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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 4 – Novas fronteiras? Estudo contrastivo da produtividade lexical e padrões de formação de palavras em PB e PE sob a ótica da lingüística cognitiva. 77 SUBSTANTIVOS DEVERBAIS COMO CONSTRUÇÕES GRAMATICAIS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO: DUAS ANÁLISES POSSÍVEIS Janderson LEMOS DE SOUZA 1 RESUMO Em nosso projeto de doutorado – em curso na Universidade Federal do Rio de Janeiro, filiado ao Núcleo de Estudos Morfossemânticos do Português (NEMP), sob a orientação dos professores Maria Lucia Leitão de Almeida e Carlos Alexandre Gonçalves – enfocamos a formação de substantivos a partir de verbos e a convivência entre formações em –ção e –mento a partir do mesmo verbo, como em salvação / salvamento, monitoração / monitoramento, requisição / requerimento... Nossa proposta de explicação para a não-incidência do bloqueio (ARONOFF: 1976) é a especialização semântica entre as formas. Assumimos que nominalizações a partir do mesmo verbo não passam por extensão de sentido uma vez criadas, e sim que nascem semanticamente especializadas. Desta forma, temos que a razão de ser da dupla nominalização é que cada substantivo deverbal supre uma lacuna semântica no léxico; preservamos a noção de bloqueio por seu poder explicativo na teoria linguística, só que não aplicável às nominalizações a partir do mesmo verbo; e situamos a especialização, não no âmbito dos itens lexicais, e sim no das funções dos processos de expansão do léxico, concebidos como operações cognitivas. Neste espírito, estamos propondo que, em vez de um processo morfológico com funções dentre as quais uma que é semântica, se conceba a nominalização como um fenômeno semântico com consequência lexical, que consiste em concentrar os significados de um verbo em um substantivo ou distribuir os significados de um verbo em mais de um substantivo. A primeira concepção pressupõe um léxico estruturado por processos e regras de formação de palavras sensíveis ao fator semântico. A segunda, um léxico em que “Words are themselves viewed as constructions, and lexical meaning is an intricated web of connected frames” (FAUCONNIER & TURNER, 2006, 303). A rede de molduras, por sua vez, é concebida a partir da metáfora, da metonímia, dos mapeamentos, dos espaços mentais e todas as demais operações que a Linguística Cognitiva identifica na cognição e estende à linguagem. Assim, entendemos os substantivos deverbais como construções nos termos da Gramática das Construções (GOLDBERG, 1995, 2006), bem como consideramos adequado tratar do significado dos substantivos deverbais como concentrações ou distribuições dos significados prototípicos e dos significados periféricos dos verbos base e da distribuição semântica dos substantivos deverbais em –ção e –mento a partir do tratamento proposto por Langacker (1987) para a distinção nome/verbo, em geral, e 1 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Departamento de Letras Vernáculas. Avenida Horácio de Macedo, 2151, Ilha do Fundão, Cidade Universitária, Rio de Janeiro/RJ, CEP 21941- 917, Brasil. [email protected]

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 4 – Novas fronteiras? Estudo contrastivo da produtividade lexical e padrões de formação de palavras em PB e PE sob a ótica da lingüística cognitiva.

77

SUBSTANTIVOS DEVERBAIS COMO CONSTRUÇÕES GRAMATICAIS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO: DUAS ANÁLISES POSSÍVEIS

Janderson LEMOS DE SOUZA1

RESUMO

Em nosso projeto de doutorado – em curso na Universidade Federal do Rio de Janeiro, filiado ao Núcleo de Estudos Morfossemânticos do Português (NEMP), sob a orientação dos professores Maria Lucia Leitão de Almeida e Carlos Alexandre Gonçalves – enfocamos a formação de substantivos a partir de verbos e a convivência entre formações em –ção e –mento a partir do mesmo verbo, como em salvação / salvamento, monitoração / monitoramento, requisição / requerimento... Nossa proposta de explicação para a não-incidência do bloqueio (ARONOFF: 1976) é a especialização semântica entre as formas. Assumimos que nominalizações a partir do mesmo verbo não passam por extensão de sentido uma vez criadas, e sim que nascem semanticamente especializadas. Desta forma, temos que a razão de ser da dupla nominalização é que cada substantivo deverbal supre uma lacuna semântica no léxico; preservamos a noção de bloqueio por seu poder explicativo na teoria linguística, só que não aplicável às nominalizações a partir do mesmo verbo; e situamos a especialização, não no âmbito dos itens lexicais, e sim no das funções dos processos de expansão do léxico, concebidos como operações cognitivas.

Neste espírito, estamos propondo que, em vez de um processo morfológico com funções dentre as quais uma que é semântica, se conceba a nominalização como um fenômeno semântico com consequência lexical, que consiste em concentrar os significados de um verbo em um substantivo ou distribuir os significados de um verbo em mais de um substantivo. A primeira concepção pressupõe um léxico estruturado por processos e regras de formação de palavras sensíveis ao fator semântico. A segunda, um léxico em que “Words are themselves viewed as constructions, and lexical meaning is an intricated web of connected frames” (FAUCONNIER & TURNER, 2006, 303). A rede de molduras, por sua vez, é concebida a partir da metáfora, da metonímia, dos mapeamentos, dos espaços mentais e todas as demais operações que a Linguística Cognitiva identifica na cognição e estende à linguagem.

Assim, entendemos os substantivos deverbais como construções nos termos da Gramática das Construções (GOLDBERG, 1995, 2006), bem como consideramos adequado tratar do significado dos substantivos deverbais como concentrações ou distribuições dos significados prototípicos e dos significados periféricos dos verbos base e da distribuição semântica dos substantivos deverbais em –ção e –mento a partir do tratamento proposto por Langacker (1987) para a distinção nome/verbo, em geral, e 1 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Departamento de Letras Vernáculas. Avenida Horácio de Macedo, 2151, Ilha do Fundão, Cidade Universitária, Rio de Janeiro/RJ, CEP 21941-917, Brasil. [email protected]

Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 4 – Novas fronteiras? Estudo contrastivo da produtividade lexical e padrões de formação de palavras em PB e PE sob a ótica da lingüística cognitiva.

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para as nominalizações, em particular, assim como a partir da concepção de polissemia proposta por Soares da Silva (2006). PALAVRAS-CHAVE: nominalização de verbos; português do Brasil; Gramática das Construções; Linguística Cognitiva

No português brasileiro, pode-se formar mais de um substantivo a partir do

mesmo verbo, como rendição e rendimento a partir de render; fala e falação a partir de

falar; conferência e conferimento a partir de conferir; pertença, pertencimento e

pertinência a partir de pertencer; e tantos outros com maior ou menor transparência

morfossemântica em relação à base.2 Tal fato poderia indicar que a noção de bloqueio é

falha e, portanto, prescindível na teoria linguística. No entanto, consideramos possível

conciliar a formação de mais de um substantivo a partir do mesmo verbo com o

entendimento de que:

Regras que são normalmente produtivas, no sentido de que podem operar na formação de palavras novas na língua, têm, por vezes, sua atuação bloqueada em certos itens, pelo simples fato de que já existe na língua uma palavra para exercer a função que a palavra a ser formada exerceria. Por exemplo, não aceitamos *divulgamento em português não por causa de alguma restrição à combinação dos elementos divulga- e –mento, mas porque o conhecimento de que a forma nominalizada de divulgar é divulgação faz parte da competência lexical dos falantes de português. (BASILIO, 1980, 9)

A conciliação nos parece possível graças à constatação de “(...) especialização no

significado da forma concorrente, passando ambas a co-ocorrer. É o que acontece com

os deverbais recebimento e recepção, ou com os deadjetivais claridade e clareza”

(NASCIMENTO, 2006, 107). Em outras palavras, se, uma vez formado o substantivo

recepção, mais antigo na língua, se insinuasse a formação de um substantivo 2 No português europeu, o quadro dos substantivos deverbais é outro, e a participação no II SIMELP gerou enorme interesse em desenvolver um estudo contrastivo.

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semanticamente equivalente, recebimento, este teria o mesmo destino que divulgamento

na citação de Basilio (1980): permaneceria no plano dos itens lexicais possíveis, não

entraria para o léxico real. A formação de recebimento indica, portanto, que tal

substantivo foi formado semanticamente especializado, razão pela qual julgamos

fundamental não atribuir sua formação à falha do bloqueio e rever a concepção de

nominalização.

A nominalização tem sido definida como um processo de formação de palavras,

um processo morfológico, portanto. No entanto, do ponto de vista da Linguística

Cognitiva, fenômenos semânticos têm ascendência sobre fenômenos sintáticos e sobre

fenômenos morfológicos, num contínuo entre os níveis do conhecimento linguístico.

Além disso, não nos parece possível atribuir a formação de mais de um substantivo a

partir do mesmo verbo à função de mudança de classe, visto que a carência de classe é

suprida pelo primeiro substantivo deverbal. O que nos parece haver é uma carência de

significado, de um significado específico não coberto pelo substantivo preexistente, e o

atendimento a essa carência por uma regra de formação de palavras tão produtiva

quanto a que deu origem ao substantivo anterior.

Por isso, consideramos insuficiente abordar a formação de mais de um substantivo

a partir do mesmo verbo como decorrente da função semântica de um processo

morfológico, já que a de mudança de classe obviamente não se aplica. Não somente

porque parte do morfológico para o semântico, como também porque a função

semântica atribuída aos processos de formação de palavras dá conta da maior ou menor

generalidade semântica entre regras correspondentes ao mesmo processo, e não da

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condição polissêmica do verbo-base, da qual nos parece resultar a dupla ou tripla

nominalização.

Por isso, propomos que se conceba a nominalização não mais como um processo

morfológico com função semântica, que consistiria em converter verbos em

substantivos, e sim como um processo semântico com uma contraparte morfológica, que

consiste em consolidar o(s) significado(s) de um verbo num único nome ou distribuir os

significados de um verbo entre mais de um nome morfologicamente relacionado ao

verbo por via sufixal ou regressiva. Nesses termos, já não se pode dizer que o sufixo –

ção nominaliza o verbo declarar ou que declaração seja a nominalização de declarar, e

sim que o sufixo –ção nominaliza todos os significados do verbo declarar, enquanto –

ção nominaliza alguns significados do verbo arrogar e –nc(i)a, outros; -mento

nominaliza alguns significados de afogar e –dura, outros. Somente assim, parece-nos

possível dispensar um tratamento que associe a concorrência entre dois, três ou mais

nomes para os mesmos verbos com a polissemia dos verbos; integre a polissemia dos

verbos com a polissemia dos nomes; e ainda explique a semântica dos nomes,

polissêmicos ou não, por meio da metáfora e da metonímia na transferência de

significados prototípicos e periféricos dos verbos aos nomes.

O mesmo fato de que substantivos formados a partir do mesmo verbo são

semanticamente especializados em relação à base e entre si nos leva a concebê-los como

construções gramaticais. Afinal, tanto os substantivos consistem em pareamentos entre

forma e significado quanto a relação entre si é de não-sinonímia. Ademais, a relação

entre o verbo-base e o(s) substantivo(s) é motivada, e o Princípio de Motivação

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Maximizada, em Goldberg (1995), captura, do ponto de vista cognitivo, a mesma

motivação que, em Jackendoff (1975), as regras de redundância morfológica e as regras

de redundância semântica capturam do ponto de vista gerativo. E é exatamente do

equilíbrio entre expressividade e economia que nos parece nascer, por assim dizer, o

objeto de estudo deste capítulo. A rede construcional em que ora existe uma única

contraparte nominal para determinado verbo ora existe mais de uma aponta para esse

equilíbrio, sem prever qualquer impedimento a que, em prol da expressividade, a rede

se altere na direção de mais contrapartes nominais para o mesmo verbo, preserva a

condição de não-sinonímia entre elas.

A concepção de nominalização como um processo semântico com contraparte

morfológica, nos termos em que a estamos propondo, indica que a distribuição

semântica dos substantivos deverbais se explica a partir da polissemia do verbo-base. A

nominalização transforma significados verbais em significados nominais, o que implica

que verbo e nome são tomados como categorias semânticas, não como classes

morfológicas, e que a mudança de classe morfológica é um epifenômeno.

Segundo Langacker (1987), as classes semânticas verbo e nome correspondem a

“(...) dois modos de processamento cognitivo que podem ser invocados para a

conceptualização de uma cena complexa (...)” (LANGACKER, 1987, 144). O modo de

processamento cognitivo dos verbos é definido como um sequential scanning, que “(...)

envolve a transformação de uma configuração em outra ou uma série contínua de tais

transformações (...)” (LANGACKER, 1987, 145). Já o modo de processamento

cognitivo dos nomes é definido como um summary scanning, com “(...) cada grupo de

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eventos contribuindo com algo para uma única configuração, cujos aspectos são todos

concebidos como coexistentes e simultaneamente disponíveis” (LANGACKER, 1987,

145).

“Uma breve observação sobre tempo é necessária (...)”, já que “A diferença

entre o summary scanning e o sequential scanning está no tempo relativo ao

processamento dos eventos – se os eventos que correspondem a diferentes aspectos de

uma cena complexa são ativados simultaneamente ou sucessivamente – e não na

locação concebida da cena tampouco em seus componentes no fluxo do tempo objetivo”

(LANGACKER, 1987, 145). Noutras palavras, o esquema imagético relativo à classe

semântica verbo se distingue do esquema imagético relativo à classe semântica nome

pela participação do tempo pertinente aos eventos expressos por verbos ou nomes, que

caracteriza o primeiro Esquema Imagético (EI) como dinâmico (sucessivo) e o segundo,

como estático (simultâneo).

Concebidos dessa forma a base e o produto da nominalização, retomemos a

concepção do processo como diretamente relacionado com a polissemia. Tomemos, por

exemplo, um verbo polissêmico qualquer, como contar (FERREIRA: 2004):

contar [Do lat. computare, por via popular.] Verbo transitivo direto. 1.Verificar o número, a quantidade de; computar. 2.Fazer entrar como parcela numa conta; levar em conta. 3.Ter, possuir. 4.Marcar, registrar. 5.Narrar, referir, relatar. 6.Ter esperanças de; esperar. 7.Propor-se a; tencionar. 8.Incluir num grupo, numa conta, num total; levar em conta; considerar.

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Verbo transitivo circunstancial. 9.Ter de existência ou idade. Verbo transitivo direto e indireto. 10.Incluir num grupo, numa conta, num total; considerar. 11.Narrar, referir-se, relatar. Verbo transitivo indireto. 12.Fazer narração de fato ou acontecimento. 13.Ter esperança, confiança em; esperar, confiar. 14.Dispor de. 15.Ter idéia; supor; imaginar. Verbo transobjetivo. 16.Levar à conta de; considerar. Verbo intransitivo. 17.Fazer contas; calcular. 18.Ter peso, importância; ser ponderável; pesar. 19.Mat. Estabelecer uma correspondência biunívoca entre o subconjunto dos naturais 1, 2, ...., n e (os elementos de um conjunto).

Como tal, cada um de seus significados está disponível para ser nominalizado. O

significado 1 é nominalizado no substantivo deverbal contagem, como sabe qualquer

falante nativo do português. Todavia, alguns profissionais de uma área de Letras

costumam referir-se a seu ofício como “contação de histórias”. E não poderia mesmo

ser “contagem de histórias”! Ou estariam falando de “verificar o número de” histórias

(significado 1 – nominalizado em –agem), e não de “narrar” histórias, como pretendem

(significado 4 – nominalizado em –ção). A partir do verbo contar, forma-se uma família

de construções composta por contar contagem, contar contação, contar conta.

E o olhar projetivo nos prepara para a possibilidade de contar contamento ou, quem

sabe?, contar contância.

Esse exemplo nos permite visualizar que a concepção de nominalização que

estamos propondo se relaciona diretamente com a pressuposição de polissemia do

verbo-base como condição necessária, e não suficiente, para que cada significado do

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verbo-base seja passível de nominalizar-se em um substantivo deverbal específico. No

entanto, não podemos esquecer que os substantivos deverbais, como itens lexicais que

são, também são suscetíveis à deriva semântica, ou seja, também estão sujeitos à

polissemia. Portanto, temos de levar em conta a polissemia em duas instâncias: a do

verbo-base e a do próprio substantivo deverbal.

Isso implica reconhecer que construções gramaticais estabelecem entre si

relações de herança (GOLDBERG, 1995). “Como ‘herança’ entende-se qualquer

característica formal ou semântica que esteja na construção básica e se transfira para a

construção decorrente” (NASCIMENTO, 2006, 42), e uma das relações de herança é a

ligação por polissemia, que captura “(...) a natureza das relações semânticas entre um

determinado sentido de uma construção e quaisquer extensões desse sentido”

(GOLDBERG, 1995, 75).

Definida a participação da ligação por polissemia na concepção de

nominalização que estamos propondo, há que considerar a relação semântica entre os

sufixos que figuram na contraparte morfológica da nominalização e os significados

sobre os quais incidem – usando o exemplo acima, se –ção e –agem têm alguma

compatibilidade com os significados de contar sobre os quais incidem, ou se a relação

entre tais sufixos e os significados do verbo-base é acidental. Pretendemos conciliar a

distinção entre interpretação verbal e interpretação nominal dos substantivos deverbais

com o tratamento que Langacker (1987) propõe para nominalizações, para demonstrar a

adequação descritiva que se obtém de supor compatibilidade entre os sufixos e os

significados que nominalizam.

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Para tanto, entendemos que a interpretação verbal é o significado prototípico e

que a interpretação nominal corresponde a um dos significados periféricos das

nominalizações. Isso porque a interpretação verbal é a que remete à semântica da classe

da base das nominalizações, enquanto a interpretação nominal é a que remete a um

possível argumento da classe da base das nominalizações.

Duas análises possíveis

Tendo proposto a distinção entre o modo de processamento de eventos expressos

por verbos e o modo de processamento de eventos expressos por substantivos deverbais,

Langacker (1987) descreve o significado destes a partir da oposição substantivos

contáveis/nomes de massa. Estabelece uma relação semântica entre ser um substantivo

contável e significar “um único episódio do processo indicado pelo verbo-base”

(LANGACKER, 1987, 207-8) e entre ser um nome de massa e significar o que “não é

nem contínuo nem delimitado no tempo, sendo instaciado sempre que ocorre um caso

do processo da base” (LANGACKER, 1987, 207-8). Nominalizações como discussão,

reclamação e lançamento seriam exemplos de substantivos contáveis, que, como tais,

significam episódios – definidos como regiões cognitivas com limite inicial e final –,

enquanto nominalizações como destruição, procrastinação e esperança seriam

exemplos de nomes de massa, que, como tais, significam regiões não passíveis de

delimitação. Tal oposição prevê que “Algumas nominalizações podem, é claro,

funcionar em ambas as classes” (LANGACKER, 1987, 207).

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O ponto fundamental aqui é que a oposição episódio/região não-delimitada

como versão cognitiva da oposição substantivos contáveis/ nomes de massa pode ser

considerada como uma subespecificação da interpretação verbal. A partir da proposta de

Langacker (1987), identificamos duas análises possíveis para a distribuição semântica

entre os substantivos deverbais em –ção e –mento:

–ção e –mento como sufixos não-especializados

A primeira análise possível coincide com a conclusão de Basilio (1987, 22-23)

sobre o par recepção/recebimento:

Vejamos, por exemplo, o caso de recebimento / recepção. Temos duas formas nominalizadas do verbo receber, sendo que uma é de formação mais antiga – provavelmente latina –, como se pode observar pela alteração do radical (...), e a outra formada de acordo com padrões gerais vigentes em português. Estas duas formas exemplificam a questão do uso. Ou seja, teoricamente poderíamos ter apenas uma forma nominalizada para o verbo receber; ou qualquer uma das formas poderia apresentar qualquer um dos significados gerais possíveis com este verbo. No entanto, verificamos que certos significados são expressos com uma das formas, outros com a outra. Assim, por exemplo, o sentido de receber como “ter convidados” pode ser nominalizado pela forma recepção, que passa a indicar o evento: podemos falar numa recepção com muitos convidados. Neste contexto, naturalmente, não caberia recebimento. Já recebimento vai ser utilizado em larga escala como nominalização de receber em referência a dinheiro e mercadoria em geral, caso em que recepção, por sua vez, não cabe. Esse é um exemplo típico de diferença de uso, pois a diferença de significado não pode ser atribuída ao sufixo nominalizador. Isso é fácil de verificar pela existência de formas como casamento, onde, com o sufixo –mento, há o sentido de “evento social”, que havíamos encontrado em recepção; e como reposição, onde, com o sufixo –ção, podemos ter o significado referente a dinheiro ou mercadorias em geral.

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Diante do fato de que tanto recepção quanto casamento indicam eventos sociais

e de que tanto recebimento quanto reposição indicam relação com dinheiro, a autora

conclui que –ção e –mento não são semanticamente especializados.

–ção e –mento como sufixos especializados

A segunda análise possível permite acolher duas oposições semânticas (a de

aspecto e a de gênero) como pontos de partida para a descrição de duas propriedades

semânticas dos substantivos deverbais em –ção e –mento caracterizadas pela oposição

marcado/não-marcado. Passemos a discriminar as oposições e as propriedades:

A oposição de aspecto

Oiticica (1926) descreve a relação diacrônica entre –ção e o perfectum e entre –

mento e o infectum. Tal relação permite entender por que –mento se opõe não somente a

–ção (ordenamento/ ordenação, provimento/ provisão, internamento/ internação), como

também a formações participiais, inclusive o próprio particípio (doutoramento/

doutorado, chamamento/ chamado, esgoto/ esgotamento), e por que –ção, quando

participa da nominalização de adjetivos, seleciona somente adjetivos participiais

(adequado/adequação/ *adequamento, educado/ educação/* educamento,

correto/correção/ *corremento). Oiticica (1926) coloca, portanto, –mento na condição

de sufixo não-marcado e –ção na condição de sufixo marcado quanto ao aspecto e

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permite concebê-los como instruções para distinções semânticas, em relação de

oposição complementar entre substantivos deverbais a partir do mesmo verbo.

A informação de que –ção se filia aos radicais de perfectum e –mento aos de

infectum, demonstrada pela afinidade entre –ção e adjetivos participiais, dá origem à

primeira aplicação da análise que pressupõe especialidade semântica nos sufixos. Nessa

aplicação, a noção perfectum pode ser entendida como correspondente, em termos

cognitivos, à totalidade da cena em –ção, enquanto a noção infectum a um recorte da

cena em –mento. A especialidade semântica que está sendo aceita não é a que atribui a

propriedade perfectum a –ção ou a propriedade infectum a –mento, e sim a que prevê

compatibilidade entre –ção e toda a cena cognitiva representada pelo verbo-base e de –

mento e parte(s) da cena cognitiva. A compatibilidade gera a especialidade, e isso

ratifica que –ção e –mento são sufixos complementares, e não concorrentes.

“Assim, por exemplo, o significado ‘coletivo’ em formas nominalizadas, tais

como administração, direção, etc., constitui uma extensão generalizada (...)”

(BASILIO, 1980, 74-75), e esse pendor de –ção para a expressão do coletivo passa a ser

descrito como evidência de sua afinidade com a expressão do todo, e não da parte.

Antes de considerar o significado coletivo como causa da listagem das nominalizações,

estamos considerando-o em distinção ao significado não-coletivo. E, como nem sempre

existem um substantivo em –ção e outro em –mento, estamos supondo que a afinidade

entre –ção e a expressão do todo seja inerente, e não relacional, ou seja, como

propriedade que faz do sufixo marcado, haja ou não a relação com outro. Quando a

relação com outro sufixo se dá, este atua como não-marcado, como nos parece ser o

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caso do já exausto par recepção/recebimento, em que – suspensa pela listagem de

recepção com a interpretação nominal “lugar onde se recebe” e considerada

estritamente a interpretação verbal compartilhada por ambos como “ato de receber” – o

ato de receber em –ção pode conter o ato de receber em –mento – ex.: o recebimento do

dinheiro pode se dar durante a recepção dos amigos, em que o recebimento está

“dentro” da recepção – mas não o oposto.

A oposição de gênero

Se a concepção de nominalização como um processo semântico com contraparte

morfológica evoca a ligação por polissemia como relação de herança semântica entre o

verbo-base e os substantivos deverbais, a oposição de gênero evoca a ligação por

subpartes, estabelecida “(...) quando uma construção é uma subparte própria de outra

construção e existe independentemente” (GOLDBERG, 1995, 78), como relação de

herança morfológica entre o verbo-base e os substantivos deverbais, pelo

compartilhamento do radical.

Nascimento (2006, 63) chega à conclusão de que substantivos e verbos são “(...)

categorias que têm características formais e conceptuais específicas que fazem com que

possam ser consideradas construções gramaticais (...)” e propõe que se tome como

reenquadre morfológico direto a nominalização regressiva e como reenquadre

morfológico indireto a nominalização sufixal. “Dessa forma, a construção colocação é

formada com a junção da construção verbal colocar com a construção sufixal

nominalizadora -ção – responsável pelo reenquadre como um substantivo”

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(NASCIMENTO, 2006, 65), com a ressalva de que o sufixo -ção deve ser considerado

nominalizador dos significados da construção verbal colocar, e não da própria

construção verbal colocar.

Diferentemente de substantivos que se opõem quanto ao gênero pela vogal

temática, como menino/menina e jarro/jarra, os substantivos deverbais em –ção e –

mento se opõem quanto ao gênero exatamente pelos sufixos –ção e –mento, como a

recepção / o recebimento, a internação / o internamento, a diversão / o divertimento. A

despeito da adesão à tese do autor de que não há como “(...) estabelecer nenhuma

diferença entre o que tradicionalmente se considera desinência de gênero e as vogais

temáticas (...)” (NASCIMENTO, 2006, 77) – não se discute que substantivos deverbais

em –mento são masculinos e que substantivos deverbais em –ção (ou em qualquer outro

sufixo nominalizador que não –mento) são femininos. E tanto quem adere quanto quem

não adere à tese concordam que o masculino é não-marcado e que o feminino é

marcado. Quem adere acrescenta à convicção na indistinção entre vogal temática e

desinência de gênero o tratamento da oposição marcado / não-marcado em termos de

escala radial, dado o compromisso com a teoria dos protótipos. É nessa escala radial que

tem lugar a oposição de gênero entre substantivos deverbais em –mento e substantivos

deverbais em –ção:

homem / mulher

gato / gata

mariposa

tubarão

carrasco

duende

agulha

mar

carro

carambola gentileza paz

inauguração sociedade

(NASCIMENTO, 2006, 97)

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Mas, se nossos substantivos não se opõem como construções X-o / X-a, então

temos de dizer que se opõem como construções X-mento / X-ção, o que implica atribuir

aos sufixos outra especialidade semântica, em reforço à segunda análise possível que

estamos desenvolvendo. A perspectiva da oposição de gênero como especialidade

semântica dos sufixos implica situar os sufixos na interface entre morfologia e

semântica, uma vez que o gênero se situa na esfera da flexão e a nominalização na da

derivação, o que encontra respaldo teórico na concepção de contínuo flexão

derivação.

Então, além de –mento ser não-marcado e de –ção ser marcado quanto ao

aspecto, o fato de –mento ser o único sufixo masculino o caracteriza como não-marcado

quanto ao gênero, assim como o fato de –ção ser feminino faz deste sufixo herdeiro de

todas as propriedades semânticas do feminino – e estamos tomando tais fatos como

novas evidências da adequação de considerar –ção e –mento como sufixos

semanticamente especializados. Em outras palavras, a descrição dos sufixos –ção e –

mento pressupondo o contínuo flexão derivação permite situá-los no polo flexional

como opositores de gênero e no polo derivacional como opositores das propriedades

semânticas correspondentes ao caráter não-marcado do masculino e ao caráter marcado

do feminino.

Dessa forma, a oposição de gênero é o que nos parece permitir a descrição dos

substantivos que Basilio (1987) trata como indicativos de habitualidade/pejoratividade,

presente exatamente nos substantivos em –ção, que são femininos: bater → bateção,

encher → encheção, pegar → pegação, sacar → sacação. A referência da autora à

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habitualidade/pejoratividade indica a habitualidade como causa da pejoratividade.

Trata-se, portanto, de uma manifestação de subjetividade por meio de um sufixo

marcado quanto ao gênero, em reforço à afinidade entre o feminino e a expressão da

pejoratividade nos termos previstos por Basilio (1987, 86):

A pejoratividade é provavelmente a expressão mais comum de

atitude subjetiva sobre a caracterização de um ser. Em geral, podemos nos manifestar acerca de alguma coisa de

uma maneira neutra, positiva ou pejorativa. As expressões positiva e pejorativa são expressões de atitude subjetiva; embora as expressões positivas contem com algumas marcas morfológicas, é muito mais significativa a marca morfológica de pejoratividade.

Revisitados à luz desse raciocínio, tais substantivos saem da condição marginal

em relação aos demais substantivos em –ção, deixam de ser descritos apenas no que

tange a sua alocação no registro coloquial, por sua vez concebida como acidente do

desempenho ou capricho do estilo, e passam a integrar o quadro de substantivos

deverbais em –ção, que, a despeito de se relacionarem com outro substantivo deverbal,

podem ser marcados quanto ao aspecto ou quanto ao gênero. Só que, quando se

relacionam com outro substantivo deverbal, regressivo, a distribuição semântica entre

eles preserva o status do sufixo –ção como “marca morfológica de pejoratividade”.

Não por acaso, o outro sufixo marcador de pejoratividade (-agem) na

nominalização também é feminino! Deve, pois, ser considerado “marca morfológica de

pejoratividade” também. E a participação de dois sufixos marcados quanto ao gênero

com a mesma função subjetiva confirma não somente a adequação de conceber os

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sufixos nominalizadores como semanticamente especializados, como a de conceber a

nominalização como um processo semântico sensível à polissemia da base.

A alternância da listagem

A segunda análise que se apresenta como possível na linha de raciocínio

desenvolvida neste capítulo permite também acolher os substantivos deverbais cuja

interpretação nominal é listada, como recepção, casamento, apartamento, ligamento e

outros. Diante do fato de muitos desses substantivos em –ção ou –mento se

relacionarem com outros em –mento ou –ção, a listagem ganha status de fator

distintivo. Se a construção listada for em –ção, não será em –mento. Se for em –mento,

não será em –ção. E a construção listada, em –mento ou em –ção, poderá apresentar

interpretação verbal além da interpretação nominal, como se vê a seguir:

V N[suf]1 (não listado) N[suf]2 (listado)

APARTAR

APARTAÇÃO (interpretação verbal /

episódio =

ato de apartar) APARTAMENTO (interpretação verbal / região não-delimitada

= ato de apartar)

APARTAMENTO (interpretação

nominal =

tipo de residência)

LIGAR

LIGAÇÃO (interpretação verbal /

episódio =

ato de ligar)

LIGAÇÃO (interpretação

nominal =

telefonema) LIGAMENTO (interpretação

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nominal =

nome de articulação humana)

RECEBER

RECEPÇÃO (interpretação verbal /

episódio =

ato de receber) RECEBIMENTO

(interpretação verbal / região não-delimitada

= ato de receber)

RECEPÇÃO (interpretação

nominal =

nome de um lugar em prédio urbano)

ENCHER

ENCHEÇÃO (interpretação verbal

pejorativa) ENCHIMENTO

(interpretação verbal neutra)

ENCHIMENTO (interpretação

nominal =

substância de uso cirúrgico)

ARMAR

ARMAÇÃO (interpretação verbal /

episódio =

ato de armar)

ARMAÇÃO (interpretação

nominal =

tocaia, vendeta, cilada)

ARMAMENTO (interpretação

nominal =

conjunto de armas)

A listagem da interpretação nominal de alguns substantivos deverbais não é

exclusiva dos que apresentam o sufixo –mento ou –ção e evidencia a terceira dimensão

da metonímia na distribuição semântica dos substantivos.

A primeira dimensão distingue os signos linguísticos dos não-linguísticos, ou as

construções gramaticais das não-gramaticais:

Existe uma face óbvia da metonímia em unidades lexicais, que já aparece na concepção de signo de Saussure (...) definido pela associação significante/significado. Ou seja, a estrutura do signo é

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em si metonímica, pois o signo se constitui pela associação significante/significado. (BASILIO, 2007, 12)

Tomados como conceitos do mesmo domínio cognitivo, a linguagem, ou como

conceitos em contiguidade – segundo Peirsman & Geeraerts (2006), que consideram

vago o conceito “domínio cognitivo” –, a associação significante/significado revela-se

metonímica. E tal associação na definição de signo por Saussure (1916) corresponde ao

pareamento forma/significado na definição de construção gramatical por Goldberg

(1995), donde podemos concluir que toda construção é metonímia, assim como todo

signo linguístico também o é, e que tal dimensão da metonímia não distingue nosso

objeto de estudo.

A segunda dimensão da metonímia responde por serem abstratos os substantivos

deverbais. E “(...) os substantiva abstractos são propriedades que existem em nós e fora

de nós mas que se arrancaram ao seu suporte e se dão como essências autónomas. A

audacia faz com que os homens sejam audaces; no fundo, é uma personificação (...)”

(NIETZSCHE, 1896, 76-77) exatamente como,

Por exemplo, na frase (...) Detesto guerras, odeio destruição., fica claro que a forma nominalizada destruição é construída apenas para fins de referência ao complexo semântico destruir de uma maneira nominal, ou seja, como a uma entidade em si, independente de instâncias particulares do evento, e suas associações de tempo, sujeito e objeto verbal, etc. (BASILIO, 1987, 78-79)

A segunda dimensão da metonímia nos substantivos deverbais é, então, aquela em

que substantivos deverbais permitem a referência a propriedades, ações ou processos

em si, donde decorrem as anáforas e as catáforas como frutos da desverbalização.

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A terceira dimensão é, por fim, a que se encontra na listagem das interpretações

nominais. Os exemplos de substantivos deverbais com interpretação nominal listada

foram apartamento, ligação, recepção, enchimento e armamento. Em todos, o que se vê

é que a interpretação verbal “ato/processo de X” dá lugar a interpretações nominais que

com esta se relacionam por metonímia e são inteligíveis graças ao Princípio da

Motivação Maximizada.

Assim, apartamento é um lugar resultante de apartar (= individuado), ligação é

um tipo de ato de ligar, recepção é um lugar em que receber, enchimento é um tipo de

substância com que encher, o armamento é o coletivo de objetos que servem para armar

(= munir). Mas essa dimensão da metonímia não se verifica somente em casos de

duplicidade de substantivos deverbais a partir do mesmo verbo, em que um apresenta

interpretação verbal e outro interpretação nominal listada. Verifica-se também em

substantivos deverbais únicos a partir de um dado verbo, desde que tenham

interpretação nominal listada, o que revela que a listagem é efeito dessa dimensão da

metonímina, não a duplicidade de substantivos. É o caso, por exemplo, de

estacionamento, expressão e aliança, em que se têm, respectivamente, um lugar em que

estacionar, uma feição por meio da qual expressar e um anel por meio do qual aliar.

Pelo que se vê, a terceira dimensão da metonímia interfere na distribuição semântica

dos substantivos deverbais produzindo listagem caracterizada por ainda maior

conhecimento de mundo.

Conclusão

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Por que um único verbo dá origem a mais de um substantivo no português

brasileiro? A partir dessa pergunta, fomos aos estudos descritivos sobre a nominalização

de verbos e iniciamos um percurso que nos levou a propor a concepção de

nominalização como um processo de natureza semântica, em que a mudança de classe é

a contraparte morfológica.

A literatura sobre os substantivos deverbais revelou duas análises possíveis: uma

em que os sufixos –ção e –mento são considerados não-especializados e outra em que

são considerados especializados semanticamente. Entretanto, a análise dos dados

revelou mais adequada a segunda análise possível. A partir dela, identificamos três

propriedades semânticas: a oposição de aspecto na origem dos sufixos, a oposição de

gênero e a alternância da listagem. Tudo indica que tais propriedades respondem pela

distribuição semântica das construções gramaticais em –ção e –mento e apontam para a

primazia do conhecimento de mundo na formação do significado, a funcionalidade da

expressão da subjetividade por meio da morfologia e o papel da metonímia na

constituição do léxico.

Em se tratando de um trabalho em desenvolvimento, temos usado as

oportunidades de apresentação em congressos para expô-lo aos pares e receber

sugestões, indicações bibliográficas, provocações teóricas, entre outras contribuições.

Agradecemos imensamente as sugestões feitas pelas professoras Ana Maria Brito e

Hanna Batoréo no II SIMELP.

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