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Stela Guedes Caputo - Sobre Entrevistas

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  • COLEO ENSINAR JORNALISMO

    Stela Guedes Caputo

    SOBRE ENTREVISTAS Teoria, prtica e experincias

    http://groups.google.com.br/group/digitalsource

  • O que normalmente se chama de "discurso pblico" o conjunto das

    formas pelas quais a sociedade "conversa" sobre poltica, comrcio, religio,

    cultura e vida social. O jornalismo constitui, claro, uma dessas formas. Mas no

    interior da prpria forma existem formatos editoriais em que a conversa

    tecnicamente privilegiada.

    este o caso da entrevista, um gnero que, apesar de todas as

    transformaes das tcnicas de comunicao, continua marcando poca na

    mdia contempornea. Em jornal impresso, rdio, televiso ou mesmo na

    Internet, pode-se colar ao desafio da boa entrevista a palavra "arte".

    da entrevista que trata este livro de Stela Guedes Caputo. Aqui se

    torna bem claro que esse gnero sintetiza elementos dos princpios

    fundamentais de elaborao do texto jornalstico, que so a humanizao, a

    vulgarizao e a autoridade. A primeira, de natureza francamente afetiva, pode

    apelar para a dramatizao, por meio dos detalhes psicolgicos da entrevista,

    com o objetivo de fazer o leitor compreender (simpatizando, emocionando-se)

    os aspectos no imediatamente evidentes de um acontecimento; a segunda diz

    respeito s possibilidades de se manter no nvel da linguagem comum de uma

    interlocuo, graas a exemplos, metforas, parbolas, etc; a terceira suscita o

    reconhecimento dos argumentos de autoridade, na medida em que prestigia a

    palavra do entrevistado, mas tambm o prprio discurso do jornal.

    Stela empreende um levantamento das diferentes maneiras de se

    conduzir uma entrevista.

    Seguindo sua prpria experincia profissional, complementados por

    dilogos com agentes diversificados. Seu trabalho se coloca a meio caminho

    entre a esfera da prtica jornalstica e a reflexo terica, inclusive com

    momentos de interesse abertamente miditico, a exemplo da entrevista que

    ousa fazer com um participante de grupos de extermnio do submundo carioca.

    Tudo isso confere a este livro um interesse pedaggico irrecusvel para

    estudantes ou profissionais de jornalismo, mas tambm ao pblico que busque

    ampliar conhecimentos sobre os bastidores da prtica informativa.

    Muniz Sodr

  • COLEO ENSINAR JORNALISMO

    Coordenador: Clvis de Barros Filho

    Sobre entrevistas: teoria, prtica e experincias Stela Guedes Caputo

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Guedes Caputo, Stela

    Sobre entrevistas : teoria, prtica e experincias / Stela Guedes. Petrpolis, RJ : Vozes,

    2006.

    ISBN 85.326.3306-4

    Bibliografia.

    1. Entrevistas I. Ttulo.

    06-1080

    CDD-080

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Entrevistas : Teoria, prtica e experincias 080

    Stela Guedes Caputo

    Sobre entrevistas

    Teoria, prtica e experincias

    A EDITORA VOZES

    Petrpolis

    (c) 2006, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Lus, 100 25689-900 Petrpolis, RJ Internet:

    http://www.vozes.com.br Brasil

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poder ser reproduzida ou

    transmitida por qualquer forma

    e/ou quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada

    em qualquer sistema ou banco de dados sem permisso escrita da Editora.

    Editorao: Maria da Conceio Borba de Sousa Projeto grfico e capa: AG.SR Desenv.

    Grfico

    ISBN 85.326.3306-4

    Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

  • Agradecimentos

    Escrever um livro, por pequeno e simples que seja, claro, um processo.

    Uma experincia que no comea quando nos sentamos para escrev-lo e no

    se limita a este livro. Comea antes, bem antes e segue conosco para alm do

    que publicamos. Muitas pessoas partilham desse espao aberto no tempo e

    colaboram com nosso ofcio mesmo sem saber e de incontveis formas. Sem

    elas, nada seria possvel. Por isso, tenho tanto a agradecer. minha amada

    me, Dulce Caputo Gomes (in memoriam), companheira e amiga para sempre.

    Aos meus amados avs Maria Caputo e Ary Gomes (in memoriam). Aos meus

    filhos pelo companheirismo e amor. Ao meu ex-marido, Nelson Guedes, pai de

    meus filhos, pelo que vivemos e pelo apoio de uma vida inteira. sua esposa,

    Alba. A meu pai, Expedito Saraiva, a meus irmos e irm, por nossa vida.

    Palmira de Ians, minha querida, sempre. A Maristela Possadas, pela amizade,

    pelo amor, entusiasmo, pacientes leituras e correes. Ao Camillo e ao Dida,

    pelo exemplo de coragem de viver sonhando e lutando. Aos amigos, Leonardo

    Boff, Francisco Moras, Volney Berkenbrock, Eduardo Coutinho, Augusto Csar,

    Andr Prfiro e Andr Dias pelas sugestes e apoio.

    Agradeo ao Professor Pedro Rodolfo Bod que h muito, muito tempo

    me sugeriu caminhos preciosos e de quem nunca esqueci o entusiasmo e a

    paixo pelo que se faz. querida amiga Snia Norberto por sua amizade e

    dedicao educao.

    Agradeo aos amigos que trabalham na Associao de Docentes da UFF

    (Aduff): Alitane, Luiza, Paulinho, Mnica, Nildomar e Sheila. Vocs tornam a

    minha vida muito melhor, todo dia. Aos diretores dessa entidade e professores

    que lutam junto com ela para mudar esse pas e em defesa da educao

    pblica. Particularmente pelo apoio de: Paulo Cresciulo, Marcelo Badar,

    Jacira, Ktia Lima, Hel, Srgio Aboud, Juarez, Marina Barbosa, Andr Feitosa,

    Elaine, Snia Lucio, Marcos Barreto, Waldyr, Wilma, Adriana, Maria Lcia,

    Raphael, Jairo Paes e Ktia Maria. Aos amigos Iara e Ademir pela luz. A Flor,

    minha amiga, parceira e uma das melhores jornalistas que conheo. A Coaracy

  • Guimares, meu amigo querido e companheiro de lutas que no cessam. A

    Manuela, Schuch e Ndia pela amizade absurda. A Ana Lcia, Karina, Darlene,

    Michele, Carlinhos, Janeci, Katinha, Isabel, Nelson Freitas, Cludia Santiago e

    Vito Giannotti, pela amizade e torcida. Ao Antnio, da Livraria da Travessa

    (Ouvidor), pelo carinho, imensa ajuda e por sempre me dizer que tudo dar

    certo, "nem que seja l no final".

    A Vera Lcia Fagundes de Souza, amiga de todos os dias, para o que der e

    vier. A Vera Lcia Andrade de Melo pela f, pelo amor, pela confiana e a Victor

    pelo incentivo e fora. A Vincius, pelas crticas constantes e incessantes. A Beth

    e a Vera Gonalves por nossas mos sempre juntas, nas tristezas e alegrias. A

    Gisele, por nossas conversas que amenizam momentos difceis. A Mrio e

    Edson, meus amigos muito, muito amados. A Max Rocha. A Odilon Horta pelo

    apoio durante o tempo em que trabalhamos juntos, perodo em que a maioria

    dessas entrevistas foi realizada. Agradeo a Thelma pela amizade e por tantas

    conversas incentivadoras. Ao jornalista Paulo Oliveira com quem aprendi

    muito. A Erick Felinto, pelo apoio. Ao Frido, amigo, ainda que longe, bem longe,

    mas sempre presente.

    A Carlos Alberto, do Sindipetro-RJ, pela colaborao fundamental a este

    trabalho, e ao fotgrafo e sempre parceiro Samuel Tosta, pelas fotos. As

    muitssimo amadas, respeitadas e admiradas amigas do Grupo de Estudos

    sobre Cotidiano, Educao e Culturas (Gecec) da PUC-Rio, em particular,

    Professora Vera Candau pelo incentivo. uma honra estudar, duvidar, discutir,

    escrever e partilhar sonhos com vocs. Aos professores do Departamento de

    Educao da PUC-Rio, principalmente s professoras Zaia Brando, Roslia

    Duarte, Snia Kramer e Isabel Lelis, pelo entusiasmo e incentivo. Agradeo

    ainda ao meu adorado amigo e professor Leandro Konder. Agradeo aos

    assessores de alguns entrevistados cuja colaborao foi fundamental para as

    autorizaes das publicaes das entrevistas neste livro. Aos entrevistados que

    dividiram comigo seu tempo, seus pensamentos e histrias. Agradeo

    especialmente aos alunos dos olhos apaixonados que duvidam, criticam,

    sugerem e tentam descobrir porque realmente querem escrever. Por fim,

    agradeo imensamente ao jornalista Eugnio Bucci pelas sugestes e

    conselhos. E, sem dvida, agradeo ao Hari, evidentemente.

  • Para meus filhos Gabriela e Gregrio, com um amor sem centro, sem

    bordas e infinito como o universo.

    Para Nelson Guedes, pai de meus filhos e companheiro para sempre.

    Para meu amado amigo Camillo, porque caminhamos sonhando.

    "Escrever encontrar o movimento certo, a velocidade certa, uma

    maneira de danar."

    "Escrever a vida inteira o que nos ensina a escrever."

    "No conseguimos escrever sem a fora do corpo. algo que

    provavelmente tem a ver com amor." (Do filme Aquele amor, 2001)

  • Sumrio

    Apresentao Leandro Konder

    Prefcio Eugnio Bucci

    1. Antes das entrevistas

    1.1. O sentido de nossa escrita

    1.2. A entrevista (aproximaes e conceitos)

    1.3. A construo receptiva da entrevista

    1.4. A construo ativa da entrevista

    1.5. O tempo e o texto (ou de jornalistas, abelhas, papagaios e flores)

    1.6. Jornalismo e pesquisa

    1.7. A procura do bom texto (Tiros em Columbine)

    1.7.1. Dos acertos e dos erros

    1.8. O texto do jornalista, o texto do pesquisador e o demnio da

    perversidade

    1.9. Sobre a palavra-flor que triste e sobre uma confisso

    1.10. Das entrevistas que seguem

    2. Notas gerais sobre entrevistas (ou 15 coisas que no podemos esquecer

    quando entrevistamos)

    1. Pergunte primeiro se pode...

    2. Esteja informado sobre o entrevistado

    3. Faa um roteiro

    4. 1, 2, 3, testando...

    5. Na dvida, senhor ou senhora

    6. Oua de verdade

  • 7. No dispute com o entrevistado

    8. No roube a idia de ningum

    9. Reconhea o limite

    10. Desconfie da memria

    11. No invente ningum

    12. Tenha paixo

    13. Pergunte por ltimo...

    14. Solte o fio

    15. Escolha os temas e edite

    15.1. Organize os eixos

    15.2. Eleja o ttulo e olhos

    15.3. Revise e publique

    3. Entrevistas com...

    Boaventura de Souza Santos (jan./2003)

    Nota: O complexo de Patolino

    Csar Benjamin (fev./2004)

    Nota: A entrevista longa

    Dilma Roussef e Jos Eduardo Dutra (jan./2003)

    Nota: A entrevista coletiva

    Diolinda Alves (mar./2004)

    Nota: Planejar, perguntar e fotografar

    Eduardo Moreira e Ins Peixoto (set./2003)

    Nota: Entrevistar a quem amamos

    Eugnio Bucci (nov./2002)

    Nota: Pessoalmente ou por correio eletrnico?

    Helosa Helena (fev./2004)

  • Nota: Entrevistas por telefone

    Joo Pedro Stdile (jan./2003)

    Nota: Aprender com os erros

    Leandro Konder (jan./2003)

    Nota: Para concordar ou criticar

    Leonardo Boff (1) (ago./1997)

    Leonardo Boff(2)-(jan./2003)

    Nota: Pautas diferentes para o mesmo entrevistado

    Marcelo Gleiser (ago./2002)

    Nota: Entrevista s vezes barro (porque s vezes vira outra coisa)

    Marina Barbosa (nov./2005)

    Nota: Quem so as fontes?

    Muniz Sodr (set./2002

    Nota: Pensar sobre a prpria prtica O papel da universidade

    MV Bill (jul./2002)

    Nota: Aceitamos todas as condies?

    Nega Giza (mar./2004)

    Nota: O complexo de pernalonga

    Vito Giannotti (ago./2002)

    Nota: Jornais sindicais e outros especficos Fazer sempre da melhor

    maneira em qualquer veculo

    Entrevista com M.A. (membro de grupo de extermnio)

    Nota: O complexo de coiote

    Metaentrevista com Muniz Sodr (set./2002)

    Ultima nota: Perguntar como a criana pergunta pingue-pongue infinito

    Referncias bibliogrficas

  • Apresentao

    A histria da nossa amizade comeou com o ingresso de Stela no curso

    de mestrado em educao da PUC-Rio. Ela acompanhava as aulas e eu

    acompanhava sua trajetria de crescimento.

    Na hora do cafezinho, o papo corria solto, a gente trocava idias sobre o

    Brasil, sobre o mundo e sobre os problemas da nossa frgil condio humana.

    Foi a que eu comecei a me dar conta da fora da Stela, uma mulher que

    cuidava da casa, dos filhos e, apesar das dificuldades "matando um leo por

    dia" , a teimosa criatura conseguia cumprir as tarefas da ps-graduao. De

    onde ela tirava a energia para as sucessivas batalhas acadmicas? difcil dizer.

    Mas as metas foram alcanadas.

    Fui defesa de tese, concluso do doutorado. Stela tinha investigado

    como crianas pequenas viviam a participao nos rituais de candombl. E,

    com a delicadeza que lhe peculiar, trouxe para o auditrio da PUC as famlias

    humildes que a tinham ajudado durante a pesquisa. Acho que nunca o

    auditrio Padre Anchieta ficou to simpaticamente colorido!

    Paralelamente aos estudos universitrios, Stela trabalhava na esfera

    sindical como jornalista e ainda como professora de jornalismo. As condies

    da atividade profissional lhe permitiam participar sempre apaixonadamente

    da vida poltica, fiel sua revolta contra as injustias sociais. E lhe

    permitiam, tambm, dedicar-se ao ensino.

    Para ser a excelente entrevistadora que ela , e para poder dar aos

    estudantes as dicas que se encontram neste livro, Stela no perde contato com

    a cultura, especialmente com a literatura e as artes. Para ensinar melhor, est

    sempre aprendendo, lendo os seus escritores preferidos, tentando entender

    melhor a realidade atual.

    Parece que a minha querida amiga arranjou um jeito de reunir e cultivar

    suas grandes paixes: a luta poltica, a educao, o jornalismo, a literatura e as

    artes. O livro Sobre entrevistas revela isso.

  • No sei o que pensam sobre Stela as pessoas que ela entrevistou.

    Desconfio, porm, que no sou o nico entrevistado a dizer: a discreta e

    competente entrevistadora deveria trocar de lugar comigo. Tive a impresso de

    que me sentei do lado errado da mesa. Stela uma das pessoas mais

    interessantes que conheo. Eu que devia entrevist-la.

    Leandro Konder

  • Prefcio

    Do dever ao prazer

    Tem a ver com treino, tem a ver com formao, tem a ver com a nossa

    convico. O jornalismo, sendo uma funo social, um servio ao pblico,

    sociedade, ao cidado, requer de seus praticantes que, antes de escrever,

    pautar, editar, apurar ou veicular um texto jornalstico, pensem nos direitos,

    nas necessidades e no interesse do leitor, do ouvinte, do telespectador, do

    internauta, o nico destinatrio da notcia. As perguntas que a tudo precedem

    dizem respeito ao cidado:

    1) Ele tem o direito de receber esses dados, de tomar conhecimento de todos eles?

    2) Ele precisa disso, mas precisa de fato, ou seja, a que necessidades relevantes desse

    consumidor legtimo de notcias esse texto corresponde?

    3) Ele vai querer ouvir, ver ou ler a reportagem, quer dizer, ele est devidamente

    alertado para o fato de que precisa dessa reportagem e, portanto, vai formar a sua

    vontade de conhec-la?

    4) Ele tem conscincia da urgncia com que ele precisa tomar conhecimento do texto?

    5) Ele vai desejar tomar (e no apenas querer) conhecimento dessa reportagem?

    Essas perguntas merecem comentrios sucintos. Cada uma delas

    sintetiza um crivo para separar a notcia relevante da notcia suprflua (a no-

    notcia), ou o texto jornalstico que faz diferena daquele que poderia ser

    deixado pra l. O bom texto jornalstico : 1) subordinado ao direito

    informao; 2) necessrio; 3) percebido e reconhecido como necessrio; 4)

    urgente; 5) dialoga de perto com o desejo daquele a quem se destina.

    Vamos pensar um pouco mais sobre essas cinco perguntas. Comeando

    pela primeira: "Por que o cidado tem o direito de receber os dados que a

    reportagem vai tornar pblicos?" uma interrogao crucial. Se os dados que

    so apresentados se baseiam em coleta ilegal de informao, como escutas

    clandestinas, ou se eles resultam de uma invaso deliberada de privacidade,

    ou, ainda, se eles resultam da leitura de documentos roubados, o pblico no

    tem o direito de conhec-los. No tem, a no ser em situaes excepcionais e,

  • destas, no o caso de tratar aqui. Antes de tudo, aquilo que se publica precisa

    obrigatoriamente corresponder ao direito informao.

    Este d o piso e o teto da informao publicada. A instituio da

    imprensa tem o dever de buscar tudo aquilo que o pblico tem o direito de

    saber e, no teto, no est autorizada a ir alm disso.

    A segunda pergunta se refere, alm do direito, necessidade do leitor,

    do ouvinte, do telespectador, do internauta. Um texto jornalstico que esteja

    dentro do direito informao mas que seja absolutamente dispensvel para

    aqueles a quem se destina, convenhamos, no merece ser publicado. O

    jornalista um soldado das necessidades do seu pblico e a elas deve estar

    atento a cada linha, a cada vrgula, a cada silncio. Exatamente disso decorre a

    terceira interrogao: "Por que o pblico, seja ele um pblico amplo ou um

    pblico especializado ou segmentado, vai formar a sua vontade na direo de

    gastar o seu tempo e dedicar alguns minutos para entender a notcia que a ele

    oferecida?" De nada adianta uma reportagem importantssima,

    relevantssima, utilssima se desses superlativos todos o pblico no estiver

    avisado. Ela ser ignoradssima. Uma boa matria capaz de proclamar, com a

    devida clareza, a sua prpria relevncia. o seu senso de urgncia implcito.

    O que nos conduz quarta interrogao: "Por que o pblico vai

    entender que tomar conhecimento dessa reportagem uma necessidade

    urgente?" Ou, em outros termos, como que o veculo que publica a

    reportagem ou a entrevista saber deixar claro para o seu pblico que aquela

    leitura no pode ser adiada por um segundo sequer?

    O senso de urgncia, em jornalismo, tudo. Se voc escreve no jornal,

    ou no site, ou no seu blog um contedo supostamente jornalstico e o seu

    pblico conclui rapidamente que, bem, aquilo at que interessante, mas

    poder esperar para ser lido mais tarde, mau sinal. Voc estar abastecendo o

    criado mudo do seu cliente, ou estar contribuindo para o acervo de alguma

    biblioteca, isso na melhor das hipteses, mas no estar oferecendo jornalismo

    de verdade para a sociedade. O jornalismo ganha do tempo, vence a luta

    contra o relgio, e isso tanto na hora da pauta como na hora da apurao, da

    redao, da edio, da veiculao e da recepo. Se o seu pblico sente que a

    sua entrevista pode ser lida depois, das duas uma: ou voc no foi competente

  • para deixar ntida a urgncia daquela informao ou ela, de fato, poderia ter

    sido publicada um pouco depois, com ganho de qualidade.

    Por fim, o desejo. Ou, antes de tudo, o desejo. Explico-me: o desejo,

    claro, vem antes do resto mas, aqui, para o mtodo dessa tal de profisso a que

    se chamou jornalismo, ele o quinto critrio. No menor que os anteriores,

    mas subordinado aos outros. Isto dito, vamos a ele. Uma grande pea

    jornalstica desperta na sua audincia no apenas o convencimento racional

    acerca de sua relevncia, de sua pertinncia, de sua urgncia, mas tambm

    aciona o desejo da audincia. O desejo, como se sabe, diferente da vontade,

    que passa pelos crivos da razo, do clculo, dos prs e contras. O desejo, no:

    responde a demandas menos mediadas, mais profundas ou menos adestradas.

    Quando o jornalismo alcana essa proeza ele consegue flertar com a dimenso

    esttica que prpria da arte. Mas, bom que fique claro, em matria de

    jornalismo, s o desejo no adianta nada.

    O entretenimento, por exemplo, consegue dialogar com o desejo, dada a

    sua natureza de arte industrializada, e nem por isso relevante, nem por isso

    corresponde necessariamente ao direito informao, nem por isso urgente

    e nem por isso conta com o convencimento racional do pblico sobre as suas

    utilidades intrnsecas.

    E o termo utilidade vem a calhar: ao contrrio da arte, o jornalismo tem

    o dever de ser til; aquilo que ele diz precisa ser aplicvel vida prtica, da

    culinria poltica.

    S depois disso que o jornalista, ou a pessoa do jornalista, entra em

    questo se que ele deve entrar em questo quando se trata de servir o

    pblico. comum que um iniciante se pergunte, secretamente, achando que

    ningum mais vai perceber: "Ser que com esse meu lead eu vou parecer

    assim, avassaladoramente inteligente?"

    Ou: "Esse texto aqui, ser que ele firma o meu estilo e vai me tornar mais

    conhecido?" Tudo isso so armadilhas no caminho, armadilhas da vaidade que

    mais atrapalham do que ajudam. Claro que a vaidade indissocivel dessa

    profisso, mas ela deve ser enraizada no nos truques de estilo e sim naquilo

    que essencial e urgente para o cidado. O jornalista vale menos pelo

    penteado e vale mais pelo valor da informao que oferece. Talento

    indispensvel, trabalho indispensvel, estilo ajuda quando natural; no

  • jornalismo, a linguagem est a servio da rapidez, da clareza, do pblico. O

    jornalismo pode ser um discurso e, de fato, um discurso mas no uma

    arte, ainda que com ela possa abrir fronteiras.

    Portanto, depois de assegurar-se que presta um servio para o pblico

    que a personalidade, o iderio, as convices pessoais de cada um podem

    entrar em cena.

    fundamental, por certo, que o profissional no falseie a sua condio

    pessoal, no permita que ela contamine a informao que, no custa repetir,

    no pertence a ele mas ao pblico e que, portanto, deve chegar ao pblico sem

    distores deliberadas ou involuntrias e no permita tambm que essa

    condio, quando tiver alguma relao com o objeto da notcia, seja sonegada

    ao pblico. Mais ainda, fundamental que ele atue com alma, com uma

    dedicao apaixonada, ou no produzir nada que valha a pena. O dficit de

    entusiasmo acabar deteriorando a qualidade do que se produz. E a que

    entra, e entra muito bem, este livro da jornalista e professora Stela Guedes

    Caputo. Ela ensina, com brilho, com fibra e fundamentao terica e prtica,

    como o jornalista iniciante deve comear a longa trilha dessa modalidade vasta

    e to rica que a entrevista.

    Stela comea por uma pergunta: "Por que estou escrevendo isto?" O que

    ela diz em seguida vital: "Quando encontro a resposta, recupero o sentido de

    minha escrita".

    Assim, deixo com ela a palavra a partir de agora. Stela comea onde eu

    termino. Tratei, neste breve prefcio, de elencar as perguntas relativas aos

    deveres do jornalista. Creio que eles podem servir como uma introduo a este

    livro sobretudo porque Stela tratar bastante da realizao existencial do

    jornalista, dos prazeres que a profisso pode reservar, da maneira como cada

    um pode se jogar inteiro no que faz. O que ela discute, as suas proposies

    polmicas e as suas confisses corajosas sabero conduzir o leitor, sobretudo o

    estudante e o jovem profissional, por um caminho cheio de encantos e de

    lies valiosas. Eu aprendi bastante com a leitura deste livro. Desejo o mesmo a

    todos os que vierem depois de mim.

    Eugnio Bucci

  • 1

    Antes das entrevistas

    Tenho lecionado a disciplina Tcnicas de Entrevista em cursos de

    Jornalismo. Essa experincia vem sendo rica por vrios aspectos. Um deles

    poder vivenciar a angstia dos alunos interessados em construir um bom texto.

    Na verdade, digo a eles, esta angstia no nos abandona quando terminamos o

    curso. Ela prpria deste ofcio e nos acompanhar durante toda profisso.

    Mas, nessa angstia vivenciada em sala de aula que tento pensar em como

    responder aos olhos inquietos de meus alunos.

    Para o bem ou para o mal as frmulas podem at ajudar, mas no

    resolvem. Sei apenas, e tambm digo a eles, que muitas pessoas (jornalistas,

    pesquisadores e quem quer que resolva passar a vida escrevendo) o faro

    como quem quebra pedras, arrancando as palavras de sua existncia e

    cimentando-as como tijolos em paredes. Escrevero muros e no textos.

    Escrevemos quando sentimos que passamos por uma experincia. A

    construo de um texto uma experincia singular. Ao viv-la, escorre por

    nossas mos o lugar de onde somos e o modo como olhamos o lugar em que

    estamos. Deixamos no tecido do texto as fibras das nossas mos e de outras

    que por nossas mos passaram.

    Ao mesmo tempo, ao finalizarmos nosso trabalho e levantarmos os olhos

    das telas de nossos micros, j no vemos o mundo como antes. porque

    tambm somos transformados pela experincia de escrever, quando ela, de

    fato, acontece.

    Muniz Sodr define narrativa como "todo e qualquer discurso capaz de

    evocar um mundo concebido como real, material e espiritual, situado em um

    espao determinado" (Sodr, 1986, p. 11). O romance, diz este autor, o conto,

    s vezes mesmo o poema, constituem formas diferentes de narrativa. Mas

    Sodr tambm afirma que a narrativa no privilgio da arte ficcional, j que,

  • para ele, quando o jornal dirio noticia um fato qualquer, como um

    atropelamento, j traz a, em germe, uma narrativa.

    Assim, Sodr entende a reportagem como um dos gneros jornalsticos e

    como a forma-narrativa do veculo impresso. E essa forma narrativa do

    veculo impresso que nos desafia cotidianamente. Os olhos dos alunos

    interrogam e esperam ansiosos, papel na mo, por uma frmula.

    E frmulas, repito, no resolvem porque no do conta do labirinto. Por

    entender assim a narrativa que sempre inicio o curso de Tcnicas de

    Entrevistas com a lenda grega de Teseu e o Minotauro. Foi principalmente para

    estudantes de jornalismo que escrevi o que segue, mas escrevo tambm para

    os que se aproximam da pesquisa e faro das entrevistas instrumentos para

    seus trabalhos.

    1.1. O sentido de nossa escrita

    Esta narrativa recorda uma poca na qual a Grcia era dominada pela

    ilha de Creta, e Atenas ainda no era uma poderosa Cidade-Estado. Diz a lenda

    que os atenienses tremiam diante da simples meno de Creta e no era sem

    motivo. A cada nove anos, o Rei Minos de Creta exigia dos atenienses um

    imenso sacrifcio: sete jovens homens e sete jovens mulheres eram enviados

    ilha para servir de alimento ao assustador Minotauro que habitava o centro de

    um labirinto. Num determinado ano, o jovem Teseu est entre os que sero

    sacrificados.

    No banquete oferecido s vtimas, Teseu conhece Ariadne, filha do Rei

    Minos, que fica encantada com aquele jovem corajoso. Ariadne quem fala a

    Teseu sobre o complicado labirinto e de seus inmeros caminhos que

    confundem os olhos e a mente da vtima que, desesperada, jamais encontra a

    sada. Apaixonada, Ariadne d ao jovem um novelo de linha e, como se sabe,

    graas a ele que Teseu consegue entrar no labirinto, se localizar dentro dele,

    perceber os caminhos errados, matar o Minotauro e encontrar a sada.

    Olhando a tela em branco de nossos micros, podemos nos sentir, alunos

    e profissionais (por mais experientes), diante de um complicado labirinto. Pior,

    o texto, em geral, vira um monstro pavoroso que ameaa nos devorar. Muitas

    vezes sabemos como comear e terminar, mas o meio um tormento. Por

  • outras, temos o meio na cabea, mas falta um bom "gancho" para iniciar e um

    bom final para concluir. Para penetrar no labirinto de nosso texto e encontrar a

    sada precisamos do precioso fio de Ariadne. Acredito que todo profissional

    que trabalha com a escrita tenha seu prprio fio de Ariadne. O meu tem sido a

    pergunta: "Por que estou escrevendo isto?"

    Quando encontro a resposta, recupero o sentido de minha escrita.

    Quando no encontro, me perco e sucumbo diante do Minotauro, ainda que

    termine o texto. Ao fornecer o novelo a Teseu, Ariadne garantiu a este um

    sentido, a direo para ir e vir. Acredito que saber por que escrevemos j

    meio labirinto andado, mas no adianta saber por que escrevemos se, na

    verdade, no conseguimos escrever. Alm de saber por que escrevemos

    importa saber como escrevemos. Por fim, gostaria de ressaltar que Ariadne

    salva Teseu porque estava apaixonada por ele. A paixo pode promover em ns

    grandes movimentos. A paixo nos move, nos lana aos desafios, vida. E por

    ser completamente apaixonada pelos temas dos quais falo aqui que entrevistei

    estas pessoas. Na metaentrevista que fiz com o Professor Muniz Sodr,

    publicada ao final desse livro, ele alerta que o fascnio pelo entrevistado pode

    atrapalhar o entrevistador. O alerta vlido. H que se encontrar (ou pelo

    menos tentar encontrar) serenidade e equilbrio para que nossas paixes no

    embacem nosso olhar, nos paralisem ou nos destrambelhem. Isso para

    qualquer tipo de paixo. Apesar disso, reafirmo: a paixo pelos temas e pelas

    pessoas me move e me salva, como Teseu foi salvo do labirinto.

    1.2. A entrevista (aproximaes e conceitos)

    Uma das dvidas mais recorrentes de alunos sobre entrevistas.

    Angustiam-se com sua organizao, com a abordagem do entrevistado, com o

    momento da entrevista em si, com sua edio. A preocupao se justifica.

    Tenho tentado entender o que a entrevista. Reuni algumas definies, mas

    ainda assim no consigo reter seu significado. Isso terrvel porque sabemos

    que os textos acadmicos trabalham com conceitos. Para no passar a

    equivocada impresso de que desprezo os conceitos, selecionei algumas

    tentativas de definio elaboradas por jornalistas e pesquisadores para nos

    aproximarmos um pouco do que se tenta designar de "conceito" de entrevista.

    Adianto que concordo com todos esses autores. Todos, de alguma forma,

  • tentaram "cercar" o conceito, mas a palavra escapa. Por isso, sou levada a

    acreditar que algumas palavras no se do aos cercados e fogem, escapando

    fixao. Para Cremilda de Arajo Medina:

    A entrevista, nas suas diferentes aplicaes, uma tcnica de interao social, de interpretao informativa, quebrando assim isolamentos grupais, individuais, sociais; pode tambm servir pluralizao de vozes e distribuio democrtica da informao. Em todos estes ou outros usos das Cincias Humanas, constitui sempre um meio cujo fim o inter-relacionamento humano (Medina, 2002, p. 8).

    Se for considerada apenas uma tcnica eficiente para obter respostas

    pr-pautadas por um questionrio, a entrevista no promover a comunicao

    entre pessoas.

    Esta, para Medina, s ser alcanada se a entrevista possibilitar o

    dilogo. Esta autora acredita que quando o dilogo autntico acontece,

    entrevistado e entrevistador saem alterados do encontro. Outra tentativa de

    definio apresentada pelo jornalista Nilson Lage. Para ele:

    A entrevista o procedimento clssico de apurao de informaes em

    jornalismo. uma expanso da consulta, objetivando, geralmente, a coleta de interpretaes e a reconstituio de fatos (Lage, 2003, p. 73).

    Lage considera a palavra entrevista ambgua significando, de acordo com

    ele: a) qualquer procedimento de apurao junto a uma fonte capaz de

    dilogo; b) uma conversa de durao varivel com personagem notvel ou

    portador de conhecimentos ou informaes de interesses para o pblico; c) a

    matria publicada com as informaes colhidas em (b).

    Quando se refere a perfil, o jornalista Muniz Sodr acaba cercando um

    pouco do que percebe como entrevista:

    Em jornalismo, perfil significa enfoque na pessoa seja uma celebridade, seja um tipo popular, mas sempre o focalizado o protagonista de uma histria: sua prpria vida. Diante desse heri (ou anti-heri), o reprter tem, via de regra, dois tipos de comportamento: ou mantm-se distante, deixando que o focalizado se pronuncie, ou compartilha com ele um determinado momento e passa ao leitor essa experincia (Sodr, 1986, p. 126).

  • Sodr define o primeiro caso descrito como entrevista clssica, que no

    exige necessariamente o contato pessoal. Pode ser feita, diz Sodr, por

    telefone ou por escrito. Sobre o resultado obtido neste contato diz o autor:

    O texto consiste numa apresentao sumria, feita de dados referenciais,

    seguida de perguntas e respostas. Na maioria dos casos, termina com a palavra

    do entrevistado. s vezes, porm, h um pequeno fecho, ligeiramente

    pronunciante, mas de um modo geral distanciado (Sodr, 1986, p. 126).

    Em uma palestra proferida em novembro de 2000, durante um dos

    cursos de Imprensa Sindical promovido pelo Ncleo Piratininga de

    Comunicao, o jornalista Ricardo Kotscho disse no saber se a entrevista

    uma tcnica ou uma arte. Sei, disse ele, "que a entrevista apenas um

    instrumento bsico de trabalho, que, alis, utilizo com muita dificuldade.

    Sempre tive pavor de conversar com estranhos e, mais ainda, de parecer

    xereta, inoportuno, inconveniente. Quer dizer, poderia ser tudo na vida, menos

    reprter", brincou Kotscho.

    Tcnica, procedimento, instrumento, arte, dilogo? Podemos refletir

    sobre as breves anlises aqui apresentadas. Sem dvida, essas tentativas de

    aproximaes so importantes e fazem com que ns jornalistas ao menos nos

    questionemos sobre o significado de uma prtica que nos cotidiana.

    Quanto a mim, penso que a entrevista uma aproximao que o

    jornalista, o pesquisador (ou outro profissional) faz, em uma dada realidade, a

    partir de um determinado assunto e tambm a partir de seu prprio olhar,

    utilizando como instrumento perguntas dirigidas a um ou mais indivduos. Mas

    s isso? Talvez no. Ento aqui, outra vez, a palavra escapa, no consigo

    aprision-la em um conceito. Fico feliz por isso. Palavras fogem porque se do

    liberdade. O que sinto, e apenas sinto, que, quando o jornalista realiza bem

    essa aproximao, a entrevista se torna uma experincia. Uma experincia de

    olhar o mundo e ouvir o outro.

    por isso que a entrevista, pelo menos para mim, o que existe de

    melhor no jornalismo e na pesquisa. Ouvindo o que Alfredo Bosi diz sobre o

    olhar refleti sobre duas formas de construir essa aproximao. Mas ouamos

    primeiro o que sugere esse autor sobre o olhar-conhecimento. De acordo com

    ele, os gregos e os romanos pensaram em duas dimenses axiais do olhar: o

    olhar receptivo e o olhar ativo. Bosi diz que o olho, fronteira mvel e aberta

  • entre o mundo externo e o sujeito, tanto recebe estmulos luminosos, logo

    pode ver, ainda que involuntariamente, quanto se move procura de alguma

    coisa, que o sujeito ir distinguir, conhecer ou reconhecer, recortar do contnuo

    das imagens, medir, caracterizar, interpretar, em suma, pensar.

    H um ver-por-ver, sem o ato intencional do olhar; e h um ver como

    resultado obtido a partir de um olhar ativo. No primeiro caso, o cego, curado

    de sua doena, poder dizer: "Estou vendo!" No segundo, a pessoa dotada de

    viso, depois de olhar atentamente para o cu, exclamar: "Finalmente

    consegui ver a constelao do Cruzeiro" (Bosi, in Novaes, 1988, p. 66).

    Se, como nos diz Bosi, podemos distinguir duas maneiras de olhar, um

    olhar receptivo e um olhar ativo, podemos nos relacionar com o ofcio de

    entrevistar tambm de duas maneiras: uma receptiva e outra ativa.

    1.3. A construo receptiva da entrevista

    Como jornalistas, durante toda nossa vida profissional, recebemos e

    sugerimos inmeras pautas e comearei conversando sobre as pautas que

    recebemos. Na verdade, esse um dos aspectos fascinantes da profisso. Ou

    seja, chegar ao jornal ou revista em que se trabalha sem a menor idia do que

    o chefe de reportagem tem para voc e fazer, no mesmo dia, duas ou trs

    pautas completamente diferentes. esta situao que chamo de construo

    receptiva das entrevistas e, conseqentemente, das matrias que escrevemos.

    A pauta vem para o jornalista e ela acontece sempre de segunda mo. Assunto,

    fontes, pesquisas so sugeridas pelo editor, pelo chefe de reportagem, por

    colegas de redao.

    Ouvimos ou lemos atentamente a pauta e seguimos em busca de nossas

    matrias. Mas, se quiser fazer boas entrevistas e reportagens, o jornalista, to

    logo receba sua pauta, deve sair imediatamente da construo receptiva e

    assumir a construo ativa. Do contrrio, estar tomando o cmodo caminho

    da passividade. Falo ento aqui de uma construo ativa assumida a partir da

    construo receptiva. Vou dar um exemplo. Certa vez, o jornalista Paulo

    Oliveira, editor do jornal em que trabalhava, me deu a seguinte pauta:

    fazer um levantamento dos terreiros de candombl ou umbanda na Baixada

    Fluminense. Eu deveria levantar nomes, casas, etc. Ao chegar no primeiro

  • terreiro indicado por uma fonte me deparei com crianas que exerciam

    diversas funes neste ritual e se preparavam para receber orixs.

    Evidentemente toda pauta mudou e a matria foi publicada com o

    ttulo: "Os netos de santo". O que fiz nesse exemplo foi sair da construo

    receptiva para a construo ativa. Fazemos isso estando atentos s mudanas

    que a realidade nos sugere ou nos impe. No tenho nada contra a construo

    receptiva das entrevistas e matrias, muito pelo contrrio, e falarei de sua

    importncia daqui a pouco. Um jornal no sobrevive sem isso. Afinal, em tese,

    todo jornalista deve ser capaz de receber uma pauta e dar conta dela. Mas o

    que chamo de construo ativa da entrevista e da matria que penso que todo

    jornalista deve buscar.

    1.4. A construo ativa da entrevista

    A construo ativa de uma grande entrevista ou de pequenas entrevistas

    para a elaborao de uma matria, parte do jornalista. Ele pega o fio de

    Ariadne: "Por que estou escrevendo isso?" do qual falei anteriormente ,

    mas j se perguntou antes: "Sobre o que julgo importante escrever?" Pergunta

    sempre: "O que me incomoda na realidade que vejo?" "O que me

    desassossega?" Somente dessa forma o jornalista conseguir distinguir o modo

    como percebe a realidade: entre olh-la simplesmente e, portanto, apenas

    receb-la e v-la ativamente e, portanto, busc-la.

    Essa atitude do jornalista no surge do alm. Ela no brota

    espontaneamente porque tambm uma construo. E como construmos

    esse olhar, essa aproximao? Construmos socialmente. O jornalista uma

    pessoa com opes ideolgicas que vo sendo construdas aos poucos e isso,

    claro, no acontece apenas com jornalistas. Um advogado, por exemplo. Sua

    vida profissional est construda a partir de suas escolhas ideolgicas. o modo

    como o advogado percebe a realidade que definir se num caso de uma

    ocupao de terras ele ficar do lado do proprietrio ou do lado dos ocupantes.

    Da mesma forma, so as construes ideolgicas do jornalista que

    atravessaro ou conduziro sua abordagem na matria sobre essa mesma

    ocupao. preciso reconhecer essa construo ideolgica para que no se

  • caia na hipocrisia da neutralidade. Porque neutralidade no h. O que existe

    a sociedade com todas as suas contradies.

    Algumas contradies se conciliam, outras so irreconciliveis. So

    tenses permanentes, de classe, culturais, sociais. Ao escrever nos colocamos

    sempre de um lado ou de outro, ainda que neguemos. sobre essa sociedade

    que escrevemos a partir do ponto de vista que construmos.

    Deixemos que a revista Veja nos fale um pouco sobre o que estou

    discutindo. A capa da edio 1648, de 10 de maio de 2000, traz uma bandeira

    do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e a seguinte

    manchete: "A Ttica da Baderna O MST usa o pretexto da reforma agrria

    para pregar a revoluo socialista". Na p. 42, Veja abre a matria com o

    seguinte ttulo: "Sem terra e sem lei". Na p. 44 lemos o seguinte trecho: "Numa

    palavra, o MST no quer mais terra. O movimento quer toda terra, quer tomar

    o poder no pas por meio da revoluo e, feito isso, implantar por aqui um

    socialismo tardio, onze anos depois da queda do Muro de Berlim, num

    momento em que Cuba e Coria do Norte so praticamente o que resta de

    modelos a imitar nessa rea". A matria refere-se s ocupaes de prdios

    pblicos promovidas pelo MST nessa poca. Vrias manifestaes foram

    promovidas em todo Brasil e, no Paran, o sem-terra Antnio Pereira foi

    assassinado.

    Um jornalista assina a matria e, ao final, indica que seu texto foi

    produzido com reportagem de mais seis jornalistas. O que podemos com toda

    certeza garantir que nenhum, absolutamente nenhum desses sete

    profissionais foi neutro ou isento ou imparcial. O texto inegavelmente ataca o

    MST. Um jornalista com convices distintas escreveria uma reportagem

    completamente oposta a esta. Diferente da revista Veja e outros veculos, h

    jornalistas que respeitam o MST quando o movimento diz que "ocupa" terras e

    prdios pblicos, j que "ocupar" e "invadir" so conceitos polticos

    absolutamente distintos. Esse jornalista acredita nisso e ficar indignado com a

    morte de Antnio Pereira, o sem-terra assassinado. Cada letra que digitar

    nascer dessa indignao e espiar comprometida com ela. Mas no s isso.

    O jornalista tambm se confronta com as opes fechadas pela estratgia

    poltica do veculo em que trabalha, com o conjunto de opes que o veculo

    faz sobre seu prprio discurso e com a paisagem mais geral ideolgica em que

  • os debates se movem. So tenses com as quais o jornalista lida diariamente e

    que podem comprometer sim a objetividade de uma matria.

    Se quiserem procurar ser o mais objetivos possvel, os jornalistas (neste

    caso, tanto os que so favorveis ou contrrios ao MST) podem, como

    recomenda Bucci, buscar o equilbrio.

    [...] No se pode pretender que todos os que cubram assuntos religiosos sejam indiferentes s manifestaes da f. No faz sentido. Como seria o jornalismo se todos os que falassem de futebol no apreciassem a arte dos craques, se todos os que cobrissem a rea poltica defendessem a absteno sistemtica em todas as eleies, se todos os que fotografassem moda considerassem todos os desfiles uma celebrao de futilidade e se todos os que escrevessem sobre religio fossem ateus resolutos? O ideal tico para superar esses dilemas de conscincia requer a derrubada da impostura da neutralidade e, em lugar dela, a busca de um equilbrio, de uma pacificao entre as convices e crenas pessoais do jornalista e o nvel de objetividade requerido pelo pblico. Do encontro desse equilbrio depende a condio de dilogo do jornalista (e do veculo) com seu pblico. Em outras palavras, a legitimidade do jornalista como narrador dos fatos sociais depende tambm do encontro desse equilbrio (Bucci, 2002, p. 101).

    Trata-se de uma recomendao que deve ser constantemente lembrada.

    Contudo, acredito que para as grandes questes (chamo de grandes questes

    todo e qualquer tema que envolva grandes conflitos de interesses entre classes

    e culturas), o equilbrio, por mais que o jornalista o busque, tomba. E tomba

    para o lado do poder com o qual estiver afinado o veculo em que o jornalista

    estiver trabalhando.

    Deixando por aqui a discusso sobre as duas maneiras ou caminhos para

    se construir nossas entrevistas, gostaria de dizer ainda o seguinte: para

    construir ativamente nossa prtica jornalstica temos de aprender primeiro a

    construir nossa recepo. Sem a construo receptiva, a construo ativa no

    existe. Se no soubermos receber o que a vida nos mostra, se no nos

    impregnarmos de vida enquanto vivemos/escrevemos, matamos nossa escrita

    e nosso corpo torna-se apenas uma casca, um invlucro para nosso texto

    morto.

  • 1.5. O tempo e o texto (ou de jornalistas, abelhas, papagaios e

    flores)

    Dizia Marx que uma aranha executa operaes semelhantes s do

    tecelo, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a

    construo dos favos de suas colmias. Contudo, para este filsofo, algo

    fundamental distinguia o pior arquiteto da melhor abelha. "[...] que ele [o

    arquiteto] construiu o favo em sua cabea, antes de constru-lo em cera. No fim

    do processo de trabalho obtm-se um resultado que j no incio deste exigiu a

    imaginao do trabalhador" (Marx, Karl. O capital. Vol. 1, p. 149 e 150). A casa

    imaginada percorre o corpo do arquiteto at constituir-se na casa real.

    Podemos perguntar com Marx o seguinte: "Qual a diferena entre o pior

    jornalista e o melhor dos papagaios?" Tambm o jornalista imagina seu

    trabalho, sua ao, sua escrita e sua fala, rompendo assim com o no-texto. Se

    no quiser ser apenas um repetidor (escrevendo ou falando), um tagarela sem

    sentido algum para si mesmo, o jornalista precisa deixar de ser um papagaio,

    por melhor performance que o papagaio consiga atingir e, por isso, agradar.

    O jornalista sempre corre contra o relgio. O tempo acaba sendo um dos

    nossos grandes inimigos. Pressionados, perdemos o que no podemos perder,

    perdemos a relao com o texto. Ele nasce simultaneamente na nossa cabea e

    na ponta de nossos dedos e, mal nasce, j morre, porque o esmagamos contra

    o teclado. O no-texto comea assim, quando somos abelhas construindo

    mecanicamente uma colmia ou meros papagaios repetindo sem pensar.

    Se tivermos um pouco mais de tempo para conviver com o texto que

    ainda est em ns, a sim recuperamos no s o sentido, mas tambm o prazer

    da escrita que no acontece s no teclado. A escrita acontece o tempo todo e

    no cessa de acontecer. Em alguns momentos, o assunto se impe to

    fortemente que tudo parece ficar em cmera lenta e o tempo se torna

    diferente aos nossos olhos. Fotografamos, sem a mquina fotogrfica, imagens

    que se sobrepem ao longo de um dia. Se piscarmos lentamente a imagem

    gravada e essa escrita de luz fotogrfica vai acontecendo em nosso corpo onde

    quer que estejamos.

    O texto segue ento conosco e excelente companhia. Atravessando a

    rua, conversando com os amigos, no cinema ou participando de uma reunio,

    sentimos uma palavra estalar na boca, colhemos uma inteno. H temas que

    KelAceito

  • nos plantam perguntas que crescem em nosso corpo e espalham-se como

    galhos floridos de manac abrindo flores brancas e lilases perfumadas por

    nossa pele. So palavras-flor alegres. Contudo, dependendo do assunto, podem

    nos crescer por dentro palavras-flor tristes sobre as quais falarei mais tarde.

    1.6. Jornalismo e pesquisa

    Alm de jornalista, sou pesquisadora. Portanto, convivo com entrevistas,

    tanto no jornalismo como nos tipos de pesquisas que venho desenvolvendo.

    Jornalistas e pesquisadores realizam entrevistas da mesma forma? No. No

    realizam. So funes diferentes para objetivos distintos. Acredito, porm, que

    um ofcio pode contribuir muito com o outro se olhados criticamente. Vejamos

    ento como o socilogo francs Pierre Bourdieu critica nossa profisso:

    Os jornalistas, submetidos s exigncias que as presses ou as censuras de poderes internos e externos fazem pesar sobre eles, e, sobretudo a concorrncia, portanto a urgncia, que jamais favoreceu a reflexo, propem muitas vezes, sobre os problemas mais candentes, descries e anlises apressadas, e amide imprudentes; e o efeito que produzem, tanto no universo intelectual como no universo poltico, ainda mais pernicioso, s vezes, porque esto em condio de se fazer valer mutuamente e de controlar a circulao dos discursos concorrentes, como os da cincia social (Bourdieu, 1997, p. 733).

    A obsesso com o furo, a tendncia a privilegiar sem discusso a

    informao mais recente so outras das inmeras crticas que Bourdieu faz aos

    jornalistas. Concordar com elas uma forma de nos autocriticarmos e de

    melhorar nossa atuao. Gostaria de discutir um exemplo atravs de uma

    fotografia publicada no jornal O Dia em 1993. Sugiro imaginarmos a postura de

    um jornalista e de um pesquisador diante da mesma imagem.

    A foto mostra um grupo de garotos em torno de um corpo tambm de

    um menino, morto no cho. Os meninos riem. O jornalista, pressionado pela

    urgncia e pela obsesso com o furo (do qual nos fala Bourdieu), percebe o real

    com extrema rapidez e publica a foto no dia seguinte. Seu texto apressado

    certamente enfatizar a banalizao da violncia. O pesquisador, se estiver

    preocupado com as tenses do real, e avisado das interferncias que, por

    exemplo, a mquina do fotgrafo pode provocar no real observado, se

  • perguntar: "As crianas riem do corpo morto no cho ou para a mquina do

    fotgrafo?"

    Bourdieu chama de violncia simblica1 tudo que pode afetar e distorcer

    as respostas em uma entrevista. O gravador pode mudar o comportamento do

    entrevistado que pode, por exemplo, omitir informaes fundamentais pelo

    fato de saber que o que diz est sendo gravado. Por outro lado, existem

    pessoas que s falam na "presena" do gravador. Certa vez perdi uma

    entrevista importante com uma atriz porque estava sem gravador. Disse-me

    ela: "Vocs j distorcem tudo o que falamos quando gravam o que dizemos,

    imagina se no gravarem". Isso mostra o quanto de credibilidade tem nossa

    profisso.

    Tanto a mquina fotogrfica como o gravador podem causar timidez em

    uns, exibicionismo em outros. Bourdieu tambm nos chama a ateno para os

    sinais de feedback que pesquisadores fornecem ao entrevistado aprovando

    suas respostas. Alerta o socilogo que essas trocas chegam ao ponto de

    qualquer distrao do olhar do entrevistador ser suficiente para causar

    embarao no entrevistado. Por outro lado, sinais de desaprovao emitidos

    tambm pelo entrevistador podem mudar o rumo das respostas de nossos

    interlocutores. Este autor tambm enfatiza que o pesquisador deve esforar-se

    ao mximo para "dominar os efeitos (sem pretender anul-los); quer dizer,

    mais precisamente, para reduzir ao mximo a violncia simblica que se pode

    exercer atravs deles" (1997, p. 695).

    Assim, me permito interpretar bastante livremente essa fala de

    Bourdieu. Ao dizer que o pesquisador deve esforar-se ao mximo para

    "dominar os efeitos da violncia simblica sem, no entanto, pretender anul-

    los", Bourdieu sinaliza que tambm o pesquisador por mais prevenido, por

    mais consciente, por mais isento que procure ser, no consegue deixar, muitas

    vezes, de agir como um laboratorista que revela uma foto. Tambm o

    pesquisador lana luz no que julga por bem iluminar e deixa no escuro o que

    no pretende expor.

    Bourdieu critica os jornalistas no porque despreza nossa profisso, pelo

    contrrio, ele sabe do papel que temos na sociedade e por isso nos adverte

    1 O conceito de violncia simblica um conceito muito mais amplo e complexo. Estou utilizando-o aqui dentro de alguns limites apenas para nos ajudar a fazer a discusso pretendida.

  • tanto. Uma de suas crticas mais severas refere-se ao que chama de viso des-

    historicizada e des-historicizante, atomizada e atomizante do jornalista. Ou

    seja, ao fazer uma matria sobre uma ocupao de terras, pouco interessa

    maioria dos jornalistas a histria da formao dos grandes latifndios em nosso

    pas. O jornalista costuma arrancar o fato da histria e tom-lo como apenas

    um fragmento. Ocupaes, violncia, aumento da criminalidade, corrupo

    descolados da histria so escritos e lidos como fenmenos naturais como

    furaces, terremotos ou maremotos. Em geral os manuais de redao se

    baseiam na legislao vigente para definir, por exemplo, como iro se referir a

    acontecimentos que envolvam propriedades de terra. No podemos esquecer,

    contudo, a histria da construo das prprias legislaes. O que legal nem

    sempre justo em nossa sociedade.

    Para Bourdieu, justamente os socilogos podem fornecer aos jornalistas,

    lcidos e crticos, "os instrumentos de conhecimento e de compreenso,

    eventualmente at de ao, que lhes permitiriam trabalhar com alguma

    eficcia para controlar as foras econmicas e sociais que pesam sobre eles

    prprios" (1998, p. 108 e 109). Bourdieu se referiu aos socilogos

    especificamente, mas acredito que sua insistncia sinalizava para a necessidade

    do jornalista aprender com a pesquisa, em diversas reas do conhecimento, a

    no mutilar o fato observado de seu contexto, de sua histria. Outros

    profissionais lcidos e crticos podem nos ensinar essa importante lio. Alguns

    cineastas, por exemplo.

    1.7. A procura do bom texto (Tiros em Columbine)

    Na verdade, ao escrever essa reflexo me dou conta do seguinte:

    afirmar que para escrever nossos textos no precisamos sofrer, no significa

    dizer que escrever no seja um ato complexo. Muito pelo contrrio, sim,

    principalmente se, como vimos, precisamos ter ateno em tantas coisas. E

    tanto esforo para qu? Para conseguirmos um bom texto, nele deixarmos

    nosso sentido e informar a sociedade.

    Julguei que talvez fosse interessante trazer um exemplo do que

    considero um bom texto para que perguntemos juntos: Por que este um bom

    texto? Pensei em alguns excelentes exemplos. Felizmente h vrios jornalistas

  • e pesquisadores escrevendo muito bem. Mas o que eu queria mesmo era

    poder mostrar a construo dessa escrita ainda que refletssemos sobre um

    texto que no estivesse impresso em jornal, revista ou livro, ainda que

    falssemos de um texto escrito com entrevistas e imagens para a tela grande

    do cinema.

    Cheguei ento ao documentrio escrito, dirigido e produzido pelo

    cineasta americano Michael Moore, Tiros em Columbine (2002). Convido a

    todos agora para uma discusso um pouco mais demorada sobre essa obra, um

    exemplo para verificarmos que combinar jornalismo e pesquisa d muito

    trabalho. Mas j adianto: tambm acho que Moore erra e muito, e

    justamente por isso que o discutiremos aqui.

    O fato: no dia 20 de abril de 1999, os adolescentes americanos Eric

    Harris e Dylan Klebold mataram 12 colegas e um professor da Escola

    Columbine, localizada em Littleton, Colorado, nos EUA. A tragdia aconteceu

    na prpria escola onde os adolescentes tambm estudavam. Eric e Dylan se

    suicidaram aps a chacina. Evidentemente os jornais tiveram um prato cheio

    para muitas reportagens durante um bom tempo. O que fez Michael Moore?

    Simplesmente no des-historicizou Columbine. Ou seja, no tratou a tragdia

    como um acontecimento natural. No descolou Columbine de sua totalidade.

    Isso bem diferente das anorxicas pesquisas freqentemente realizadas por

    jornalistas.

    Mais que mostrar a tragdia (perguntando apenas O que ?" Ou "O que

    foi?"), Tiros em Columbine se pergunta: "Por que a tragdia aconteceu?" E

    "Como continua acontecendo?"

    bvio que o cineasta aponta a responsabilidade para a sociedade

    americana, mas tambm no faz s isso. Ele quer realmente saber: "por que a

    culpa da sociedade?"

    Como ele faz isso a verdadeira preciosidade do filme. Moore

    simplesmente nos mostra que para se fazer o bom jornalismo (e at bons

    filmes e programas de TV), alm de boa pesquisa, preciso ter verdadeiras

    questes. Um fato, ao acontecer, est impregnado de questes e levantar suas

    camadas para pouco a pouco descobrir novas tenses e contradies o que

    garante a relevncia dos nossos ofcios de jornalistas e pesquisadores, de

  • cineastas e dramaturgos, enfim, de quem trabalha com textos nas mais

    diferenciadas reas com os mais diferentes objetivos.

    A impresso que fica que Moore cercou o fato por todos os lados e

    trabalhou incansavelmente para obter uma resposta. No entanto, cada dado

    obtido era confrontado com novos problemas e novas entrevistas. Impressiona

    a honestidade de suas perguntas. A Lockheed Martin a maior fabricante de

    armamentos do mundo, tem fbricas perto ou dentro de Littleton, onde

    aconteceu a tragdia e emprega muitos de seus habitantes. Moore perguntou

    ao relaes pblicas da fbrica: "Ento no acha que as crianas vendo seus

    pais indo todo dia para o trabalho no pensam: Poxa meu pai constri msseis,

    que so armas de destruio em massa. Qual a diferena entre essas armas de

    destruio em massa e as que fizeram o massacre em Columbine?"

    Obviamente o relaes pblicas no v relao alguma.

    Vejamos outras questes levantadas pelo cineasta. Ser que tragdias

    como essa acontecem porque os americanos vem muitos filmes violentos? Ou

    porque jogam videogames violentos? Ou ser a ruptura da famlia? Ou ainda

    porque a histria dos EUA uma histria violenta? Ser talvez porque os

    americanos amam as armas e esto armados at os dentes? Ser a pobreza?

    Podemos nos agarrar a qualquer uma dessas hipteses, mas se quisermos

    problematizar de verdade iremos confront-las: o cineasta revela, por exemplo,

    que h mais lares desfeitos e divrcios na Gr-Bretanha do que nos EUA. No

    Canad, os adolescentes esperam ansiosamente por todo lanamento de

    qualquer filme americano violento. Da mesma forma, jogam games escabrosos

    e sanguinolentos e o nmero de desempregados no Canad duas vezes maior

    que nos EUA.

    Pases com histria de violncia so apontados por Moore: a Alemanha

    exterminou 12 milhes de pessoas, a ocupao japonesa na China, o massacre

    francs em Argel, o massacre ingls na ndia. E o amor pelas armas? O povo do

    Canad tambm apaixonado por armas. De acordo com o documentrio, o

    Canad possui uma populao de aproximadamente 30 milhes de pessoas,

    com cerca de 10 milhes de famlias que possuem sete milhes de armas.

    Apesar de tudo isso, quantos so assassinados em um ano? Na Alemanha, 381;

    na Frana, 255; no Canad, 165; no Reino Unido, 68; na Austrlia, 65; no Japo,

    39; e, nos EUA, 11.127 pessoas.

  • O que h de to diferente nos americanos? Em um certo momento de

    seu documentrio, Moore faz essa pergunta conjuntamente com o pai de uma

    das vtimas de Columbine.

    O pai honestamente se questiona: "Somos homicidas por natureza?

    Vimos que no Canad crianas e jovens vem filmes violentos e tambm no

    rezam nas escolas". A resposta encontrada por Moore a seguinte: s nos EUA

    a populao cotidianamente estimulada pelo governo e pela mdia a ter

    medo uns dos outros. Moore menciona o programa sensacionalista Cops e

    telejornais tradicionais; nesses, h sempre algo "ameaando" a Amrica, desde

    terroristas at abelhas assassinas. Ao conversar com o produtor de Cops, Dick

    Heran, o documentarista pergunta por que Heran no produz um programa

    sobre as causas da violncia, em vez de retratar apenas os criminosos (quase

    sempre negros). A resposta bvia e triste: a audincia no seria to boa. Mas

    ser que isso uma verdade eterna?

    Moore verificou pessoalmente que os canadenses, embora armados,

    no trancam as portas de suas casas porque, revelam as entrevistas, "no

    querem se sentir presos" e, diferente dos americanos, "no sentem medo dos

    vizinhos". A diferena entre a populao armada do Canad e a populao

    armada dos EUA que a primeira est apenas armada e a segunda, armada e

    assustada. Os americanos vivem em uma cultura regida pelo medo e ergueram

    uma sociedade assustada e paranica.

    Enquanto o cineasta americano constri seu filme, outra tragdia

    acontece. Na Escola Buell, em Flint, Michigan, um menino de seis anos mata

    sua colega de turma, Kayla Rolland, tambm de 6 anos. De novo, os jornalistas

    chegam rapidamente. Propositadamente Moore os filma preocupados com o

    penteado pouco antes de iniciarem a gravao de suas transmisses onde

    aparecero abalados e tristes. Em seguida, encerrada a transmisso, falaro de

    laque e cabelos mais uma vez e iro embora. Moore critica os jornalistas

    dizendo que se tivessem um pouco de interesse andariam mais duas quadras e

    chegariam at a General Motors, maior indstria do mundo abrigada por

    aquela cidade. Apesar disso, a regio de Flint est ignorada e destruda, com

    87% dos alunos vivendo abaixo do nvel oficial de pobreza. Flint, portanto, no

    se encaixa na imagem propagada pela mdia da invencvel economia

    americana. Da mesma forma, no basta chegar at Tamarla Owens, me do

  • menino que matou a menina. Importa saber como sua histria nos ajuda a

    entender o que aconteceu.

    O documentrio revela que, para alimentar os filhos, Tamarla era

    obrigada a trabalhar para o Programa Social do Estado. Moore afirma que esse

    programa foi to eficiente em livrar a Previdncia dos pobres que seu criador,

    Gerald Miller, foi contratado pela maior firma do pas, a responsvel pela

    privatizao das estatais.

    E que firma era essa? A Lockheed Martin, lembram? A maior fabricante

    mundial de armamentos. Sem a guerra-fria e sem inimigos para apavorar, diz

    Moore, a tal fbrica encontrou um meio de lucrar com o medo das pessoas

    usando um inimigo mais prximo: mes negras e pobres como Tamarla Owens

    que, apesar de ter dois empregos e trabalhar 70 horas por semana, no

    conseguia pagar aluguel e, por isso, foi despejada. Por ter sido despejada, ela

    deixa o filho na casa de um irmo e desta casa que o garoto pega a arma que

    matou a colega.

    Tamarla viaja uma hora e meia at o shopping onde trabalha. Um de

    seus empregos no restaurante do cone americano Dirk Clark, apresentador

    do programa American Band-stand. O restaurante de Dirk pediu deduo de

    impostos por empregar pessoas do programa social, como Tamarla, que no

    viu o filho pegar a arma porque estava em um nibus do Estado indo servir

    drinques e vender doces para ricos. Moore tenta entrevistar Dirk Clark e

    pergunta a ele como se sente com essa situao. O astro o ignora e o deixa

    falando sozinho.

    Por fim, o cineasta entrevista outra estrela hollywoodiana, Charlton

    Heston, que tambm presidente da Associao Nacional de Rifles (ANR).

    Ressalto, mais uma vez, a honestidade das perguntas de Moore. Heston esteve

    tanto em Littleton como em Flint logo depois dos crimes para promover a

    posse de armas entre os moradores daquelas localidades. Moore pergunta a

    Heston se ele tem armas em casa. O ator responde que sim, possui armas

    carregadas em casa. Moore pergunta: Por qu? Heston diz que para se

    proteger. O cineasta pergunta se seu entrevistado j fora vtima de algum

    crime. Ele diz que no. Moore insiste: "Nunca foi agredido? Nunca sofreu

    violncia?" Heston responde que no. "Por que ento precisa se proteger?",

    pergunta Moore. Heston diz que no precisa. Moore revela a Heston alguns

  • dados de assassinatos em outros pases, como o Canad. Heston vai ficando

    visivelmente constrangido, esfrega as mos, ameaa levantar, deixa escapar

    uma face tensa, muito tensa.

    Heston deixa ainda transparecer seu racismo em duas respostas. Uma

    delas quando diz que apenas segue o exemplo dos nobres brancos que

    fundaram seu pas e, em uma outra, usa como justificativa para a violncia

    americana "questes tnicas". Finalmente Moore pergunta por que Heston

    esteve em Littleton e em Flint logo depois das tragdias e sugere que ele se

    desculpe com os moradores daquelas cidades. o limite para Heston que

    abandona o local da entrevista e tambm deixa Moore falando sozinho. O

    ltimo gesto do cineasta pedir que Heston olhe para a foto de Kayla, a

    menina assassinada em Flint. Heston ignora e Moore deixa a foto de Kayla em

    uma pilastra da manso do ator.

    Moore nos ensina de incontveis maneiras. Um detalhe importante: o

    cineasta americano nos mostrou tambm que para construir um bom texto

    preciso banir a preguia. Assistindo ao filme nos perguntamos se houve algum

    que ele deixou de ouvir, algum lugar onde precisasse ir e no foi, alguma coisa

    que precisasse fazer e no fez. A resposta no. O filme no deixa a histria de

    lado e a resgata atravs da animao Uma breve histria da Amrica , a

    formao dos EUA passando pela escravido, pela Ku-Klux-Klan at chegar ao

    medo que sempre dominou e continua dominando aquele pas.

    Moore apresenta ainda uma montagem com vrios crimes cometidos

    pelo governo americano. A lista comea com o ano de 1953 quando os EUA

    derrubam o primeiro-ministro do Ir e colocam em seu lugar Shah, como

    ditador, passa pelo 11 de setembro de 1973, quando os EUA armam o golpe de

    Estado no Chile e o assassinato do Presidente Salvador Allende. O ditador

    Augusto Pinochet assume e 5 mil chilenos so assassinados. Outra data

    mencionada o ano de 1980 quando os EUA treinam Bin Laden e terroristas

    para matar soviticos. A CIA d a eles US$ 3 bilhes. A relao longa e

    termina com o 11 de setembro de 2001, quando Osama Bin Laden mata trs

    mil pessoas nos EUA com tcnicas da CIA.

    Vimos que podemos fazer textos todos os dias, mas para fazer um bom

    texto preciso sim muito trabalho e dedicao. Se tivermos xito,

    conseguiremos mais que informar a sociedade, conseguiremos fazer com que

  • toda sociedade se questione junto conosco. Isso sim fundamental. Se para

    isso for necessrio construir um outro tipo de jornalismo, que faamos um

    novo.

    1.7.1. Dos acertos e dos erros

    O documentrio sobre o qual falei mais pausadamente nos ajuda a

    refletir em vrios aspectos. Alm de todos j apontados anteriormente,

    podemos dizer ainda que o documentrio uma linguagem que vem

    conquistando cada vez mais novos profissionais e pblico. Assim, o

    documentrio tambm se constitui como uma boa opo para ampliar o

    alcance de questes que julgamos por bem discutir, tanto no jornalismo como

    na pesquisa. Para ambos mostra como trabalhar e apresentar assuntos

    combinando o rigor e criatividade, atingindo, por isso, a pblicos mais

    diferenciados.

    No que se refere mais especificamente ao assunto deste livro

    entrevistas , ao assistirem Tiros em Columbine, reparem como o jornalista

    no se furta a comentar as respostas dos entrevistados, a refletir junto com

    eles. Ele mantm a distncia necessria, mas solidrio quando a professora

    de Kayla que estava com ela no momento em que foi morta, chora no meio da

    entrevista. Outro detalhe importante que o entrevistador est

    completamente disponvel para seus entrevistados. Eles podem ter tempo para

    a entrevista acabar, Moore no tem. Ele est completamente entregue quele

    momento, tem todo tempo do mundo. No olhou para o relgio nenhuma vez

    em qualquer entrevista. No apressou ningum, era completamente ouvidos e

    reflexo. Moore demonstrou uma caracterstica fundamental para qualquer

    jornalista e qualquer pesquisador: sabia realmente ouvir.

    Tiros em Columbine nos ajuda a pensar at quando se equivoca. Li trs

    tipos de crticas ao documentrio. Algumas se referiam aos dados sobre a

    violncia dos EUA contra diversos pases apresentados por Moore. Esses

    crticos questionavam a veracidade de alguns nmeros. Acho que podemos

    dispensar logo esse primeiro grupo j que as estatsticas de Moore so mais

    que conhecidas e j foram divulgadas por diversas fontes. Outro grupo de

    crticos atacou as montagens realizadas pelo cineasta em seu filme. Ora,

    qualquer filme montado e editado e um documentrio no diferente e nem

  • por isso perde a credibilidade. Entrevistas, matrias jornalsticas e at mesmo

    as pesquisas acadmicas tambm so editadas e sempre a partir do ponto de

    vista de quem as realiza. Um terceiro grupo criticou os "aspectos ideolgicos"

    erros em Columbine argumentando que sendo um documentrio uma

    aproximao isenta da realidade no poderia ser ideolgico. Discordo da crtica

    porque ela diz o que um documentrio no : isento. Disse que um

    documentrio (assim como filmes, pesquisas e matrias) so escritos,

    montados e editados a partir do ponto de vista de seu realizador; todas essas

    atividades, portanto, sempre sero ideolgicas.

    O bom de Tiros em Columbine justamente isso: sabemos que Moore

    quer criticar sim a sociedade americana, mas vemos bem transparentemente

    como ele vai construindo essa crtica. ideolgico, mas no panfletrio. Ou

    seja, informa o espectador, mas no mostra s um lado da questo. Alis, este

    cineasta fez o que todo jornalista deveria fazer com suas matrias: pluralizar ao

    mximo as vises sobre o assunto em pauta, ainda que no possa se

    desvencilhar de seu prprio ponto de vista.

    Ento, onde que eu acho que Moore errou? Em um nico momento,

    quase no finalzinho do documentrio. Moore erra quando, para conseguir a

    entrevista com o ator Charlton Heston, diz que membro da ANR. Moore no

    garante os direitos de sua fonte e fora sua prpria tese. Isso, alm de errado,

    era completamente desnecessrio.

    J que estou falando sobre entrevistas em jornalismo e em pesquisas

    acadmicas, as regras, pelo menos para mim, para os dois casos, so essas:

    devemos sempre nos identificar. Temos a obrigao de explicar os motivos da

    matria ou da pesquisa e informar se os dados revelados sero ou no

    publicados e em que tipo de publicao.

    Da mesma forma, perguntar ao entrevistado se ele prefere que seu

    nome seja divulgado. E mais: caso o entrevistado no saiba as conseqncias

    que poder sofrer por conta da divulgao de sua imagem e nome, jamais

    poderemos nos aproveitar disso, ao contrrio, devemos nos obrigar a esclarecer

    tudo isso ao entrevistado. S depois dessa negociao e depois de estarmos

    seguros de que o entrevistado gostaria de falar conosco que ligamos o

    gravador, alis, o entrevistado que autoriza ou no se a entrevista ser

    gravada. Mais uma vez: as regras valem para jornalismo e pesquisa.

  • H excees? Para o jornalismo sim, para a pesquisa acadmica nunca.

    Embora reconhea que existam excees, adianto que essas regras que citei

    valeram para mim, mesmo quando entrevistei membros de grupos de

    extermnio. Nenhum deles jamais aceitou gravar entrevistas, mas permitiam

    que eu utilizasse o bloco de papel para minhas anotaes. Quando realizo uma

    entrevista trato da mesma forma tanto algum que cometeu um crime como

    Cione (de quem falarei mais adiante), como o telogo Leonardo Boff ou a

    Ministra Dilma Roussef. Aos trs pergunto se poderiam conceder uma

    entrevista e aos trs agradeo a disposio e o tempo emprestados. claro que

    despertam em mim sentimentos e questes diferentes, mas o tratamento dado

    a todos deve ser o mesmo no momento em que exercemos nosso trabalho.

    No posso dizer como aprendi, nem quem me ensinou a agir dessa

    maneira. Na faculdade, apesar de existir esta disciplina, fala-se muito pouco em

    tica, estudada como regras engessadas em manuais. No artigo 14 do Cdigo

    de tica do Jornalismo, a letra b, por exemplo, recomenda tratar com respeito

    a todas as pessoas mencionadas nas informaes que divulgar. pouco. Como

    especificar isso em nossas aes cotidianas de trabalho? Talvez aqui caiba o

    que disse a rapariga de culos escuros, personagem do livro Ensaio sobre a

    cegueira: "Dentro de ns h uma coisa que no tem nome, essa coisa o que

    somos" (Saramago, 2001, p. 262). Permito-me apenas, com todo respeito do

    mundo, uma pequena adequao frase de meu muito querido escritor

    portugus e digo: Dentro de ns h uma coisa que no tem nome, essa coisa

    o que vamos sendo.

    Alguns no acharo errado o fato de Moore ter mentido. No entanto,

    acredito, esse tipo de recurso deve ser a exceo da exceo e no a regra

    (insisto: exceo da exceo que, ainda assim, vale apenas para o jornalismo e

    jamais para pesquisas acadmicas). Um poltico ou empresrio corrupto jamais

    assumir que corrupto para um jornalista.

    Nenhuma pessoa que explora sexualmente crianas brasileiras assumir

    sorrindo seu crime diante de uma cmera. Da as gravaes telefnicas, os

    gravadores escondidos, a identidade do jornalista ocultada, o disfarce muitas

    vezes montado para se obter uma informao e denunciar. Cada veculo de

    informao tem suas regras de conduta especficas a respeito de

    procedimentos como esses. No era o caso de Moore e Heston. O ator assume

  • publicamente suas posies reacionrias e j havia feito isso no prprio

    documentrio. Disse que Moore fazia suas perguntas de forma honesta,

    lembram-se? A mesma honestidade tambm deve ser garantida no mtodo

    utilizado para se conseguir uma entrevista. Caso Heston se recusasse a falar

    com ele, pacincia, Tiros em Columbine j valia at ali.

    1.8. O texto do jornalista, o texto do pesquisador e o demnio da

    perversidade

    Vimos ento que jornalismo e pesquisa no s podem dialogar como

    precisam dialogar. Jornalistas tm a aprender com pesquisadores, mas o

    inverso tambm positivo.

    Do contrrio, eu estaria em constante surto esquizofrnico com meu

    lado jornalista apontando para uma direo e meu lado de pesquisadora

    apontando para outra. justamente ouvindo o que um e outro tm a dizer que

    organizo este dilogo interna e praticamente. No incio do mestrado, confesso,

    o surto do qual falei aconteceu.

    A escrita acadmica bem diferente da escrita jornalstica. Se por um

    lado, precisei incorporar todas as exigncias de um texto acadmico, por outro,

    me recusei a dispensar o que existe de positivo no texto jornalstico. O dilogo

    comeou a surgir.

    Muitos alunos de ps-graduao tm dificuldades em escrever. Ensaios,

    resenhas, produzir a dissertao do mestrado e a tese para o doutorado

    costumam ser sofrimentos terrveis. Nisso o jornalista tambm leva vantagem.

    No porque melhor ou mais capaz. O motivo simples: jornalista escreve

    todo dia. Claro que, como vimos, justamente a pressa que pode nos levar

    superficialidade e negligncia, mas j estamos advertidos desse perigo.

    Assim, todos os dias entrevistamos e editamos, apuramos e sistematizamos,

    muitas vezes, como disse, sobre dois ou trs assuntos diferentes. Acredito que

    uma das grandes contribuies que jornalistas podem dar aos pesquisadores

    ajud-los a exorcizar o demnio da perversidade. E que demnio esse?

    Em geral, os pesquisadores acreditam que os textos acadmicos

    precisam ser complicados. E, quanto mais incompreensveis, mais intelectuais

    parecero. Reconheamos: a maior parte da produo acadmica chata,

  • muito chata. Somente depois de me lembrar do conto O demnio da

    perversidade, do escritor americano Edgar Allan Poe, encontrei a explicao

    para este estranho fenmeno.

    Poe acredita que o ser humano acometido por esse tal demnio em

    algumas situaes. Vejamos uma delas:

    No h homem que, em algum momento, no tenha sido atormentado, por exemplo, por um agudo desejo de torturar um ouvinte por meio de circunlquios. Sabe que desagrada.

    Tem toda a inteno de desagradar. Em geral conciso, preciso, claro. Luta em sua lngua por expressar-se a mais lacnica e luminosa linguagem. S com dificuldade consegue evitar que ela desborde. Teme e conjura a clera daquele a quem se dirige. Contudo, assalta-o o pensamento de que essa clera pode ser produzida por meio de certas tricas e parntesis. Basta esta idia. O impulso converte-se em desejo, o desejo em vontade, a vontade numa nsia incontrolvel, e a nsia (para profundo remorso e mortificao de quem fala e num desafio a todas as conseqncias) satisfeita (Poe, 1965, p. 346).

    Perceberam a explicao? Esse demnio da perversidade vive a

    atormentar a vida dos intelectuais que, possudos por ele, escrevem um texto

    tortuoso e, da mesma forma, falam uma lngua tortuosa. Poe assegura que o

    perverso demnio tambm age quando:

    Temos diante de ns uma tarefa que deve ser rapidamente executada. Sabemos que retard-la ser ruinoso. A mais importante crise de nossa vida requer, imperiosamente, energia imediata e ao. Inflamamo-nos, consumimo-nos na avidez de comear o trabalho, abrasando-se toda a nossa alma na antecipao de seu glorioso resultado. foroso, urgente que ele seja executado hoje e, contudo, adiamo-lo para amanh. Por que isso? No h resposta, seno a de que sentimos a perversidade do ato. Chega o dia seguinte e com ele a mais impaciente ansiedade de cumprir nosso dever, mas com todo esse aumento de ansiedade chega tambm um indefinvel e positivamente terrvel, embora insondvel, anseio extremo de adiamento. E quanto mais o tempo foge, mais fora vai tomando esse anseio. A ltima hora para agir est iminente. Trememos violncia do conflito que se trava dentro de ns, entre o definido e o indefinido, entre a substncia e a sombra. Mas se a contenda se prolonga a este ponto, a sombra que prevalece. Foi v a nossa luta. O relgio bate e o dobre de finados de nossa felicidade. Ao mesmo tempo a clarinada matinal para o fantasma que por tanto tempo nos intimidou. Ele voa. Desaparece. Estamos livres. Volta a antiga energia. Trabalharemos agora. Ai de ns, porm, tarde demais! (Poe, 1965, p. 346 e 347).

  • Reconhecemos a situao descrita por Poe? Sabemos agora por que

    agimos assim? Por que sofremos o tormento de deixar as coisas para a ltima

    hora? Aquele ensaio para uma disciplina, a monografia da graduao, os textos

    do mestrado, do doutorado, a tese. Tudo para a ltima hora. Talvez

    continuemos assim mesmo depois de concluirmos o doutorado. Seremos assim

    com artigos e livros que publicaremos. Identificada a origem desse problema

    to srio, quem quiser que relaxe por poder colocar a culpa no demnio

    catalogado por Poe. O jornalista, mesmo que quisesse, no poderia, ele

    obrigado a exorcizar esse demnio. Nada pode ficar para amanh. a questo

    do tempo da qual j falamos. Se por um lado o tempo age contra ns nos

    levando quase sempre superficialidade, por outro, colabora conosco porque

    nos faz escrever todo dia. quando temos conscincia dessa contradio e

    tenso constantes que podemos conquistar o equilbrio necessrio entre a

    urgncia e a cautela, entre a pressa e a responsabilidade. Assim, jovens

    pesquisadores podem desenvolver o precioso hbito de transcreverem suas

    entrevistas to logo as faam. Podem ir sistematizando os dados que forem

    sendo recolhidos pelo caminho. Podem, como os jornalistas, escrever todos os

    dias.

    O texto acadmico no precisa e no deve recusar o rigor, mas rigor no

    tem nada a ver com chatice. Pelo menos no deveria ter. A escrita acadmica

    no precisa torturar nem seu autor nem o leitor e ambos podem encontrar

    prazer neste ofcio. O texto jornalstico pode contribuir para isso porque mais

    objetivo, se constri com perodos mais curtos e, muitas vezes, recorre

    literatura, ao cinema, ao teatro, toma emprestadas imagens de vrias reas.

    Nada disso pecado se for feito de maneira responsvel e sria.

    Outra contribuio fundamental do jornalismo justamente o privilgio

    do qual j falei. Todos os dias temos pautas diferentes. E o que podem

    representar essas pautas se construmos nossas entrevistas e matrias de

    forma ativa? Temas para importantes pesquisas. S para citar um exemplo,

    tanto minha dissertao de mestrado como minha tese de doutorado vieram

    da minha prtica como jornalista. A primeira surgiu de tanto conviver com o

    assunto violncia. Depois que participei da equipe que publicou a srie sobre

    grupos de extermnio, pensei em aprofundar o tema e acabei desenvolvendo a

    dissertao "Violncia, escola e dilogo". Na segunda, ao fazer a matria

  • "Netos de santo", tambm resolvi aprofundar a questo e constru a tese

    "Educao nos terreiros".

    Por fim, escrever todo dia tambm faz com que o jornalista se arrisque

    mais. certo que o jornalista afoito e se apressa a emitir opinies sem a

    cautela e o distanciamento histrico necessrios a uma anlise de um fato

    social. Por outro lado, muitas vezes, o pesquisador se esconde atrs dessa

    cautela e fica l a vida inteira. No d a cara ao tapa e se omitir tambm uma

    forma de errar.

    1.9. Sobre a palavra-flor que triste e sobre uma confisso

    Preferi deixar para falar sobre a palavra-flor que me nasce triste j perto

    do final desta introduo. Quando escrevia sobre violncia minha escrita saa

    machucada, ferida. A palavra-flor que me crescia dentro era aquela de nome

    onze-horas. No eram as onze-horas felizes e ensolaradas como as vemos

    nessa hora do dia pela qual lhe deram o nome. Eram onze-horas murchinhas

    que de tanto fazer doer esqueciam que eram flores e s lembravam de ser

    arame farpado que perfuravam minha pele deixando minha escrita muito

    dolorida.

    Era assim quando fazia, ouvia e transcrevia as entrevistas de criminosos,

    vtimas sobreviventes, famlias de vtimas assassinadas, testemunhas

    "protegidas pela polcia", policiais e moradores da Baixada Fluminense, regio

    onde morei e trabalhei como reprter durante muito tempo. Entrevistas, por

    exemplo, que realizei com integrantes de grupos de extermnio para a srie de

    reportagem publicada no jornal O Dia, em julho de 1993. Foi assim com o

    menino Cione, de 17 anos, que, em fevereiro de 1992, depois de discutir e

    brigar com o comparsa de extermnio, o soldado conhecido como Luiz da Moto,

    no Jardim Redentor, em Belford Roxo, convidou-o para um churrasco. Na festa,

    Cione embebedou Luiz e chamou-o para uma execuo. A vtima, no entanto,

    era o prprio Luiz que foi executado pelo menino com um tiro na boca e outros

    trs pelo corpo. Teve, como ele prprio fazia com suas vtimas, sua cabea, ps

    e mos decepados e o resto do corpo incendiado.

    Cione aparou com um copo o sangue que escorria do cadver, misturou

    com cachaa e bebeu. Passou a ser "vampirinho". Ao entrevistar Cione, preso

  • na delegacia de Belford Roxo, descobri que o jornalista tambm faz perguntas

    que no conseguem sair pela boca. Eu queria saber se em algum lugar de

    "vampirinho" existia algum vestgio de Cione.

    Nem todas as perguntas que fazemos, tanto para uma matria como

    para uma pesquisa acadmica, garantem respostas. So perguntas que o

    entrevistador faz a si mesmo e acumulam dentro de ns palavras feitas de

    flores que morreram sufocadas.

    Infelizmente vivi outras situaes parecidas. No mesmo ano cobri o

    desaparecimento de um beb em Mag. A me chegou delegacia chorando

    porque seu filho havia sumido. O delegado, frio, interrogava a mulher. Foi a

    primeira vez que pensei sobre as diferenas cruciais entre entrevistar e

    interrogar. Conversei com a mulher e ouvi sua histria. Disse-me que deixara o

    filho com o marido e que estava desesperada porque ele no voltara com o

    beb. Registrei os fatos importantes e voltei para o jornal para escrever a

    matria. Antes de sair da delegacia o delegado me disse que casos assim

    costumam revelar absurdas circunstncias. Mal cheguei redao e o delegado

    ligou me chamando de volta. Ele estava certo e gabava-se disso. Na verdade, a

    mulher jogara o prprio filho no bueiro, desses que so cheios de gua.

    Matou o filho para se vingar do marido que a havia abandonado. Quando

    retornei delegacia reencontrei o delegado interrogando a mulher. Dessa vez

    como criminosa e j no como vtima. O que eu queria saber mesmo era onde

    estava a me que amara o filho? Onde estava a me que matara o filho? Outra

    vez na boca o gosto de palavra-flor esmagada por dentro. Deixei o delegado

    fazer seu interrogatrio. Pelo menos esse sabia como fazer seu trabalho,

    pensei.

    O primeiro contato com um integrante de grupo de extermnio (nesse

    caso para a srie publicada) aconteceu numa madrugada, em 1993, no alto de

    um morro, em So Joo de Meriti. Depois de me explicar a diferena entre

    quem mata por dinheiro e quem mata porque se v como justiceiro, esse

    entrevistado colocou um "cartucho de 12" na palma da minha mo, beijou meu

    rosto e disse: "cuidado com o que vai escrever". Outro, em Banco de Areia,

    Mesquita, perguntou se eu e o fotgrafo que me acompanhava gostaramos de

    ver uma execuo, uma mulher "marcada" para aquela noite. "Hoje vamos

  • fazer uma loura", disse-me ele. Costumo dizer que recusei prontamente o

    convite.

    E sim, eu e o fotgrafo recusamos. Mas, anos depois, ao escrever para

    estudantes de jornalismo e pesquisadores que iniciam suas vidas acadmicas,

    sinto-me na obrigao de confessar o que jamais pensei revelar e que demorei

    muito a assumir para mim mesma. Por um segundo, por um msero, absurdo e

    assustador segundo, pensei em aceitar.

    difcil dizer "pensei" porque sei que o que aconteceu no foi um

    pensamento inteiro. Foi um quase pensamento, um tempo sem tempo, um

    soluo de borboleta. O fotgrafo tambm quase pensou. Sei disso porque olhei

    no olho dele e porque olhou no meu tambm, de mim ele sabe. Mas nunca

    falamos sobre aquilo. Quando dentro de ns tudo fica escuro como um

    pntano as flores que nos habitam podem enlouquecer. Mais uma vez a

    rapariga de culos do Saramago sussurra em meu ouvido: "Dentro de ns h

    uma coisa que no tem nome, essa coisa o que ns somos". E o que vamos

    sendo, insisto. Falei sobre isso para dizer que para um jornalista, repito, sim

    um privilgio trabalhar todos os dias com assuntos to diferenciados. Por outro

    lado, todo dia tambm enfrentamos desafios e conflitos que testam mais que

    nossa tica, testam nossa humanidade. Existem confrontos, mais ou menos

    dramticos que esse, vivenciados em diversas reas do jornalismo. Retir-los

    do nvel individual e al-los a uma discusso coletiva sobre princpios e valores

    ajudaria, e muito, a toda equipe de um jornal a fazer um jornalismo, de fato,

    tico. Esses desafios tambm os enfrentam os pesquisadores acadmicos. Para

    ambos, de nada vale fingir que o pntano no existe. No se vence um conflito

    sem reconhec-lo e enfrent-lo.

    Dessas tristes experincias, particularmente tenho dificuldades para

    esquecer o rosto de Cione, o medo nos olhos das testemunhas e sobreviventes,

    o cartucho frio de 12 na mo, o corpo do menino afogado no bueiro, o beijo do

    matador que ainda estala em minha face, aquele segundo em que tudo em

    mim foi pntano e escurido.

    S uma coisa consegue ser ainda pior. Cada vez que entrvamos em uma

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