sistema ou mecanismo social a partir do qual todos os outros possam ser compreendidos. Isso leva a uma pluralidade de cdigos-diferena orientadores da comunicao nos diversos campos sociais. A diferena ter/no ter prevalece no sistema econmico, o cdigo poder/no poder tem o primado no poltico e a distino lcito/ilcito predomina no jurdico. Na cincia, arte, educao, religio e no amor, tm o primado, respectivamente, os cdigos verdadeiro/falso, belo/feio (afinado versus desafinado esteticamente), aprovao/reprovao (enquanto cdigo-limite da diferena gradual aprender/no aprender, expressa nas notas e predicados), transcendente/imanente e o cdigo amoroso (prazer/amor ou amor/desamor), que serve de base formao da famlia nuclear moderna. claro que isso leva a tenses, pois dessa maneira as diversas racionalidades confrontam-se com outras racionalidades, cada uma delas com pretenso de universalidade. Portanto, qualquer forma de autismo desenvolvido em uma esfera pode ter efeitos destrutivos nas outras esferas sociais e, por fim, tambm sobre a integrao social e sistmica de uma sociedade complexa. Diferenciao no significa isolamento, mas antes importa uma intensa capacidade cognitiva perante o entorno.
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desconstrutivo-construtivo (Miriam Bankovsky), de maneira a viabilizar dilogos e
entrecruzamentos que desvelem tanto as deficincias quanto as potencialidades das vertentes
de pensamento presentes em nosso referencial terico2.
As aporias hermenutico-analticas vinculatividade/discricionariedade e contexto de
descoberta das decises judiciais/contexto de justificao das decises judiciais, bem como a
aporia poltico-axiolgica universalismo/multiculturalismo, ao serem entrelaadas e
transpostas ao contexto dos contatos entre as ordens jurdicas estatais e as ordens jurdicas
locais extraestatais, suscitam um problema sociolgico tpico de uma sociedade
policontextural, qual seja, a tenso entre heterorreferncia e autorreferncia do sistema
jurdico. Em outras palavras, segundo Teubner, a justia como frmula de contingncia de
um sistema jurdico submetido a uma dinmica social em que irritaes geradas por seu
ambiente, por um lado, denunciam incessantemente que o direito poderia e/ou deveria ser de
outro modo, e, por outro, podem ser reconhecidas como juridicamente relevantes apenas caso
sejam traduzidas para a linguagem artificial do cdigo lcito/ilcito s pode ser teorizada
mediante uma vinculao a uma teoria da sociedade. Por tal razo, visualizamos uma
inspirao para o enfrentamento das mencionadas aporias em algumas tradies do
pensamento jurdico que, sem ignorarem a necessidade da preservao da capacidade de
autorreferncia do sistema jurdico, destacaram a relevncia da dimenso
emprica/sociolgica do direito: o realismo estadunidense; o realismo escandinavo; o realismo
axiolgico culturalista; a Jurisprudncia Pragmtica e a Jurisprudncia dos Interesses; o
Direito Livre; e a Livre Investigao Cientfica. O referencial terico do nosso projeto
congregar no apenas ideias dos pensadores clssicos das mencionadas tradies, mas
tambm e principalmente teses que podem ser lidas como tentativas de revitalizao de tais
modelos, os quais, por sua vez, podem ser compreendidos como seus ancestrais. Nesse
sentido, estabeleceremos um elo entre o realismo estadunidense e o pensamento de Esser, de
modo a caracterizar o eixo compreensivo do modelo ora proposto, bem como uma ligao
entre o realismo escandinavo e a teoria da argumentao de Peczenik, o que permitir a
configurao do eixo analtico deste projeto. De tal maneira, poderemos caracterizar
desconstrutivo-construtivamente os aporticos intervalo vinculatividade/discricionariedade e
contexto de descoberta das decises judiciais/contexto de justificao das decises judiciais. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!2 A palavra epistemolgica foi grafada com aspas tendo em vista a concepo derridariana sobre a filosofia e a razo, atividades de pensamento que, segundo o filsofo, tm a si prprias como objeto, o que caracteriza uma aporia reveladora dos limites da racionalidade e do fracasso do logocentrismo. Registra-se, pois, que o termo epistemolgico est sendo aqui utilizado em sentido convencional, ou seja, como condio de possibilidade de produo do conhecimento cientfico, sem que se ignorem os limites denunciados pelo prprio Derrida quanto possibilidade mesma de uma epistemologia desse tipo.
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Ademais, entrelaar nossa leitura sobre tal intervalo ao enfrentamento da aporia
universalismo/multiculturalismo no contexto do discurso sobre os direitos humanos
demandar a insero de dois outros eixos de trabalho. O primeiro desses eixos envolver
uma aproximao entre de perspectivas que compreendam a dimenso emprica/sociolgica
do direito sob um prisma cultural: o realismo axiolgico culturalista de Miguel Reale e a
hermenutica diatpica de Panikkar, com os respectivos complementos realizados por
Boaventura Santos. O outro eixo a ser inserido o poltico, em que retomaremos, tendo como
referncia os contemporneos estudos crticos do derridariano Douzinas sobre os direitos
humanos, na relao estabelecida pela Jurisprudncia Pragmtica de Jhering e pela
Jurisprudncia dos Interesses entre o direito e a poltica, seja esta considerada como um
pressuposto para a positivao de contedos jurdicos, seja como critrio decisrio de carter
teleolgico-social.
Dado o cunho desconstrutivo do pensamento de Douzinas, o pensamento derridariano,
em um jogo de indecidibilidade entre nveis de linguagem, no apenas constituir o ncleo de
nossa matriz epistemolgica, mas tambm integrar o eixo poltico do nosso referencial
terico. Esse jogo de indecidibilidade, contudo, no se esgota a, pois a obra de Derrida
tambm constitui um dos polos do metaeixo paranoico do nosso referencial terico,
metaeixo este que se debruar sobre os quatro eixos de trabalho anteriormente mencionados.
O cerne de tal dimenso meta-axial est no pensamento de Teubner, autor que visualizou uma
parania mtua entre, de um lado, a pretenso de justia como transcendncia radical
sustentada pela desconstruo derridariana, e, de outro, os limites sistmicos da
autotranscendncia, que figuram no ncelo da leitura autopoietica do sistema jurdico
desenvolvida por Luhmann. Nesse contexto, buscaremos inspirao no Direito Livre de
Kantorowicz e na Livre Investigao Cientfica de Gny, vertentes tericas que leremos,
respectivamente, como ancestrais das perspectivas de Derrida e Luhmann, inclusive no que
concerne ao envolvimento em uma semelhante parania mtua.
Diante do exposto, podemos apresentar a seguinte hiptese de trabalho: Dada uma
concepo desconstrutivo-construtiva (BANKOVSKY, 2012) da desconstruo derridariana e
das correlatas noes de justia por-vir, dinmica iterativa do rastro e obrigao assimtrica
perante o Outro; a parania mtua descrita por Teubner entre a desconstruo derridariana e a
autopoiese luhmanniana no contexto de um modelo hermenutico que, embora no sendo de
aplicao restrita aporia universalismo/multiculturalismo, viabilize uma abordagem
descritiva-enquanto-normativa das conflitos entre as ordens jurdicas estatais e as ordens
jurdicas locais extraestatais, bem como do correlato(s) sentido(s) jurdico da categoria terica
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direitos humanos em uma sociedade policontextural idnea a constituir um metaeixo de
abordagem que ao configurar, de maneira hierarquicamente entrelaada, um contnuo
movimento circular entre, de um lado, uma crtica desconstrutiva dotada de uma pretenso
radical de transcendncia a eixos de abordagem referentes s dimenses compreensiva
(Esser), analtica (Peczenik), poltica (Douzinas) e cultural (Panikkar/Boaventura Santos) do
fenmeno jurdico-hermenutico, e, de outro, uma reaglutinao reconstrutiva dessas
dimenses axiais pela via de uma auto-observao cientfica do direito luz dos limites
sistmicos de sua autotranscendncia caracteriza a demarcao dos intervalos entre as
indecidibilidades vinculatividade/discricionariedade, contexto de descoberta das decises
judiciais/contexto de justificao das decises judiciais e universalismo/multiculturalismo
como tarefas aporticas por-vir envoltas, luz de uma noo de justia jurdica comprometida
com um contnuo aperfeioamento, em um incessante jogo concertado (thrust-and-parry
estocadas-e-bloqueios) de deslocamentos entre um esforo construtivo de fundamentao
retrospectiva nos moldes de uma re-entry processo inexoravelmente ultracclico permeado
por um resduo (discricionrio, irracional e histrico-culturalmente situado) de corrupo
sistmica operativa e que exige, no caso de um conflito entre uma ordem jurdica estatal e
uma ordem jurdica local extraestatal, uma traduo (mal-entendido criativo) do costume
desta em um programa normativo daquela, bem como uma diatpica tomada de iniciativa da
ordem jurdica estatal, independentemente de reciprocidade, para fins de estabelecimento,
mediante um uso criativo das instituies de ligao, de uma aproximao intercultural, na
forma de relaes de equivalncia homeomrfica, entre as respectivas formas de vida e os
correlatos jogos de linguagem e uma inexorvel desconstruo das determinaes delas
resultantes.
Estruturaremos esta tese em oito captulos, dentre os quais: o primeiro corresponde
presente introduo; o segundo consistir em um detalhamento sobre a matriz
epistemolgica, o referencial terico e a justificativa do trabalho o que permitir uma
compreenso mais adequada de certos elementos componentes da hiptese anunciada no
pargrafo anterior; e o oitavo ser a sua concluso. Haver, ademais, seis captulos de
desenvolvimento, cujos contedos correspondem ao cumprimento dos objetivos especficos
deste escrito e sero sinteticamente anunciados desde logo.
No terceiro captulo, descreveremos as principais ideias das tradies tericas que, na
condio de ancestrais dos pensamentos componentes do nvel de linguagem L1 do
modelo aqui proposto, serviro de inspirao para os eixos compreensivo, analtico, poltico e
cultural de nosso enfrentamento hermenutico da tenso entre vinculatividade e
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discricionariedade e suas repercusses no discurso dos direitos humanos. Essas tradies so
as seguintes: a Jurisprudncia Pragmtica de Jhering e a Jurisprudncia dos Interesses de
Heck, que figuraro como ancestrais para o eixo poltico do nosso modelo; o realismo
estadunidense, que servir como ancestral para o nosso eixo compreensivo; o realismo de Alf
Ross, que funcionar como ancestral do eixo analtico de nossa proposta; e o
Tridimensionalismo de Miguel Reale, que ser utilizado como um ancestral para o eixo
cultural de nosso projeto terico.
No quarto captulo, apresentaremos uma proposta de compatibilizao entre os
pensamentos de Esser e Peczenik, autores vinculados, respectivamente, s tradies realistas
estadunidense e escandinava. O cumprimento dessa tarefa exigir a demonstrao da
possibilidade de estabelecimento de uma relao entre as dimenses hermenutica e analtica
da linguagem luz do suposto binmio contexto de descoberta das decises judiciais/contexto
de justificao das decises judiciais, o que buscaremos perpetrar mediante o entabulamento
de conversaes entre, de um lado, as obras dos dois autores, e, do outro: as noes de
raciocnio analgico e abduo em Kaufmann, as quais contribuiro para que realizemos uma
anlise sobre a formulao de hipteses no contexto das decises judiciais; e os sentidos de
discricionariedade e a concepo narrativa de coerncia encontrados na obra de Dworkin,
bem como a ideia de formulao de verdade presente na hermenutica de Pareyson, elementos
que serviro como referncia para o esboo de uma caracterizao da indecidibilidade entre
vinculao e discricionariedade. O captulo envolver, ainda, em seu tpico de encerramento,
um estudo de dois insights diatpicos presentes nas obras de Esser e Peczenik
respectivamente, as noes de equivalncia funcional dos conceitos e a comunicao
atravs das fronteiras culturais , elementos que serviro como pontos de contato entre, de
um lado, os eixos compreensivo e analtico de nosso modelo hermenutico, e, de outro, os
respectivos eixos poltico e cultural.
No quinto captulo, apresentaremos a proposta de dilogo intercultural de Panikkar,
qualificada pelas contribuies de Boaventura Santos (eixo cultural), e a concepo
derridariana de luta poltica pelos direitos humanos proposta por Douzinas (eixo poltico),
bem como entrelaaremos tais perspectivas complementao hermenutico-analtica entre
Esser e Peczenik mediante uma retomada de seus respectivos insights diatpicos, tarefa
cujo cumprimento envolver: uma aproximao desconstrutivo-construtiva entre a noo de
equivalncia funcional dos conceitos em Esser e a ideia de equivalncia homeomrfica
presente na hermenutica diatpica de Panikkar; uma leitura desconstrutivo-construtiva de
uma hiptese antropolgica concebida por Peczenik e Aarnio como uma proposta de
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aproximao diatpica entre jogos de linguagem e formas de vida; e a apresentao, com base
no estudo de Nimis sobre a relao entre a criatividade, os jogos de linguagem e as formas de
vida no contexto do comportamento de Aquiles na Ilada, de um esboo alegrico sobre a
re-entry dos vos de sentido do significante direitos humanos no sistema jurdico.
No sexto captulo, apresentaremos o metaeixo paranico do modelo terico que
propomos, de maneira que possamos prosseguir em nossa abordagem sobre a indecidibilidade
entre vinculao e discricionariedade. Para tanto, caracterizaremos, preliminarmente, a livre
investigao cientfica de Gny como um ancestral sistmico e o manifesto de Kantorowicz
pelo direito livre como um ancestral desconstrutivo. Em seguida, adentraremos as dimenses
meta-axiais autopoitica e da diffrance. Por fim, estudaremos propriamente a mtua
parania entre Luhmann e Derrida conforme formulada por Teubner
No stimo captulo, apresentaremos os contornos de nosso modelo hermenutico
descritivo-enquanto-normativo idneo abordagem dos intervalos
vinculatividade/discricionariedade, contexto de descoberta das decises judiciais/contexto de
justificao das decises judiciais e universalismo/multiculturalismo no cenrio do discurso
dos direitos humanos em uma sociedade policontextural. O cumprimento de tal desiderato
envolver, primeiramente, um entrelaamento dos quatro eixos do nvel de linguagem (L1)
em torno do metaeixo paranoico (L2) do modelo ora proposto, de modo a proporcionar uma
adequada caracterizao das indecidibilidades vinculao/ discricionariedade e contexto de
descoberta das decises judiciais/contexto de justificao das decises judiciais, inclusive no
que se refere determinao do sentido do significante vazio direitos humanos no mbito
dos conflitos entre ordens jurdicas estatais e ordens jurdicas locais extraestatais. Em seguida,
apresentaremos, como referncia para o nosso modelo no que diz respeito re-entry do
costume das ordens jurdicas locais nos programas normativos das ordens jurdicas estatais, o
estudo realizado por Teubner e Fischer-Lescano a respeito dos conflitos sobre o
patenteamento da rvore neem e do p turmrico. Finalmente, testaremos nosso modelo
mediante sua aplicao a uma situao-problema j judicializada, qual seja, o conflito entre
culturas envolvido na disputa travada entre os indgenas Kaingang e o Municpio de Porto
Alegre pelos direitos em torno do Parque do Morro do Osso.
Anunciamos at agora nesta introduo a existncia de trs nveis de linguagem
envolvidos na proposta terica apresentada. O nvel mais baixo, composto pelos eixos
compreensivo, analtico, cultural e poltico (L1), funciona: diretamente, como linguagem-
objeto do nvel intermedirio (L2), composto pelo metaeixo paranico; e, indiretamente,
como linguagem-objeto da matriz epistemolgica desconstrutiva (L3) que tem em L2
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a sua linguagem-objeto direta assumida pelo escrito. Este texto introdutrio se configura
simultaneamente como uma metalinguagem dos trs referidos nveis de linguagem, sem,
propriamente, se configurar como um novo patamar desse escalonamento, j que discorre
diretamente sobre qualquer um dos nveis em questo, compreendendo-os, como um todo, tal
qual uma nica linguagem-objeto. Inicia-se, assim, uma nova cadeia metalingustica o que
fica mais claro quando notamos que o objetivo geral do trabalho, por exemplo, tambm
integra a sua linguagem-objeto , cuja peculiaridade se torna possvel pelo fato de a correlata
metalinguagem (Lx) estar situada no intervalo entre o texto enunciado e o ato de
enunciao, entre o contedo textualmente veiculado e o ato de veiculao deste contedo,
entre o texto produzido e a sua produo exterior, sem, paradoxalmente, deixar de ser texto,
ainda que texto enunciativo de um ato de enunciao. Obviamente, a presente reflexo,
performativamente, j consiste em um novo nvel de linguagem (Ly), o qual, ainda que
situado no mesmo texto em que se encontra Lx, funciona como metalinguagem sua, e,
assim, ad infinitum (dado que tal reflexo sobre a reflexo de Ly em relao a Lx j
configura um novo nvel metalingustico Lz , sobre o qual j estamos tambm fazendo
metalinguagem), motivo pelo qual, violentamente, cortamos essa cadeia para retomarmos,
em captulo prprio, o nvel metalingustico Lx, de maneira que possamos aprofundar, em
captulo prprio, as reflexes sobre a matriz epistemolgica (L3) e a justificativa deste
trabalho (mormente quanto ao seu metaeixo L2 e aos seus eixos compreensivo,
analtico, poltico e cultural L1), elementos dotados de complexidade suficiente para
merecerem uma abordagem destacada.
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2 APROFUNDAMENTO METALINGUSTICO: MATRIZ EPISTEMOLGICA,
REFERENCIAL TERICO E JUSTIFICATIVA DO TRABALHO
Introduzido o objeto deste trabalho, inicia-se um captulo metalingustico que
pretende, mediante um detalhamento da matriz epistemolgica, do referencial terico e da
justificativa do escrito ora formulado, preparar o leitor para uma compreenso da trajetria de
entrelaamento a ser desenvolvida ao longo dos captulos posteriores, componentes do
contedo-fim textualmente veiculado.
2.1 MATRIZ EPISTEMOLGICA
Fizemos uma opo epistemolgica pela matriz de pensamento desconstrutiva, de
cariz derridariano. O trabalho ter como mvel o estabelecimento de dilogos entre uma
pliade de autores, conforme a estrutura de eixos descrita no captulo introdutrio.
Entendemos que os entrecruzamentos propostos constituem um expediente adequado a
catalisar a revelao de contradies e significados pouco aparentes em suas teses, em uma
espcie de descentramento filosfico que permita a realizao de aproximaes e
colaboraes pouco bvias e desatreladas das amarras das tradies de pensamento, sem, ao
mesmo tempo, negar a relevncia destas tradies para uma compreenso adequada das obras
em anlise.
Para que o leitor compreenda melhor a posio epistemolgica ora assumida,
podemos comear pela distino entre pensadores separacionistas e conversacionistas,
descrita nos seguintes termos por Nancy Fraser (in BENHABIB; FRASER, 2004, p. 125 -
traduo nossa): O mundo filosfico tem sido dividido h muito tempo entre dois tipos de pensadores. De um lado, aqueles que chamamos de "separacionistas". Perseguidores determinados da verdade, seu impulso mais profundo o de estabelecer linhas divisrias, desmistificar consensos aparentes, esclarecer o ncleo duro da diferena irreconcilivel, insistindo na necessidade de escolha de lados. Do outro lado, os "conversacionistas". Amantes mundanos do entendimento dialgico, preferem procurar vias de possvel acordo por debaixo do dissenso superficial, reduzindo polmicas, descentrando linhas familiares de controvrsia, dividindo as diferenas, e promovendo a comunicao. Ambos os tipos tm suas fraquezas e foras. Separacionistas penetram sob ofuscaes sentimentais, mas esto sujeitos a tomar rvores por florestas. Conversacionistas veem atravs de polarizaes entrincheiradas, mas nem sempre querem enfrentar as questes difceis. O ideal, estou convencida, incorporar um pouco de cada.
Dada a matriz desconstrutiva aqui subscrita, no pretendemos estimular a perpetuao
das amarras que normalmente esto implcitas quando remetemos a uma determinada vertente
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de pensamento em que so agrupados dados pensadores, motivo pelo qual nos aproximamos
do conversacionismo. Defendemos uma perspectiva inclusiva, caracterizada pelas posturas
desconstrutivas de abertura (boa vontade de um autor para que possa aprender com o outro),
humildade (colocao de lado das prprias convices de um autor sobre a existncia de
limites nas teorias do outro) e resilincia (compromisso com o potencial produtivo da
cooperao entre perspectivas tericas distintas), em que os entrecruzamentos colaborem para
uma ampliao de possibilidades, indo de encontro a um fechamento dogmtico
(BANKOVSKY, 2012, p. 211 e ss.). Afinal, como explica Thomassen (2008, p. 122; 128
traduo nossa) a respeito da abordagem desconstrutiva sobre a filosofia e a razo, ambas
esto envolvidas em uma tenso entre condicionalidade e incondicionalidade. Isto realado quando consideramos a pergunta "O que filosofia?" como uma parte essencial da filosofia (e da mesma forma quando consideramos a pergunta "O que a razo? como uma parte essencial da razo). Fazer isso implica que a filosofia deve responder e pela filosofia, e da mesma forma a razo deve responder e pela razo. Isto, por sua vez, desestabiliza a filosofia e a razo: o questionamento filosfico sempre condicional (aqui e agora, de acordo com certas normas estabelecidas), ainda que realizado em nome de uma filosofia incondicional, o que coloca em causa o que ns entendemos como filosofia aqui e agora. Assim, a filosofia como a conhecemos desestabilizada, mas assim que, em nome de uma filosofia incondicional, uma filosofia continua por vir porque no se pode alcanar um fechamento sobre a questo "O que filosofia?" se essa pergunta parte essencial do que significa fazer filosofia. Da mesma forma, com a razo [...]. [...]. Se a filosofia, a razo [...] so questes em aberto, se algum deve responder no s a, mas tambm pela filosofia, pela razo [...], ento no se pode simplesmente seguir os procedimentos e normas existentes ao faz-lo. neste contexto que [...] olhar para a questo da responsabilidade responder o outro uma parte inerente de uma tica da discusso. []. Para Derrida, a condio de possibilidade da filosofia como uma prtica contnua significativa que no h resposta nica ou final questo o que a filosofia?. []. Essa questo abre a condicionalidade ao incondicional, e abre a filosofia aqui e agora filosofia-por-vir []. A filosofia-por-vir , ento, falando estritamente, impossvel; ou melhor, a filosofia s possvel como impossvel: a filosofia s possvel como condicional, suspendendo o questionamento filosfico sobre o que a filosofia (THOMASSEN, 2008, p. 128 traduo nossa).
Ainda assim, porm, conservamos do separacionismo, como destaca Fraser, a sua maior
disposio para o enfrentamento de questes difceis e a necessidade de que assumamos uma
lente filosfico-epistemolgica retora qual seja, a desconstruo, conforme entendida por
Bankovsky, orientada para a construo a partir da qual buscaremos ler as teses que
integraro o nosso referencial terico.
Preliminarmente, dada a existncia de uma grande quantidade de entendimentos
significativamente distintos, eventualmente at opostos, a respeito do projeto geral de
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Derrida3, precisamos especificar que assumimos a interpretao que Bankovsky e Thomassen
fazem sobre a desconstruo.
Por um lado, Bankovsky (2012, p. 29 e ss. traduo nossa) considera equivocadas as
leituras liberais de Derrida exemplificativamente, Habermas, Fraser, Guttman e Benhabib
criticam o autor franco-argelino por supostamente propor uma desconstruo em sentido
antinormativo, inapta a defender racionalmente uma posio poltica perante outra.
Ademais, em certo sentido, mesmo a maioria dos defensores da desconstruo segue linha
parecida ao endossarem as dificuldades de Derrida para a defesa racional [] como a
anttese completa justia normativa, o que serviria como fundamento para uma crtica
adversarial ou mesmo para uma poltica revolucionria. Esta viso popular, seja crtica, seja
afirmativa, deve ser rejeitada por no reconhecer a subscrio da desconstruo premissa
essencial da abordagem construtiva, comprometendo-se com a possibilidade da justia
(BANKOVSKY, 2012, p. 29 traduo nossa). Se tal perspectiva fosse verdade, a obra de
Derrida consistiria em uma crtica filosfica que, em ltima instncia, se esgota na
desarticulao incessante do logos. [...] O seu desconstrutivo pensamento do rastro surge,
neste contexto, como um novo modo de no caminhar uma abertura tico-poltica a um
outro cuja alteridade irredutvel est estabilizada pelo logo [...] e etnocentrismo da razo
moderna s custas da desqualificao e da aniquilao epistmicas. (GANIS, 2011, p. 18-
9 traduo nossa). Segundo Bankovsky (2012, p. 31), porm, ignora-se que a crtica liberal
desconstruo negligencia a admisso, pelo Derrida maduro, de que necessrio assumir o
risco de determinar o contedo da justia em defesa daqueles que sofrem.
Por outro lado, Bankovsky (2012, p. 32 e ss.) tambm refuta o endosso antinormativo a
Derrida (citando, exemplificativamente, Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe, e
Spivak), o qual se baseia na inevitabilidade da violncia da normatividade, que, por sua vez,
nulificaria os padres de crtica das normas vigentes. Ver a desconstruo como
antinormativa seria um caminho para a realizao de uma crtica radical referida violncia
intrnseca. As mesmas razes pelas quais no se pode admitir a crtica liberal a Derrida
servem para que afastemos o endosso antinormativo: o entendimento de ambas as vertentes
sobre o pensamento de Derrida o mesmo, havendo apenas uma divergncia de opinio sobre !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!3 Utilizado pela primeira vez por Jacques Derrida em 1967 na Gramatologia, o termo desconstruo foi tomado da arquitetura. Significa a deposio ou decomposio de uma estrutura. Em sua definio derridiana, remete a um trabalho do pensamento inconsciente (isso se desconstri), e que consiste em desfazer, sem nunca destruir, um sistema de pensamento hegemnico e dominante. Desconstruir de certo modo resistir tirania do Um, do logos, da metafsica (ocidental) na prpria lngua em que enunciada, com a ajuda do prprio material deslocado, movido com fins de reconstrues cambiantes. [...]. Jacques Derrida lhe confere igualmente um uso gramatical: o termo designa ento uma desorganizao da construo das palavras na frase. (DERRIDA & ROUDINESCO, 2004, p.9).
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as consequncias positivas ou negativas da suposta antinormatividade. Ademais, os
antinormativistas perdem de vista a funo crtica que se deseja atribuir desconstruo. Se
toda normatividade inevitavelmente violenta, no remanescem padres em virtude dos quais
sejam criticveis as normas claramente mais violentas do que outras (BANKOVSKY, 2012,
p. 33 traduo nossa).
Derrida (1991), ao afirmar a indecidibilidade, no est a abordar uma vaga
indeterminao ou a contingncia da fora, mas, sim, a oscilao determinada entre
possibilidades dadas em situaes especificamente definidas. Sua abordagem da razo,
portanto, envolve a considerao dos contextos especficos em que se manifesta o seu sentido
particular. Nesse sentido, Lasse Thomassen (2008, p. 132 traduo nossa) afirma que: Para Derrida [...], a resoluo ou conciliao filosfica permanecer sempre por-vir: no apenas praticamente, e sim intrinsecamente impossvel solucionar resolver e dissolver as aporias dos conceitos filosficos, incluindo o prprio conceito de filosofia. Assim, para Derrida, no suficiente para a filosofia gerar respostas, por exemplo, para a obteno de distines corretas; a filosofia deve tambm coloc-las em causa.
A leitura desconstrutiva, malgrado implique violncia e condicionalidade (mas no uma
violncia particular), realizada tendo em vista a justia incondicional, motivo pelo qual deve
ser compreendida como responsvel pela singularidade e heterogeneidade do outro, entendido
este, no caso, como o texto que se est a desconstruir. O leitor, ao desconstruir, responsvel
pela violncia praticada quando a alteridade textual escapa a sua leitura. A responsabilidade,
pois, consequncia do fato de que nenhuma leitura pode exaurir o texto (THOMASSEN,
2008, p. 123). Ao ler, deve-se ser preciso para que se seja justo com o texto, mas como o texto intrinsecamente heterogneo, a justia que se pode mostrar ser uma justia por vir. [] Deparamo-nos com um tipo de imperativo duplo em que devemos dar o que se deve heterogeneidade, singularidade e alteridade do texto, mas, ao mesmo tempo, fazer que eles faa sentido, o que s possvel, em parte, mediante a imposio de uma linguagem comum. (THOMASSEN, 2008, p. 146 traduo nossa).
A perspectiva desconstrutiva presta-se a desconstruir a suposta naturalidade e
inevitabilidade de dicotomias e revelar seu carter de construo discursiva. Desconstruir
implica desmantelar e reinscrever construes, sem propriamente destrui-las, mas apenas
atribuir-lhes uma estrutura e um funcionamento diferentes (CULLER, 1999, p. 120).
"Desconstruir, na acepo da filosofia de Derrida, no significa, simplesmente, demolir, pr
abaixo, implodir algo: ideias, conceitos, posies, princpios, objetivos, meios e fins."
(GOULART, 2003, p. 26). Trata-se, isso sim, de permanecer no campo desconstrudo e
remodelar o material fragmentado para fins de construo de algo novo.
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Uma leitura desconstrutiva no pode simplesmente tornar o texto transparente ou neutralizar eventuais contradies que possam existir nele. Por exemplo, no se pode neutralizar a indecidibilidade, referindo-se a ela como "erros" por parte do autor. Ao contrrio, uma leitura desconstrutiva uma interveno no texto. A leitura desconstrutiva incorrer em um dilema quando, seguindo o esquema conceitual que governa o texto, se deparar com algo que indecidvel de acordo com esse esquema. Neste ponto, a leitura deve tanto ser fiel ao texto quanto deslocar e, assim, 'trair' o texto, mas no no sentido de trair para ser fiel ao texto em outro nvel, mais elevado, de racionalidade. A leitura no objetiva revelar a verdade real do texto, uma verdade que dissolveria todas as ambigidades, como se tal verdade existisse. Ser fiel e deslocar so injunes concorrentes, cada uma excluindo a outra, e no podem ser conciliadas por uma nica regra para a leitura do texto. Como consequncia, cada leitura desconstrutiva no apenas uma interveno, mas tambm singular (THOMASSEN, 2008, p. 62 traduo nossa).
Uma leitura desconstrutiva, pois, no significa uma mera negao do que se questiona,
mas, sim, um descentramento de uma estrutura (GOULART, 2003, p. 26). A inverso
desconstrutiva d-se como uma decomposio de discursos por dentro do sistema
desconstrudo, "revelando seus pressupostos, suas ambiguidades, suas contradies" e
ampliando os seus limites de sentido (PEDROSO JNIOR, 2010, p. 11). Diante disso, no nos causar estranhamento que a Desconstruo, ao interrogar incansavelmente os diferentes discursos que pretende decompor, operar, muitas vezes, no terreno da ambivalncia, da duplicidade e da dubiedade, pois no incorrer em reducionismo diante das oposies binrias com as quais a metafsica ocidental est acostumada a operar, sobretudo se considerarmos que ser frequente, nos trabalhos desconstrutivistas empreendidos por Jacques Derrida e seus seguidores, o emprego de termos como "nem um .... nem outro", "ao mesmo tempo", "por um lado. . . por outro...", longe de se apresentarem como sinnimos de indeciso e/ou impreciso, o que o emprego desses termos coloca em destaque a necessidade de se pensar as oposies dialticas numa oposio horizontal e paritria, no em escalas hierrquicas, como a metafsica o fazia. (PEDROSO JNIOR, 2010, p. 11)
A leitura desconstrutiva, inicialmente, levanta "tudo aquilo que o texto explicita e que
constitui os seus filosofemas", para, em seguida, "reconhecer as dissimulaes talvez fosse
melhor dizer, as metforas atravs das quais se operaram o afastamento, o recalcamento e a
anulao de tudo aquilo que pudesse comprometer a soberania do material hierarquicamente
valorizado pelo discurso" (GOULART, 2003, p. 26). L-se inicialmente a partir do interior do
texto e, posteriormente, busca-se enxerg-lo de fora, em suas margens, para que se possam
notar aquelas peculiaridades nele encobertas (GOULART, 2003, p. 26). [] sobre a natureza da leitura desconstrutiva [...]. Quando que a leitura [...] comea a ser derridariana e desconstrutiva? [] a leitura no se restringe ao enquadramento [...] e no pretende ser uma mera exposio ou comentrio, como se tal coisa fosse possvel. A leitura vai alm do enquadramento [...], mas no simplesmente rompe com ele. A leitura alternativa, desconstrutiva, surge como uma possibilidade de dentro dos textos [...], ou melhor, nos limites dos textos [...], nos pontos de no-racionalizabilidade. Assim, a leitura nem procede de um ponto totalmente exterior aos textos [...], nem fica completamente dentro desses textos. [...]. [...] h a possibilidade em seus textos e efeitos de seus textos que [...] o autor no pode controlar (e aqui eu no estou interessado em saber se ele pretendia ou no faz-lo, embora eu ache que no). [...] Eu destaco algumas caractersticas dos textos
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e fao-o com base em uma certa compreenso de Derrida e da desconstruo. [...] o resultado final a posio alternativa, desconstrutiva surge como uma possibilidade de "dentro" dos textos [...]. Em suma, no apenas h vrias assinaturas desta leitura [...], mas tambm nenhuma dessas assinaturas capaz de controlar os efeitos dos textos [...]. (THOMASSEN, 2008, p. 112 traduo nossa).
Torna-se mais fcil compreendermos a referida impossibilidade de controle dos efeitos
dos textos de Derrida quando estudamos sua noo de differnce, uma ausncia como
espaamento sem presena4. O autor cunha o referido conceito para questionar nosso modo de
entender o funcionamento das palavras e explicar que os signos adquirem significados em um
processo contingencial e instvel. Signos no tm significados em si mesmos, nem capturam
uma presena original de um objeto perdido que lhes preexista, mas, sim, adquirem sentido a
partir do jogo de diferenas com outros signos, ou seja, da diffrance. O termo utilizado
para estabelecer uma distino em relao prpria palavra francesa diffrence; ambas tm
a mesma pronncia o que indica que a diferena entre ambas inseparvel do texto escrito
, mas significados e grafias diferentes, permitindo que percebamos a diferena entre as duas
letras e os dois signos (BANKOVKSY, 2012, p. 17)5. A diffrance, faz com que o movimento da significao no seja possvel a no ser que cada elemento dito presente, que aparece sobre a cena da presena, se relacione com
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!4 Ora, a palavra diferena (com um e) no pde nunca remeter, nem para o diferir, como temporizao, nem para o diferendo []. essa perda de sentido que a palavra diferana (com um a) deveria - economicamente - compensar. Ela pode remeter simultaneamente para toda a configurao das suas significaes, imediatamente e irredutivelmente polissmica e isso no ser indiferente economia do discurso que eu procuro manter. E remete para ela, no apenas, bem entendido, e como toda e qualquer significao, ao ser sustentada por um discurso ou por um contexto interpretativo, mas j, de qualquer forma, por si mesma, ou pelo menos mais facilmente por si mesma do que qualquer outra palavra, uma vez que o a provm imediatamente (em francs) do particpio presente, diferindo (diffrant), e nos reenvia para o decurso da ao do diferir antes mesmo que esta tenha produzido um efeito constitudo como diferente ou como diferena (com um e). Numa conceitualidade clssica e respondendo a exigncias clssicas, diramos que "diferana" designa a causalidade constituinte, produtora e originria, o processo de ciso e de diviso do qual os diferentes ou as diferenas seriam os produtos ou os efeitos constitudos. (DERRIDA, 1991, p. 39). 5 [] a natureza inaudvel s possvel dentro da escrita fontica, na qual sinais escritos indicam sons, ao invs de sons indicarem sinais escritos. A escrita fontica inclui signos no-fonticos para distinguir sons-de-fala, o que a palavra diffrance tambm torna claro em sua capacidade de distinguir dois sons que no podem ser distinguindos sonoramente. Outros sinais no-fonticos incluem a pontuao e o espaamento que no representam sons-de-fala, e que so, mais uma vez, grficos, mas inaudveis. Como silncios, eles no significam sentidos como sons-de-fala fazem, mas, sim, diferenciam sons-de-fala uns dos outros. Como tais, eles no funcionam estritamente como signos no sentido de Saussure, porque no significam sentidos como os sons-de-fala e seus sinais escritos. Consequentemente, Derrida no se refere a tais silncios como signos, mas como um jogo de diferenas [], dado que eles meramente diferenciam sons-de-fala uns dos outros. Isso significa, porm, que diffrance um signo que pretende representar uma diferena especfica, enquanto tambm resiste ao sentido estrito do signo ao meramente diferenciar sons-de-fala falados. [] a diferena grfica da diffrance que esta ilude a sensibilidade; ou seja, as percepes sensoriais da viso da audio. O a e o e podem ser visualmente sentidos e ento aparentam ser diferentes. Porm, esta diferena em si mesma no sentida, mas, sim, construda pela mente. Ademais, tambm no inteligvel, porque ilude a habilidade do intelecto de captar a natureza e o sentido desta diferena. A inteligibilidade requer sensibilidade, j que precisa de um objeto. Se a diferena no dos sentidos, tambm permanece, ento, ininteligvel. Consequentemente, Derrida afirma que esta diferena entre a e e (diffrance) no do mesmo tipo que outros signos audveis, visveis e tteis. Diffrance no uma palavra, no sentido de Saussure, porque uma palavra une materiais conceituais, vocais e acsticos (BANKOVSKY, 2012, p. 17-8 traduo nossa).
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outra coisa que no ele mesmo, guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se j moldar pela marca da sua relao com o elemento futuro, relacionando-se o rastro menos com aquilo a que se chama presente do que quilo a que se chama passado, e constituindo aquilo a que chamamos presente por intermdio dessa relao mesma com o que no ele prprio: absolutamente no ele prprio, ou seja, nem mesmo um passado ou um futuro como presentes modificados (DERRIDA, 1991, p. 45).
A differnce, ao constituir uma diferena tanto temporal quanto espacial, possibilita e
impede o significado (BANKOVSKY, 2012, p. 17), o qual um mero significante
posicionado em relao a outros significantes6. Estes significantes, por sua vez, so meros
rastros que se reenviam uns aos outros, constituindo uma rede, de modo que s podem ser
entendidos pela diferena existente entre si7. no cunho espectral do rastro, o qual no
sensvel, no presena nem ausncia, que reside a indecidibilidade. O processo de
significao, portanto, no vai mais de um significante a um significado, mas, sim, constitui
uma referencialidade de rastros espectrais (COELHO, 2008, p. 4).
A diferena temporal ocorre entre dois signos e permite que o signo represente o objeto
em sua ausncia. Pensar na diffrance, enquanto diferena temporal, como um signo
exigiria entend-la como secundria e provisria em relao diffrance original, aquela
entre o a e o e. Mas no h, propriamente, um original, pois a referida diferena criada
pela prpria introduo do termo8. O rastro no somente a desapario da origem, ele quer
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!6 [] a ao de remeter para mais tarde, de ter em conta o tempo e as foras numa operao que implica um clculo econmico, um desvio, uma demora, um retardamento, uma reserva, uma representao, todos os conceitos que resumirei aqui numa palavra de que nunca me servi mas poderamos inscrever nessa cadeia: a temporizao. Diferir, nesse sentido, temporizar, recorrer, consciente ou inconscientemente, mediao temporal e temporizada de um desvio que suspende a consumao e a satisfao do "desejo" ou da "vontade", realizando-o de fato de um modo que lhe anula ou modera o efeito. []. E veremos em que essa temporizao tambm temporalizao e espaamento, devir-tempo do espao e devir-espao do tempo. Diferana como temporalizao, diferana como espaamento. []. necessrio que um intervalo o separe do que no ele para que ele seja ele mesmo, mas esse intervalo que o constitui em presente deve, no mesmo lance, dividir o presente em si mesmo, cindindo assim, como o presente, tudo o que a partir dele se pode pensar, ou seja, todo o ente na nossa lngua metafsica, particularmente a substncia e o sujeito: Esse intervalo constituindo-se, dividindo-se dinamicamente, aquilo a que podemos chamar espaamento, devir-espao do tempo ou devir-tempo do espao (temporizao). E a esta constituio do presente como sntese "originria e irredutivelmente no-simples [] que eu proponho que se chame arqui-escrita, arqui-rastro ou diferana. Esta () (simultaneamente) espaamento (e) temporizao. (DERRIDA, 1991, p. 39; 45) 7 [] o conceito de significado no nunca, em si mesmo, presente, numa presena auto-suficiente que no remeteria seno para si mesma. Todo o conceito est por direito, inscrito numa cadeia ou num sistema no interior do qual remete para o outro, para os outros conceitos, pelo jogo sistemtico das diferenas. Em semelhante jogo, a diferena no mais, portanto, um conceito, mas a possibilidade da conceitualidade, do processo e dos sistemas conceituais em geral. Por esta mesma razo, a diferana, que no um conceito, no uma simples palavra, ou seja, aquilo que representamos como sendo a unidade calma e presente, auto-referente, de um conceito e de uma fonia. O que se escreve diferana ser, portanto, o movimento de jogo que "produz" , por meio do que no simplesmente uma atividade, estas diferenas, estes efeitos de diferena. Isto no significa que a diferana que produz as diferenas seja anterior a elas, num presente simples e, em si, imodificado. A diferana a origem no-plena, no-simples, a origem estruturada e diferante das diferenas. O nome de origem, portanto, j no lhe convm. (DERRIDA, 1991, p. 43). 8 Aquilo que eu aqui descrevo para definir, na banalidade dos seus traos, a significao como diferana de temporizao a estrutura classicamente determinada do signo: ela pressupe que o signo, diferindo a presena,
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dizer aqui (...) que a origem no desapareceu sequer, que ela jamais foi reconstituda a no ser
por uma no-origem, o rastro (...). Este conceito destri o seu nome (...), se tudo comea pelo
rastro, acima de tudo no h rastro originrio (DERRIDA, 1991, p. 44). Differnce, pois,
no um signo propriamente dito; por um lado, permite que o signo funcione, mas, por outro,
indica a falha do signo em funcionar. A diferena espacial, por sua vez, diz respeito ao jogo
do sistema de signos, em que o sentido de cada conceito depende de sua relao com os
demais, e no da referncia a um objeto ausente. esse jogo de diferenas como espaamento
que inviabiliza a estabilizao total do sentido de um signo (BANKOVSKY, 2012, p. 18). Primeiro, aquilo que considerado externo ao sentido do signo sua condio mesma, desestabilizando, desse modo, os limites do significado do signo. Segundo, produzido por um jogo de diferenas, o significado caracterizado por uma abertura estrutural, na qual a entrada de um novo conceito no sistema modifica o significado do signo. Finalmente, os modos usuais de determinao do significado definido do signo so errneos: no h algo auto-presente que permita uma determinao completa do significado. Derrida quer dizer que o significado do signo no pode ser determinado pelas intenes de seu autor ou de seu leitor, nem, de uma vez por todas, por seu referente ou sentido significado Derrida no est negando que o signo tem sentido, mas, sim, que seu sentido seja absoluto. Diante da equivocidade, o significado do signo [] s pode ser estabilizado por seu contexto, pelo particular jogo de diferenas entre os signos de um sistema. Mas o contexto tambm no absolutamente determinvel. O contexto desprovido de limites em dois sentidos: no h, em princpio, limites do que pode ser nele includo; e qualquer tentativa de codificar um contexto pode sempre ser entrelaada a um outro, gerando um novo contexto que escapa da descrio prvia. []. Consequentemente, embora as prticas compartilhadas nos permitam determinar o contexto de modo que possamos nos comunicar, produzindo um conjunto relativamente estvel de significados, a possibilidade de falhas de comunicao no pode ser descartada de antemo. Se o significado de uma palavra produzido por sua instabilidade interna como um efeito contextual e cultural, ento a equivocidade essencial do contexto deixa a palavra passvel de errar o seu alvo (BANKOVSKY, 2012, p. 18 traduo nossa).
Bankovsky (2012, p. 21) destaca, em sua leitura de Derrida, que as regras do discurso
tm a funo prtica de permitir a comunicao, e as prprias palavras so normativas, tendo
sentidos dependentes das prticas compartilhadas, mas que precisam ser determinadas
situacionalmente. Por um lado, o autor francs considera a comunicao possvel e a v como
um compromisso com a praticabilidade das normas, mas, por outro, admite que a
comunicao pode falhar. Bankovsky (2012, p. 167), ao abordar o compromisso de Derrida
com a noo construtiva de praticabilidade e relacion-la s ideias de indecidibilidade e de
differnce, explica que a desconstruo precisa, por razes prticas, admitir como possvel
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!s pensvel a partir da presena que ele difere e em vista da presena diferida de que intentamos reapropriarmo-nos. Segundo esta semiologia clssica, a substituio da coisa mesma pelo signo simultaneamente secundria, e provisria: secundria em relao a uma presena original e perdida!! de que o signo derivaria; provisria perante essa presena original ausente em vista da qual o signo encontrar-se-ia num movimento de mediao. (DERRIDA, 1991, p. 41).
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a normatividade (especialmente aquela referente a normas de inteligibilidade mnima), ainda
que com a ressalva de que os contedos normativos so sempre relativos, desprovidos de
estabilidade e sujeitos a falhas de comunicao9. As normas, em sentido geral, so padres
de comportamento social aceitos por, ou esperados de, um grupo, de modo que ter a
capacidade de compartilhar uma compreenso de palavras, gestos e expresses no contexto de
uma cultura particular a condio para qualquer possvel compromisso com o outro
(BANKOVSKY, 2012, p. 16 traduo nossa). No h, porm, um carter necessrio em
cada conjunto particular de normas compartilhadas, as quais, em verdade, no so absolutas
ou aistricas, mas apenas mais estveis do que outras. Como claro que valores culturais so
diferentes de acordo com o contexto, Derrida quer mostrar que um conceito cujo significado
aparenta ser completamente determinado por seu objeto, em verdade, obteve seu significado
em um jogo de diferenas com outros conceitos, em um processo que impede a completa
estabilizao do significado (ou do valor) (BANKOVSKY, 2012, p. 17 traduo nossa).
Diante do exposto, toda leitura desconstrutiva caracterizada pela singularidade, dado
estar envolvida na indecidibilidade entre repetio e alterao, inerente noo de iterao
em Derrida, bem descrita por Benhabib (2004, p. 179 traduo nossa) nos seguintes termos: No processo de repetio de um termo ou conceito, nunca podemos simplesmente produzir uma rplica do primeiro uso original e seu significado intencionado: na verdade, toda repetio uma forma de variao. Toda iterao transforma o significado, lhe adiciona algo, o enriquece de maneiras sutis. De fato, no h mesmo nenhuma "fonte" originria do significado, ou um "original" ao qual todas as subsequentes formas devam se conformar. bvio no caso da linguagem que um ato de atribuio de significado original no faz sentido dado que, como Wittgenstein nos lembra, o reconhecimento de um ato de atribuio de como tal ato pressuporia que j se tivesse a prpria linguagem [...] - uma noo patentemente circular.
Thomassen (2011, p. 2-3) explica que Derrida utiliza a ideia de iterabilidade para
estabelecer duas distines fundamentais no que diz respeito constituio de sentidos:
repetio-alterao e constatativo-performativo. Quanto primeira, em Derrida se torna
inconcebvel a ideia de uma repetio pura, dado o fato de que qualquer repetio sempre
acontece em um contexto distinto do evento original. Significados so constitudos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!9 As normas de inteligibilidade minima no so absolutas e aistricas, mas meramente mais estveis do que as outras. Elas dependem de condies socioinstitucionais, portanto, de relaes de poder no naturais que, por essncia, so mveis e fundadas em estruturas convencionais complexas que em princpio podem ser analisadas, desconstrudas e transformadas; e, de fato, estas estruturas esto em processo de transformao profunda e rpida ([] antes de se tornar um discurso, uma prtica organizada que lembra uma filosofia, uma teoria, um mtodo, e que no o , em considerao quelas estabilidades instveis ou esta desestabilizao que faz disso o seu principal tema, a desconstruo , primeiramente, esta desestabilizao. [] E o de de desconstruo no significa a demolio do que est se construndo, mas, sim, o que sobra para ser pensado []. (DERRIDA, 1988, p. 147 traduo nossa).
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contextualmente e contextos nunca podem ser determinados por completo. Toda repetio,
ainda que em um sentido fraco, acaba sendo a constituio de um original. Do mesmo modo,
tambm no podemos falar em um original puro, pois no h um evento significativo nico
que estabelea o incio da cadeia. Ora, todo ato de significao deve ser reconhecido por
outros para funcionar, ou seja, deve ser repetvel em novos contextos. Consequentemente, o
original traz, desde o seu incio mesmo, uma repetibilidade. [...] a originalidade do original
constitui-se retroativamente por meio da iterabilidade, quando ele tomado por outros e
ressignificado como original (THOMASSEN, 2011, p. 2 traduo nossa).
Diante do exposto, impossvel, para Derrida (1991, p. 362), a realizao de qualquer
repetio pura, dado que o evento que se pretende meramente repetitivo sempre ocorre em um
contexto distinto do evento original, o que lhe atribui um carter constitutivo10. Como bem
explica, novamente, Thomassen (2008, p. 5-7 traduo nossa): deve ser possvel repetir a desconstruo em diferentes exemplos e contextos. Isto sugere que a desconstruo tem um significado que transcende e permanece constante nos diferentes usos da mesma. No entanto, se considerarmos que o significado contextual e constitudo mediante relaes de diferena, ento cada uso particular de desconstruo ser novo, visto ocorrer em um novo contexto. Alm disso, se acreditamos que nenhum contexto pode ser completamente determinado, ser impossvel definir o sentido da desconstruo com referncia a seus usos em um ou vrios contextos. Em suma, sempre possvel rearticular o que a desconstruo significa o que ela de novas maneiras. Em termos mais desconstrutivos, a desconstruo, como um conceito ou mtodo, deve poder ser repetida, mas sua repetio envolve a possibilidade inerente de que ela poderia ser aplicado ou melhor, articulada de maneiras diferentes em novos contextos. A desconstruo, ento, sempre "desconstruo": sempre esta ou aquela desconstruo, sempre no plural, em vez de uma nico e definvel coisa, a essncia, o programa e assim por diante. Nenhuma abordagem da desconstruo pode pretender expressar a essncia da desconstruo, como se houvesse uma. Da as aspas em "desconstruo": h apenas esta ou aquela desconstruo, no a desconstruo como tal ou em abstrato. Podemos acrescentar que, embora no haja desconstruo que seja simplesmente aplicada, s h desconstruo aplicada entendida como os usos singulares e concretos da desconstruo; ela no existe para alm de seus usos especficos. Em concluso, uma desconstruo tem uma dimenso performativa; como tal, a leitura desconstrutiva dos textos [] tambm tem a minha assinatura, e no apenas a de Derrida ou de outros que tenham escrito sobre ou feito desconstruo. No se pode simplesmente aplicar a desconstruo, pois cada aplicao tambm uma rearticulao parcial e, portanto, singular.
A desconstruo, dado o fato de no ser neutra, sempre procede de certos interesses e
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!10 To logo tipos lingusticos codificados so utilizados em uma conversao, deve ser possvel, em princpio (o que no significa: a todo instante), substituir a primeira ou original articulao/interpretao por uma segunda, e, consequentemente, livr-la da subservincia s mximas convencionais ou discursivas (ainda que existentes de maneira meramente virtual). Derrida fala [] sobre a constante possibilidade de que o falante/autor/leitor/ouvinte/intrprete coloque uma nova nfase no significado de uma palavra, frase, texto ou cultura. []. Ele diz que tanto o signo que repetido (no interior do tempo) quanto aquele que foi utilizado apenas uma vez no podem garantir suas identidades. E isto [] porque arranjos semiolgicos [], conexes tradicionais, discursos [], apenas podem conferir significados a seus elementos devido ao fato de distinguirem cada elemento individual em relao a todos os outros. (FRANK in MICHELFELDER; PALMER, 1989, p. 157)
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com tais interesses, os quais so variveis e no universalizveis. Ademais, a leitura no pode
ser neutra devido ao seu prprio carter apropriatrio, o qual impede que ela seja realizada de
modo totalmente transparente e/ou completamente a partir de dentro dos textos. Ora, Mesmo
quando busca alcanar uma leitura justa, a leitura desconstrutiva necessariamente [...] nunca
justa seja no sentido de precisa, seja no de equnime , e sim sempre praticante de uma
violncia contra o texto. A leitura no comea nem completamente de dentro nem totalmente
de fora dos textos (THOMASSEN, 2008, p. 10 traduo nossa). Mas ento, o que a desconstruo? Esta uma pergunta difcil, especialmente porque, como uma abordagem, a desconstruo crtica a qualquer tentativa de definir ou atribuir uma essncia mediante a cpula "", como em "desconstruo . [...]. Utilizaes especficas da desconstruo devem afirmar ser exemplos de algo que transcende cada um deles: a desconstruo. No entanto, a desconstruo o que ela no existe independentemente de seus usos especficos; ao contrrio, o sentido da desconstruo constitudo pelos seus usos particulares. Isso muito parecido com o ponto de Wittgenstein de que a regra constituda atravs da sua aplicao, que , em cada caso, tambm uma reinveno parcial da regra. Derrida escreve que a desconstruo no um mtodo geral. No minha propriedade. No uma ferramenta; claro que existem alguns esquemas, alguns tipos, tipos regulares que voc pode usar como uma gramtica, como uma tcnica, mas so apenas coisas secundrias na desconstruo. A desconstruo no uma tcnica, no um mtodo ". Derrida conclui que "h um possvel ensino desses dispositivos [de desconstruo], mas no da desconstruo como tal, que no um mtodo geral, ligado a idiomas. A desconstruo deve ser diferente em cada lngua, em cada idioma, em sua relao com cada trabalho nico. []. A desconstruo como mtodo, poderamos dizer, tambm a desconstruo do mtodo, se com mtodo queremos dizer a aplicao de um programa ou tcnica para um objeto, na qual se supe o mtodo como um meio transparente. A "desconstruo", Derrida escreve, "no neutra. Ela intervm. (THOMASSEN, 2008, p. 5; 7 traduo nossa).
No modelo desconstrutivo da tica de Derrida, ser responsvel perante o Outro estar
aberto a ele e responder sua alteridade, o que significa, no que diz respeito leitura textual,
prestar mxima ateno aos textos, mesmo quando eles aparentam ser incompreensveis e
heterogneos, dado que devemos nos aproximar dos outros com o propsito de acomodao
de sua alteridade. verdade, porm, que a alteridade alheia escapa de nossa tentativa de
apropriao, dado que qualquer leitura do texto s uma das leituras possveis, e qualquer
entendimento do outro no pode proceder apenas do idioma daquele que o l. H, pois, uma
negociao entre injunes concorrentes e heterogneas que se unem na tentativa de
entendimento do outro: eu devo tentar entender o outro, mas isso ocorrer necessariamente a
partir de um ponto de partida condicional e calculado, bem como violar a alteridade do
outro. [] eu tentarei ser justo com o outro, mas esta sempre uma justia condicional, ainda
que mantenha uma relao com uma justia por vir incondicional. (THOMASSEN, 2008, p.
145 traduo nossa)
A desconstruo no considera os textos como entidades completamente constitudas
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cujos significados meramente tm de ser apropriados e avaliados de acordo com o critrio
correto (THOMASSEN, 2008, p. 6 traduo nossa). Ora, as contradies textuais que
inviabilizam a apropriao de pronto da obra no necessariamente tm que ser corrigidas
hermeneuticamente, dado que se assume a premissa, a ser demonstrada durante a leitura
desconstrutiva, de que os textos so intrinsecamente heterogneos. Tal heterogeneidade no
deve ser entendida como meras diferenas entre os textos de um autor tendo como referncia
os diferentes perodos de sua produo, nem como contradies resolveis por meio da
lgica. A heterogeneidade textual diz respeito s aporias e indecidibilidades encontradas nas
distines e categorias conceituais elementos que no podem ser racionalizados dos textos
de um autor, o que significa que estas, em ltima instncia, fracassaram: A minha leitura
busca desenvolver uma abordagem alternativa que no procura resolver a heterogeneidade,
mas, sim, responder a ela, por exemplo, mediante a aceitao da heterogeneidade, do
paradoxo, da aporia e da indeciso como prprios da razo. (THOMASSEN, 2008, p. 8
traduo nossa). Dadas tais premissas, a proposta derridariana pode ser considerada uma
teoria hermenutica? Schmidt (2006, p. 226) parece oferecer uma resposta para tanto deveras
congruente com o prprio estilo desconstrutivo:
A filosofia desconstrutiva de Derrida e no uma teoria hermenutica. A desconstruo uma verso da hermenutica porque inclui uma teoria da compreenso e se preocupa em interpretar textos. Como Derrida desenvolve vrios aspectos da filosofia de Nietzsche, poderia parecer que sua hermenutica seria uma hermenutica da desconfiana. Isto seria o caso se desconfiana significasse que desconfiamos de qualquer reivindicao de um significado textual definido, de uma interpretao da correta, ou da prpria Verdade. Entretanto, isto no seria o caso se desconfiana significasse que h um significado escondido ou mais profundo que seria o correto. Um dos princpios centrais da desconstruo que no h uma nica Verdade, uma nica interpretao correta, nem uma chave que abriria o mistrio de um texto. Portanto, a desconstruo no hermenutica porque no h nada a descobrir, nenhum significado nico a decifrar. []. [] Derrida [] apresenta a forma apropriada de interpretar um texto, que uma leitura desconstrutiva onde o intrprete demonstra que a suposta unidade e tese do texto so enfraquecidas pelo prprio texto.
A perspectiva hermenutica acima descrita est vinculada justamente tese derridariana
de que a razo responde prpria razo e pela razo, ou seja, deve seguir as normas e
conceitos racionais, mas tambm questionar a prpria razo: H um intervalo []: responder
pela razo algo que no pode simplesmente ocorrer de uma maneira que responde razo,
pois a razo est em questo. Contudo, responder pela razo, em parte, algo que deriva do
ato de responder razo. Responder pela razo sempre algo condicionado; procede
parcialmente em conjunto e em resposta a normas existentes de raciocnio (THOMASSEN,
2008, p. 131 traduo nossa). Por outro lado, relevante lembrarmos, para que evitemos as
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acusaes de que a desconstruo destri a razo, que Derrida (1973, p. 8; 56) , a despeito de
conceber a razo como intrinsecamente instvel e relativizar, em sua crtica ao logocentrismo,
as dicotomias lgica/retrica e razo/no-razo, vincula a responsabilidade apresentao de
razes11. Seno, vejamos.
Em Derrida, o outro visto como aquilo que no pode ser representado, medido ou
repetido, como "completamente outro", uma alteridade irredutvel. Uma tentativa de
mensurao do outro, para o professor franco-argelino, seria ofensiva diferena, devendo-se
buscar a relao entre o calculvel e o no-calculvel em uma desconstrutiva tica da
diferena. Segundo Derrida, portanto, as identidades so contingentes, imensurveis e no-
antecipveis. Como descreve Ganis (2011, p. 87 traduo nossa) a respeito da obrigao
assimtrica perante o Outro, a ddiva incondicional de Derrida objetiva cumprir a tarefa tico-poltica de salvaguardar singularidades incomensurveis da ameaa (presumida) de remoo epistmica por totalidades idealizadas de pensamento e ao. Derrida situou [...] a ddiva [...] no como mera expresso de preocupao com o outro, mas, sim como intercesso poltica contra o inerradicvel resduo de violncia no ncleo de todos os esforos universalistas para suavizar a no-identificabilidade intrnseca entre o self e o outro. Tanto no nvel da tica quanto no da poltica, [] a indecidibilidade continua a habitar a deciso a relao com o outro no se fecha; por causa disto que existe a histria e que se tenta agir politicamente.
Contudo, para o autor franco-argelino, a igualdade mensurvel e o cuidado imensurvel
no so pontos de vista morais mutuamente excludentes, pois o calculvel d acesso ao
prprio incalculvel, ainda que, ao mesmo tempo, ameace a prpria singularidade. A razo,
pois, para Derrida, encontrada entre e em ambos os lados: o do clculo e da
condicionalidade, e o da incalculabilidade incondicional. Ora, Derrida alia o impulso tico de
preocupao com o outro a uma justia-por-vir universal. No toa, pois, que Derrida
identifica na justia uma tenso entre a responsabilidade pelo Outro individualizado e a
responsabilidade imparcial por todos os Outros, o que envolve um compromisso construtivo
com a possibilidade. A ideia de reciprocidade implica que o que se deve ao Outro devido a
todos os Outros como iguais, inclusive a si mesmo, como o Outro do Outro. tal
compromisso com a imparcialidade o que permite a Derrida no abrir mo de comparar as
qualidades dos fracassos e conservar a funo crtica da noo de justia, mesmo que esta
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!11 Como afirma Dallmayr (in MICHELFELDER; PALMER, 1989, p. 87), Derrida, inspirado na ideia de Ereignis heideggeriana, com sua correlata estrutura abissal, e na ambivalncia de noes como ser/no-ser, verdade/no-verdade e velamento/desvelamento na obra do filsofo alemo; assume uma indecidibilidade quase-ontolgica em que todas as distines (inclusive sentido/sem-sentido), alvos privilegiados de sua crtica ao logocentrismo, se tornam comutveis e se dissolvem.
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esteja sempre por vir (BANKOVSKY, 2012, p. 115; 131).
Qualquer deciso enseja uma responsabilidade pela excluso de um Outro, por uma
violncia que no pode ser completamente racionalizada. A alteridade desse Outro
necessariamente escapa da nossa resposta, dado o idioma particular desta, o que torna
impossvel a nossa responsabilidade perante esse Outro, ainda que, ao mesmo tempo, tal
impossibilidade seja simultaneamente o que possibilita a responsabilidade ao impedir que esta
seja exaurvel em uma comunicao perfeita (THOMASSEN, 2008, p. 141). Nas palavras de
Thomassen (2008, p. 117 traduo nossa), a responsabilidade marcada por um intervalo entre responder a e responder por. Como consequncia e aqui eu estou seguindo Derrida , a responsabilidade "infinita" ou, poderamos dizer, sempre por vir. A responsabilidade s possvel na medida em que h uma deciso e indecidibilidade, ou seja, na medida em que no se est simplesmente seguindo uma regra. [...]. Se a imperfeio parte intrnseca do uso pblico da razo, e se, como resultado disso, ns nunca chegamos a um acordo final, ento a responsabilidade perante/pelo uso pblico da razo tambm infinita. Assim, a responsabilidade infinita: por um lado, h a presso para apresentar razes para as aes praticadas aqui e agora; por outro lado, h o diferimento de uma responsabilidade por vir, que nunca pode ser esgotada. Estamos lidando com uma responsabilidade que dividida entre a responsabilidade perante e a responsabilidade por e, como tal, no pode ser esgotada, porque no podemos ser responsveis tanto perante quanto por algo ao mesmo tempo. Naturalmente, isto ir gerar objees de que isso leva estagnao, e que implica que qualquer coisa vale. [...] Eu acho que possvel argumentar no s que estes podem no ser os resultados, mas que a noo de responsabilidade de Derrida trabalha contra esses resultados. Em primeiro lugar, dizer que a responsabilidade infinita ou diferida no significa que ela no tenha lugar. Na terminologia derridariana, a condio de possibilidade da responsabilidade que esta seja impossvel no sentido de que no possa ser apropriada ou exaurida. Na verdade, a inesgotabilidade da responsabilidade em si pode ser uma fonte de vitalidade, pois envolve a contnua contestao e contra-contestao de normas e reivindicaes.
Derridarianamente, pois, a razo, como por-vir, est submetida tenso entre
condicionalidade e incondicionalidade, o que importa no fato de que no somos responsveis
por ela apenas em abstrato, mas tambm por suas articulaes particulares e por question-las.
Trata-se de uma responsabilidade inexaurvel, e justamente isso o que torna possvel uma
responsabilidade de contestao e questionamento contnuos (THOMASSEN, 2008, p. 142).
Elucidados os contornos da matriz epistemolgica eleita, aprofundemos a justificativa
para a realizao deste trabalho.
2.2 JUSTIFICATIVA E REFERENCIAL TERICO: A INDECIDIBILIDADE ENTRE
VINCULAO E DISCRICIONARIEDADE NO DISCURSO DOS DIREITOS
HUMANOS EM UMA SOCIEDADE POLICONTEXTURAL
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Apresentaremos neste tpico, de maneira entrelaada, a justificativa para a realizao
da presente investigao e os elementos que integraro os eixos e o metaeixo do referencial
terico deste trabalho. Inicialmente, abordaremos a distino entre contexto de descoberta e
contexto de justificao no mbito das decises judiciais (2.2.1), o que nos permitir, em
seguida, caracterizar a indecidibilidade entre vinculao e discricionariedade como
constitutiva do fenmeno hermenutico-aplicativo do direito (2.2.2). Postas tais premissas,
poderemos introduzir a questo da justia luz da mtua parania entre desconstruo e
teoria dos sistemas descrita por Teubner, cerne do metaeixo do referencial terico deste
escrito (2.2.3). Desceremos, ento, do nvel de linguagem L2 para o L1, de maneira a
apresentarmos panoramicamente a relao entre os eixos poltico (Douzinas), compreensivo
(Esser), analtico (Peczenik) e cultural (Panikkar) do referencial terico deste trabalho. Por
fim, introduziremos as ideias do transconstitucionalismo de Marcelo Neves como
contribuio para uma abordagem das irritaes recprocas entre ordens jurdicas estatais e
ordens jurdicas locais extraestatais (2.2.5).
2.2.1 A transposio da distino entre contexto de descoberta e contexto de justificao
ao mbito das decises judiciais
O problema hermenutico referente ao intervalo entre vinculatividade e
discricionariedade remete quilo que Martin Golding (2010, p. 41-3) chamou de ataque
realista (estadunidense) objetividade das decises judiciais, tendo como principal referncia
o pensamento de Hutcheson, que descreveu o processo decisrio como uma atividade
sentimental, de impulso, na qual o raciocnio est presente apenas no momento da
fundamentao. Pela descrio de Hutcheson (2014, p. 285), o juiz seria movido por um
impulso motivacional vital de carter intuitivo a respeito do que certo e do que errado
diante de um caso, ou seja, um hunch. Apenas a posteriori o juiz, de modo astuto,
justificaria aquela intuio para si mesmo e, principalmente, para os seus crticos.
Frank (1930, p. 138; 208 e ss.), em linha semelhante de Hutcheson, diz que os juzes,
como quaisquer outras pessoas, so influenciados em suas ideias e crenas por fatores
subjetivos, como desejos e objetivos pessoais. Para esse autor, as decises judiciais nascem a
partir de preconceitos, consistindo a justificao em um exerccio de racionalizao. Isso
significa que uma deciso judicial, no apenas quanto aplicao de normas a casos atpicos
ou difceis, mas tambm na prpria atribuio do sentido de uma questo de direito, requer,
para ser entendida, uma avaliao da biografia do juiz, motivo pelo qual no seria possvel
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falar em objetividade judicial. Frank vai mais longe e diz que o juiz maduro tem conscincia
de seus preconceitos, mas, mesmo assim, no se torna propriamente objetivo. Para o autor, a
concluso sempre ser dominante, encontrando na justificao um expediente de
racionalidade que busca sustentar uma posio assumida, total ou parcialmente, com base em
valores pessoais.
Golding (2010, p. 43) entende que a concepo de objetividade atacada por Frank
considera que: uma deciso judicial no apresenta afirmaes desnecessrias ao argumento do
juiz, nem assertivas que expressem valores pessoais; e que a fundamentao descreve o
processo pelo qual o juiz alcanou a deciso. Em outros termos, independentemente do
carter correto ou no da deciso, ela seria objetiva quando as premissas explcitas na
justificao estivessem presentes na mente do juiz desde o incio do processo decisrio.
Assim, o juiz que decidisse objetivamente apenas inferiria sua concluso a partir dessa
premissa e a aplicaria questo de fato. Para Frank, porm, esse modelo invivel, pois uma
fundamentao sem um enunciado axiolgico no seria uma explicao completa do processo
decisrio. Nesses termos, a fundamentao costumeira dos juzes falsa, pois no expressa
propriamente o processo pelo qual chegaram deciso, visto que nem mesmo os poucos
juzes maduros tm o hbito de apresentar juzos pessoais de valor como fundamentos
determinantes para suas decises. O habitual, na verdade, os juzes explicitarem suas razes
por meio de racionalizaes, as quais escondem os valores pessoais tomados em conta no
processo decisrio.
Diante das provocaes acima relatadas, Martin Golding (2010, p. 39 e ss.) buscou
aplicar a distino tradicional na filosofia da cincia entre contexto de descoberta e contexto
de justificao ao problema da objetividade da deciso judicial. O autor menciona Richard
Wasserstrom, crtico ao realismo jurdico estadunidense, especialmente a Jerome Frank e sua
descrena na objetividade do direito, como precursor da aplicao da referida distino no
campo da teoria da deciso judicial. Aprofundando a ideia de Wasserstrom, Golding explica
que a distino, cunhada por Reichenbach (1970) e por ele aplicada epistemologia, trata o
contexto de descoberta como um processo ilgico e ametdico pouco relevante para fins de
avaliao da verdade ou falsidade de uma teoria cientfica, a qual no encontra seus critrios
nos fatos referentes criao, gnese ou inveno de uma tese, mas, sim, em razes e
evidncias. O contexto de justificao, portanto, seria o mbito por excelncia das reflexes
sobre verdade, aceitabilidade, verificao e confirmao, as quais se dariam nos moldes de
uma reconstruo racional lgica e idealizada, em que uma teoria seria objeto de um
procedimento de justificao e validao por meio de um confronto com os fatos (GOLDING,
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2010, p. 4). Em uma transposio da dis