o que é suicídio

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  • 7/25/2019 o Que Suicdio

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    Conhe a i tamb m

    a co leo

    tudo

    his tr ia

    LTIMOS LANAMENTOS

    66, URSS: O SOCIALISMO REAL - (1921-1964) - Daniel Aaro Reis

    Filho .

    67, OSLIBERAIS E A CRISEDA REPBLICA VELHA - Pau/o

    Gzlberto F Vizentini

    68, A REDEMOCRATIZAO ESPANHOLA - Regina/do Moraes

    69, A ETIQUETA NO ANTIGO REGIME - Renato Janine Ribeiro

    70, CONTESTADO: A GUERRA DO NOVO MUNDO - Antonio P,

    Tota

    71,

    A FAMLIA BRASILEIRA - Eni de Mesquita Samara

    72. A ECONOMIA CAFEEIRA - Jos Roberto do Amara Lapa

    73.' ARGLIA: A GUERRA E A INDEPENDNCIA - Mustafa

    . Yazbek \-- _

    .74. REFORMA AGRRIA NO BRASIL-COLNIA-=-=ope/doJobi1rl.

    75. OS CAIPIRAS DE SOPAULO - CertosR. Brando

    76. A CHANCHADA NO CINEMA BRASILEIRO - Afrnio M.

    Cati:miljosI.

    M.

    Souza

    77. GUINE-BISSAU - Ladis/au Dowhnr

    78. A CIDADE DE SO PAULO

    79. A REVOLUO FEDERALI

    80. MSICA POPUl;AR BRASILl

    81. A EMOO CORINTH1AM

    82. A REVOLUG INGLESA -

    83. A REBELIO CAMPONESA

    84. BAIRRO

    DO

    BEXIGA - s

    85. UMPALCO BRASILEIRO:

    O

    Maga/di

    86. DEMOCRACIA E DITADlJRA lVU LDILC LU v~~o

    87. A INSURREIO PERNAMBUCANA DE 1817 - G/acyraLazzan

    Leite

    88,

    jI

    CIVILIZAO DO ACAR - VeraLcia Amara/ Ferlini

    89. A REVOLTA DA VACINA - Nico/au Sevcenko

    90. A REVOLUO ALEM - Dantel Aaro Reis Fzlho

    editor r siliense

    6 459

    L 2 5 6 5

    ~aasevelt

    M S C a s s a r i a

    ,

    O : Q U E E

    S U i c D IO

    editor r siliense

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    I

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    L uiz R ib eiro L sd ou x

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    p r i m e i r o s

    1 2 7 _

    _ p a s s o s

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    ==lIITURAS~==

    l i T I ~ [ R )

    Arqueologia da Violncia - Ensaios de Antropologia Poltica

    - Pierre C/astres

    As Ciladas da Cidade -

    E. Ka/ ina e

    S.

    Kovad/off

    Dialtica da Famlia -

    Massimo Canevacci lor.l

    Dialtica do Indivduo - Massimo Canevacci or.

    Estar Bem -

    J. J.

    Tapia

    Para Mudar a Vida - Felicidade, Liberdade e Democracia -

    Agnes Hel/er

    Prtica da Terapia Comporta mental - J. Wo/pe

    Psicodrama - Descolonizando o Imaginrio -

    A. Naffat Neto

    Psicologia Social - O Homem em Movimento -

    Wanderlei

    Codo e Silvia M. T. Lane

    Sobre Loucos e Sos -

    Rona/d D. Laing

    Coleo Primeiros Passos

    O que so Direitos da Pessoa - Da/mo de Abreu Dal/ari

    O que Psicologia Social - Si/via T. Maurer Lane

    O que Tortura -

    G/auco Mattoso

    O que Violncia -

    Ni/o Od/ia

    O que Violncia Urbana - Rgis de Morais

    Coleo Encanto Radical

    Albert Camus - A Libertinagem do Sol -

    Horacio Gonz/ez

    Roosevelt M. S. Cassorla

    OQUE

    SUICDIO

    l

    I

    p

    11

    l

    1 9 8 4

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    Copyright

    Roosevelt M. S. Cassorla

    C a p a e i lu s tr a e s

    Carlos Matuck

    Reviso

    Mansueto Bernardi

    Jos W. S. Moraes

    I ~ 1 i ~ 8 ~ ; . C ~~~: ~Al

    i v I .,

    dJ Con~uista-Bahja

    i F~G [ATA

    1_ _ - - _ - ~ - _ - _ - _ I ~ _ - n l

    l G J

    iIj

    l

    editora brasiliense s.a.

    01223 - r. general jardim, 160

    so paulo - brasil

    NDICE

    - I ntroduo .

    - Tipos de suicdio .

    - Sociedades su icidas .

    - O que a morte para o suicida .

    - A agresso do suicida e a punio do ambiente .

    Outros reflexos do ato suicida .

    - Exemplos de fantasias no indivlduo suicida .

    - Luto, melancolia e suicfdio .

    - As reaes de aniversrio .

    Sexualidade e fantasias suicidas .

    Menopausa e velhice como fatores contribuintes ..

    Os suicdios por fracasso .

    Epidemiologia e intencionalidade dos atos suicidas

    Fatores scio-demogrficos nos atos suicidas .

    O direito ao suicldio .

    Indicaes para leitura .

    7

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    INTRODUO

    Se

    voc que est iniciando a leitura deste livro alguma

    vez j pensou em suic

    dio,

    e est curioso em conhecer mais

    sobre o tema, espero que isso se torne realidade. Mas, j

    lhe adianto que, como voc, a grande maioria das pessoas

    j teve esse pensamento alguma vez em sua vida.

    Se voc que vai ler este livro tem alguma pessoa prxima

    que tentou matar-se, ou se matou, saiba que o suicdio, em

    si, no um ato que tenha qualquer componente heredi-

    trio. No entanto, alqumas vezes, o ato suicida deixa marcas

    mais ou menos profundas nos indivduos que conviveram

    com o suicida, trazendo sofrimento e podendo, s vezes,

    lev-Io a pensar em repetir o ato.

    Se voc que est lendo esta obra vem pensando em

    matar-se, espero que possa compreender algumas das moti-

    vaes de seus pensamentos. E perceba que, com aux lio

    profissional, poder discernir melhor a fora de fatores

    constitucionais, biolgicos, psicolgicos e scio-culturais no

    '-------

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    I

    8 R oo se ve lt M S. Cassorla

    seu sofrimento, que compreendidos podero ser comba-

    tidos com vrias armas teraputicas. Notar tambm que a

    maioria das pessoas que pensam em suicidar-se, talvez como

    voc, est descrente e no consegue ver qualquer sada.

    E que essas sa das existem e sero encontradas, desde que

    voc se permita ser ajudado.

    E se voc que est me lendo nunca teve qualquer pensa-

    mento ou experincia com suicdio, espero que eu possa

    tambm ajud-Io a compreender algo sobre mecanismos

    mentais, que todos ns utilizamos, e como esses meca-

    nismos interagem com fatores ambientais. Na verdade, a

    mente do suicida no

    diferente da mente de qualquer

    pessoa: apenas alguns mecanismos se tornam mais intensos

    ou interagem entre si de uma forma que causa sofrimento:

    Proponho-me, portanto, a discutir com o leitor algumas

    facetas dos atos suicidas. ~ um assunto complexo porque

    envolve a influncia de inmeros fatores: assim, o suicdio

    pode ser abordado dos pontos de vista filosfico, socio-

    lgico, antropolgico, moral, religioso, biolgico, bioqu-

    mico, histrico, econmico, estaHstico, legal, psicolgico,

    psicanaltico etc. E todas essas vises se interpenetram.

    Face aos objetivos desta coleo sero apenas pinceladas

    vrias dessas vises e, devido s minhas caractersticas

    pessoais, enfatizarei mais os aspectos psicanalticos, em sua

    interao com o scio-cultural, tornados compreensveis

    para o leigo. No final do volume o leitor encontrar refe-

    rncias bibliogrficas sobre o tema, comentadas, que

    podero proporcionar-lhe um aprofundamento.

    TIPOS DE SUICDIO

    Suicdio , traduzindo-se a palavra: morte de si mesmo.

    Esta definio parece suficiente, num primeiro momento.

    Mas, quando comeamos a refletir sobre as maneiras e

    mecanismos como as pessoas podem matar-se ou contribuir

    para sua prpria morte, percebemos que se trata de uma

    conceituao muito ampla, em que podemos incluir muitos

    atos e comportamentos que normalmente o leigo no ima-

    gina que se trate de suicdios. Mas que o so, de alguma

    forma.

    Vamos a alguns exemplos:

    1) Imaginemos um fumante inveterado, j com proble-

    mas pulmonares e cardacos, conseqncias do fumo, que

    sabe que se no parar de fumar morrer em pouco tempo.

    E que no pra de fumar ou no consegue. ~ evidente que

    est contribuindo para sua prpria morte. Alis, isso

    ocorre com qualquer fumante. O mesmo vale para o alco-

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    Roosevelt M. S. Cauorla o que Suicdio

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    latra, o viciado em drogas e mesmo para quem insiste em de suas vidas se acidentam com facilidade. Caem, so atro-

    ingerir alimentos que lhe faro mal. peladas, sofrem desastres automobilrstlcos, acidentam-se

    2) H pessoas que gostam de viver perigosamente. Na mais no trabalho etc. Uma anlise mais profunda demonstra

    maioria das vezes no esto conscientes dos riscos que a exscerbao, geralmente inconsciente, de seus instintos

    correm, ou mesmo que os conheam, acreditam-se imunes de morte. ~ interessante que comum ente, numa determi-

    a eles. Corredores de automveis so um bom exemplo. O

    nad

    sociedade, as taxas de morte por suicdio acom-

    indivduo que pratica a roleta russa est no s crendo - panham as de acidentes em suas oscilaes. Isso ocorre no

    magicamente - em sua invulnerabilidade, como est tarn- s6 porque muitos suicrdios conscientes passam por aci-

    bm procurando a prpria morte. Os praticantes da roleta dentes, mas porque as motivaes inconscientes tendem a

    paulista (dirigir velozmente em cruzamentos movimen- ser comuns nos dois grupos.

    tados, independente de o sinal estar verde ou vermelho) pro- 5) Pessoas levam formas de vida em que, por problemas

    curam, alm da prpria morte, a morte dos outros: aqui . psiquicos ou psicossociais, se sobrecarregam Hsica e/ou

    fica claro que o ato auto e tambm heteroagressivo, J l emocionalmente. Vivem em tenso: as pessoas prximas, s

    como ocorre em todos os suicdios (o que veremos melhor vezes, percebem e alertam: voc est se matando, precisa

    adiante). O policial e tambm o criminoso correm risco de mudar de vida . ~ a percepo inconsciente que os outros

    vida, e sabem que sua chance de a perder maior que a da tm dos componentes suicidas. Muitas dessas pessoas aca-

    populao geral. E, muitas vezes, encontramos nessas pro- bam por encontrar resposta a esses componentes atravs do

    fisses e atividades perigosas, ndivrduos em que a procura surgimento de doenas. Hoje sabemos que em todas as

    da morte bem evidente: com regularidade se acidentam ou doenas, independente de causas externas, existe um

    se expem desnecessariamente a situaes de alto risco. So componente emocional ligado a impulsos de autodestruio.

    pessoas cujos conflitos exacerbam o instinto de morte, A doena ser a resultante da

    interao

    entre instintos de

    presente em todos n6s. vida e de morte (estes exacerbados). Isso mais evidente

    3) O soldado voluntrio, que se oferece para uma misso no caso de molstias que se costuma chamar de psicosso-

    em que as chances de sobrevivncia so pequenas, o bonzo mticas: a hipertenso arterial, o enfarte do miocrdio a

    budista ou o estudante checoslovaco que se imolam em lcera gastroduodenal, a retocolite ulcerativa, a asma brn-

    protesto pohtico, ou ainda o indivduo que faz greve de quica, mas o componente psicolico tambm claro nas

    fome por um ideal, constituem outro grupo de suicidas

    I

    doenas infecciosas, no cncer e nas doenas auto-imunes.

    - ,

    ou de indivfduos que correm risco de vida, aqui de uma A anorexia nervosa, molstia de origem psicolgica, em que

    forma geralmente altrusta. t o indivfduo morre porque se recusa a comer, um exemplo

    4) Pessoas comuns, muitas vezes, em determinadas fases

    t

    extremo de influncia dos instintos de morte atravs de

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    m

    d . .

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    R oo sev elt M S. Cassorla

    uma doena.

    Em resumo, as pessoas podem matar-se ou procurar a

    morte de uma forma consciente ou inconsciente. Na ver-

    dade, existem em todos ns instintos de vida e instintos de

    morte: os primeiros levam a crescimento, desenvolvimento,

    reproduo, ampliao da vida, unindo a matria viva em

    unidades maiores; j os instintos de morte, tambm pre-

    sentes em todos os organismos vivos, lutam para faz-Ios

    voltar a um estado de inrcia. Os instintos de morte acabam

    por vencer, a nrvet individual, pois todos os seres vivos ter-

    minam morrendo (se bem que a nvel coletivo a vida con-

    tinua, atravs dos descendentes). A vida, nas suas vrias

    fases de desenvolvimento e involuo, at a morte, o resul-

    tado da interao desses dois instintos. O prprio instinto

    de morte, mesmo lutando para levar o ser vivo ao estado

    inorgnico, tambm auxilia a vida, pois dele derivam

    foras destrutivas que se manifestam atravs da agressi-

    vidade; essa agressividade permite ao indivduo defender-se

    de foras externas e conquistar os recursos de seu ambiente.

    ~ como se o instinto de morte defendesse a pessoa da morte

    por causas externas e assim a obrigando a submeter-se s ao

    seu comando, que levar morte natural. Mas, em situaes

    de conflito, a fora do instinto de morte se exacerba e

    mecanismos autodestrutivos entram em jogo, terminando

    por acelerar a morte: esta deixa de ser natural e passa a ser

    devida a doena; acidentes ou atos inconscientes ou cons-

    cientes de auto-extermnio.

    Alm de o suicdio ser consciente ou inconsciente, pode-

    mos utilizar outra classificao: suicdio total e suicdio

    parcial. No suicdio parcial o indivduo mata uma parte de

    i

    I

    o

    que Suictdio

    1 3

    si mesmo. Pode ser consciente - por exemplo, as auto-

    mutilaes - mas, geralmente, inconsciente: as doenas, o

    no funcionamento ou o mau funcionamento de rgos so

    suicdios parciais. A frigidez e a impotncia sexual so

    exemplos claros em que uma parte do indivduo est como

    que morta. Mas, sempre o que se mata a satisfao, o

    prazer, a vida que provm desses rgos. Outras vezes, o

    suicdio parcial se manifesta atravs do prejuzo de funes

    mentais (sem repercusso orgnica clara), a pessoa no

    podendo aproveitar suas potencial idades emocionais: de

    amar, de trabalhar, de ser criativa. Quase sempre, o indi-

    vduo no tem conscincia de que suas potencialidades

    podem ir alm do que ele se permite usar, de que parte

    delas est suicidada , bloqueada devido a conflitos

    emocionais.

    A interao entre fatores internos e externos existe

    sempre. Um ser humano pode no ter foras para enfrentar

    desafios e presses externas, ou porque estas so muito

    intensas, ou porque suas foras internas esto prejudicadas,

    ou pela soma de ambos os fatores. E evidente que algum

    corre maior risco de acidentar-se numa estrada mal sinali-

    zada, ou de ficar tuberculoso se estiver desnutrido, ou

    ser assaltado numa fase de recesso e desemprego na socie-

    dade: aqui a fora de fatores externos evidente. Mas,

    motivaes internas levaro muitas pessoas a redobrar os

    cu i dados na estrada, por perceberem que est mal sinali-

    zada. Esses mesmos fatores internos podero fazer com que

    alguns desnutridos resistam ao bacilo da tuberculose e

    que outras pessoas descubram como proteger-se melhor de

    um assalto em potencial. J outros indivduos, com menos

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    R oosevelt M

    S.

    Cassorla

    intensidade de instintos de vida, ou mais instintos de morte,

    podero acidentar-se em timas estradas, ficar tubercu-

    losos mesmo se bem nutridos, ou ser assaltados porque

    deixaram, por engano (isto , inconscientemente), a porta

    de sua casa escancarada, convidando qualquer assaltante

    a entrar ... Enfim, foras internas podem diminuir ou

    aumentar a fora de riscos externos. Adiante o leitor

    encontrar exemplos ilustrativos no relato de casos de

    conduta autodestrutiva.

    SOCIEDADES SUICIDAS

    Antes de seguir adiante permitam-me uma analogia entre

    o indivduo e a sociedade. Trata-se apenas de um exercrco,

    porque uma viso psicolgica de algo to complexo como

    uma sociedade ser provavelmente parcial e deformada.

    Mas, as sociedades tambm nascem, crescem e se desen-

    volvem, involuem e morrem. Centenas de civilizaes mais

    ou menos desenvolvidas se extinguiram (como tambm

    ocorreu com milhares ou milhes de espcies vivas). Essas

    sociedades, quando se estuda sua histria, chegaram geral

    mente ao pice, aps o que entraram em decadncia; e

    comumente o historiador identifica os fatores de involuo

    dentro da prpria sociedade, fatores esses que terminam por

    levar ao auto-extermrnio ou

    facilitao de conquistas por

    outros povos. s vezes, o agente externo irresistvel e as

    foras internas tm pouca influncia, como ocorreu com os

    ndios de nosso continente frente invaso europia. Mas,

    quando se trata de civilizaes de tecnologia equivalente, o

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    6

    R o os ev e lt M S C a ss or la

    componente autodestrutivo evidente (e s vezes a tecno-

    legia de vencedor inferior]. cem e ocorreu cem ascivili-

    zaes mesopotrnica, egpcia, grega e romana, apenas para

    citar as mais conhecidas. E, em nesse continente, provvel-

    mente entre os incas e ma ias.

    Esses processos de vida e morte das civilizaes levaram

    sculos. Mas, mesmo. cem e fator tempo sendo. muito. curte

    para uma avallao. e mesmo. poder ser viste de alguma

    forma nas naes mais modernas, se bem que pouco

    provvel. por exemplo, que a decadncia de imprio. ingls

    possa ser tornada corno decadncia de uma civilizao. O

    mais prevvel que haja ocorrido uma neva forma de

    sobrevivncia, de readaptao de ex-naes imperiais, que

    continuam imperando. (agora unidas e mais fortes) de uma

    forma mais sutil e mais eficiente (atravs de domnio

    financeiro. e clennflco, via bancos, rnultinacionais, FMI e

    toda a parafernlia que e brasileiro. j se acostumou a ver,

    chegando. at a ameaas de invaso. militar e corrupo de

    pessoas influentes nos pases dominadosl .

    Ao. nvel de uma nao, corno por exemplo e Brasil,

    sujeite a foras externas, e componente autodestrutive

    tambm muito. evidente. Em rarrssirnos momentos de sua

    histria as pessoas que gevernaram este pas quiseram

    perceber que e Brasil so. os brasileiros. O exterrnrnio de

    brasileiros (e e suicfdio parcial de pas) tem sido uma

    retina. Esse suicdio. se faz de vrias termas: impedindo-se

    e nascimento. de milhes de crianas (abortadas, nati-

    mortas); das que nascem, milhes morrem de torne ou so.

    aniquiladas por doenas causadas pela misria; das que

    sobrevivem, outros milhes morrem precocemente, na idade

    b

    o

    qu e

    Suictdio

    17

    adulta e no. auge de suas vidas, de condies resultantes de

    fato. de a sociedade no Ihes proporcionar condies de

    sobrevivncia. Dos que restam, a maioria so. mortos em

    vida , indivfduos acuados, submissos, que muitas vezes

    s

    vegetam, sem instruo. sem oportunidades e que no. tm

    corno desenvolver suas potencial idades. Estes constituem a

    grande parte dos brasileiros que, a despeito. disso, produzem

    as riquezas de pas mas delas no. pedem usufruir. A mino-

    ria dos brasileiros que pede ter conscincia de alguma coisa

    su icidada atravs de um sistema educativo alienante, de

    uma rede de desinforrnao, de uma cultura consurnista, de

    uma ode ao. oportunismo e esperteza, ao. vencer na vida

    medido. pela aquisio de bens materiais suprfluos, de um

    estmulo. desenestidade e corrupo. Infelizmente

    vivemos num pas em que e [eitinho , misto. de hipocrisia,

    chantagem, submisso. e oportunismo (em que tudo. fica

    como est) uma instituio. nacional, Um pas em que os

    princpies predeminantes so. do tipo: ou instauramos a

    meralidade eu nos locupletemos todos , aos amiges tudo,

    aos inimiges a lei , a lei, era, a lei , a lei corno a

    virgem, existe para ser violada , em que existe uma lei dos

    ricos e outra dos pobres, a primeira podendo. ser alterada

    casuisticamente quando. convm aos poderosos, e em que os

    jovens no. acreditam em mais ningum um pas semi-

    suicidado . Mas, muito. difcil exterminar a vida (e at e

    indivduo. suicida sabe ceme difcil matar-se): existe

    sempre a vida em potencial e possibilidades de um renas-

    cimente, s vezes at das cinzas. E, muitas vezes essa vida,

    quanto. mais inibida e restringida e foi em seu desenvol-

    vimento, emerge com mais fora e vitalidade.

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    8

    Roosevelt M.

    S.

    Cassorla

    Talvez o leitor se pergunte por que eu estou falando em

    suicdio de um pas, e no em assassinato.

    porque elE;est

    sendo assassinado por uma parte dele mesmo, uma parte de

    uma sociedade mata as potencial idades de outra parte, e

    o mesmo que ocorre no indivduo suicida. Como veremos

    adiante, o suicida no est querendo necessariamente

    matar-se, mas matar uma parte de si mesmo. No entanto,

    isso impossvel, e ele, como que num engano, acaba

    matando-se e morrendo inteiro. Uma parte da sociedade

    que mata outra parte poder terminar tambm por morrer.

    Um prembulo disso j pode ser a onda de violncia urbana,

    em que pessoas sem oportunidade, pela recesso e desern-

    prego - semi- suicidadas -, revidam violentando outras

    pessoas e temos uma espcie de guerra civil, em que uma

    parte da nao (e muitos inocentes, como em todas as

    guerras) atacada pela outra parte.

    Tanto no indivduo como na sociedade os impulsos

    destrutivos tm de ser neutralizados ou desviados para

    que no se tornem autodestrutivos. Outras vezes, a frus-

    trao externa faz com que eles aumentem e se voltem

    contra a prpria pessoa ou a prpria sociedade. Assim, se

    no posso combater um inimigo externo porque ele mais

    forte, posso arranjar um inimigo interno - em termos indi-

    viduais posso auto-agredi r-me; em termos grupais, por

    exemplo, se no posso combater um grupo inimigo fascista,

    posso deslocar as energias para combater uma dissidncia

    mais fraca de meu grupo antifascista (e auto-agrido meu

    grupo). se no posso brigar com meu patro, posso agredir

    minha esposa e filhos, e se no posso agredir ningum bato

    com a cabea na parede, ou me mato. A agressividade, se

    o

    que Suicidio

    1 9

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    2

    Roosevelt M. S.

    Cassorla

    no neutralizada ou dirigida pelo instinto de vida, ser insu-

    portvel e se manifestar ou para fora ou para dentro do

    indivlduo ou da sociedade. s vezes, precisamos de um

    bode expiat6rio para poder coloc-Ia para fora: podem ser

    os judeus {inclusive, por tradio ...

    l.

    os comunistas, os

    americanos, os hereges, os infiis, os negros, os amarelos,

    os nordestinos, os paulistas, os corintianos ou os vas-

    carnes ... Podemos gritar contra eles, ou se os impulsos

    forem muito fortes (ou bem manipulados por algum)

    podemos ter um pogrom, urna fogueira inquisitorial ou

    um linchamento. Podemos tambm travar uma guerra:

    retomar as Malvinas ou olhar feio para algum paIs

    vizinho por causa de um rio ou um pedao de terra. Numa

    guerra (civil ou externa) matamos, suicidamos parte

    de nossa juventude e da nao. Numa guerra mundial nos

    matamos todos, exterminamos corn artefatos nucleares toda

    a humanidade, a espcie humana se suicida e ainda acaba

    com muitas espcies vivas. Talvez ainda consigamos, dentro

    de algum tempo, acabar at com o planeta Terra.

    Estamos frente possibilidade de um suicdio da huma-

    nidade. O indivlduo suicida, ou se mata, ou (geralmente

    com ajuda profissional) se permite pensar e controlar seus

    impulsos, e assim se humaniza. A humanidade tambm,

    ou pensa e se humaniza, ou se exterminar.

    Lembro-me agora de uma anedota. Num Congresso Mun-

    dial de Gentica o presidente alerta que ser anunciada uma

    descoberta que revolucionar a histria da humanidade.

    Marca-se a hora para o anncio, auditrio lotado, jornais,

    televiso, suspense ... O presidente se levanta e, emocio-

    nado, comunica que finalmente foi descoberto o elo per-

    o que Suictio

    2

    dido, aquele elo to procurado pelos estudiosos da evo-

    luo, o elo entre os macacos e o homem civilizado. E con-

    tinua, com a voz embargada: 0 elo perdido, somos NOS.

    Esta anedota surgiu em minha cabea porque, de

    repente, me percebi algo pessimista. O riso, o rir de si

    mesmo, uma caracterrstlca do ser humano e uma arma

    muito forte, s vezes a nica arma dos fracos, mas que pode

    atingir em cheio os fortes. Nada mais rid (culo que ver a

    luta de americanos e russos para aumentar seus arma-

    mentos, que j podem exterminar a humanidade dezenas

    de vezes. Para qu? No basta exterminar s6 uma? O

    homem, que pode pensar, pode criar, pode se enxergar,

    pode criticar e corrigir seus erros, pode tambm estar do

    lado da vida e pode combater todo esse potencial rnortr-

    fero. Creio que, se pode rir de si mesmo, porque tem inte-

    ligncia suficiente para encontrar sardas.

    O

    mesmo ocorre

    com o indivrduo suicida: quando ele pode rir porque j

    est se humanizando, podendo viver.

  • 7/25/2019 o Que Suicdio

    13/54

    o QUE

    A MORTE

    PARA O SUICIDA

    Voltemos agora ao estudo do suicrdio individual. O mais

    comum

    que se considere como suic(dio a morte que

    algum provoca a si mesmo, de uma forma deliberada,

    intencional, isto , os suicdios conscientes. Mas, uma

    questo importante, que vale a pena discutir, se o suicida

    consciente est realmente procurando a morte. A pergunta

    que se impe : o que

    a morte? Ser que possvel

    saber-se o que a morte? Ou, o que realmente se quer

    quando se procura a morte?

    Existem alguns depoimentos de pessoas que teriam che-

    gado prximos morte, depoimentos em geral alentadores.

    No est claro se o que elas contam algo ou se so pro-

    jees de fantasias internas. E, mesmo assim, o seu relato

    o do que ocorreria em face dos momentos prximos do

    fim, mas no da morte em si. Existe uma necessidade natu-

    ral nas pessoas a no s aceitarem esses depoimentos, mas

    o que Suiciio

    23

    at de colori-Ias de tintas mais maravilhosas ainda. Creio

    que isso ocorre como um mecanismo, s vezes desesperado,

    de tornar compreensvel o incompreensvel, o ignorado. A

    angstia do desconhecido, do incontrolvel,

    to intensa

    que se no utilizamos mecanismos que nos consolem ou que

    nos proporcionem a fantasia de controle, poderamos at

    en louquecer.

    Alis,

    interessante notar que a maioria dos seres huma-

    nos e na maior parte do tempo vive como se fosse imor-

    tal. Existem (talvez, felizmente) mecanismos mentais que

    impedem que tenhamos conscincia permanente de nossa

    finitude. Poucos homens percebem de uma forma clara que

    existe a passagem do tempo e se permitem aproveitar

    melhor a vida, por isso, e quem sabe, podendo deixar de

    desgastar-se com pequenas coisas. Alguns tomam essa

    conscincia aps crises, doenas graves, proximidade da

    morte, guerras etc., que os fazem reavaliar a vida. Muitas

    vezes, a percepo da finitude permite que o indivfduo

    possa perder ou sacrificar algo (que ento deixa de ter tanto

    valor) em funo de interesses maiores, de sua famflia,

    seu grupo, ou de toda a sociedade. Em situaes o sacri-

    ffclo da prpria vida pode ocorrer, e aqui temos alguns

    suicdios altrursticos, So clssicos os exemplos em que

    pais ou mes se sacrificam para salvar seus filhos, num

    processo altamente complexo, com bases biolgicos e psico-

    lgicas profundas, permitindo a vida queles que viveram

    menos, num esforo de perpetuao da espcie. O herorsmo

    que ocorre em situaes de crise uma constante em nossas

    populaes marginalizadas, em que muitas vezes os pais

    deixam de comer para alimentar seus filhos.

    Notrca

    de

    D

  • 7/25/2019 o Que Suicdio

    14/54

    24

    Roosevelt M. S. Cassorla

    jornal, de novembro de 1982, bem ilustrativa: Pelo

    menos 35 refugiados ruandenses, em sua maioria velhos e

    enfermos, cometeram suicdio coletivo em Uganda,

    tomando um carrapaticida, para que a escassa comida

    pudesse ser dada s crianas, disse ontem um funcionrio

    da ONU .

    Infelizmente, em quadros de melancolia, s vezes o sui-

    cida em potencial imagina que com sua morte deixar

    de fazer sofrer a fam (lia ou pessoas prximas e acredita

    que cometer um suicfdio altrustico. Isso no verdade,

    pois a anlise cuidadosa demonstrar que esse apenas

    um mecanismo, de auto-engano, para justificar o ato,

    que tem motivaes muito mais profundas. Discutirei

    melhor a melancolia adiante, mas fao esta ressalva porque

    o conceito do que seja altrustico deve ser da sociedade, e

    no do indivlduo (que muitas vezes, perturbado por seus

    conflitos, no tem condies de uma auto-avaliao de suas

    motivaes).

    O exemplo dos velhos que se suicidam para permitir a

    vida aos mais jovens, que talvez seja tambm uma das

    motivaes de suicdios de velhos entre os esquims e

    certos grupos de ndios, me leva a refletir sobre as dificul-

    dades que muitas pessoas tm de dividir as benesses da

    vida com outras pessoas. Muitas vezes, para manter o poder,

    os velhos (no de idade, mas de esprito) se tornam avaros,

    desconfiados, autoritrios e at desonestos, no medindo

    esforos e usando qualquer meio para no perder suas

    posies. Os outros, s vezes a gerao mais jovem, que

    querem decidir o seu destino, pressionam para tal e tm

    de ser submetidos, dominados. Isto

    visvel em muitas

    o que

    Suicidio

    S

    famlias: e o resultado pode ser a sua dissoluo, numa for-

    ma de auto-extermnio. Pior ainda quandoocorreem socie-

    dades: o resultado a represso de todo um povo por um pe-

    queno grupo de indivduos que tem medo de dividir o poder.

    Se esse grupo, para manter-se no poder, foi obrigado a

    cometer falcatruas, a utilizar meios ilegtimos (s vezes

    indu indo a tortura, a morte e o ex ( Iio dos adversrios), a

    manter amordaada toda uma populao, o pavor de perder

    a fora aumenta, por medo do revide. A cada sinal de vida a

    represso sobre a sociedade aumenta, e se no tiver a sorte

    de conseguir libertar-se permanece como que morta, melhor

    dizendo suicidada , porque a morte veio de parte dela

    mesma. Felizmente, mesmo que aparentemente morta (e s

    vezes ela se finge de morta, arma que muitos animais

    usam para confundir seus inimigos). sempre existe uma

    vida latente, subterrnea, que emergir a qualquer mo-

    mento. Houve, inclusive, ocasies em que grupos domi-

    nados criaram novas sociedades, novas naes, novas rei i -

    gies (a vida surge, ressurge, e insiste em vencer a morte).

    Mas, retomemos o nosso problema de tentar compreen-

    der o que seria morte. Se indagarmos a um grupo de pessoas

    sobre o que elas acreditam que ocorra aps a morte teremos

    respostas contaminadas por mecanismos emocionais, e

    comumente intelectualizadas. O que o indivduo responder

    pode ser o que ele deseja, ou uma teoria racional, mas rara-

    mente o que ele sente em nvel mais profundo. s vezes os

    sentimentos mais profundos surgem: em muitos pacientes

    em terapia analtica a morte se apresenta como algo inexpri-

    mlvel e apavorante -- j em outros, mesmo que incompreen-

    svel, no proporciona tanto medo. Numa pesquisa que fiz,

  • 7/25/2019 o Que Suicdio

    15/54

    6

    R oo sev elt M S. Cassorla

    entrevistando jovens que tentaram matar-se, encontrei 1/3

    para quem a morte significava trevas, sono sem fim. Ora,

    trevas e sono se contrapem a luz e viglia - portanto, o

    conceito de morte a negaa-o de algo: s posso perceber

    as trevas ou o sono se vier a luz ou acordar. Na verdade, as

    idias ou os sentimentos do nada aps a morte, um nada

    que no se contrape a coisa alguma pois no existe conhe-

    cimento (nem do algo, nem do nada). mal podem ser ima-

    ginados, menos ainda descritos. Isso porque uma experin-

    cia que nunca tivemos. E, se a tivemos, na-o foi uma expe-

    rincia, pois ocorreu antes de sermos, de existirmos ...

    Enfim, 1150 podemos saber o que a morte, porque na-o

    morremos. Podemos apenas supor algo, como uma no-

    vida, mas uma suposio com bases muito limitadas. Em

    minha investigao outro 1/3 dos jovens afirmava que no

    tinha condies de saber o que era a morte. Mas, nesses 2/3

    (os que igualavam a morte a trevas e os que no arriscavam

    qualquer palpite). paradoxalmente, as provveis fantasias

    inconscientes 1150 eram de um nada ps-morte. Em quase

    todos se percebia, com nitidez, fantasias de vida ps-morte,

    como ocorre na maioria das pessoas. Na verdade, as respos-

    tas obtidas nesses 2/3 eram afirmaes de ordem racional,

    intelectual, e

    1150

    afetiva. Apenas o 1/3 restante se permi-

    tia afirmar que acreditava numa vida ps-morte.

    A necessidade de acreditar numa vida ps-morte, que nos

    far fugir do incornpreensrvel do nada, foi provavelmente

    um dos fatores de origem das religies. Praticamente todas

    se fundam na crena em uma vida, terrena ou extraterrena,

    que vir aps a morte. A f, a necessidade de crena mesmo

    sem provas, pode at ser uma das condies de sobrevi-

    o

    que Suictdio

    27

    vncia do ser humano, evitando que caia em si e perceba

    sua insignificncia. NSo h condies de se saber se as pes-

    soas que possuem essa f esto utilizando mecanismos

    mentais mais ou menos adaptativos, em termos de manu-

    teno da sade mental e da evoluo da humanidade. NSo

    tenho condies de fazer avaliaes do ponto de vista teo-

    lgico, mas numa viso psicolgica, possvel que a noo

    de vida ps-morte seja a nica sada para anular a angstia

    do defrontar-se com o nada.

    Para a criana a morte algo reversvel, assim como para

    o selvagem. O crente tambm tem a mesma idia, a reversi-

    bilidade geralmente ocorrendo em outro mundo. Uma

    criana pequena acha que algum morre porque foi morto

    por outra pessoa, e depois, porque estava doente (a doena

    o matou). No existe a idia de morte natural, de que as

    pessoas morrem porque elas esto vivas. Para o selvagem a

    morte tambm um acidente: algum mata algum, ou dire-

    tamente, ou atravs de influncias ou feitios; as doenas

    tambm so o resultado de algo externo, causado por outra

    pessoa. Essa pessoa um inimigo, muitas vezes de outra

    tribo ou grupo, com capacidade de feitiaria. Outras vezes,

    a morte e doena no so tanto responsabilidade de pessoas

    mas sim de entidades superiores, geralmente com caracte-

    rsticas humanas, os deuses. Esses deuses devem ser apla-

    cados com sacrifcios e oraes. Comumente, esses deuses

    so divididos em bons e maus, e assim vamos nos aproxi-

    mando das concepes das grandes religies, de cu e seus

    representantes divinos e de inferno (e os representantes do

    maligno). O crente tampouco acredita na morte natural.

    A morte e a doena so o resultado de castigos pela no

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    28

    R oose velt M S. Cassorla

    obedincia a preceitos da divindade ou a possesso por

    influncias dernonfacas,

    Ou, a morte ocorre porque a humanidade (no o homem

    individual) foi expulsa do para

    ISO,

    tambm por desobe-

    dincia. Os bons e justos sero premiados aps a morte, os

    maus sero castigados. Mas, tanto no cu como no inferno,

    a vida continua aps a morte. As concepes de cu e

    inferno so variadas: para algumas religies, no cu se

    encontram todos os prazeres terrenos e a vida semelhante

    da terra, mas sem sofrimento (como o Walhala dos vikings

    e o parafso dos islamitas); em outras, como a crist, o

    terreno se aproxima menos do celestial. Em algumas

    religies a necessidade de crer em vida ps-morte leva

    comunica'o com os mortos ou com seus esprritos, como

    ocorre em muitas sociedades primitivas e, moderna mente,

    no espiri tismo e suas variantes.

    Enfim, parece que o desejo de ressurrei o algo muito

    intenso e primitivo nos seres humanos, e as religies prova-

    velmente refletem essa necessidade. Creio que esse desejo

    existe na mente inclusive de pessoas no religiosas, mas

    que no se torna consciente, mascarado pelo intelectual.

    Dai no ficarmos surpresos quando um no crente se deses-

    pera frente ao fim, desejando consolo ou at o engano com

    promessas de vida ps-morte. Ou, como veremos adiante,

    verificamos que a fantasia inconsciente do suicida, mesmo

    ateu ou raconalista, implica algo alm da morte (n'o neces-

    sariamente extraterreno).

    O leitor deve ter percebido que, a despeito de respeitar

    (e at invejar) os crentes, sou da opinio que a morte algo

    totalmente abstrato e incognosclvel, e que as pessoas, inde-

    o qu e Suictdio

    29

    pendentemente de fatores religiosos, comumente utilizam

    mecanismos para combater a angstia do incompreensvel, e

    entre estes, um dos mais importantes a viso (consciente

    ou inconsciente) de alguma espcie de vida ps-morte. Por

    isso mesmo, o suicida no procura a morte (porque no

    sabe o que seja), mas sim est em busca de

    outra vida,

    fantasiada em sua mente. Essas fantasias comum ente se

    encontram em nrvet inconsciente e, portanto, s podemos

    descobri-Ias por meios indiretos.

    As proposies acima me levam a outra idia: existe uma

    independncia entre o desejo de morrer e o de matar-se. A

    pessoa que se mata no quer necessariamente morrer (pois

    nem sabe o que seja isso). A pessoa se mata porque deseja

    outra forma de vida, fantasiada, na terra ou em outro

    mundo, mas na verdade, essa outra forma de vida est em

    sua mente. Nessa outra vida ela encontra amor ou proteo,

    se vinga dos inimigos, se pune por seus pecados, ou re-en-

    contra pessoas queridas. Tanto o desejo de matar-se no

    tem relao com o de morrer que muitas vezes a tentativa

    de suicldio foi punida ... com a pena de morte , como,

    por exemplo, promulgou o imperador Adriano entre os

    antigos romanos. Uma anedota nos mostra uma pessoa que

    jogou-se num rio querendo matar-se. Enquanto se debate

    na gua, recusa cordas e bias que as pessoas lhe jogam da

    margem. Finalmente, um policial a ameaa com um revl-

    ver: ou voc sai dar ou te dou um tiro . O suicida em

    potencial, que quer matar-se, no quer ser morto, e sai da

    gua ...

    A anedota verdadeira, e nos leva a um outro aspecto do

    suicida. O indivduo quer morrer, mas tambm quer viver,

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    30

    R oo sevelt M S. Cassorla

    lu r R b e N L ed ou x F ilh o

    ele est em conflito, e comumente uma ajuda ou at uma

    ameaa (corno n~) ~~em decidir a direo que vai ser

    tomada. ...

    T C1 n

    A AGRESSO DO SUICIDA

    E A PUNIO DO AMBIENTE

    Vejamos o que ocorreu em Mileto, na Grcia antiga,

    segundo descrio do historiador Plutarco. Moas passam a

    enforcar-se e logo se apresenta uma epidemia de suicdio

    nas jovens. Nenhuma medida faz com que ela cesse, at que

    algum prope que as moas sejam condenadas a terem seu

    cadver levado nu, em passeata, at o cemitrio. Com essa

    medida a epidemia se extingue. Corno explicar isso? ~ pos-

    svel que as moas suicidas fantasiassem, como

    comum, a

    reao dos vivos sua morte - essa fantasia implica mais

    vida que morte: na verdade, a fantasia da morta de que

    ela pode ver a reaco dos vivos, pode perceber os

    sentimentos de tristeza, remorso e culpa dos sobrevi-

    ventes, como se ela estivesse viva. Em verdade, essa visuali-

    zao predomina e s vezes domina quase que totalmente

    a noo de realidade da morte, de finitude. O suicida eli-

    mina sua vida, paga com ela (mas no est totalmente cons-

    o

    que Suicidio

    33

  • 7/25/2019 o Que Suicdio

    18/54

    32

    R oo seve lt M S. Cassorla

    ciente disso) o prazer de tornar real sua fantasia de vin-

    gana, de causar sofrimento aos outros, mas nessa fantasia

    ele como que permanece vivo.

    No caso da epidemia de Mileto, a jovem que fantasia a

    reao dos outros sua morte passa a visualizar tambm a

    reao

    a seu corpo nu, e o puder leva a uma vergonha que

    supera a necessidade de vingana.

    Esse prazer em imaginar como ser a reao dos outros

    prpria morte extremamente comum no ser humano, e

    se acentua em momentos de frustrao, impotncia e raiva.

    Corresponde ao componente agressivo contra o ambiente,

    que leva

    necessidade de vingana, a causar sofrimento nos

    outros, em revide por algo real ou suposto. No suicida esse

    mecanismo intenso, em muitos casos. Nas Aventuras de

    Tom Sawyer, o autor, Mark Twain, nos descreve com

    perspiccia e humor, o prazer do heri (que todos acre-

    ditam ter se afogado) assistindo escondido a suas prprias

    cerimnias fnebres, divertindo-se com as reaes das pes-

    soas, que antes demonstravam irritao e raiva do menino e

    agora o elogiam e lamentam sua falta ... Alis, lembremo-

    nos que quase todas as pessoas s otransformadas em ti-

    mas e maravilhosas aps a morte, como se os sobreviventes

    receassem uma vingana dos mortos, que agora no podem

    combater. Muitas vezes os elogios so proporcionais

    culpa

    sentida por sentimentos negativos inconscientes em

    relao ao morto e pelo alvio proporcionado por sua

    morte ...

    O suicdio do presidente Getlio Vargas implica meca-

    nismos similares. No s ocorreu uma vingana frente

    a seus inimigos, que se sentiriam culpados e responsveis,

    mas, principalmente, o objetivo do suicdio foi a perma-

    nncia de Vargas influenciando os sobreviventes, como

    numa vida ps-morte: saio da vida para entrar na Hist-

    ria , escreve em sua carta-testamento. Em sua fantasia, con-

    tinua vivo, talvez ainda mais vivo que antes de seu suicdio.

    Romeu e Julieta, da obra de Shakespeare, assim como

    tantos Romeus e Julietas da vida real, se matam para vingar-

    se de seu ambiente (e, na obra, fica clara a ambivalncia

    vida X morte, e como a morte no suicdio acaba ocorrendo

    muitas vezes como um engano). Mas, talvez com mais inten-

    sidade, matam-se para continuar juntos, para poderem

    amar-se num mundo fantasiado, de paz, certamente numa

    vida ps-morte.

    Nesses exemplos verificamos que muitos suicidas no

    desejam certamente a morte, mas sim uma nova vida, em

    que a pessoa se sinta querida, seja importante. O final fanta-

    siado, se fosse possvel que aquelas pessoas de quem se

    imagina que veio o maltrato, se sintam culpadas e com

    remorso; ento , o suicida como que ressuscitaria, todos se

    desculpariam e a vida continuaria, num final feliz.

    ~ evidente que isso no vai OCOI er. Mas, poderia ser real

    quando se trata de ameaas ou tentativas de suicdio, em

    que o indivduo sobrevive. No entanto, geralmente a reao

    do ambiente bem mais complexa: em minha experincia,

    raramente a tentativa de suicdio tem, em si, capacidade

    de modificar muita coisa. O ambiente e a relao indiv-

    duo-ambiente esto comumente estruturados de forma tal

    que as reaes sero apenas imediatas, em pouco tempo

    voltando tudo ao esquema anterior. Pelo contrrio, no

    raro o ambiente reage tambm agressivamente ao ato agres-

    34

    R oo se ve lt M S Ca sso rla

    o

    que Suicdio

    3S

  • 7/25/2019 o Que Suicdio

    19/54

    sivo de seu membro - a ameaa ou tentativa no s6 no

    levada a srio, como rejeita-se e castiga-se ainda mais a

    pessoa. Em algumas ocasies, no entanto, o sentimento de

    culpa mobilizado intensamente, e o suicida em potencial

    pode manipu lar e controlar os outros, ameaando nova tenta-

    tiva. Mas, uma vitria de Pirro, pois apenas ocorreu uma

    mudana de foras, uma troca de poder, com a estrutura

    ambiental continuando patgena para todos seus membros.

    A agresso do suicida a seu ambiente manifesta-se tam-

    bm no abandonar pessoas prximas e a prpria sociedade.

    Faz com que esta, tambm, se sinta responsvel por M O ter

    podido evitar o ato ou sofrimento que levou ao ato.

    Algumas vezes o suicida deixa bilhetes ou cartas com acu-

    saes claras, ou mais comumente sutis (como por exemplo,

    perdoando ou desculpando algum pelo mal que lhe fez,

    ou no condenando ningum) .. ~ uma agresso to

    mais violenta porque os acusados no podem defender-se.

    A percepo da agressividade do suicida por parte da

    sociedade fez com que ela tambm reagisse agressivamente,

    atravs dos tempos, castigando o suicida (se bem que muitas

    vezes ocorria uma maior tolerncia). Na antigidade, em

    Tebas e Chipre, o morto era privado das honras fnebres,

    Em Atenas, no sculo IV, cortava-se a mo do cadver, que

    era enterrada distante, como que para privar o morto de

    uma vingana posterior. Em Roma, apenas os enforcados

    eram privados de sepultura. Os nicos suicdios realmente

    reprovados eram os d03 militares e os dos condenados ou

    indiciados pela justia. Na compra de um escravo, se este se

    matasse, ou tentasse suicdio, nos 6 meses seguintes tran-

    sao, a venda era anulada.

    Ainda em Roma, algumas tentativas de suicfdio, princi-

    palmente sangrentas, podiam ir justia, e se essatentativa

    ocorresse no exrcito era punida com a morte. A pena,

    para o suicdio proibido, era o confisco dos bens pelo

    Estado. (Em Roma percebemos, na realidade, uma certa

    tolerncia, a punio ocorrendo mais por razes de pro-

    teo da sociedade e do Estado.)

    Entre os wajagga, na frica Oriental, o cadver do

    enforcado era substltudo por uma cabra, sacrificada com

    o intuito de tranqilizar seu esprito, que, em caso contr-

    rio, convenceria outros a seguir seu exemplo. Na China

    antiga, em guerras, um grupo de homens se matava no

    campo de batalha, antecedendo a luta, e imaginava-se que

    suas almas furiosas influ iriam nefastamente sobre os ini-

    migos. Em tribos ganenses, se um indivrduo se suicidava e

    culpasse outro por sua morte, este tambm era obrigado a

    matar-se. Entre os ndios tinklit a pessoa ofendida, incapaz

    de vingar-se, se suicida e ento parentes e amigos devem

    ving-Ia. E, entre os chuvaches da Rssia, era costume as

    pessoas enforcarem-se na porta da casa do inimigo. Em

    muitos grupos acreditava-se que a alma do suicida perseguia

    o ofensor, e isso persistiu pelos tempos e continua no psi-

    quismo profundo das pessoas at hoje.

    Na Idade Mdia persiste o confisco de bens e o corpo

    do suicida degradado: pendurado pelos ps, quei-

    mado, enfiado em tonis e jogado em rios etc. Na Ingla-

    terra, ainda em 1823, cadveres de suicidas eram quei-

    mados em encruzilhadas com estacas enfiadas no corao,

    para evitar que seus espritos viessem incomodar os vivos.

    Em Zurique o corpo era punido no local do ato: se o sul-

    36

    Roosevelt M S. Cassorla

  • 7/25/2019 o Que Suicdio

    20/54

    cdio fosse cometido com um punhal enfiava-se um pedao

    de madeira na cabea; se se tivesse afogado era enterrado

    na areia, prximo gua; se se havia precipitado num poo

    era sepultado com uma pedra na cabea, uma sobre o corpo

    e outra num p, para fix-Io ao solo.

    A influncia da Igreja era grande. Os suicidas eram pri-

    vados de funerais religiosos e os autores de tentativas de

    suicdio eram excomungados. Na verdade, a Igreja primi-

    tiva estimulava o suicdio atravs do martrio, que facili-

    tava a entrada no reino dos cus. Apenas no sculo IV

    Sto. Agostinho sustenta que o auto-extermnio uma

    perverso. Atravs dos conclios o direito cannico tende

    cada vez mais a reprimir o ato, e o suicida considerado

    um discpulo de Judas, um traidor da humanidade. Poste-

    riormente v-se no ato uma vitria do diabo, em que o

    indivduo duvida da misericrdia divina e vacila quanto

    convico de que ser salvo.

    A represso ao suicida tende a diminuir a partir dos

    sculos XVI e XVII, e a Revoluo Francesa probe

    qualquer tipo de condenao - com o racionalismo a

    prpria Igreja se torna mais tolerante e as punies reli-

    giosas j no se aplicam a quem fez o ato num momento de

    loucura ou se arrepende frente morte. Atualmente h uma

    tendncia religiosa a compreender o suicida, mas no sem

    condenar o ato.

    Entre os judeus o suicdio tambm condenado, e o

    corpo deve ser enterrado parte, mas existem muitas justi-

    ficativas que perdoam o ato, tais como tortura, recusar

    apostasia forada, preservao de castidade, manuteno de

    honra etc.

    OUTROS REFLEXOS

    DO ATO SUICIDA

    A agresso ao ambiente, uma das motivaes dos atos

    suicidas, e que muitas vezes leva a revide da sociedade,

    explica no s a desimportncia que muitas pessoas do s

    tentativas de suicdio como ao, infelizmente no raro, des-

    prezo das equipes de sade, de pronto-socorro ao indivduo

    que trazido por ter tentado matar-se.

    Reflitamos: o objetivo da maioria das pessoas viver, s

    vezes at, s sobreviver - o auto-extermnio passa a ser,

    ento, uma transgresso, algo que choca com os objetivos

    de vida dos grupos humanos. O mdico, a equipe de sade

    foram treinados para salvar vidas, para enfrentar a morte,

    numa delegao da sociedade. Dessa forma, frente a algum

    que o procura tentando preservar a vida, existe concordn-

    cia de expectativas: ambos querem combater a morte. No

    entanto, quando o paciente tentou matar-se, destroem-se ou

    confundem-se, na equipe de sade, as premissas de seu trei-

    38

    R o os ev el t M S C a ss ar ia o

    que Suicidio

    39

  • 7/25/2019 o Que Suicdio

    21/54

    namento. Agora ela ter de lidar com pessoas que esto

    (geralmente, em parte) do lado da morte, e que s vezes

    vem o profissional como um inimigo.

    Por outro lado, os mdicos clnicos, como a grande

    maioria dos indivduos, s se permitem compreender as

    coisas se elas se encaixarem no pensamento racional,

    lgico. Existe uma grande dificuldade, em todos ns, em

    crermos que nossas motivaes e atitudes, quase sempre,

    no podem ser explicadas apenas pelo racional, e que existe

    uma vertente inconsciente, de extrema importncia. Assim,

    com freqncia, o raciocnio dito lgico nos faz procurar

    e encontrar motivaes para os atos suicidas, e geralmente

    essas motivaes so julgadas insuficientes para justific-Ias:

    o desprezo do indivduo que praticou o ato suicida acaba

    sendo, por isso, o passo seguinte.

    ~ evidente que atrs dessas motivaes aparentes (que,

    na verdade, so apenas a ponta de um

    iceberg,

    ou

    somente racionalizaes usadas como tentativa de expli-

    cao) existem conflitos, na maior parte, ou s vezes total-

    mente inconscientes. O prprio paciente sabe muito pouco

    de seus conflitos: o que ele vai deixar transparecer a seus

    parentes, amigos e ao mdico ser apenas uma poro

    mnima do que realmente est ocorrendo (e

    s

    vezes at

    essa poro est deformada). Pior ainda, quase sernore,o

    paciente acha que conhece suas motivaes, mas na ver-

    dade no sabe que no sabe o mais importante.

    Teremos ento uma equipe de sade que, na verdade,

    no tem condies de compreender o que est ocorrendo,

    face a seus desconhecimentos de psicologia profunda.

    (Felizmente, a psicanlise j se faz presente em muitas esco-

    40

    R o os ev el t M S C a ss or la

    o qu e Suictdio

    4

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    22/54

    Ias mdicas e o interesse dos alunos tem aumentado.)

    Some-se a essa incompreens'o dos motivos o cornpo-

    nente manipulativo e agressivo de muitos atos suicidas, e

    teremos a explicao de por que encontramos atitudes de

    maltrato (mu i tas vezes inconsciente) do paciente, em

    muitos pronto-socorros, e tambm entre a populao em

    geral. Fica difcil, para todos, ter a percepo de que exis-

    tem outras facetas, mais inconscientes, atrs do ato suicida.

    Tudo isso mau para o mdico, para o paciente e para as

    pessoas prximas: a compreenso e a orientao que o indi-

    vduo, de certa forma, est solicitando terminam por no

    vir. Comum ente, o paciente socorrido do ponto de vista

    orgnico mandado de volta a seu ambiente, sem qualquer

    tipo de ajuda ou encaminhamento para profissionais da rea

    mental e social. Eu prprio tive a chance de verificar, visi-

    tando em seu domiclio indivduos que haviam tentado

    suicdio, que mais da metade precisava de ajuda psicol-

    gica urgente, e os outros se beneficiariam tambm dela,

    mesmo sem urgncia.

    Na verdade, o atendimento mdico e social de nossas

    populaes deixa muito a desejar. As explicaes que dei

    acima sobre o comportamento das equipes de sade frente

    ao ato suicida (que so tambm as da populao em geral),

    devem ser complementadas pela quase inexistncia de um

    sistema de ajuda psicolgica e/ou psiquitrica de urgncia,

    no nosso meio. Dessa forma, os mdicos mais esclarecidos

    tampouco tm para quem encaminhar os seus pacientes:

    as poucas entidades existentes esto sobrecarregadas, com

    pouco pessoal e n50 raro com profissionais que tm difi-

    culdades de adaptar-se s caractersticas culturais de nossas

    \

    I

    populaes. Os pacientes, comumente com preconceitos

    frente a problemas da esfera psquica e aos profissionais

    de sade mental, n'o entendem o que se Ihes diz, o que se

    espera deles, e abandonam os tratamentos com freqncia.

    Muitas vezes, verdade, isso ocorre devido resistncia e

    medo de perceberem seus mecanismos inconscientes, que os

    levariam a mudanas em suas formas de viver, abandonando

    padres que j conhecem (mesmo que sofridos).

    As reflexes acima me levam a pensar ainda, se tudo

    isso, todos esses sistemas de ajuda mdica, psicolgica e

    social, que pouco funcionam em nosso meio, somados a

    todos os agentes externos que provocam sofrimento nas

    pessoas (fome, desemprego, falta de respeito humano, buro-

    cracia etc.l no fazem parte do componente suicida de

    nossa sociedade, sociedade essa que no tem condies,

    nem interesse, de suprir de ajuda os seus membros, mesmo

    que o pedido seja desesperado.

    o

    que

    Suicidio

    43

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    EXEMPLOS DE FANTASIAS

    NO INDIVDUO SUICIDA

    Voltemos ainda, um pouco mais, sobre a incompreenso

    que o leigo tem das motivaes inconscientes dos atos sui-

    cidas. A primeira pergunta que nos fazemos, frente a um

    evento deste tipo, : por que ele fez isso, qual o motivo? E

    as respostas logo surgem: porque brigou com a namorada,

    por problemas financeiros, porque fracassou na escola ou

    no trabalho. Essas so geralmente teorias, que o obser-

    vador faz, a partir de ind(cios conscientes, racionais. Cornu-

    mente esses motivos so apenas a gota d'gua, o desenca-

    deante ltimo, o elo final de uma longa cadeia de eventos

    que interagiram entre si ou com componentes individu.ais,

    levando a conflitos, a rede de conflitos, e esses conflitos

    sempre remontam a conflitos mais primitivos, que se ~ri-

    ginaram na infncia. Como tudo isso permanece. em nrvel

    inconsciente, o paciente pouco sabe desses conflitos - ele

    apenas percebe algumas caractersticas dos desencadeantes

    finais e um sofrimento intenso, que atribui a esses desen-

    cadeantes. Outras vezes, a pessoa no consegue discriminar

    qualquer motivao externa, s6 sente o sofrimento, intenso,

    sem explicao. Se tiver a felicidade de perceber isso e

    procurar ajuda, poder defrontar-se com seus aspectos

    inconscientes, compreender-se melhor e encontrar sadas.

    Vamos a um exemplo (este, como todos os outros, foi

    baseado em casos reais, mas transposto de forma s pessoas

    no poderem ser identificadas): Nair uma moa de 24

    anos que conheceu um rapaz, Joo, e est apaixonad

    rssima

    por ele. Mas, no tem certeza de ser correspondida. Usa

    todos os artifcios para manter o rapaz perto de si e se

    desespera s de pensar em perd-to. Sente-se insegura e

    passa a ter cimes dos amigos e das outras atividades de

    Joo - o namoro prossegue conturbado por cenas de ci-

    mes, ameaas de separao e reconciliaes. Mas, Nair sofre

    muito porque nunca est certa de ser amada. Um dia, Joo,

    cansado da insegurana e dos choros de Nair, resolve dei-

    x-Ia definitivamente. Ela no se conforma: segue-o, suplica,

    ameaa, tenta seduzi-lo, mas desta vez Joo, mesmo com

    pena dela, resolve no mais ceder. Nair chora dia e noite,

    no consegue dormir, trama formas de reconquist-lo e

    vinganas se no conseguir, a imagem de Joo no saindo

    de sua cabea. Emagrece, definha e perde o gosto pela

    vida. A idia de suicdio comea a tomar forma em sua

    mente, no incio insidiosamente e depois com mais fir-

    meza. Visualiza Joo desesperado com sua morte, arrepen-

    dido pelo que fez; ao mesmo tempo sente-se morta, como

    que descansando dos pensamentos e do sofrimento intenso.

    Acaba tomando dezenas de calmantes pensando em dormir

    44

    R oo tevelt M S. Cassorla

    o que Sutcidio

    45

  • 7/25/2019 o Que Suicdio

    24/54

    e/ou em morrer, e a tentativa de suicfdio est consumada.

    Poder morrer ou recuoerar-se. conforme as circunstncias.

    A causa aparente da tentativa de suicfdio a briga com

    Joo. Ora, muitas e muitas pessoas perderam o namorado,

    sofreram por isso, mas no chegaram a matar-se. A expli-

    cao, portanto, no satisfaz - apenas, como j assinalei,

    o desencadeante, a gota d'gua. Se Nair se submeter a um

    tratamento psicanaltico veremos que ela no foi dese-

    jada por seus pais, que comumente se sentiu abandonada,

    rejeitada e em vias de ser aniquilada face insegurana do

    ambiente em que vivia. Isso a fez tornar-se insegura, no

    acreditar em si mesma, sentir-se m e desprez(vel e ter

    inveja dos outros, a quem atribura a posse de tudo que era

    bom. Mas, tudo isso era predominantemente inconsciente.

    As manifestaes externas desses confl itos inconscientes

    apareciam na ligalo muito intensa, e ao mesmo tempo

    frgil, que fazia com as pessoas e o sofrimento extremo pelo

    medo de perd-Ias. Na verdade, reeditava situaes que

    passara na infncia. O episdio com Joo foi apenas o elo

    final de uma cadeia de conflitos, e a sua perda fez com que

    ela vivenciasse, inconscientemente, a stuao de uma

    criana faminta, abandonada, que se sente presa de coisas

    terrorficas internas e tem de fugir delas. A morte uma

    fuga, nem que no se saiba claramente para onde.

    Portanto, a tentativa de suicdio de Nair no teve como

    causa a briga com o namorado. Mesmo a rede de con-

    flitos descrita superficialmente acima nunca ser completa,

    porque suas influncias aparecem parcialmente na anlise.

    Alm disso, fatores constitucionais, hereditrios, biol-

    gicos, culturais e sociais tambm influenciam de alguma

    forma, maior ou menor, a feitura da rede conflitual .

    Neste exemplo vemos tambm, com clareza, que o sui-

    cida no est necessariamente escolhendo a morte, mas

    sim uma outra maneira de viver. Mesmo numa anlise sum-

    ria, verificamos que Nair fantasia uma vida melhor, amada

    por Joo ou vingando-se do Joo. A

    visuallzao

    da morte,

    em si, precria. Mas, num estudo psicanal tico, veremos

    que as fantasias ps-morte de Nair so mais complexas.

    Existe uma fantasia de re-encontro com sua av, que mor-

    reu quando ela tinha 4 anos, e que em seu inconsciente

    permaneceu como uma fonte importante de gratificaes,

    que supriam aquelas que a me no lhe fornecia. O re-en-

    contro com essa av seria nalgum lugar imaginrio, onde os

    mortos revivem. Mas, num nrvel ainda mais profundo,

    Nair via a morte como uma volta ao seio, ao tero materno,

    a um mundo paradisaco, em que todas as necessidades

    estariam supridas, ou melhor ainda, em que no existiriam

    necessidades, e em que no haveria diferenciao entre ela e

    mie, ambas se constituindo numa unidade. A morte seria

    como que um parto ao contrrio. Alis, era isso que Nair

    queria de Joo: uma mie que se unisse, em simbiose, a ela,

    que no houvesse mais individualidade dessa mie (e de

    Joo) e que s vivesse para a filha (ou namorada).

    Alis, os conceitos de para (so, de cu, das religil5es

    lembram muito esta idia de vida intra-uterina, de ausncia

    de necessidades e de felicidade total, no seio de Deus. O

    castigo dos pecadores nlo poderem voltar a esse seio. As

    analogias de volta mie Terra devem se fundar no mesmo

    simbolismo.

    No caso de um bonzo budista que ateia fogo s vestes em

    _ . - : . - . - . - : . - : . - : : : : : : : : : : : : : : ~ ~ . / . l _ . ~ . - : . - . - . - . - . - . - . - . - . - . - . - . - . - . - . - : : : : : : : : ~ _ .

    46

    Roosevelt M. S. Cassorla

    o

    que Suictdio

    47

  • 7/25/2019 o Que Suicdio

    25/54

    protesto contra uma guerra, ou do kamikase que jogava seu

    avio contra um navio americano, ou de um terrorista pales-

    tino que explode com seu camnho dentro de um quartel

    inimigo, evidente que a morte, em si, tem pouco a ver

    com seus objetivos individuais. Existem duas fantasias

    (superpondo-se ou at mascarando outras mais profundas):

    permanecer na terra, lembrado como heri, e, mais impor-

    tante talvez, ter uma vida ps-morte -. reservada aos

    heris, onde sero recompensados pelo sacrifcio feito na

    terra. A idia de uma vida ps-morte cheia de regalias leva

    ao fanatismo das guerras santas dos islamitas, dos xiitas,

    ainda agora, e que, para os ocidentais, so de difcil com-

    preenso. Mas, no nos esqueamos que h poucos sculos

    muitos cristos fervorosos iam s cruzadas numa equisio

    de indulgncias, que permitissem sua entrada no para

    so ,

    aps a morte. As oraes, as penitncias e as flagelaes

    ainda servem para tal e, por vezes, a bondade e o amor ao

    prximo tm de ser trabalhados, disciplinados e at for-

    ados, devido ao terror das profundezas do inferno e ao

    desejo do prazer da companhia divina. No deixa de ser,

    portanto, um compromisso para a obteno de uma vida

    ideal ps-morte. (A anlise acima decorre de uma viso psi-

    colgica, e no de reflexes teolgicas que no me sinto

    em condies de fazer. Mas, no difcil perceber como a

    Igreja ps-Conclio Vaticano II tem, de certa forma, ten-

    tado valorizar mais o ser humano na terra, proporcionando

    maior respeito a sua capacidade de reflexo, aproximando

    pessoas insatisfeitas de si mesmas e da religio. E, ao mesmo

    tempo, levando a confuso a quem estava preocupado em

    ser bom apenas para poder chegar ao cu ... )

    Notcia de julho de 1983 mostra a fora da f. Duas

    jovens so enforcadas, no Ir, sob acusao de pertencerem

    ao grupo religioso

    bahai.

    Ambas faziam parte de um grupo

    de 10 mulheres

    bahais

    que seriam enforcadas; onze de seus

    correligionrios do sexo masculino j haviam sido execu-

    tados. O componente suicida e a fora da f ficam claros

    quando se assinala que: embora fossem acusados de

    ser agentes sionistas, todos os condenados teriam recebido

    quatro oportunidades de se salvarem renegando sua religio.

    Todos se recusaram . (Na notcia percebemos tambm

    que o sionismo o bode expiatrio, o problema era a f -

    talvez nem a f em si = o que representava questionamento

    aos poderosos.)

    Ora, se as religies oferecem tanto aps a morte, e se

    algumas vem at a passagem na terra como um ritual de

    sacrifcios, por que ento no acelerar a chegada aos cus,

    suicidando-se? Creio que por trs deste problema repousa

    o horror que as religies, em geral, tm ao

    suicdio

    indivi-

    dual (mas que pode ser estimulado em situaes especiais,

    como guerras santas e cruzadas, com as bnos dos sacer-

    dotes). H quem diga que, se essa proibio no surgisse,

    no teramos cristianismo, pois os primitivos cristos se

    orgulhavam de sacrificar suas vidas pela f. Como j

    vimos, o suicida considerado um pecador pelas religies

    modernas.

    Recentemente, tivemos um episdio herico, de nossa

    histria, a morte do jornalista Vladimir Herzog, por tor-

    tura, e que os torturadores convencionaram que ele teria

    se suicidado. Pela tradio judaica ele no poderia ser

    enterrado no cemitrio comum, mas a comunidade no

    R o os ev e lt M S C a ss o rl a

    o que Suicidio

    49

  • 7/25/2019 o Que Suicdio

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    o excluiu, no o considerou suicida.

    Alis, mesmo que ele se tivesse matado, creio que os

    telogos teriam de ser mais compreensivos, porque o

    suicdio de um torturado tampouco a procura da morte:

    , sim, a fuga, a fuga desesperada de algo insuportvel e,

    como vimos, quando se foge de algo, no importa para onde

    se fuja, o importante livrar-se disso. O corpo e a mente

    chegam

    exausto total e nada mais importa, desde que o

    sofrimento cesse. O indivduo, na verdade, no quer morrer

    - quer e precisa parar de sofrer.

    (Sobre os torturadores: estes sim, esta-o mortos como

    seres humanos, suicidaram sua condio humana e se trans-

    formaram no que h de pior nos instintos. No pense o

    leitor que o torturador, o inquisidor, o ditador ou at o

    insensvel tecnocrata que com uma assinatura faz morrer

    de fome milhes de pessoas tenham perdido toda sua capa-

    cidade de pensar. Neste sentido continuam homens: mas,

    esse pensar est em parte suicidado tornando-os incapazes

    de perceber o mal que fazem a seus semelhantes, conta-

    minados pelo dio que dedicam a si mesmos e deslocado

    para os outros. A fraqueza dos instintos de vida e a fora

    dos instintos de morte faz que se queimem milhares de

    hereges, se matem milhes de judeus, de ciganos, de russos

    brancos, de ndios, de negros, ou se escravizem povos e

    naes. Para salvar ideologias, religies ou bens mate-

    riais o ser humano mata sua poro humana ... )

    Em julho de 83, Maria Maiolo, 16 anos, matou-se cem

    um tiro, em Fabrzia, uma cidadezinha nas montanhas da

    Calbria, ao sul da Itlia, porque na-o queria casar-se com

    um pretendente, escolhido por sua me. A nottcia de jornal

    prossegue: Em prantos, a me lamentava a sorte de Maria,

    pedindo-lhe perdo e acusando-se por ter querido que a

    filha escapasse, atravs de um casamento com um empre-

    gado de uma empresa do Norte, do destino opressivo das

    mulheres pobres do sul do pas. Em setembro de 1983,

    Gerson Mendes do Rosrio, de 29 anos, suicidou-se em

    Osasco. Aps beber descontroladamente, o operrio, ao

    chegar em casa, despediu-se do filho, conversou com um

    dos irmos, trancou-se no quarto e matou-se com um tiro

    disparado contra o rosto. Com seu irm ochorou muito,

    lamentando-se de estar desempregado e dizendo no mais

    suportar seu filho passando fome. Em janeiro de 83, duas

    mulheres chinesas suicidaram-se por envenenamento aps

    terem sido surradas repetidas vezes por seus maridos, por

    terem dado luz meninas em vez de meninos. Continua a

    notcia, transcrita dos jornais de Pequ im, que esses foram

    os mais recentes entre dezenas de casos semelhantes cau-

    sados pelo severo controle de natalidade, agravado pela

    tradicional preferncia por herdeiros do sexo masculino .

    Nos casos acima, retirados de jornais, na-o temos ele-

    mentos para conhecer a rede causal. Mas, evidente que

    os agentes externos funcionaram como torturadores, o

    indivduo preferindo a morte (ou as fantasias envolvidas

    com ela) do que a tortura, que deve t-Ias exaurido mental-

    mente. Os torturadores no foram necessariamente a me

    de Maria, quem despediu Gerson do emprego, ou os

    maridos das chinesas, mas sim a prpria sociedade, mediada

    por tecnocratas insensveis que condenam as pessoas

    opresso, a terem menos filhos e ao desernpreqo.

    o

    que Suictdio

    5

  • 7/25/2019 o Que Suicdio

    27/54

    dade que todos ns vivemos alguns momentos psicticos

    (na maioria das vezes sem ter muita conscincia deles). mas

    na ameaa de desintegraSo psictica o indivduo perde as

    referncias, no sabe mais o .que , quem e se sente como

    que em vias de aniquilamento. Geralmente ele combate

    essa angstia criando um mundo irreal, mas que,

    crlao

    sua, melhor que o nada (e a surgem os delrios e aluci-

    naes). Mas, no momento da ameaa de desintegraSo, a

    angstia

    to

    intensa que o suicdio passa a ser a fuga, s

    vezes a nica visvel. Novamente, o suicida no est procu-

    rando a morte, mas est fugindo de algo aterrorizante.

    Assemelha-se ao torturado, que tambm acaba caindo

    numa angstia psictica, mas causada por agentes externos.

    Outras vezes, ainda em quadros psic6ticos, o indivduo

    sente-se perseguido por inimigos internos que projeta no

    meio externo. Essa perseguio, somada ameaa de desin-

    tegrao, pode levar a atos autodestrutivos, aqu i tambm

    procurando-se escapar do sofrimento e dos inimigos.

    Introduziremos o estudo da melancolia com uma viso

    do luto e depresso, quadros tambm ligados autodes-

    truio e que ajudam a compreender o melanclico.

    A depresso, a tristeza a reao normal que temos

    frente a uma perda. A perda pode ser a mais variada: pode-

    mos perder um ente querido, que faleceu; podemos perder

    um amigo, que nos deixou ou nos decepcionou; podemos

    perder um emprego, uma oportunidade. A perda pode ser

    de um objeto, de um encontro, de um amor, ou de algo

    que no tnhamos, mas que desejvamos e agora sabemos

    que isso ser impossvel. Dizemos que nossa mente investe

    o objeto ou pessoa querida de certa hn~~tArl.~rqpM,,.e -

    '- i~b.JV I ~\ t . C . i1~

    U

    r-S

    ______________ ~ B

    LUTO MELANCOLIA E SUICDIO

    Qual a relao entre doena mental e suicdio? Aproxi-

    madamente 1/2 a 2/3 dos suicidas no apresentam mani-

    festa15es de doenas mentais evidentes, segundo a clssica

    nomenclatura psiquitrica. A verdade que hoje, sem se

    desprezarem as doenas mentais tradicionais, se valorizam

    mais os conflitos psquicos, existentes em todos ns (e que,

    entre os suicidas so mais acentuados) do que os quadros

    psiquitricos estritos e delimitados. E, mesmo estes, so

    quase todos o resultado da intera'o de conflitos psquicos

    com fatores biolgicos e scio-culturais.

    A maioria dos suicdios em pessoas com quadros mentais

    ocorre na melancolia e uma outra poro quando o indiv-

    duo est frente ameaa de desintegra'o psictica.

    A psicose, a desintegra'o psictica um quadro difcil

    de descrever, pois tal como a morte, no imaginvel e s

    .pOde servivenciedo por quem por ele passou. E: bem ver-

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    R oo se ve lt M

    S.

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    o

    qu e

    Suicidio

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    tuindo-se uma ligao entre o eu e o outro. Quando ocorre

    a perda, principalmente se for brusca, essa ligao ou esse

    investimento tem de se desfazer: isso trar sofrimento ao

    indivduo, que no sabe o que fazer com essa energia livre.

    ~ como se por muito tempo vivssemos num mundo consti-

    tudo de uma forma determinada e de repente ele mudasse,

    e ficamos desorientados. Ou, noutra analogia, como se

    caminhssemos emocionalmente contando com deter-

    midadas estruturas, e se uma delas, mais ou menos impor-

    tante, faltasse. O resultado ser um desequilbrio, uma

    ameaa de queda, at que possamos nos reequilibrar com as

    estruturas restantes, readapt-las em seu funcionamento

    e/ou encontrar outras que substituam a perdida. Logo

    aps a perda o melhor ficar parado, para no cair ...

    ~ mais ou menos o que faz a nossa mente. Aps a perda

    da pessoa querida ela precisa de algum tempo para poder

    acostumar-se, readaptar-se. Nesse perodo ocorre o que cha-

    mamos de processo de luto. O objeto ou a pessoa perdida,

    que j no existe na realidade, toma conta da mente do

    indivduo. ~ como se se relutasse em admitir a perda, ou

    como se a mente, num processo similar inrcia, se satis-

    fizesse com reter aquilo que foi perdido dentro de si. O

    morto ou o perdido lembrado, chega-se a conversar com

    ele, a brigar, a suplicar. Ele tratado dentro da mente como

    se ainda, em parte, existisse. Aos poucos, porm (e s o

    tempo que cura o luto), essa imagem, esses pensamentos

    vo se esvaindo, e o indivduo (antes tristonho, arredio,

    voltado para dentro de si) passa, lentamente, a interessar-se

    pelo mundo, por outras pessoas, pela vida e aps algumas

    semanas ou meses ele retoma sua vida normal. Poder, s

    vezes, lembrar-se do que perdeu, entristecer-se, mas com

    poucas dificuldades poder afastar esses pensamentos,

    ligandose a coisas novas.

    ~ assim que ocorre o luto normal. Mas, mesmo o normal,

    e mais ainda, o patolgico, podem passar por vicissitudes as

    mais variadas, que prolongara o o luto, o tornaro mais

    intenso ou sofrido, ou, em casos extremos

    levaro

    a quadros

    doentios, como a melancolia. A maioria dessas vicissitudes

    processa-se em nvel inconsciente, isto , o enlutado no

    sabe o que est realmente ocorrendo em sua mente.

    Uma dessas vicissitudes a agressividade em relao

    pessoa perdida. Vejamos, como exemplo, o luto ps-morte.

    ~ comum e normal que sintamos em relao s pessoas que-

    ridas tambm sentimentos negativos: esses sentimentos s

    vezes aparecem conscientemente, mas so equilibrados

    pelos positivos, e na somatria geral podem at passar

    despercebidos. Em outras ocasies, essa ambivalncia, essa

    luta entre sentimentos positivos e negativos bem clara.

    No raro, atrs desses afetos podem existir desejos de morte

    inconscientes (e s vezes at conscientes) em relao peso

    soa prxima, sentimentos esses que do muita culpa e so,

    por isso mesmo, reprimidos. Quando ocorre a morte, s

    vezes, os sentimentos de culpa em relao ao morto erner-

    gem: mas, comumente a pessoa no sabe precisamente

    porque se sente culpada e se pune. Em ocasies acredita que

    a causa desses sentimentos culposos no ter tratado

    melhor a pessoa em vida, no ter-lhe satisfeito alguns

    desejos, no

    t -

    Ia compreendido etc. Isso comum e nor-

    mal. Outras vezes, aqui mais em nvel inconsciente, e

    quando o morto foi um doente crnico ou que sofria

    S4

    R oo sevelt M S. Cassorla

    o que Suicidio

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    muito (e causava transtornos ao ambiente), o desejo de que

    a pessoa morresse logo para que parasse de sofrer (e causar

    sofrimento) pode tambm proporcionar remorso. Mas o

    mais srio quando o sobrevivente (geralmente de forma

    inconsciente) passa a acreditar que o seu desejo de morte

    pode ter causado a morte do outro. ~ um pensamento

    mgico que persiste nas profundezas da mente das pessoas.

    Nas crianas isso mais visvel, e no raro elas se acham

    responsveis pela morte, pelas doenas ou pela separao

    dos pais, principalmente se esses episdios ocorrem em fases

    do desenvolvimento infantil em que a agressividade natural

    das crianas frente aos pais (por exemplo, em perodos

    edpicos) est exacerbada (muitas dessas crianas, se no

    forem amadas, tendero a se sentir ms, culpadas, pelo resto

    da vida, punindo-se ento e no podendo usufruir da vida.

    Outras vezes, os prprios pais, rejeitantes, que sentem a

    criana como uma carga, estimulam essa culpa e responsa-

    bilidade nos filhos).

    ~videntemente, sentir-se responsvel pela morte de

    algum pode levar a sentimentos de culpa e necessidade de

    punio, por vezes intensos. (Alis, nos rituais normais de

    luto, principalmente em algumas culturas, o enlutado se

    flagela, rasga suas vestes, cobre a cabea de cinzas ou se

    castiga de formas as mais mascaradas - no apenas uma

    demonstrao de tristeza, principalmente uma auto-

    punio.) O luto ento se complica, e a necessidade de

    castigo pode conduzir a idias suicidas.

    Outras vezes tem-se raiva do morto porque ... ele mor-

    reu Porque nos deixou ss, com problemas de solido,

    financeiros etc. Nossa mente, novamente funcionando de

    forma arcaica, atribui a responsabilidade da morte ao pr-

    prio morto. (~ bem verdade que talvez essa mente arcaica

    tenha tido uma percepo sutil e rica: no raro que o indi-

    viduo tenha contribudo de alguma forma para sua pr-

    pria morte, que seus instintos de morte tenham sido

    facilitados por seus prprios conflitos. I sso mais evidente

    em pessoas que no do ateno

    sua sade, no se tratam,

    em alcolatras, em pessoas que se acidentam etc., e eviden-

    temente no suicdio consciente, o caso extremo, e aqui

    claro que um dos objetivos do morto foi realmente fazer o

    sobrevivente sofrer.)

    Freud assinalou que na melancolia a sombra do objeto

    cai sobre o ego, isto , o sobrevivente se identifica com o

    morto. No s com as facetas positivas (alis, isso ocorre

    mais no luto norma 1), mas tambm com as negat ivas, proje-

    tadas. Poderemos ter, ento, dentro da mente do indivduo,

    identificados vivo e morto, uma entidade m, raivosa, resul-

    tado dos sentimentos negativos, e a pessoa passa a sentir-se

    assim, dominada e culpada. Essa vivncia pode ser muito

    intensa, muito persecutria, impedindo a vida do sobre-

    vivente que se sente mau, com dio e com muita culpa. A

    idia de suicjdio pode surgir como uma maneira de livrar-se

    dessa vivncia, de matar esse objeto dentro de si.

    Esse processo inconsciente e, na melancolia, cornu-

    mente no existe uma perda real, vislvel ao observador.

    Trata-se quase sempre de perdas da infncia precoce, que

    so revividas inconscientemente, a partir ou no de um

    desencadeant externo. Fatores constitucionais e biolgicos

    parece tambm predisporem a esse tipo de reao. Vejamos

    um exemplo: Joana nunca gostou de ter nascido mulher e

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    o

    qu e Suictdio

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    admirava a liberdade e iniciativa dos homens. Sequer admi-

    tia querer casar-se ou ter filhos. Mas, sentia-se bem com

    seu namorado, que sabia que a amava, a despeito de muitas

    vezes ter vontade de larg-Io, para sentir-se mais livre. Sua

    vida sexual era satisfatria at que, por engano , engra-

    vidou. O namorado quis casar-se, mas ela o mandou embora

    e mudou de cidade para que no mais a encontrasse. Tentou

    abortar com chs e remdios aconselhados por vizinhas,

    mas n o teve coragem de procurar uma parteira, mdico

    ou algum que realmente fizesse o aborto. Chorou muito

    durante a gravidez e passou os 9 meses mui to mal. Pensava

    e sonhava com a criana, mas comum ente a desejava morta,

    que no nascesse. Cibele nasceu fraqu inha, de um parto

    complicado, e no conseguia pegar no peito. Joana quis

    dar a criana, mas pouco antes da doao, no sabe

    por que , arrependeu-se. Foi morar com uma amiga solteira

    que trabalhava noite e se alternavam nos cuidados de

    Cibele. Esta vivia doente e chorava muito, no deixando

    que Joana descansasse e dormisse, aps seu dia de trabalho

    atarefado; muitas vezes pensava, chorando, que no devia

    ter tido essa filha, que a devia ter abortado ou dado a

    algum_ Em momentos, perdia a cabea, quando Cibele

    no parava de chorar, e lhe batia. Depois, mais calma, se

    arrependia, mas vivia em conflitos, desesperada.

    Uma noite Cibele, j com 4 meses, estava novamente

    febril e no parava de chorar. Joana, cansada, exasperou-se

    e deu-lhe uma surra. A criana se acalmou e dormiu. Na

    manh seguinte a achou meio largada, mas, mesmo assim,

    foi trabalhar, porque j tinha vrias faltas no servio.

    tarde a encontrou pior, e assustada a levou a um pronto-

    socorro. L foi diagnosticada uma septicemia e Cibele

    morreu horas aps.

    O leitor no precisa condenar Joana. Ela mesmo se con-

    denou - entrou num processo melanclico, parou de comer

    e de dormir, e s pensava na filha. Sentia-se m, horrorosa,

    uma bruxa e foi definhando aos poucos. Achava que seu

    crime era tamanho que devia morrer; pedia a morte e pen-

    sava em matar-se. Joana estava se matando, no comendo

    e emagrecendo, e logo apareceu uma tuberculose. Foi

    levada fora ao mdico, que a internou,e pude conhec-Ia

    no hospital. No queria ajuda e chegou a tentar jogar-se

    pela janela.

    Em Joana vemos a culpa pelo desejo de morte e, infe-

    lizmente, em Cibele notamos a percepo de ser uma

    carga para a me e o seu suicidio inconsciente tentando

    agradar a me. Faamos uma pausa: as crianas percebem,

    e muito, quando so amadas e quando so uma carga,

    quando so rejeitadas. No segundo caso, em suas cabe-

    cinhas s pode passar algo que, por analogia com o

    pensamento adulto, deve ser: se quem eu mais amo,

    quem eu mais preciso, no me quer, porque eu sou

    m. E, se eu sou m devo punir-me; a percepo dos

    desejos de morte por parte dos pais faz com que elas

    acabem adoecendo e morrendo, e s vezes tentando o sul-

    cfdio. Essas tentativas normalmente passam por acidentes,

    mas por vezes o ato suicida bem claro. Em outras

    ocasies, essas crianas crescem, melanclicas e perseguidas,

    e tendem a comportamentos autodestrutivos quando adul-

    tos se no tiverem a sorte de usufru ir de outras expe-

    rincias melhores em suas vidas. (~ evidente que o leitor,

    .

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    o que Suictdio

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    que j percebeu a multicausalidade nos nossos mecanismos

    mentais, deve avaliar com cautela qualquer analogia que

    sinta entre os casos contados, de forma superficial, e expe-

    rincias pessoais. As experincias do leitor podem e devem

    ser peculiares a ele, e a ajuda de um profissional poder

    esclarec-Ias. Lembremo-nos que, infelizmente, a autoper-

    cepo de processos inconscientes no comum, nem

    fcil.)

    Mas, conheamos melhor Joana. Se ela teve desejos de

    morte em relao a Cibele, tambm queria que ela vivesse.

    Afinal, ela a gerou, no a abortou (e poderia t-to feito),

    nem a doou. Na verdade, a ambivalncia entre os desejos de

    ter um filho e no ter era intensa. E isso que causava

    conflitos e sofrimento. (Permitam-me um certo cinismo,

    simplista, verdade. Se os desejos de no ter um filho

    fossem muito predominantes, talvez Joana nem engravi-

    dasse, ou, se engravidasse, um aborto natural ou provo-

    cado resolveria o problema, com um mnimo de sofri-

    mento.)

    A melancolia, a culpa, a necessidade de punio eram

    conseqncia da ambivalncia. Nas fantasias de suicdio

    de Joana encontrei mu itos componentes: desejo de destru ir

    seus impulsos assassinos, desejo de punio, desejo de

    destruir seus impulsos sexuais, sentidos como maus e cul-

    posos e, ... re-encontro com Cibele.

    Aqui temos uma das fantasias mais comuns, no s nos

    suicidas e melanclicos, como tambm nas pessoas enlu-

    tadas e em qualquer um que sofra uma perda. Existe uma

    fantasia de que, num outro lugar, em outro mundo, reecon-

    traremos as pessoas mortas, queridas, e ali viveremos felizes.

    Esta fantasia se confunde com a de encontro ou reencontro

    com Deus, o paraso, o seio ou o tero materno, como j

    assinalei.

    No fenmeno do suttee na fndia antiga (e at recente-

    mente) isso bem visvel, em termos culturais: as vivas

    so enterradas com seus maridos, e a vida continuar em

    outro lugar. Nas Novas Hbridas, quando morria uma

    criana, a me ou tia ou outra mulher devia morrer

    tambm para cuid-Ia. No Japo, at o sculo XVIII, os

    vassalos se suicidavam aps a morte de seu Ider, para

    acompanh-Io. Entre os Gisu, de Uganda, as mes se suici-

    davam aps a morte de seus filhos. Nas Ilhas Salorno as

    esposas disputavam sobre qual teria a honra de ser enter-

    rada com seu marido e chefe morto. Esse costume foi

    encontrado em vrias culturas, como entre os antigos

    trcios e os Rus da Escandinvia.

    Em nossa sociedade isso no ocorre de forma to evi-

    dente, mas existem trs formas mascaradas que tm as

    mesmas motivaes: uma o suicdio de pessoas enlutadas,

    melanclicas. Outra o luto patolgico, em que o sobre-

    vivente no consegue desligar-se do morto e passa a viver

    s de recordaes, s vezes mantendo hbitos e objetos

    como se o morto no estivesse ausente. Vive-se como que

    semimorto, longe do mundo e em companhia do morto,

    (Isto pode ocorrer, normalmente, no processo de luto,

    mas patolgico se persiste muitos meses aps a perda.) A

    terceira, mais sub-reptcia, a morte natural que ocorre

    pouco tempo aps a perda de pessoas queridas - o indiv-

    duo perde a vontade de viver e termina por morrer natural-

    mente ou aps uma doena. O povo, leigo mas sbio, diz

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    que a pessoa morreu, porque no tinha mais motivos para

    viver: a cincia oficial, que no compreende isso, atesta que

    foi de pneumonia ou parada card aca Na verdade, as

    taxas de mortalidade entre vivos e vivas, no primeiro ano

    aps a morte do parceiro maior do que seria esperado

    para a populao geral. ~ evidente que o fator afetivo influi

    nessas mortes, e o reencontro com o parceiro

    uma das

    motivaes inconscientes.

    Alis, o povo, e seus representantes verdadeiros, os

    poetas, sabem que se morre de desgosto, de amor, que o

    corao partido mata, que as pessoas se roem de

    inveja ou de remorso (e seus rgos so rodos), que defi-

    nham de tristeza e que a mgoa pode fazer perder a von-

    tade de viver. O banzo, dos negros escravos, era a rnelan-

    colia por perda de sua terra e liberdade, e levava ao sui-

    cfdio. Outra motivao a culpa: por exemplo, em certos

    grupos africanos o indivduo que transgredia um tabu sim-

    plesmente se deitava e morria de morte natural . Entre

    nossos (ndio