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SUICÍDIO UMA PROBLEMÁTICA EXISTÊNCIAL AUTORIA E PESQUISA CLERISTON FRANÇA ANTONIO

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SUICÍDIOUMA PROBLEMÁTICA

EXISTÊNCIAL

AUTORIA E PESQUISACLERISTON FRANÇA ANTONIO

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1- INTRODUÇÃO

O que o suicídio têm à ver com o nosso modo de vida e, no geral, com o sentimento de frustração que persegue o ser humano desde seu surgimento até nossos dias cheios de hedonismo á prestação e solidão individualista? Podemos observar esta aptidão do animal humano para tirar sua própria vida apenas em nossa espécie (sacrifício, civilização, industrialização e mediocridade cronicas) ou é um mero sinal de que existem situações em que a vida particular do 'indivíduo' é posta em xeque-mate dentro dos ditames imperiosos da sociedade? Qual o valor simbólico deste ato (se existir um) dentro dos diversos contextos históricos e comunitários que vêm e vão ao sabor dos ventos da mudança que tanto nos caracterizam o 'zoón logikón'?*

Este pequeno estudo não visa justificar ou dar merecimento ao assunto, mas negá-lo simplesmente o torna mais turvo e penoso, principalmente para as pessoas que já tiveram esta experiência em suas vidas. Sempre é uma notícia que é abarcada com assombro e medo - o desespero estampado nos rostos dos espectadores misturado com uma curiosidade mórbida, uma inquietação em relação ao que entendemos, ao longo da existência, por 'valor' da vida e das coisas belas (e ruins) que nela se mesclam e a tornam um conflito enfurecido e admirável. Afinal, ao iniciar um debate sobre este tema, necessitamos saber e discutir o que é a 'vida' (nascer, crescer, se formar, procriar e, por fim, definhar) em si, visto que é ela e suas conseqüências que impulsiona o suicida em direção á esta auto-execução.

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Sem nos determos neste ponto, não há e nem é possível entender os caminhos que levam ao suicídio de fato, pois, ninguém decide, sem mais nem menos, se matar. Existe uma mola propulsora que o joga dentro, de cabeça, neste poço que é a morte física e mental - geralmente o suicida deixa uma indicação do que o levou em frente aos umbrais da inexistência, porém tal atitude nunca é assimilada por quem encontra o bilhete final em cima de uma cômoda ou ao lado do corpo inerte.

O nascimento era (e ainda o é) considerado algo mágico** desde o começo da raça humana - logo tirar a vida é um grande pecado diante das forças criadoras de antanho e ainda latentes nas imaginações religiosas de hoje. Cometer suicídio é mais grave ainda: o autor do ato em si é ele mesmo, o auto-algoz. Uma vida que se apaga, é interrompida. A definição de suicídio segundo os dicionários de nossa gloriosa língua portuguesa (por ex., o Minidicionário Antônio da Olinda - Editora Moderna - 2001 - São Paulo, traz a seguinte definição do ato: sm. 1 - ato ou efeito de suicidar-se; 2 fig.- ruína, perdição procurada espontaneamente;) já trazem, em sua bagagem semântica, um significado proposital e racional. Ou seja: se mata quem quer, não se importando com as conseqüências para outrem, como familiares, amigos próximos ou colegas da convivência cotidiano como ambiente laboral, vizinhança ou demais relações afetuosas. Devido, obviamente, pela nossa herança religiosa e pragmática de vida (judaico-cristã), aceitamos passivamente a idéia de 'punição' ou 'maldição' em relação à morte física e espiritual. Aprendemos que fulano morreu por que 'Deus' assim o quis e desejamos a

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morte (quase sempre bem dolorosa, se possível) para aquelas pessoas que nos prejudicam ou infringiram de modo hediondo as leis sociais que nos mantêm unidos no laço civilizatório. Quem nunca ficou triste ao saber da morte de um colega ou parente muito queridos ou, simplesmente, ao ver seu bicho de estimação sem vida, inerte e entregue às moscas? Acima de 'lógicos', somos seres que construíram conceitos emocionais que nos guiam e controlam de acordo com o momento e a etiqueta social.

Sim, a morte atinge á todos e ninguém está à salvo de seu toque - portanto um fato banalíssimo e naturalíssimo. Sem assim, por quê alguém iria abreviar sua vida e cortar pela metade sua expectativa de existência? Por quê o luto e a dor, o choro e o desespero, a saudade e o inconformismo em relação à isto tudo? Notemos, também, que o conceito suicídio veio mudando e necessariamente não é preciso levar a vida ao término para se perceber o fato de se esta deixando de viver efetivamente.

* Não discutiremos, aqui, o que as várias correntes filosóficas atribuem aos conceitos de vida, alma e morte - apenas um enunciado do que a Sociologia quer dizer, ou seja, a vida, a alma e a morte são conceitos gerados não pela Religião, mas pela sociedade que dá forma e dá luz à estes conceitos;** Nas muitas sociedades tribais da Antiguidade até recentemente acreditava-se que, mesmo o bebê humano sendo criado desde o momento conceptivo, da conjunção carnal, somente no momento do parto lhe era dado o sopro da vida;

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2- SUICÍDO NO MUNDO NATURALO ser humano está sozinho em seu temor natural

da morte?É óbvio que não - basta assistir qualquer

documentário de vida selvagem que se prova a evidência de que nenhum animal deseja a morte de seu corpo físico. Inclusive o maior atrativo destes filmes é justamente as épicas batalhas pela sobrevivência, quando tudo parece orquestrado para nosso deleite e diversão. Ver a leoa se esgueirar pela mata, sob o sol escaldante e encurralar, junto com as demais caçadoras, sua presa despreocupada, é um espetáculo que nossa espécie de 'zoón logikón' aprendeu a apreciar, principalmente de longe, pela televisão e com uma bacia de pipocas com muito sal e manteiga. No entanto, o que nos distingue dos demais animais é o nosso senso de independência em relação aos estímulos naturais - não seguimos à risca o que nos impressiona pelas sensações exteriores, sendo que nos impressionamos mais pelo nosso subjetivo construído com a aprendizagem e a aculturação locais*. E apesar de seres que só evoluíram graças à vida em coletividade, ostentamos um individualismo que pode por em risco nossa sobrevivência (tópico que iremos discutir mais adiante).

Os animais levam muito tempo para mudar de 'opinião' em relação á coisas que estão fisiologicamente ligadas ao seu estilo de vida. A mudança brusca de clima não impelirá o gnu a mudar de alimentação caso não ache mais as gramíneas que tanto necessita para sobreviver - a manada irá se deslocar para outra

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pastagem, caminhar centenas de quilômetros em busca de outro pasto verdejante, mas não mudará tão prontamente de base alimentar. Assim, com certeza, milhares morrerão de fome, sede e pelos predadores. Não seria esta atitude uma espécie de 'suicídio, afinal, não seria mais fácil mudar de alimentação do que se arriscar num êxodo rumo à morte certa? Mas neste quesito o que mais importa é a sobrevivência da espécie como um todo, o chamado 'organismo coletivo'. Outro exemplo é de baleias que, inesperadamente, encalham na areia de praias de todo o mundo. Como são animais com um forte senso de coletividade, as baleias se deixam guiar ás vezes por um líder que não esteja muito bem de saúde e assim todas são arrastadas para a morte nos litorais. Um 'suicídio' coletivo levado às últimas conseqüências pela obediência cega, portanto. Um caso muito lembrado nos mitos e relatos antigos europeus é sobre o comportamento migratório dos pequenos lêmingues do norte escandinavo. Quando se aproxima a chegada da primavera, um verdadeiro exército destes felpudos roedores se lançam em direção ao frio litoral recortado por altas escarpas rochosas, os fiordes, e se precipitam de alto à baixo numa queda vertiginosa rumo ás escumas geladas e pontiagudas pedras á beira dos precipícios. Alguns sobrevivem e nadam para as ilhas próximas, aonde irão procriar e, depois de acasalados, fazer uma longa migração de volta para o seu ponto de origem pela costa nórdica oposta e reiniciar, tudo de novo, na próxima primavera. Desnecessário dizer que muitos morrem neste processo que foge totalmente á lógica humana que não seja de uma seleção natural pelos mais aptos para a reprodução e o suicídio como

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método de 'limpeza' dos indivíduos menos capazes que de outra maneira poluiriam o genoma da espécie com seu fraco potencial.

No mundo dos insetos podemos comprovar que o suicídio possui uma relação muito forte com os fatores sexuais, visto que o macho em sua maioria é, corporalmente, muito menor e indefeso em relação à suas fêmeas, verdadeiras máquinas de caçar, matar e devorar. Quem nunca ouviu sobre os hábitos sexuais da viúva-negra, nome que já destila todo o macabro destino à que o pobre namorador da espécie terá se não for esperto (e rápido) o suficiente após a corte nupcial - no geral, a primeira refeição da feliz ninhada de viuvinhas será o corpo do Don Juan embalsamado e pronto para o jantar em 'família'. Na vida do louva-deus macho as coisas também não são nada fáceis, visto que a fêmea nem espera pelos filhotes nascerem: após a cópula que a fertilizará e gerará novos louva-deus, a gigantesca fêmea devora o macho indefeso, dilacerando sua cabeça, tronco e membros num banquete selvagem - o verdadeiro 'beijo da morte'. Casos de legítimo suicídio em nome do amor e da vida - ao menos para os que daí em diante seguirão a trilha da existência.

Num sentido mais social, as formigas, cupins e abelhas apresentam o mesmo impulso, pois guerreiam, colonizam e se sacrificam por sua vida coletiva. Mesmo havendo uma rígida diferenciação de funções (soldadas, construtoras e cultivadoras), todas darão sua vida pela maioria. Um suicídio 'patriótico', portanto, que sustentará o modo de vida das demais até a próxima necessidade de se utilizar deste recurso novamente. Numa espécie de

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'roleta-russa' alguns animais são deixados para trás, na estratégia de afastar os predadores do resto do bando, quase sempre vulnerável por causa das fêmeas e suas crias, como no aso de bisões e seus eternos inimigos, os lobos selvagens dos confins da América do Norte e norte da Ásia.

E ainda há o caso de elefantes que prestam um cerimonioso respeito aos restos mortais de outro paquiderme caso os achem no meio do caminho em suas andanças**. Isto, neste caso raro, demonstra que a morte é uma possibilidade que não passa despercebida para os animais selvagens. Eles, pela experiência, conseguem evitá-la do modo que estão preparados e a temem. Se dentro do que entendemos esta fobia, é outra coisa que ainda não foi avaliada com certeza. A maior certeza, no entanto, é o fato de que o medo nos impele para a sobrevivência e os que não experimentam esta sensação de auto-proteção, decididamente não vivem muito para contar sua história de vida.

* À isto a psicologia evolutiva dá o nome de Construção Cognoscível;** O que tem suscitado muitas e acaloradas discussões entre os estudiosos do comportamento da vida selvagem, afinal, no meio natural é necessário um certo grau de inteligência adaptativa para se impor diante dos fatores ambientais, estes sim, fatores irracionais e sem determinações inclinadas à julgamentos ou escolhas, mesmo por quê inorgânicos. Certas correntes estudiosas já chegam ao consenso de que aonde houver vida, há inteligência;

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3- A MORTE E O SUICÍDIO NA HISTÓRIA HUMANAO dualismo é uma constante persistente na

mente humana. Se houve uma outra interpretação dos fenômenos naturais e humanos que não se apoiou no início no dogmatismo religioso, este método foi esquecido há muito tempo, pois vemos e notamos que tudo em nossa interpretação subjetiva do mundo (e nossa própria) é feita de conceitos bilaterais e antagonismos. Preto e branco, claro e escuro, limpo e sujo, sede e saciedade, fome e satisfação, dor e prazer e etc, são meios pelos quais nossa mente trabalha e organiza as sensações externas em padrões cognitivos inteligíveis e apreensíveis à nossa lógica organizacional. A herança evolutiva, óbvio, tem um peso enorme nesta forma de pensar e interpretar o que nos cerca, formando em nosso cérebro as impressões que achamos ser o produto do que entendemos e processamos. Com a morte não poderia ser diferente, principalmente se analisarmos que esta palavra carrega o antônomo daquilo que mais prezamos: a vida.

A odisséia humana é a odisséia da sobrevivência. Lutávamos para viver e continuamos ao modo moderno do termo a fazê-lo: trabalhando, estudando, fazendo alianças estratégicas no campo socioeconômico, planejando o que resta de nossa existência para desfrutá-la da melhor maneira possível - coisa que os outros animais não podem fazer, pois velhice é sinal de comida farta para os predadores sempre à espreita de oportunidades que são, para eles, mesmos garantia de sua própria sobrevivência. Sendo assim, passados 160.000 anos, o Homo sapiens sapiens e sua linhagem

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poderiam se dar o direito de respirar sossegados, no aconchego de suas casas iluminadas e confortáveis, afinal de contas, estamos no topo da pirâmide ecológica, não é mesmo? Mas o que o ser humano conseguiu driblar com a inteligência no meio ambiente selvagem, não o fez em neste meio ambiente artificial cheio de conforto que criou para si mesmo: o convívio humano é tão ou mais perigoso do que o era no meio natural - afinal, o ser humano carrega a selvageria dentro de si mesmo desde que deixou as selvas e savanas africanas. O ambiente exerce uma tremenda influência sobre o indivíduo e este apenas pode fazer o que foi programado para fazer...

Na verdade, ele luta para lidar de forma adequada com os antigos instintos animais herdados de seus antepassados (raiva, egoísmo, por ex.,). Estes, por sua vez, serviram de inspiração para as armadilhas sociais que tal convívio social pressupõe (soberba, usura, status social). Nisto, o ser humano não se sente seguro, mesmo que dispondo de tudo o que sempre necessitou ou desejou*. Isto lhe alimenta uma sensação de impotência que lhe consome as entranhas dia e noite. Sempre precisa de mais, pois agora um outro tipo de 'fome e sede' o instiga em direção de novos objetivos - culturais, metafísicos e supra-objetivos. Talvez a certeza da morte seja a fagulha que incendeia todo o edifício eregido em nome da racionalidade e da orgulhosa posição que desfruta nossa espécie agora - predadores supremos, modificadores do mundo natural e senhores de nosso destino (ou que entendamos por isto em nossas existências regidas por compromissos e

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contratos sociais).

Por isto, desde que existe civilização - em todas as suas nuances e expressões - a preocupação com a morte se faz necessária. O fantasma da não-existência prescruta à todos: crianças, moços e velhos**. Nossos primos evolutivos, os neandertais, já possuíam ritos funerários e talvez os tenhamos adquirido após a sua extinção. O corpo mortal do ser humano passa, agora, a ser diferente da simples carcaça. É uma coisa diferente da dos animais que são abatidos para matar a fome da tribo. O sobrenatural começa a fazer parte do cotidiano dos ajuntamentos e povoados de seres humanos que se tornam cada vez mais reféns de sua condição de 'civilizados', onde os ciclos e fenômenos artificiais criados pelos seres humanos são instituídos no lugar dos antigos fenômenos observados na Natureza. Assim uma explicação de vida após a morte e um lugar especial para os seres humanos longe da dor, da fome, do frio e do abandono é admitida mais por força da carência do que pela lógica - uma lógica nascida a dor existencial. Melhor acreditar nisto do que estar entregue ao selvagem materialismo do mundo natural, onde tudo é perecível e corruptível, aonde o ser humano é apenas mais um bicho sujo e selvagem. O mundo ideal das esperanças é melhor, mais confortável, atendendo às expectativas humanas na medida certa e criado à sua imagem e semelhança.

Várias culturas, por isto, têm dispensado um tempo e disposição consideráveis para o assunto morte/vida e o suicídio. Como o mundo natural estaria à

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mercê de leis que os seres humanos não conseguiriam assimilar de todo, eram necessários ritos e oferendas especiais para manter a ordem do cosmos observável e até do mundo extra-sensível, invisível e intangível - de alguma maneira, era necessário interpretar estas leis supremas à todo custo. E o que seria mais precioso do que a vida humana? Assim, começa o período de sacrifícios (virgens, condenados, prisioneiros de guerra), obedecendo cada um à diversos regimentos e especialidades, quer fossem políticas ou sexuais (no hinduísmo antigo, era comum o sacrifício de viúvas junto com o corpo de seus maridos). Para os egípcios, os sacrifícios eram necessários para as constantes enchentes no rio Nilo; para os chineses, para manter os dragões apaziguados e o equilíbrio natural que eles comandavam com seus ferozes humores celestes; para os astecas, o universo iria parar de funcionar se não fossem oferecidos mulheres e jaguares ás centenas; entre os antropófagos brasileiros o escolhido era o mais forte e temido inimigo, assim todos teriam uma parte desta força e bravura.

Mas em todas estas vertentes, nenhum se equiparava ao sacrifício devocional - quando um representante da tribo era especialmente preparado, nascido, para isto. Era o ponto máximo de celebração em todas as culturas antigas. O que se poderia explicar, tirando o natural sentimento sádico do ser humano, pelo fator chamado de 'consciência coletiva': não é um mero ser humano á ser sacrificado, mas a melhor parte de todo um povo para o deleite de seu deus-supremo. Até o início do século XX, não era difícil recolher relatos de

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oferendas de crianças ou moças virgens para os ferozes tubarões do Pacífico Sul ou de tribos africanas que se aventuravam savana à dentro na captura ritualística de leões, armados apenas de simples lanças de madeira. Neste tipo de suicídio 'ritualístico' podemos observar que nem sempre o sacrifício é executado de forma passiva ou sardônica. A valentia e a audácia podem ser o melhor presente à divindade que se pode oferecer, portanto, morrer era uma forma de provar a excelência que a pessoa carregava em si e para as forças divinas.

Mesmo nas religiões modernas, podemos colher diversos relatos de sacrifícios, martírios e desprendimentos sociais ou materialistas que podem ser identificados com o sinônimo de 'suicídio'. A pregação de desapego existencial budista pode ser considerado uma espécie consciente de suicídio para com um mundo regido por ilusões materiais. Do mesmo modo, os martírios de santos cristãos é a marca registrada de uma identificação fenomênica para com a fé e suas metas de libertação da alma com relação ao corpo. O exemplo de Jesus Cristo, por ex.,, é a maior prova para seus seguidores de que a importância dada à própria vida pode ser um empecilho para um real avanço dentro do que entendemos por sociedade, valores e à nós mesmos. Já Sócrates não titubeou em beber a cicuta e morrer por suas convicções filosóficas - um suicídio em nome da Verdade e da inabalável certeza de que era merecedor desta prova de fogo. No campo militar esta tática é exaltada como prova maior de dedicação à causa patriótica e nacionalista, quase sempre os que

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tombaram em combate são lembrados com heróis. Podemos citar ainda o caso de guerrilheiros suicidas ou homens-bomba que tanto chamam a atenção nos países onde o fundamentalismo islâmico é dominante ou os históricos casos de aviadores kamikaze, durante a 2ª Guerra Mundial - todos motivados por ideais que dificilmente seriam aceitos por pessoas fora do contexto cultural e social destes exemplos fatídicos. Como o individualismo consumista de nossa época nos direciona rumo a um transe pragmaticista, onde a vida seria uma meta de acúmulo de lucro e bens materiais, fica difícil enxergar algo de lógico dentro de tais ações.

Com a instalação do judaico/cristianismo como religião estatal romana e dos conceitos que modificaram os ideais de vida após a Revolução Industrial, os parâmetros de julgamento do suicido se modificam. Se antes era honroso tal ato para se resguardar de um destino cruel, como no caso de uma bancarrota ou captura por um povo invasor, agora é a covardia e o fracasso que são as imagens daqueles que cometem suicídio. A noção judaico-cristão de que 'apenas Deus pode tirar a vida ou dá-la" vêm para, antes de tudo, o impedir através de uma predição julgadora e impositiva. O ser humano não é mais dono de seu corpo - quanto mais da alma imortal, que deveria migrar para o seio do Todo-poderoso que a criou do nada. Isto, no entanto, não impede o ímpeto assassino do animal humano, de forma que os primeiros séculos após o nascimento do cristianismo são marcados por perseguições e mortes de heréticos*** que não estariam de acordo com a versão final imposta da religião do Nazareno. Como se pode

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notar, não era necessário que ninguém cometesse 'suicídio' sozinho. No plano sócio-econômico, o indivíduo passa a ser uma célula primordial do sistema capitalista, assim se viu necessário manter ao máximo possível a força de trabalho do ser humano - que morto não produz nada. Assim, de um estratégico conluio entre pensamento religioso repressor e ideologia consumista, nasce a necessidade de se explorar até a última gota a vida dos cidadãos. Suicídio, além de pecado, é sinonimo de prejuízo para a produção e conseqüente escôo destes bens de consumo.

* Não é à toa que as primeiras lendas e mitos de caráter moral e ético fazem alusões ao egoísmo sem limites - a verdadeira ruína do gênero humano, muito distante, portanto, da noção sexual vinculada pelas religiões semíticas que sempre viram na corporalidade humana algo vergonhoso e censurável;** Mitos africanos e asiáticos, bem como certas variações européias que copiaram estes modelos primevos, atestam que a Morte - ou Mãe-morte - é uma senhora que por vezes se apresenta mocinha, uma dama linda e voluptuosa ou um doce velha. Percebe-se que estes esterótipos sexuais sempre tem relação com a fecundidade da mulher, criadora e destruidora da Vida em sua essência mais original;*** A eliminação de seitas ou desdobramentos do ramo central do Cristianismo Primitivo fez-se necessário para a sobreposição de uma visão 'limpa' do mito cristão. Somente assim, após quase 500 anos de perseguição, foi que muitas ordens foram absorvidas pelo corpus religicae da Igreja Católica Apostólica Romana, visto a impossibilidade de as exterminar por completo;

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4- HEROÍSMO OU DESESPERO?No Renascimento, o suicido é resgatado desta

noção derrotista com a retomada dos idéias gregos da Antiguidade (que não o viam como método covarde, mas como eminente prova de controle sobre a própria vida e seu destino) através das traduções das tragédias e mitologias clássicas que foram chegando ao continente via de mão árabe após séculos no esquecimento, por volta do século XII-XII, quando os principais centros urbanos europeus foram tomando uma feição mais parecida com uma organização estatal moderna tal qual conheceríamos hoje em dia. Um espírito de renovação dá à mocidade de então ímpeto para novas experiências estéticas, filosóficas e metafísicas - o que virá a alimentar o movimento posterior ao período, o Romantismo*, de uma visão de mundo e vida cheia de melancolia e resignação frente aos progressos científicos que serviriam apenas para "domesticar o que existe de belo e selvagem no ser humano - tudo em nome do trabalho e do lucro material".

Vê-se, logo, serem estas as sementes que iriam germinar nos séculos vindouros: a escravização do homem pelo próprio homem, como aperfeiçoado método de produção e criação de renda, não mais como método cultural ou religioso. Como diria Hobbes, profeticamente: "O homem é o lobo do homem!". No entanto, idealismos à parte, o suicídio iria passar por uma transformação com o advento da Revolução Industrial e do capitalismo (como já havíamos citado antes). Nos últimos 200 anos de História da Humanidade, se percebe uma nítida mudança de ares no que se entendia por coletivo e

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individual - principalmente no quesito das subjetividades. No primeiro caso, tudo era válido para o bem-estar geral; no segundo, tudo é válido para o meu bem-estar particular. Inicia-se, então, o processo de deteriorização dos conceitos coletivos e objetivos do povo em detrimento do individualismo e subjetivismo do 'cada-um-por-si'. Um processo de 'suicídio' coletivo, em outras palavras.

A costura social, necessária para o acordamento entre as partes cada vez mais complexas, perde sua firmeza e afrouxa os nós que mantêm unidos os seres humanos daí para frente, o elemento social se rarefeita cada vez mais, diluindo-se e mantendo-se vivo através das relações mais básicas possíveis. Com as crescente economia industrializada, o ser humano se coisifica e, por sua vez, humaniza as coisas fabricadas cujo o único intento de lhes serem práticas e agora se tornam o essencial de sua forma de ser e existir - ou seja, vivemos mais apenas para ter mais destas 'coisas' humanizadas. Esta praticidade se torna uma obsessão, de tal forma que não pode-se mais viver sem elas, tal é a dependência que se cria na psique humana (a máquina não morre nem fica doente com o tempo). Tudo que é produzível e manipulável se torna ostentação de excelência e primor, a perfeição não é mais alcançada - é fabricada ao montes conforme o Mercado assim decidir. A vida, mera coisa natural, se transforma num acúmulo de tarefas diante de um sem-fim de necessidades que vão surgindo ao sabor das modas todos os dias, meses e anos. Tudo que é 'natural' deve ser aprimorado e aperfeiçoado pela manufatura - ciclos

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temporais obedecem agora ao ritmo frenético e incansável das linhas de produção. E assim, o ser humano se mecaniza sem ao menos prestar atenção ao que faz consigo e ao seu redor. Uma espécie de suicídio anônimo de milhões de pessoas, silencioso e perfeito, pois a efeminação do caráter social do nosso convívio evidencia a falência de nosso sistema de sobrevida. O ser humano passa à se escravizar pensando estar progredindo ou vivendo melhor - situação que todo escravo bem-intencionado passa a se convencer quando se vê sem saída de sua prisão particular.

Marx e seu conceito de 'alienação' explicam de forma magistral este tipo de comportamento condicionado pela opressão feita sobre a subjetividade das massas de 'escravos' (tanto patrões como operários, pois tudo é uma mera questão de grau e intensidade) guiado por uma cartilha de conceitos pré-fabricados** muito bem administrada, adquirindo uma feição próxima a religiosa. O ser humano precisa extravasar sua insatisfação de alguma forma e para isto, precisa igualmente de uma uma justificativa para tudo que faz - por mais cruel, ilógico e insensato que o seja. A primeira destas soluções é a redução da existência, entenda-se 'vida', à mera constância de labuta e eterna provisão de coisas efêmeras e transitórias. Nada é mais sagrado ou constante no mundo da Modernidade. Apenas o lucro - mesmo que isto implique numa infindável busca infrutífera e sem-fim - é uma visão realista neste mundo de miragens utópicas relacionadas com a liberdade e a realização interiores. Pois "nunca é o bastante" - tal lema ancestral é agora levado á sua enésima potência, pois os

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modos de produção assim asseguram a gula crescente e insaciável. E o pragmatismo, que já era uma filosofia não muito tolerante ou observadora de detalhes no conjunto geral das coisas, reina absoluto quando dita as normas deste jogo de quem 'pode mais, chora menos'.

Neste cenário, onde desolação existencial é quase completa e os seres humanos em suas diferenças são homogenizados para o seu próprio bem-estar (custe o que custar), o suicídio é encarado como uma saída de um modelo de vida vegetativo, pois recebemos água, alimento e luz - menos liberdade. Como tempo é dinheiro, quem perde sua vida em busca de idéias ou satisfação que destoa deste mantra, logo está cometendo um verdadeiro suicídio comercial e econômico. Mas o problema da ocorrência do suicídio pode apresentar dados que, aparentemente, são contraditórios e incongruentes na sua exposição. É o que podemos observar, por ex.,, nos índices de suicídio nos países ricos, a causa seria a depressão de viver em uma sociedade em que tudo está à mão, pronto, sem desafios (tigre bem alimentado, mas enjaulado). Do outro lado da corda-bamba, nos países pobres ou subdesenvolvidos, o suicido está mais relacionado com a questões passionais, emocionais e com a incapacidade de se adequar aos padrões hegemônicos vinculados por mídias comercializantes de um estilo de vida baseado em abstrações, ostentatório de ilusões consumistas e traumatizante do ponto-de-vista das liberdades individuais*** (tigre livre, mas doente, desdentado e faminto).

Não é de se admirar, portanto, que o suicídio

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tenha voltado a adquirir um caráter que é um misto de pecado ou loucura: todos vivem obcecados por ideais de usura e dominação. Neste cenário, o competitivismo toma lugar da coletividade e a impessoalidade se torna a conduta para um porvir de sucesso e status - se desumaniza o mundo que fora construído para servir ao ser humano. Este processo se evidencia mais ainda se associarmos o abuso de drogas (álcool, crack, cocaína e etc) e falta de estrutura social para que o conteúdo psíquico do ser humano se desenvolva plenamente. Os índices de crimes seguidos de homicídio não param de crescer nos centros urbanos com grandes problemas sociais como segurança pública, saúde e educação. Sem estes elementos básicos para a aculturação, a única saída, além de uma vida medíocre, pode estar no suicídio para uma parcela fragilizada de seres humanos que já vêm ao mundo entupidos de obrigações, males da mente e do espírito.

Desta maneira, vemos que viver em tal ambiente é de fato um ato de puro heroísmo (ou utopia) ou mera indiferença mórbida (niilismo). O suicídio seria, então, não uma ação de covardia ou ação derrotista de se 'pular fora do bonde' na pior hora do trajeto. A negação de participar de tudo isto cabe à qualquer um, desde que tomada de um critério maduro ou resultante de análises médicas – o que veremos à seguir. Isto num caso em que as forças sociais lutam para tornar o homem um animal enjaulado e destinado ao cargo de besta de carga pelo que resta de sua vida, o que resulta um quadro grave de depressão ou apatia motivacional. Na maioria dos casos, com seu próprio consentimento, em troca de

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uns poucos víveres e bens de consumo, o ser humano adquire as próprias ferramentas para o seu martírio - e assim a solução vinda na forma de suicídio parece plausível contra uma realidade intolerante e exclusivista, baseada em conceitos medíocres e narcisistas. Nunca foi tão fácil adestrar um animal para viver contra sua vontade...

* O Romantismo, principalmente o alemão dos séculos XVI e XVII, foram um ambiente notório para depressivos e suicidas nas Belas Artes. Pinturas retratavam paisagens melancólicas de uma natureza moribunda, poetas e seus livros exaltavam o 'mal' do século que incitava ao cientificismo que esterilizava tudo ao seu alcance.** O Capital - MARX, Karl, uma obra de seminal importância para o estudo do ser humano, suas realizações produtivas e comerciais ao longo dos últimos 10.000 anos de civilização;*** Dados de 2009. Hoje se chegou ao entendimento de que o suicídio não é o resultado, o clímax propriamente dito, de um processo que envolva apenas consumismo ou dificuldades financeiras. Estes elementos existem dentro do tecido social, como mal-sucedidas práticas de trocas de recompensas nas relações trabalho/mais-valia. Enquanto não se impor um sistema social que privilegie a justiça e não só a 'igualdade' através de migalhas na forma de trocados miúdos (assistencialismo financeiro ao invés de incentivos para a real independência cidadã), não se resolverá, por ex.,, o problema da depressão social e desmoronamento familiar, do êxodo rural e do inchaço urbano nas grandes (e nada planejadas) cidades brasileiras;

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5- QUANDO A MEDICINA FECHA AS CORTINAS DAS JANELAS DA VIDA

A Medicina, mais do que outras ciências do Saber humano, foi a área do conhecimento mais relacionada com a preocupação com o bem-estar físico e mental da Humanidade. Esteve ligada à Religião justamente por isto durante muito tempo - é uma espécie de sacerdócio se vista sob este ângulo humanístico e emocional. Aliviar as dores do corpo material é o seu ponto central e se possível, quando o é, curar definitivamente os defeitos desta máquina admirável que é nosso organismo. Também dentro deste objetivo, o suicídio é uma saída aceitável desde os tempos imemoráveis de nossa história - civilizada ou não. No momento em que mais nada se podia fazer para com o moribundo, os médicos encenavam uma ritualização que entregava o doente ás mãos do poder superior das divindades e lhe aplicavam o golpe de misericórdia, através de venenos, um golpe rápido de cutelo ou entregue aos elementos naturais quando retornava para suas raízes originais por meio da ação de animais carniceiros. Estava acabado o problema e a vida, para os demais, seguia seu curso natural.

Mesmo nas civilizações mais recentes, sempre ficou a certeza de que a opção de uma morte rápida, indolor e em segurança no meio familiar é a melhor alternativa - principalmente em nossa era em que a 'sobre-vida' é garantida por meio de equipamentos sofisticados e altamente eficientes. Medicação que mantêm o doente em estado semi-vegetativo também são largamente utilizados, de forma que a centelha da

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vida humana se mantenha acesa. A esperança é a última que morre.

No entanto, com o crescente domínio que o ser humano adquiriu sobre seu próprio corpo, vêm a se acalorar a discussão sobre o término de nossa existência de forma consciente e optativa. Vivemos mais, envelhecemos além dos padrões naturais. Logo será possível que vivamos acima da expectativa dos 100 anos facilmente e cada vez mais se discute não apenas como envelhecer melhor e com mais saúde, mas como morrer de forma digna. É óbvio que dentro das culturas mais tradicionais, tal decisão está à cargo dos saberes religiosos, de forças divinas que controlariam nossos destinos e isto compreende nossa existência no plano material, terreno, mundano. Quando o ser humano decide sobre sua vida no sentido de quanto tempo quer viver mais ainda, tal feito bate frontalmente de encontro com as liturgias, cerimônias e dogmas misticos que defendem uma dependência em relação com as forças que não compreenderíamos e não controlamos - uma posição passiva e dependente em relação ao destino que temos a obrigação de construir em nosso favor.Hoje milhares de pessoas, perto de nós mesmos, vivem graças a interferência de algum tipo cirúrgico ou medicamentoso, de forma que, sem isto, não estariam aqui, vivos e levando suas vidas da melhor maneira possível, dentro de certas limitações, lógico, mas em uma condição muito melhor do que há anos atrás. Até mesmo por uma questão econômica, se vive mais para produzir mais e, assim, manter o equilíbrio do sistema financeiro e social como um todo.

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Com a longevidade, vêm também outros tipos de doenças até então raras dentro de nosso meio genético. Quanto mais se vive, mais mutações vão ocorrendo dentro de nosso pacote genético chamado DNA - e nota-se, também, o fenômeno de paternidades e maternidades em avançado estagio etário. Assim, estas mutações são passadas para a próxima geração. Estas mutações só serão notadas em um momento inesperado - pois na Genética, tudo ocorre como numa espécie de loteria dos genes. Tudo é imprevisto e oportuno, não é possível ainda se programar contra tudo que possa acontecer daqui há 20 ou 30 anos, bem como daqui a 5 ou 10.

A eliminação de pessoas que possuem algum tipo de deficiência crônica é um tabu que passou a ser condenável a partir da instalação do cristianismo como religião hegemônica no Ocidente. Uma das principais formas de depreciação dos velhos costumes é a famosa ritualística dos 'sacrifícios dos inocentes' (Velho Testamento) e na famosa perseguição a que sofreu o menino Jesus em seus primeiros anos de vida (Novo Testamento). Junto com o que se definiu como 'direitos inalienáveis do ser humano', no século XVII do iluminismo e humanismo europeus, a questão do controle nativístico fica mais problemático, visto que uma das noções herdadas pelas religiões semíticas consistia em 'procriar e povoar a terra'. Feita sem bases racionais ou empíricas, fora de dogmas místicos, o fator reprodutivo humano segue desenfreadamente. Além dos problemas populacionais, temos de lidar com a qualidade destes excedente dentro de nossa espécie. Lembremos

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que dentro do contexto histórico, que vai sendo escrito conforme os interesses dos vencedores sociais e econômicos, ficam de lado ou são ignorados os morticínios infantis ou de doentes dos 'outros' povos não judaicos e não cristãos - ações sumariamente justificadas, como se o elemento humano de uma etnia valesse menos que de outra. Não se pode esquecer que a própria Medicina também se utilizou de métodos bárbaros para promover seus avanços, como por ex.,, as 'aulas' de anatomia feitas com pessoas vivas (prisioneiros de guerra ou bandidos condenados à morte) ou estudos ginecológicos em mulheres negras nos EUA, quando as noções etnocêntricas atestavam que os indivíduos da raça negra eram mais 'toleráveis' à estímulos de dor. Seria, no entanto, infantil julgar tais acontecimentos à luz de nossa moderna ética e moral - por mais libertária e livre de preconceitos que a aceitemos (isto em si mesmo, já pode ser um pré-requisito para julgamentos em um futuro próximo).

A eutanásia (do grego antigo, "morte feliz") é um recurso que poucos tem acesso na modernidade de nossos dias - geralmente com despesas em equipamentos hospitalares e recursos jurídicos que buscam legitimar o ato. Graças ao apelo emotivo e religioso, o percurso que o doente necessita trilhar para atingir o objetivo de sua 'libertação' corpórea de uma doença terminal, por ex., pode levar anos de sofrimento para si e seus familiares (geralmente gastando as minguadas economias em uma tarefa inútil e desnecessária contra os ditames dos rígidos limites naturais de nossa biologia). A discussão se acirra

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quando os interesses financeiros e religiosos entram em jogo - um poderoso industrial não pode partir desta para a melhor sem antes decidir quem será seu herdeiro, por ex. Há ainda o fator de que se antes a Igreja era a dona do corpo e da alma, hoje o Estado (e sua burocracia) compre o papel de dono incondicional do indivíduo.No entanto, apesar das barreiras legais e tracionais, a eutanásia assume um papel cada vez mais próximo de nossa realidade cotidiana. As pessoas, sabendo da finitude de suas próprias vidas, aceitam como viável esta alternativa que deixa de ter uma visão 'canhestra e anti-natural'. Eutanásia deixou de ser sinônimo de assassinato clínico ou erro médico. É necessário que se tome todas as precauções para que a eutanásia não se transforme em uma fonte de renda no mercado de tráfico de órgãos nos países em que a corrupção é um método deveres utilizado para se obter dinheiro fácil e de forma parasitária*.

* Estima-se que grande parte do desvio de verbas na área da saúde pública se esvaia na forma de mortes 'clandestinas' ou mal solucionadas dentro dos hospitais e convênios médicos.

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6- DESCANSE EM PAZClaro (e desnecessário) dizer que uma morte consciente, democraticamente administrada, faz do suicídio assistido ou eutanásia (a definição não importa) uma conquista de todos nós, quer seja no plano econômico, quer no filosófico ou socialmente concebendo o argumento central desta pequena análise sobre um tema tão espinhoso, antigo e diverso. Os abusos que foram (e são ainda) cometidos em nome do 'bem-estar de todos' são numerosos e ficaríamos anos á fio escrevendo livros ou a ditar todos exemplos que conseguirmos lembrar, quando os interesses particulares se adiantam na frente dos princípios éticos, como no caso de genocídios, massacres étnicos e de limpeza racial - engodos racionalizados em nome de atos servis à ignorância do animal humano.Mas quando o ser humano não tem ou perde o direito de decidir o que fazer com sua vida (ou morte) ele se transforma numa caricatura de si mesmo, onde a redução o nivela ao estágio de simples besta de carga. Por esta maneira, decidindo como vamos morrer, podemos dar um sentido mais lógico para a vida*. Embora pareça um exercício de humor negro, é assim que as principais correntes psicológicas trabalham, libertando o ser humano dos julgos ideológicos professados pela religião e a política à serviço do consumismo e da agregação de ítens supérfluos ao seu modo de vida. Quando não se enxerga um modo de se seguir em frente, o ser humano inventa novas possibilidades - quase sempre conceitos cognitivos que lhe asseguram bem-estar, confiança e segurança. No entanto, vivemos

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em um ambiente totalitaristamente individualista, onde o egoísmo predomina sobre a razão e o pragmatismo vêm para tomar o lugar da necessidade de sensatez e união, pois sem coesão o cimento social ruirá e com isto o aparato construído sobre as noções de sociedade vêm à baixo. Esta foi a ruína de todas as grandes potências da Antiguidade e, sordidamente, nos encaminhamos para um futuro semi-animalesco, mesmo que tenhamos tudo ao nosso dispôr e conveniência. Está mais que comprovado que o suicídio é um problema de origem social e apenas tratando de sua raiz matriz é que poderemos tratar (ou retardar) tal acontecimento, mesmo que muitos - guiados por um senso parasitário de oportunismo - digam que tais desfalques não farão diferença. Este diálogo vêm sendo repetido ao longo dos séculos, evidenciando que tais demagogos não possuem nenhum argumento renovador ou inspirador de mudanças benéficas e úteis (outra objeção que tais senhores e senhoras se dão ao trabalho de apedrejar tanto quanto o possível).

* Já dizia um velho proverbio árabe: “Só damos valor para aquilo que, continuamente, perdemos todos os dias...”