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  • 8/16/2019 Subjetivação e Ética Da Existência - Apontamentos Para Uma Análise Do Discurso Foucaultiana Em Tempos de Fac…

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    INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597 . V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p 1

    SUBJETIVAÇÃO E ÉTICA DA EXISTÊNCIA: APONTAMENTOS PARA UMAANÁLISE DO DISCURSO FOUCAULTIANA EM TEMPOS DE FACEBOOK

    Carlos Renato Lopes*

    RESUMO: O artigo discute a possibilidade de (auto)constituição do sujeito em tempos em que asrelações identitárias cada vez mais têm lugar nos perfis de rede sociais. Reflete-se sobre como a práticade atualização e constante (re)visita de perfis, bem como as interações aí realizadas, constituem uma

    forma de deslocamento de códigos identitários previamente estabelecidos, promovendo nesse processo aencenação do que Michel Foucault chama de ética da existência.

    ABSTRACT: This article discusses the possibility of (self-)constitution of the subject in times whenidentity relations are increasingly held through social network profiles. It reflects upon the ways in whichthe practice of updating and (re-)visiting profiles, as well as the interactions carried out in such sites,constitute a displacement of previously established identity codes, thereby promoting the enactment ofwhat Michel Foucault calls the ethics of existence.

    PALAVRAS-CHAVE: ética da existência; subjetivação; redes sociais

    KEY WORDS: ethics of existence; subjectivation; social networks

    INTRODUÇÃO

    Este artigo lança um olhar para o que significa ser sujeito num tempo em que as práticasde constituição da identidade se dão, de forma cada vez mais acentuada, pelo cultivo de perfis identitários no interior das redes sociais. Interessa-nos refletir sobre como aquiloque MichelFoucault delineou em seus últimos trabalhos como sendo uma “ética daexistência”(1998[1984]; 2006[1984]; 2010[1983]) encontra espaço para atualização emtais contextos. Interessa-nos, em particular, investigar como a prática cotidiana defrequentar e alimentar perfis em redes sociais pode constituir uma forma dedeslocamento de práticas, poderes e códigos previamente estabelecidos, e de que modoisso se constitui como um trabalho de natureza ética. Nessa mesma direção, cabe ainda pensar como tais práticas se materializam como discurso no sentido foucaultiano, naforma de um deslocamento na rede de enunciados que determinam o que pode/deve serdito em um determinado meio e contexto.

    A concepção de sujeito como entidade una e dotada de uma essência, passível dedesvelamento pelo exercício da razão ou (auto)conhecimento, segue já cada vez maisdistante das diferentes abordagens teóricas que investigam a questão nacontemporaneidade (cf. BAUMAN & RAUD, 2015; ROSE, 2001; SILVA, 2000). Uma

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    visão aque se pode chamar “metafísica subjetivista”, cuja longa tradição na filosofiaremonta de Platão a Kant, cede lugar a uma concepção de sujeito como um agregado deforças e relações que constituem, do exterior, uma unidade relativamente estável, dotadade certas regularidades provisoriamente assentadas. Seria essa unidade relativamenteestável o que chamamos sujeito. Assim, o filósofo, por exemplo, é aquele cujas práticasconcretas em que se engaja o definem como filósofo: no contexto acadêmico, é aqueleque faz pesquisa em filosofia, que dá aulas e conferências, que corrige provas etrabalhos e que participa de bancas e congressos acadêmicos de sua área, entre tantasoutras tarefas. Por esse raciocínio, o filósofo não seria aquele ser cuja naturezaintrínseca se descobre portador do saber que conduz à verdade, um “especialista” porforça de sua condição, mas antes o conjunto de práticas e rotinas que o constituem comoum “sujeito filosófico”, num movimentoque se dá de forma dinâmica e nuncadefinitivamente fixada.

    Uma visão pós-moderna de subjetividade dirá que o modo como nos vemos e comoconcebemos a nós mesmos como sujeitos é forjado por meio dessas práticas situadas,que frequentemente se materializam no discurso, mas que igualmente implicam relaçõesde poder. Tais práticas circunscrevem um espaço experiencial dentro do qual nostornamos “acessíveis” a nós mesmos e aos outros como sujeitos e como objetos de ação,de conhecimento e de controle. No entanto, longe de ser um espaço neutro e estático, oqual habitamos e observamos por meio de lentes objetivas, trata-se antes de um espaçodinâmico, que toma forma nos processos, atividades e relacionamentos que sedesenrolam nele ou por ele (ALLEN, 2008; McGUSHIN, 2005). Num movimento demão dupla, nósconstituímos esse espaço quando, por exemplo, como professoresuniversitários, nos engajamos em práticas de ensino, pesquisa e extensão, ao mesmo

    tempo em que somos constituídos como professores por meio dessas próprias práticas.O pensamento sobre ética e subjetividade configura, como defendemos aqui, uminstrumento promissor no tipo de análise que convoca o nome de Foucault em suaafiliação. Ainda pouco estudado em suas relações com a Análise do Discurso deorientação francesa – a que se assenta prioritariamente sobre as bases lançadas porMichel Pêcheux, mas também a que leva em conta as contribuições foucaultianas maisespecíficas ao arcabouço teórico – o período conhecido como o “último Foucault” (início dos anos 1980) aponta para um campo vasto de investigações ainda a seremdesenvolvidas. Dessa forma, propomos de início um breve esboço das principaisquestões tratadas por Foucault no referido período.

    1. SUBJETIVAÇÃO E ÉTICA DA EXISTÊNCIA EM FOUCAULT

    Um teórico que supostamente decretou a “morte do sujeito” em uma fase inicial de suaobra, Foucault nunca deixou de lado a questão da subjetividade. Seu interesse talveztenha se tornado mais explícito em seus últimos escritos; entretanto, este jamais deixou

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    de existir como questão de fundo (CHOKR, 2007; McGUSHIN, 2005). Quando lança odesafio de que façamos uma genealogia crítica do presente, Foucault buscacompreender, antes de mais nada, de que modo passamos a nos constituirhistoricamente como os sujeitos que entendemos ser hoje. Ética, para ele, adquire umsentido específico de subjetivação : é o modo como nos constituímos como sujeitosmorais em face da rede complexa de poderes-saberes em que nos encontramosenredados, e a maneira como isso se relaciona com o que chama de“ética daexistência”, ou seja, o modo específico como nos relacionamos com nós mesmos – porexemplo, como sujeitos dotados de uma forma específica de sexualidade nos conferindouma forma “verdadeira” de identidade. A (auto)constituição ética não se reduz, assim, auma “consciência de si” enquanto individualidade única, mas antes funciona como umtrabalho ativo de “resposta”do sujeito aos imperativos e códigos morais dados doexterior (e portanto não individualmente ou voluntariamente determinados), que se dá por meio de práticas incidentes sobre si mesmo em suas condutas – práticas em que o

    sujeito busca autoconhecer-se, controlar-se, explorar seus limites, pôr-se à prova, enfimtransformar-se (FOUCAULT, 1998[1984], p. 28).

    A empreitada de Foucault em buscar delimitar as condições de possibilidade queformam o terreno de tal constituição subjetiva o coloca como um leitor crítico dahistória, um “empiricista” que busca ir além da constatação de que aquilo que somos éresultado de um trabalho de contingências gestadas historicamente – a constatação deque aquilo que somos poderia, enfim, ser outra coisa, mais do que propriamente odesvelar de uma essência universal e atemporal, pronta a ser descoberta. Foucault procura em sua analítica escavar os arranjos e conexões entre descontinuidadeshistóricas de práticas concretas e situadas – práticas heterogêneas que em algum ponto(ou em vários pontos) se entrelaçaram para formar o solo relativamente estável e nuncadefinitivamente assentado sobre o qual se sustentam as configurações de saber, poder everdade que experienciamos em nosso momento presente.

    É nesse sentido que o trabalho de Foucault constitui uma genealogia: ele se abre parauma problematização histórica daquilo que assumimos ter sido sempre o que é, além dedeslocar seus próprios procedimentos metodológicos – delineados ainda em seus primeiros escritos – para o tratamento da relação entre discurso e práticas, buscandodesestabilizar as certezas e a legitimidade que supostamente marcam o tempo presente(KOOPMAN, 2013).

    De fato, a Foucault sempre interessou a ideia da experiência histórica concreta, a qual semanifesta em três níveis correspondentes, em linhas gerais, às três fases principais deseu pensamento (HOY, 1991[1986], p. 3): (1) o nível dos saberes, de como sãoformados os conceitos, as teorias e as disciplinas (nível propriamente do discurso, quefigura de forma mais explícita na Análise do Discurso de tradição francesa); (2) o níveldos poderes, da formação normativa das regras que operam sobre a constituição deregimes de verdade e formas de regulação das sociedades (incluindo aí a forma moderna

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    do biopoder); e (3) o nível da ética, ou autoconstituição moral dos sujeitos, das relaçõesdos sujeitos com eles próprios, as quais implicam também, e necessariamente, asrelações dos sujeitos com seus outros.

    Para o filósofo, existem quatro aspectos entrelaçados que formam a base do trabalhoético de autoconstituição dos sujeitos (FOUCAULT, 1998[1984], p. 26-31; 2010[1983], p. 307-314). O primeiro consiste na substância ética , a parte de si (atos, desejos ousentimentos) que se torna o material da conduta ética – o domínio sobre o qual iráincidir mais especificamente o trabalho ético. O segundo aspecto é omodo de

    subjetivação , que concerne à forma pela qual as pessoas são incitadas a reconhecer suasobrigações morais e colocá-las em prática, isto é, o modo específico pelo qual osindivíduos estabelecem uma relação com as regras. O terceiro aspecto compreende asformas ou técnicas deelaboração do trabalho ético, não apenas no sentido de adequar ocomportamento a uma dada regra, mas também de transformar a si próprio em sujeitomoral de sua própria conduta. Trata-se do que Foucault chama mais especificamente de“prática de si” ( practique de soi ). O último aspecto está relacionado ao que se poderiachamar deteleologia do sujeito: uma projeção do tipo de sujeito a que se aspira serquando se comporta moralmente.

    É possível caracterizar esses quatro aspectos em termos das perguntas que elas colocamao sujeito da ética (O’LEARY, 2002, p. 12-13; BERNAUER & MAHON, 1996, p.152), respectivamente: que parte de si mesmo deve ser submetida à prática de umcuidado de si?; por que deveríamos nos engajar nessa prática?; de que ferramentas outécnicas dispomos para realizar tal trabalho?; e que forma de ser ou estilo de vidaconstitui a finalidade com que este trabalho se realiza (em outras palavras, que tipo desujeito quero ser, e que tipo de vida quero levar)?

    Se à busca de tais respostas não corresponde propriamente um método, tomaremos aquia proposta de Foucault como um dispositivo analítico, um instrumental teórico-metodológico com que exploraremos o domínio específico que interessa a este nossotrabalho: o domínio dos possíveis modos de (auto)constituição do sujeito nas redessociais.

    Mas antes vejamos de que forma a proposta ética foucaultiana dialoga com a visão desujeito que está na base da Análise do Discurso, no sentido de identificar umaarticulação teórica possível, para além de suas especificidades. Acreditamos que taldiálogo, que já se dá entre a Análise do Discurso pecheutiana e a fase arqueológica de

    Foucault, pode ser expandido e aprofundado para melhor compreendermos o fenômenoabordado aqui, fornecendo-nos assim um instrumental consistente e relevante sobre as práticas em foco.

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    2. A EMERGÊNCIA DO SUJEITO DO/NO DISCURSO

    A concepção clássica da Análise do Discurso (AD) é a do sujeito cindido, atravessado pela ideologia e que não é a origem de seu dizer. Não-coincidente com um sujeitofalante empírico, trata-se antes de uma posição de sujeito (ou forma-sujeito ) ocupada acada enunciação a partir de um determinado local, de uma determinada formaçãodiscursiva. Conforme aponta Orlandi, sintetizando as primeiras formulações de MichelPêcheux, a forma-sujeito“é a forma de existência histórica de qualquer indivíduo,agente de práticas sociais. É examinando as propriedades discursivas da forma-sujeitoque nos deparamos com o ego-imaginário, como sujeito do discurso” (2006, p. 18).

    O sujeito se constitui, segundo essa visão, peloesquecimento daquilo que o determina:esquecimento que resulta do modo próprio de funcionamento da ideologia. A ideologiainterpela os indivíduos em sujeitos, fornecendo a estes a “realidade” como sistema deevidências, oufundo “transparente” sobre o qual se projetam, pelo simbólico, assignificações. Essa forma de assujeitamento constitui, contraditoriamente, a própria possibilidade de ser sujeito: sujeita-se à língua para ser sujeito do que se diz,significando(-se).

    Isso não significa que a interpelação é sempre bem-sucedida. Ela é sujeita ao equívoco,e é essa justamente a condição pela qual se podem deslocar os sentidos, significar novascoisas a partir de um já-dito – ou seja, significar a partir de uminterdiscurso queestabelece as condições de possibilidade do dizível.

    Ora, em Foucault as formas de subjetivação – ou (auto)constituição do sujeito – se dãosempre a partir de material compartilhado em práticas sociais, historicamente

    constituídas. Não se trata, para o sujeito, de forjar individualmente sua própriasubjetividade a partir de um arranjo voluntarista. O sujeito está sempre-já imerso emredes de poder e saber que determinam modelos de como se comportar, de como pensar.Conforme explicita o autor em uma de suas últimas entrevistas:“se agora me interessode fato pela maneira com a qual o sujeito se constitui de uma maneira ativa, através das práticas de si, essas práticas não são, entretanto, alguma coisa que o próprio indivíduoinvente. São esquemas que ele encontra em sua cultura e que lhe são propostos,sugeridos, impostos por sua cultura, sua sociedade e seu grupo social” (FOUCAULT,2006[1984], p. 276).

    Vale observar que o autor já havia descrito bem antes, em sua fase arqueológica, o

    modo como o sujeito se constitui ao articular enunciados construídos em um trabalho dearquivo e memória, reatualizando-os em cada nova prática discursiva. É na fasegenealógica, contudo, que se articula mais claramente o pensamento de que, ao problematizar as formas com as quais é convocado a se chamar de sujeito, o indivíduo pode se tornar umoutro : um outro sujeito que, embora sempre imerso nas diferentesformas de poder-saber, toma ciência dessas formas e dos limites e restrições que elas podem lhe impor.

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    É nesse sentido que se pode falar de uma constituição dupla e simultânea: a de umobjeto e a de um sujeito do discurso (NAVARRO-BARBOSA, 2004, p. 105-6)i. Emconsonância com os três grandes movimentos da obra de Foucault, conforme assinaladoanteriormente, é possível afirmar que o sujeito tem acesso a si: (i) a partir de saberesque são sustentados por técnicas ou mecanismos da ordem do simbólico (dentre eles, oenunciado no sentido foucaultiano de “função enunciativa, a não se confundir com a fraseii); (ii) a partir das relações de poder-saber implicadas por essas técnicas (relaçõesque articulam o discursivo ao político, às formas de governabilidade que incidemdiretamente sobre os corpos, em suas relações materiais); e por fim (iii) a partir de sisobre si, também sob a mediação de técnicas específicas geradoras de um “cuidado desi” dirigido a uma ética que é também uma estética da existência.

    Proposição semelhante se encontra na AD a respeito da própria constituição dasignificação, com o discurso sendo entendido como a determinação histórica dos processos de significação. Em sua busca em apreender oreal da língua em conjunçãocom o real da história , ambos resultantes de condições de produção material da vida política e social, a AD vê a constituição da identidade, também ela, como ummovimento na história – de tal forma que sujeito e sentido se constituemsimultaneamente (ORLANDI, 2012, p. 74-5).

    É ainda nessa conexão que a AD contempla a questão da ética. Além de um aspecto daconduta individual, a ética passa a ser vista como parte integrante da produção designificação, uma vez que incide sobre a relação da língua (dotada de uma realidadematerial, sujeita a equívocos) com a história na constituição dos sentidos e dos sujeitos.“É portanto uma questão geral à linguagem, ao saber discursivo e ao modo como essesaber institui uma memória na manutenção de certos sentidos e não outros”(ORLANDI, 2012, p. 158).A forma histórica que o sujeito adquire na contemporaneidade é a do sujeito jurídico(cidadão), dotado de direitos e deveres, “origem” de suas intenções e “responsável” peloque diz e pelo que deseja. Ao mesmo tempo, é o sujeito que funciona por uma memóriado dizer, à qual não tem acesso direto, uma vez que não é nele que se formam ossentidos. Sendo, no entanto, um sujeito da significação, ele é, para além da questão daresponsabilidade individual, um sujeito fundamentalmente ético e político.

    O trabalho das técnicas de si na (auto)constituição do sujeito, vale reforçar, implica umagenciamento próprio e particular dos mecanismos de subjetivação disponíveis a um

    determinado grupo social, em uma determinada contingência sócio-histórica. Dentre osmecanismos de subjetivação estão, de forma cada vez mais perceptível, os que incidemsobre os indivíduos em suas relações com as novas tecnologias. Com efeito, as novastecnologias, especialmente as tecnologias digitais, atravessam a relação do sujeito com alinguagem de modo peculiar, deslocando de forma decisiva a questão da autoria e aconexão entre produção, circulação e recepção dos textos, entre outros aspectos.

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    O que diz Gregolin (2007) a respeito dos meios de comunicação e da mídia em geralaplica-se igualmente, acreditamos, à relação entre subjetividade e novastecnologias/plataformas digitais (aí incluídas as redes sociais). Conforme ressalta aautora, a subjetividade não se circunscreve à esfera do indivíduo; ela opera em todos os processos de produção social e material. Dessa forma,

    o sujeito moderno é um consumidor de subjetividade: ele consome sistemasde representação, de sensibilidades. A subjetividade está em circulação, éessencialmente social, assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. Colocando em circulação enunciados que regulamentam asformas de ser e agir, os meios de comunicação realizam um agenciamentocoletivo de enunciação, entrecruzando determinações coletivas, sociais,econômicas, tecnológicas etc. (p. 21)

    Ora, encontramo-nos, como sujeitos da/na contemporaneidade, nos limites damodernidade, em pleno movimento de experienciar e tentar entender o modo defuncionamento dessas determinações, bem como seus possíveis “pontos de fuga, deresistência, de singularização” (GREGOLIN, 2007, p. 23), o que torna a busca portentar fazer uma “genealogia do presente”, conforme sugere Foucault,tarefa ainda maisdesafiadora.

    3. A EMERGÊNCIA E O CULTIVO DA SUBJETIVIDADE EM REDE

    Desde seu aparecimento, particularmente a partir do início dos anos 2000, redes sociaiscomo o Twitter, o Instagram e o Facebook têm atraído milhões de usuários ao redor domundo, que fazem de suas visitas a esses sites um hábito já integrado à rotina diária. Aocriarem perfis em tais espaços, muitos desses usuários passam a portar uma espécie de“crachá social”, uma etiqueta de identificação que,atualizada com frequência econstância variáveis, pode se tornar um perfeito dispositivo para o indivíduo apresentar-se tal como se vê, como espera ser visto e como se relaciona com os outros.

    Há lugar, de fato, para uma variedade de atividades e formas de expressão nas redessociais. As culturas que aí emergem podem ser as mais variadas, a depender dosinteresses e vínculos que se formam entre os membros das comunidades formadas.Conforme a definição de boyd & Ellison (2008, p. 211), redes sociais são “serviços deInternet que permitem aos indivíduos (1) construírem um perfil público ou semipúblicodentro de um sistema delimitado; (2) articular uma lista de outros usuários com quemeles compartilham uma conexão; e (3) visualizar e atravessar sua lista de conexões comaquelas criadas por outros dentro do sistema”. Tipicamente, um perfil consiste em uma página exclusiva e personalizada, gerada pelo sistema a partir de uma série dedescritores fornecidos por seus “proprietários”,tais como idade, local de habitação e/ouorigem, local de trabalho e/ou estudo, interesses pessoais (bandas, filmes, livros

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    favoritos), que figuram emuma seção chamada “sobre mim” – além de uma foto deidentificação, cuja inclusão, embora não obrigatória, é fortemente encorajada.

    No caso específico do Facebook, em que focaremos nossa discussão, os usuários quefazem parte da mesma “rede” seletiva, e que portanto são “amigos” no Facebook , podem visualizar livremente os perfis ou linhas do tempo uns dos outros, a menos que o proprietário decida negar permissão a um ou outro desses amigos. Por outro lado, hátambém os que permitem acesso irrestrito dos conteúdos a qualquer usuário, amigo ounão. Para se tornar amigo de alguém no Facebook, é preciso enviar uma solicitação deamizade, que poderá ou não ser aceita, ou bem aceitar a solicitação que lhe for feita.Uma vez iniciada a rede de amigos de um usuário, nomes outros lhe serão sugeridos, a partir de contatos mútuos que podem rapidamente se multiplicar. O número de amigose/ou seguidores que um proprietário possui em um determinado momento – o que podevariar de umas poucas dezenas a uns tantos milhares – é normalmente exibido aqualquer visitante de seu perfil ou linha do tempo, a menos que este também restrinja oacesso a tal informação.

    Assim como a maior parte das redes sociais, o Facebook permite a seus usuáriosdeixarem mensagens nas páginas de perfil ou linhas do tempo dos amigos, o que podeser feito em privado (inbox ), em forma semelhante a um e-mail; ou em aberto, sejacomo resposta a um post compartilhado nesses espaços, seja por uma nova mensagem aí postada. Os posts em si, bem como os comentários, podem consistir apenas em textos(geralmente mais curtos), ou podem incluirlinks , arquivos e/ou documentos de foto,áudio e vídeo, ou ainda uma combinação de algumas dessas modalidades. Ainda comoum recurso de destaque no Facebook, há a opção “curtir” (like), que pode seracrescentada para cada intervenção (post ou comentário) ou aplicada a uma páginainstitucional ou página de fã, que são outras modalidades de páginas-perfil disponíveisna rede social.

    Dessa forma, a página do perfil ou linha do tempo do usuário vai se delineando a partirdo acúmulo sequencial – acuradamente registrado – dos diversos posts e comentários aeles adicionados. Na modalidade linha do tempo, observa-se a construção de umatrajetória do usuário sob a forma de um itinerário, ou uma narrativa cronológica e linearsobre aquele indivíduo – com o diferencial de que tal narrativa pode, inclusive, terapagadas, por deliberação de seu protagonista, quaisquer intervenções formuladas, presentes ou passadas, em qualquer ponto da trajetória.

    Apenas essa breve descrição geral do funcionamento da rede social já suscita algumasreflexões. Aparentemente, estamos diante de uma plataforma de comunicação ampla ede múltiplo potencial que funciona como uma “ordem do discurso”com configurações bem particulares. Um conjunto de regras de produção e circulação do discurso operaaqui no sentido de multiplicar as práticas discursivas ao passo que se trabalha,simultaneamente, para“conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimentoaleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”(FOUCAULT, 1996[1971], p.

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    9). Nessa ordem do discurso, a visibilidade – fundamentalmente, uma visibilidade de si – se apresenta como um elemento estruturador da experiência. Sob a forma de umespetáculo em permanente processo, abre-se espaço para um possível “cultivo de si”,substanciado em práticas discursivas verbais e não-verbais que vão, em maior ou menorgrau, alimentanto o(s) perfil(is)-identidade.

    Mas manter os perfis em funcionamento está longe de constituir uma prática deexpressão “livre”, isenta de restrições. Estas são muitas, e se dão em múltiplos níveis. Além de questões propriamente técnicas (limite de tamanho dos posts, por exemplo), há políticas de privacidade e “decoro”,restringindo, por exemplo, a veiculação demensagens de teor racista ou homofóbico por meio do banimento temporário ou bloqueiodo usuário. Há ainda o fator “fornecimento de dados”, considerado central parao funcionamento do próprio sistema, uma vez que a exposição pública de informações,como relatos pessoais, fotos e imagens torna os conteúdos abertos à captura potencial por programadores de aplicativos e outras empresas com o objetivo de guiar suas açõesde marketing dentro de uma gama possível de interesses dos usuários (FUCHS, 2012;van DIJCK, 2012). Há também a possibilidade de esses conteúdos serem visualizados por terceiros que, por meio de algum fio das conexões em rede, podem eventualmenteconstituir-se como leitores indesejáveis. Há os que postam muito, e pregam mensagenscujo cunho não se deseja ler – embora haja sempre, lembremos, a opção de exclusão.

    A questão que nos interessa mais de perto aqui, todavia, é se o cultivo de um perfilnuma rede como o Facebook pode constituir uma forma de ética, no sentidofoucaultiano: uma forma de relação moral de si para si. Mais precisamente, buscamossaber: que forma toma essa (auto)constituição subjetiva? Que modos de subjetivação aregulam? Que efeitos suscita? Que relação com os outros ela propicia?

    Consideremos o caso de uma figura pública qualquer, com alguma notoriedade e que possa ser reconhecida por seu trabalho ou por alguma outra afiliação. Nãonecessariamente uma “celebridade”.É possível que ela opte por manter uma páginaregular (não aquela específica para figuras públicas, feita justamente para ser seguida oucurtida) e que nesse espaço possa monitorar mais de perto o fluxo de postagens, além,claro, de administrar as amizades, aceitando ou não a solicitação de amizade de quemquer que manifeste interesse. Não apenas espaço de divulgação de seu trabalho, talespaço na rede social poderia ser usado como painel da vida cotidiana de uma figura pública, incluindo-se aí de fotos, vídeos e comentários. Pela categorização de Foucault, poderíamos dizer que a substância ética sobre a qual incide a subjetivação desseindivíduo não se restringiria ao cultivo da figura pública se dirigindo a seu público, um público maior, proporcionado pelos recursos da mídia eletrônica. Poderia ser também oespaço para se professar preferências religiosas e políticas, posicionamentos sobrequestões em discussão na sociedade, fórum de solidariedade, repúdio ou até mesmomobilização em massa. Far-se-ia, dessa forma, intervir no intradiscurso outrasformações discursivas provavelmente não dizíveis no contexto de uma ação profissional

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    mais específica (a promoção de um evento, ou o lançamento de um livro, por exemplo).Ora, tais espaços parecem ter se tornado cada vez mais comuns, por mais que ainda preservem traços predominantemente “publicitários”, promovendo as atividades profissionais de seus proprietários.

    É preciso, porém, percorrer com mais vagara “linha do tempo”de uma tal figura pública – prática essa talvez pouco exercitada de fato, em razão da quantidade deamigos e do fluxo por vezes muito rápido de postagens, comentários ecompartilhamentos, entre outros fatores – para começar a responder melhor as perguntassobre que parte(s) de si incide o trabalho de (auto)constituição do sujeito, i.e. sua

    substância ética, e sobre como isso se materializa, i.e. suaelaboração . Um enunciadoirônico postado aqui, um elogio ali, ou uma mera exclamação de felicidade acolá, écapaz de gerar,sem grande esforço (a depender do grau de “popularidade” de seuautor), uma cascata de respostas ou simples curtidas que reforçam o efeito singular doque é dito. É para conjurar seu acaso, nos termos de Foucault, que os comentários,muitas vezes, vão se sucedendo, multiplicando e fazendo reverberar a presença do seuautor num espaço que, a princípio, é extensão de seu modo de estar no mundo.

    Como indivíduos interagindo em um bar ou em uma festa, sem a suposta barreira dadistância física, os interlocutores, por meio desses comentários, acabam por amplificar odiálogo da rede social de modo a projetar(se não “assegurar”) uma relação de proximidade – uma relação de igualdade. No entanto, tal interação não deve ser lidasimplesmente como uma troca de turnos em um jogo no qual os interlocutores secolocam em posições subjetivas análogas. O que se destaca, talvez mais singularmente,como efeito de sentido aqui é o aprofundamento da presença do autor/proprietário da página de forma a restituir, por correlação, sua posição hierarquicamente assegurada, ouseja, a do indivíduo que pode dizer o que quer, em um contexto outro que o seu mais“habitual”, e ainda assim, ou mesmo por causa disso, exercer uma certa ascendênciasobre o discurso. O mesmo vale, certamente, para os casos em que a resposta se dá pelaausência de marca verbo-visual: pelo o silêncio, pelo não-comentário.

    A abertura possibilitada pelo trânsito livre (isento de mediação expressa) doscomentários, ao mesmo tempo emque “libera”o autor de seu papel de“formador deopinião” diante de um público cativo, torna possível que essa relação se mantenhareconfigurada de outras formas, e sem que disso se possa ter controle. Vislumbra-se aíum modo de subjetivação – o segundo dos quatro aspectos da (auto)constituição éticaconforme Foucault – que constitui simultaneamente o sujeito e seu outro: um modo desubjetivação que se caracteriza pela manutenção do diálogo sem garantias, o diálogoque permite que o pré-estabelecido e o esperado (“ jogue o meu jogo: eu falo e vocêcomenta”) convivam com o novo e inesperado (“jogue o jogo comigo e diga o que pensa”). Assim é que vão se situando os sujeitos diante das regrasda ordem do discursoque se lhe apresentam, buscando dominar em suas práticas aquilo que nela poderiahaver de“acontecimento aleatório”.

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    Tais reflexões, defendemos aqui, não se restringem a indivíduos a quem se possaatribuir o título de figura pública propriamente dita. Acreditamos que os mesmosmecanismos de funcionamento do discurso possam se dar com qualquer usuário. Emcada perfil pode-se fazer ecoar uma espécie de“função-autor” (FOUCAULT,2001[1970]). Em seu próprio“domínio”, o usuário pode fazer datimeline o espaço deconstrução de uma narrativa panorâmica de sua experiência cotidianaiii. Valendo-se derecursos que lhe permitem reativar, “documentar” tal experiência – como por exemplo acomposição de álbuns de fotos de viagens ou de interação com colegas de trabalho eescola, membros da família, ou animais domésticos – , os proprietários seguem“autorando” suas biografias instantâneas, provisórias e facilmente acessáveis.

    Por meio das práticas discursivas que se vão tecendo nesse processo, o interesse (oumesmo veracidade) dos “fatos” em si frequentemente cede o foco principal para ocultivo de uma relação entre autor e interlocutores que implica um cuidado com a projeção subjetiva responsável pelo seu dizer (ou fazer ver), ao mesmo tempo em quemantem aberto o diálogo, ativado a partir de um encontro de dizeres nem sempreesperados e mesmo potencialmente desestabilizadores de subjetividades assumidascomo pré-existentes.

    O usuário que assim experimenta as diversas posições possíveis que um autor podeassumir em seus domínios vai se (auto)constituindo eticamente, de modo a encenardiversos aspectos de si, ora desafiando uma imagem pré-construída do detentor de umsaber ou de uma materialidade corpórea “estável” (ainda que em constante mutação),ora fazendo-se valer desta mesma imagem para estabelecer uma relação mais horizontalcom seus interlocutores, ou ora ainda para fazer intervir um leitor-observador atento docotidiano mais comum. Nesse processo, os sujeitos não apenas se submetem às regrasde um jogo que creem poder conduzir, e que necessariamente implica o outro em umacorrelação, mas também trabalham, simultaneamente, o modo como essas regrasconstituem sua própria subjetividade, operando aquilo que Foucault, em suacategorização, chama deelaboração do trabalho ético de si .

    Ao abrir-se/expor-se à diferença – sentir-se outro diante do mesmo, ou sentir-se mesmodiante do outro – pode-se ver operar, em um nível mais aprofundado de observação, ummovimento que nasce da relação entre o sujeito de uma prática ética diante de outrossujeitos que, com ele, irão constituir, no acontecimento enunciativo, o projeto do que pretendem se tornar (a teleologia de si ): ou seja, o tipo de sujeito moral que se pode ser por meio de um cuidadoso e constante trabalho de si sobre os outros e de si sobre si.

    Investir em uma subjetivação particular em um ambiente específico como é a redesocial implica, de acordo com essa leitura, configura uma aposta, um investimento sobreo qual não se pode garantir um“retorno de sucesso”. Ao acompanharmos as trajetóriasdos usuários do Facebook, é nos dado ver emergir uma subjetividade não-coesa, tecidafundamentalmente no acontecimento promovido pela enunciação discursiva, fazendoentrecruzar no fio do discurso o equívoco da língua e o do pré-construído da ideologia e

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    da história. Uma tal subjetividade, que é ética pois é fundamentalmente uma resposta desi para si e de si para os outros, consiste em resultado a ser inventado, não prescrito.

    CONSIDERAÇÕES FINAISA hipótese de que o sujeito se (auto)constitui eticamente por meio de práticasdiscursivas no domínio das redes sociaisnão supõe que resida aí o “todo” de suaidentidade. Como já nos ensinara a AD desde seu princípio, e como procuramosressignificar aqui, não existe um “todo”, uma identidade essencial do sujeito,anterior aoingresso na ordem do discurso, mas antes um processo permanente de construção eexperimentação – no caso em questão, um processo que incide com maior intensidadesobre uma região específica da subjetividade: a substância ética descrita no últimoFoucault. A ênfase que estedá ao “si” no trabalho realizado pelas práticas de si nãonosdeve conduzir à falsa percepção de uma consciência autônoma, que exerce plenamentesuas escolhas e é capaz de forjar uma ética nova, irrestrita por imperativos externos.Outrossim, o trabalho é sempre de uma negociação dentro de relações de poderconstitutivas da experiência e, portanto, sempre presentes (LAIDLAW, 2014). Tal éticada existência implica, fundamentalmente, um cultivo de práticas cuja aspiração idealconduziria a uma minimização das formas de dominação social a que se pode estarsujeito em uma determinada época.

    Nas breves reflexões que tecemos aqui, procuramos avançar a hipótese de que asubstância ética do fazer-de-si reside na experimentação com – e no limite, na“desassujeição” a – uma imagem pública pré-construída em busca de uma ampliação doespectro de atuação no espaço do“pensamento público”. Ao estabelecer um canal dediálogo mais imediato e com um público diverso, formado por “amigos” nãonecessariamente advindos de comunidades pré-existentesoffline , os usuários doFacebook expõem o elemento supostamente homogêneo, vinculado à faceta mais publicamente visada de sua subjetividade, a uma abertura, a um encontro com o outroque o objetifica, ao mesmo tempo em que o subjetifica de uma maneira nova. E nesse processo, por se tratar de um diálogo (ainda que efêmero e tangencial), ele afeta deforma correlativa também a substância ética dos sujeitos que se fazem seusinterlocutores, num jogo cujas regras vão sendo construídas em plena prática de jogar.

    Também vai-se configurando nesse espaçouma “resposta ao presente”, àsdeterminações históricas que nos interpelam a agir de determinadas formas, a nosidentificar com determinadas posições e assumir determinadas identidades sociais – uma resposta ética a imperativos morais, que por sua vez, podem ser refratados(desestabilizados) como resultado mesmo das práticas discursivas, dos encontroscontingentes e concretos tornados possíveis, no caso aqui, pela participação em redessociais.

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    Como conclusão parcial, a partir de apontamentos que certamente demandariam umaprofundamento maior em outro momento, podemos dizer que o trabalho de(auto)constituição ética dos sujeitos tal como se pode configurar nas redes sociais tornafortemente imbricados – e portanto dificilmente separáveis – os quatro aspectos queformam sua base, conforme Foucault: a substância ética, o modo de subjetivação, aelaboração do trabalho ético e a prática (teleológica) de si. Mutuamente implicados, osquatro aspectos concorrem, mais do que para uma constituição estável e homogênea dosujeito, para uma experimentação com outras possíveis identidades, negociadas a cada prática concreta e sujeitas a permanentes deslocamentos.

    O modo particular como são tecidas essas práticas proporciona aos sujeitos, em maiorou menor grau, uma “ontologia crítica” de si mesmos (que é, ao mesmo tempo, uma“ontologia do presente”): um posicionamento, umethos ou atitude filosófica na qual,conforme nos aponta Foucault (1997[1984], p. 319), a crítica do que somos ésimultaneamente a crítica histórica dos limites que nos são impostos e a possibilidade deo transpormos, em um constante processo de (re)invenção de nossas subjetividades.

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    * Docente do Departamento de Letras, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

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    NOTAS1 E é dentro dessa concepção que se justifica a grafia entre parênteses adotada aqui para o termo“(auto)constituição”. 2 O que caracteriza um enunciado, para Foucault, é o fato de sua repetibilidade, de podermos atribuir-lheuma posição de sujeito, ou seja, de podermos determinar “qual é a posição que pode e deve ocupar todoindivíduo para ser seu sujeito” (FOUCAULT, 2004[1969], p. 108).iii Cabe ressaltar que Foucault trata da função-autor como mais um mecanismo de controle da produção ecirculação do discurso, não se constituindo, portanto, uma posição de “livre expressão do pensamento”,isenta de relações de poder-saber.