“sou caboquim da mata, quem manda na mata É eu”: … · dos povos e organizações indígenas...

15
“SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: UM POVO RESSURGIDO, OS ÍNDIOS TABAJARA DE PIPIPIRI / PI E A LUTA POR SUA IDENTIDADE MARCUS PIERRE DE CARVALHO BAPTISTA INTRODUÇÃO Até meados dos anos 2000 a figura do nativo na historiografia piauiense é representada como se tivesse sido completamente exterminada ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX. Os que não foram mortos, de acordo com essa historiografia 1 , terminaram sendo aculturados e assimilados à sociedade. A partir desta constatação pode-se formular a seguinte questão: A identidade e a cultura de um povo pode ser completamente apagada ou assimilada ao povo conquistador? Será que não seria possível perceber elementos na memória dos remanescentes que remetem a sua identidade e cultura, inclusive enquanto uma maneira de resistência ao opressor? Apesar de autores como Machado (2002) enfatizarem o total extermínio da figura do nativo em solo piauiense, existe na contemporaneidade algumas comunidades que são pertencentes a estas culturas, como salienta Franco (2014: 6): [...] há no estado três etnias indígenas com remanescentes identificados pela FUNAI, são elas: os Tabajaras em Piripiri, os Cariris, em Queimada Nova, e os Codó Cabeludo, em Pedro II. Mas pesquisas indicam que existem outras, como os Pimenteiras em Uruçuí Preto. Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí UESPI. Especialista em História Sócio-Cultural pela Faculdade do Médio Parnaíba FAMEP. Cursando Mestrado em História do Brasil na Universidade Federal do Piauí UFPI, iniciado em 2017. 1 Sobre essa questão ver Baptista (2017). Este autor entende que a historiografia piauiense acerca dos indígenas no Piauí pode ser dividida em três momentos: o primeiro indo dos anos 1950 o início dos anos 1980 no qual o índio é percebido enquanto selvagem e inferior culturalmente ao branco, tendo sido já exterminado do Piauí; o segundo momento do final dos anos 1980 até o começo dos anos 2000 no qual o indígena deixa de ser percebido enquanto inferior no que tange a cultura, embora o discurso sobre o genocídio permaneça; e o terceiro momento indo do início dos anos 2000 até a contemporaneidade no qual estudos com novas perspectivas para além da questão do genocídio passam a ser produzidos. Paralelamente a este último momento, há o reaparecimento de grupos indígenas no Piauí que passam a reivindicar direitos políticos e sociais, além do seu direito a reconhecimento enquanto índios, a exemplo dos Tabajara em Piripiri/PI, objeto de estudo deste artigo. É preciso lembrar também que as diferentes perspectivas sobre os indígenas no Piauí coexistem na contemporaneidade, não havendo um consenso entre os pesquisadores sobre estes, uma vez que alguns defendem o genocídio, enquanto outros apontam este pensamento enquanto um equívoco.

Upload: vuongkien

Post on 09-Nov-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: “SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: … · dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, ... povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos

“SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: UM POVO

RESSURGIDO, OS ÍNDIOS TABAJARA DE PIPIPIRI / PI E A LUTA POR SUA

IDENTIDADE

MARCUS PIERRE DE CARVALHO BAPTISTA

INTRODUÇÃO

Até meados dos anos 2000 a figura do nativo na historiografia piauiense é

representada como se tivesse sido completamente exterminada ao longo dos séculos XVII,

XVIII e XIX. Os que não foram mortos, de acordo com essa historiografia1, terminaram sendo

aculturados e assimilados à sociedade. A partir desta constatação pode-se formular a seguinte

questão: A identidade e a cultura de um povo pode ser completamente apagada ou assimilada

ao povo conquistador? Será que não seria possível perceber elementos na memória dos

remanescentes que remetem a sua identidade e cultura, inclusive enquanto uma maneira de

resistência ao opressor?

Apesar de autores como Machado (2002) enfatizarem o total extermínio da figura do

nativo em solo piauiense, existe na contemporaneidade algumas comunidades que são

pertencentes a estas culturas, como salienta Franco (2014: 6):

[...] há no estado três etnias indígenas com remanescentes identificados pela

FUNAI, são elas: os Tabajaras em Piripiri, os Cariris, em Queimada Nova, e os

Codó Cabeludo, em Pedro II. Mas pesquisas indicam que existem outras, como os

Pimenteiras em Uruçuí Preto.

Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Especialista em

História Sócio-Cultural pela Faculdade do Médio Parnaíba – FAMEP. Cursando Mestrado em História do Brasil

na Universidade Federal do Piauí – UFPI, iniciado em 2017. 1 Sobre essa questão ver Baptista (2017). Este autor entende que a historiografia piauiense acerca dos indígenas

no Piauí pode ser dividida em três momentos: o primeiro indo dos anos 1950 o início dos anos 1980 no qual o

índio é percebido enquanto selvagem e inferior culturalmente ao branco, tendo sido já exterminado do Piauí; o

segundo momento do final dos anos 1980 até o começo dos anos 2000 no qual o indígena deixa de ser percebido

enquanto inferior no que tange a cultura, embora o discurso sobre o genocídio permaneça; e o terceiro momento

indo do início dos anos 2000 até a contemporaneidade no qual estudos com novas perspectivas para além da

questão do genocídio passam a ser produzidos. Paralelamente a este último momento, há o reaparecimento de

grupos indígenas no Piauí que passam a reivindicar direitos políticos e sociais, além do seu direito a

reconhecimento enquanto índios, a exemplo dos Tabajara em Piripiri/PI, objeto de estudo deste artigo. É preciso

lembrar também que as diferentes perspectivas sobre os indígenas no Piauí coexistem na contemporaneidade,

não havendo um consenso entre os pesquisadores sobre estes, uma vez que alguns defendem o genocídio,

enquanto outros apontam este pensamento enquanto um equívoco.

Page 2: “SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: … · dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, ... povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos

2

Deste modo, este artigo buscou discutir a construção da identidade dos Tabajara em

Piripiri/PI, ou seja, como estes indígenas percebem-se enquanto tais e quais elementos

pertencentes a sua cultura produzem significados para estes, consequentemente para sua

identidade. Esta discussão tornou-se possível a partir da análise das entrevistas temáticas

realizadas com o então representante da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, Romeu

Tavares Lima Neto, no Piauí e com quatro integrantes da comunidade indígena Tabajara de

Piripiri, sendo dois caciques, um dos quais, o Cacique José Guilherme da Silva, responsável

pelo início do atual movimento indígena no estado e pela luta para o reconhecimento de sua

identidade enquanto indígenas.

A metodologia adotada neste trabalho constou de pesquisa bibliográfica buscando-se a

compreensão da perspectiva construída acerca do indígena no Piauí através da historiografia

piauiense para possibilitar o entendimento sobre este no presente. Além disso, utilizou-se

autores como Lang, Campos e Demartini (1998) e Meihy e Holanda (2007) para dar suporte

no que se refere a utilização da metodologia da história oral na pesquisa realizada e, por fim,

buscou-se também autores que possibilitassem a compreensão do conceito-chave que

permeou a produção deste artigo, no caso, o conceito de Identidade2.

Com relação a metodologia da história oral foram elaborados dois roteiros de

entrevistas, sendo que a direcionada ao representante da FUNAI tratou sobre o processo de

reconhecimento por esta instituição dos remanescentes indígenas no Piauí, sobre sua atuação

no estado até 2016. O segundo roteiro elaborado para os Tabajara de Piripiri abordou,

principalmente, sobre a criação do movimento indígena no Piauí no começo dos anos 2000 e

os elementos culturais que possibilitam sua identidade enquanto índios.

Dessa forma, considerando a pesquisa realizada foi possível apontar que, embora

compreendamos na contemporaneidade a Identidade enquanto algo fluído, para os índios

Tabajara de Piripiri, ser índio está relacionado a certos elementos ou aspectos culturais que,

em sua perspectiva, marcam sua identidade, tais como: o território, a língua, e os costumes,

indicando, assim, uma concepção essencialista que possuem de si mesmos.

2 Para a construção deste artigo utilizou-se a perspectiva de Identidade produzida a partir da pós-modernidade ou

modernidade líquida na concepção de autores como Stuart Hall (2005, 2014), Kathryn Woodward (2014), Tomás

Tadeu da Silva (2014) e Zygmunt Bauman (2005). Estes autores tangenciaram a discussão sobre Identidade no

sentido de possibilitar a compreensão desta enquanto algo fluído, fragmentada, múltipla, contraditória (s),

relacionada aos sistemas de representação podendo se transformar de acordo com a interpelação do sujeito, além

de sua compreensão enquanto um espaço de segurança em um mundo cada vez “menor” no qual as fronteiras

culturais e identitárias se dissolvem em função da globalização. Neste artigo não se discutiu a Identidade e

Diferença enquanto relacionais, no sentido de que uma só pode existir a partir da outra. No entanto, empregou-se

o conceito de Identidade Líquida ou como um “quebra-cabeça” incompleto na tentativa de compreender como os

índios Tabajara de Piripiri constroem sua própria identidade.

Page 3: “SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: … · dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, ... povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos

3

DE ONDE VENHO E PARA ONDE VOU? RESSURGIMENTO E IDENTIDADE DOS

TABAJARA EM PIRIPIRI / PI

Antes de discorrer sobre a forma como os Tabajara em Piripiri se percebem, bem

como a sociedade também o faz, ou seja, acerca da construção da identidade dessa

comunidade indígena piauiense, é preciso, primeiramente, compreender o que levou ao

“reaparecimento” desses grupos indígenas no Piauí.

Mas qual a importância disto? Por que se torna relevante a compreensão deste

acontecimento no Piauí? Primeiramente porque a partir deste aspecto coloca-se uma questão:

Se a historiografia piauiense afirmava veementemente até o final do século XX que os índios

que habitavam o território piauiense haviam sido completamente exterminados, restando dos

mesmos apenas alguns de seus aspectos culturais mesclados com a cultura do colonizador,

como estes teriam reaparecido em meados dos anos 2000 no Piauí?

Segundo, considerando que estes índios nunca foram completamente dizimados, o que

possibilitou o seu reaparecimento no começo dos anos 2000 no Piauí? O que levou estes a

ficarem tanto tempo em silêncio e “invisíveis” no convívio social e o que possibilitou o fim

disso, bem como uma eventual luta por seus direitos políticos e sociais?

Obviamente que a resposta para a primeira pergunta é: Os índios nunca foram

exterminados em sua totalidade no Piauí. A dizimação e o genocídio ocorreram sim. Isso é

inegável. Mas quando falamos de um extermínio total de indivíduos dessa cultura isso ocorreu

puramente no âmbito do discurso. Um discurso construído ao longo dos séculos pela

sociedade que buscou negar a cultura do Outro, no caso aqui, do indígena, bem como silenciar

os descendentes que continuaram a habitar o território piauiense.

É preciso ressaltar que não se busca aqui fazer juízo de valor. Não se pretende

determinar se a construção desse discurso3, não apenas pela historiografia, mas pela própria

sociedade, foi algo equivocado ou não. Não é essa a questão. O ponto é que este discurso

ocorreu e busca-se entender como o mesmo influenciou o “desaparecimento” e o

silenciamento dos indígenas no Piauí.

3 Aqui se entende discurso na perspectiva foucaultiana no que se refere à complexidade acerca da definição do

por que da construção de determinados discursos. Para o autor a “[...] questão que a análise da língua coloca a

propósito de qualquer fato de discurso: segundo que regras um enunciado foi construído e, consequentemente,

segundo que regras outros enunciados semelhantes poderiam ser construídos? A descrição de acontecimentos do

discurso coloca uma outra questão bem diferente: como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu

lugar? [...] A análise do campo discursivo [...] trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade

de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de

estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de

enunciação excluem. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa de um outro discurso:

deve-se mostrar por que não poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e

relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar.” (FOUCAULT, 2008: 30 e 31).

Page 4: “SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: … · dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, ... povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos

4

Contudo, antes de discutir acerca do poder exercido a partir do discurso de negação da

cultura e da existência do próprio indígena sobre o mesmo é necessário compreender os

motivos que levaram ao “reaparecimento” e a luta dos povos indígenas no Piauí.

Dois motivos podem explicar o “ressurgimento” destes povos no território piauiense.

O primeiro deles relaciona-se à aproximação dos Tabajara de Piripiri com outros grupos

indígenas brasileiros, como se pode notar a partir do trecho de entrevista realizada com o

representante da Coordenação Técnica Local – CTL da Fundação Nacional do Índio – FUNAI

em Piripiri. Para ele não apenas a FUNAI, mas a própria sociedade em geral toma

conhecimento da existência de indígenas no Piauí a partir da

[...] participação de algumas lideranças indígenas no movimento indígena nacional,

especificamente na APOINME, que é a Articulação dos Povos Indí... Articulação

dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo. E

ele... é... com essa participação e envolvimento no movimento indígena nacional, né,

passou a ter mais visibilidade, que inclusive chegou ao órgão indigenista, uma

iniciativa do próprio movimento indígena, né, local em Piripiri com o movimento

indígena nacional e aí ganharam essa visibilidade... [...] o Sr. José Guilherme, o

cacique, ele retoma... 2004/2005, né. Eles participaram de uma reunião da

APOINME lá em Olinda, onde funciona a sede da APOINME e lá ele teve o contato

com outras lideranças. O Zé Guilherme teve o reconhecimento do movimento, né...

como liderança e a partir daí passou a ter mais visibilidade a organização indígena,

como grupo indígena.4

Nesse sentido pode-se dizer que a luta pelos direitos políticos e sociais empregada

pelo movimento indígena, bem como a tomada de conhecimento desta pelos Tabajaras em

Piripiri, influenciou no reaparecimento e participação efetiva nesta luta por estes últimos.

Além disso, ressalta-se a importância que o Cacique José Guilherme da Silva teve na

organização e no reaparecimento dos Tabajaras em Piripiri, considerando que foi a partir de

seu reconhecimento enquanto uma liderança indígena que se possibilitou essa visibilidade dos

povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos e pela retomada de sua identidade

indígena.

Indaga-se aqui se este momento pode ser considerado relevante no que se refere a

construção da identidade indígena. Levando em conta que até essa ocasião, ou seja, até o

começo dos anos 2000 afirmava-se categoricamente que não existiam mais índios no Piauí,

com o ressurgimento dos Tabajaras em Piripiri nessa época questiona-se o discurso do

extermínio tão presente no Piauí e volta a entrar em pauta a questão de que se essa

4 Entrevista concedida por Romeu Tavares Lima Neto, indigenista da FUNAI, a Marcus Pierre de Carvalho

Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Teresina em 2016.

Page 5: “SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: … · dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, ... povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos

5

comunidade que agora lutava por seu reconhecimento e por sua identidade realmente era

indígena.

Para o representante da FUNAI em Piripiri esse é um problema que ocorre não apenas

no Piauí, mas em todo o Brasil, visto que em sua perspectiva

[...] o problema, aí não é só Piripiri, né e nem é só o Piauí, é a sociedade brasileira

de entender o indígena como uma categoria transitória, como se a pessoa deixasse

de ser índio, como se o negro deixasse de negro, o japonês deixasse de ser japonês

[...]5

Para ele a sociedade brasileira como um todo possui uma perspectiva similar àquela

discutida por Machado (2002) ao pensar a questão do etnocídio indígena no Piauí, ou seja, a

ideia de que uma cultura pode desaparecer. Ao afirmar que as pessoas percebem o indígena

como se este fosse capaz de deixar de ser índio significando dizer que em sua visão a

sociedade acredita que a identidade é passível de ser perdida.

Pode-se perceber esse problema também a partir do próprio discurso dos indígenas.

Durante a aplicação das entrevistas, ao serem questionados sobre a reação das pessoas quando

os mesmos afirmavam serem indígenas, as respostas foram unânimes: a total descrença na

possibilidade de eles serem índios, muito menos a da existência de indígenas no Piauí,

conforme podemos observar na fala do Cacique José Guilherme da Silva:

Poucos. Poucos dão reconhecimento... dão reconhecimento para nós e muitos nem

dão... dizem: “Ah, onde que aí em Piripiri tem índio... Tudo já estão como se diz, já

não são... não tem a história como naquela época.” [...] Rapaz, é o seguinte, eles

vão e dizem assim: “Rapaz, é o seguinte, eu conheço índio é na mata.”6

Fica evidente na fala do Cacique dois aspectos já comentados anteriormente. O

primeiro seria a ideia por parte da sociedade de que todos os índios que habitavam o território

do Piauí foram completamente exterminados, discurso este construído ao longo do tempo e

fortalecido pela historiografia piauiense até meados do século XX. O segundo aspecto refere-

se a perspectiva sobre o indígena, também construída ao longo do tempo, do período de

conquista e devassamento do território até o século XXI, esta sendo a figura do índio

enquanto selvagem, como um habitante da selva ou da mata, conforme visto na fala do

Cacique.

5 Entrevista concedida por Romeu Tavares Lima Neto, indigenista da FUNAI, a Marcus Pierre de Carvalho

Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Teresina em 2016. 6 Entrevista concedida pelo Cacique José Guilherme da Silva da comunidade indígena Tabajara de Piripiri a

Marcus Pierre de Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri

em 2016.

Page 6: “SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: … · dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, ... povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos

6

Deriva-se disso uma questão no que se refere a visão da sociedade sobre o elemento

nativo e talvez deste último também sobre si. Neste sentido, na discussão sobre Identidade

compreende-se que esta também pode se configurar a partir das relações de alteridade7, ou

seja, ela não diz respeito apenas ao o que o “Eu” pensa de si mesmo, mas também de como o

“Outro”, no caso, a sociedade também o percebe.

Dessa forma quando identificamos no discurso dos indígenas a forma como as outras

pessoas que compõem a sociedade brasileira os percebem podemos ter uma noção da

percepção de identidade por parte da coletividade na qual estes índios estariam inseridos. No

caso em questão, apesar do entendimento de que a identidade é um processo histórico,

estando sempre em constante mudança ao longo do tempo e do espaço, jamais sendo algo

cristalizado e tornando-se múltipla à medida que entra em contato com outras culturas, não é

dessa forma, segundo os Tabajara de Piripiri, que a sociedade piauiense a percebe,

A percepção de identidade que se tem aqui seria a de uma identidade imóvel,

podendo-se dizer que seria uma visão essencialista8 sobre a mesma. Essa perspectiva, sendo

adotada pela sociedade, de certa forma termina provocando e legitimando esses

questionamentos, sobre quem pertence e quem não pertence a determinados grupos

identitários. Questões como: Quem é e quem não é índio? Como ainda podem existir

indígenas se houve o genocídio e etnocídio? Que índio é esse que mora na cidade e não no

mato?

Podem-se elencar dois problemas a partir daí: o primeiro refere-se ao poder do

discurso do extermínio e do etnocídio. É impossível aceitar a possibilidade de o índio deixar

de ser índio sem antes conceber que isso é uma construção social, sem antes entender que isso

deriva de séculos e séculos de uma vinculação do índio à selva, fazendo com que o indígena

que se inserisse na cultura do colonizador deixasse de ser índio, o que teria sido posto em

prática a partir de um etnocídio. Percebe-se isso claramente na obra literária Mandu Ladino9,

por exemplo.

7 Compreende-se aqui Alteridade considerando o pensamento de Tzvetan Todorov (2010) na medida em que este

constrói sua perspectiva a partir das relações estabelecidas entre os nativo-americanos, principalmente os

Astecas, e os europeus, no caso, os Espanhóis, no início do processo de Conquista da América. 8 Segundo Woodward (2014) a perspectiva essencialista sobre a identidade refere-se àquela que sugere a

existência de um conjunto de elementos de coesão a qual todos indivíduos pertencentes a certo grupo

compartilham entre si e que estes aspectos não se transformam ao longo do tempo, acreditando então na

possibilidade de uma essência da identidade. 9 Romance histórico de caráter indigenista de autoria de Anfrísio Neto Lobão Castelo Branco publicado em 2008

que retrata, principalmente, a vida e a trajetória de Mandu Ladino, indígena que viveu no Piauí no início do

século XVIII e que teria sido responsável pelo “Grande levante dos Tapuias” registrado em diversas obras da

historiografia piauiense na tentativa de expulsar os colonizadores do território que viria a ser o Piauí.

Page 7: “SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: … · dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, ... povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos

7

O segundo ponto a se destacar refere-se à ideia de uma identidade cristalizada para

com o indígena. Não apenas acredita-se na possibilidade de perda cultural, mas ao aceitar isso

há também uma corroboração com a identidade enquanto estática. Exclui-se o indígena

enquanto um ser cultural, passível de ter sua cultura e identidade transformadas a partir do

contato com outras culturas, o que dificulta a sociedade a reconhecer os indígenas enquanto

tais.

No que se refere ao discurso de vinculação do indígena à selva, do índio enquanto

selvagem, construído no início do processo colonizador a partir dos viajantes europeus e

endossado ao longo dos séculos por diversos setores sociais, é interessante ressaltar que ele

pode ser percebido também no discurso dos indígenas Tabajara que habitam o território do

Piauí sobre eles próprios. Vejamos o trecho a seguir da entrevista com a Cacique Raimunda

Maria da Silva:

É... olhassem mais a gente, melhor a gente, porque nós somos indígenas, mas nós

somos a merma pessoa, somos gente também, nós não somos assim um bicho

desconhecido do mato, né. Nós somos índios, mas nós somos índios mansos. Índio

bravo do mato é aquele que come gente, nós não comemos gente, né.10

Índio manso. Índio bravo do mato que come gente. Por que a cacique diz isso? Por que

ela se coloca enquanto índio manso admitindo a existência de um índio bravo que vive na

selva, um indígena selvagem? Nada é por acaso, tampouco é sua própria ideia acerca do

indígena. Não é à toa que ela afirma isso. Seu discurso remonta séculos de uma construção

social acerca do indígena. Há aí uma retomada do índio enquanto “silvícola” ou “selvagem”

em detrimento do europeu enquanto civilizado, conforme nos lembra Maestri (2013).

Não apenas isso, mas reforça a ideia de que o indígena precisou ser “pacificado”, ser

“amansado”, ser “civilizado” uma constante durante o processo de colonização do Brasil.

Além disso, aponta o índio “selvagem” como sendo aquele que praticava antropofagia, ou

seja, de uma cultura inferior à do europeu. Nada surge do nada e o mesmo vale para o

discurso, sua origem está em algum lugar, em algum tempo, e existe por um motivo

específico, segundo Foucault (2008). No caso dos indígenas o ideário construído sobre estes

perpassou séculos e influenciou não somente a perspectiva da sociedade sobre eles, mas eles

próprios também.

10

Entrevista concedida pela Cacique Raimunda Maria da Silva da comunidade indígena Tabajara de Piripiri a

Marcus Pierre de Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri

em 2016.

Page 8: “SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: … · dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, ... povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos

8

Para além do conflito entre civilizado e não civilizado presente na construção da

identidade indígena pela sociedade e também pelo índio, há também a associação do indígena

à selva ou à mata. Nesse caso não entra em pauta a discussão da civilidade, mas sim do

espaço que o índio deveria ocupar e como a não ocupação do mesmo significaria a perda de

sua identidade indígena.

Já vimos que a não ocupação deste espaço, ou seja, da mata pelo índio, para a

sociedade significaria afirmar que este indivíduo já não poderia mais se autodenominar

enquanto tal, conforme expresso na fala do Cacique José Guilherme da Silva. Questiona-se,

porém, qual a perspectiva da própria comunidade sobre esse aspecto? Há uma vinculação de

sua identidade a selva ou a mata pelos índios, assim como há pela sociedade? Observemos o

trecho a seguir: “Rapaz, é o seguinte, eles vão e dizem assim: ‘Rapaz, é o seguinte, eu

conheço índio é na mata’. Eu digo: ‘Mas aí nós não temos, nós não temos ainda para poder a

gente ir para as matas.’.”11

.

Este segmento refere-se à resposta sobre a reação das pessoas quando estes afirmam

que são índios. O primeiro momento da fala já foi visto anteriormente e também discutido. O

interessante aqui é a segunda parte da resposta, na qual o Cacique afirma que os indígenas não

voltaram ainda para mata ou para a selva justamente por não possuírem ainda estas terras.

Aqui se entende a vinculação da mata à identidade indígena dos Tabajara de Piripiri com as

terras sendo percebidas enquanto um elemento de coesão para a comunidade. Não somente no

discurso dos indígenas identifica-se isso, mas também nas próprias músicas do ritual do

Toré12

, conforme expresso a seguir.

“Sou caboquim da mata, quem manda na mata é eu. Sou caboquim da mata, quem

manda na mata é eu. É eu, é eu, é eu, quem manda na mata é eu. É eu, é eu, é eu, quem

manda na mata é eu.”13

. Nota-se neste trecho de uma das músicas cantadas no Toré

justamente essa identificação do indígena com a mata, visto que esta reitera sobre o espaço14

que ele deve ocupar, tornando-se um elemento de coesão para a comunidade.

11

Entrevista concedida pelo Cacique José Guilherme da Silva da comunidade indígena Tabajara de Piripiri a

Marcus Pierre de Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri

em 2016. 12

Dança de roda realizada por diversos grupos indígenas, geralmente acompanhada por instrumentos musicais,

como tambores e maracás. 13

Música cantada pelo Cacique José Guilherme da Silva, pela Cacique Raimunda Maria da Silva, por José

Maria de Oliveira Silva e Maria dos Remédios da Silva durante entrevista concedida a Marcus Pierre de

Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri em 2016. 14

Neste contexto o espaço assume conotação de pertencimento e significado, constituindo-se em lugar (TUAN,

2013).

Page 9: “SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: … · dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, ... povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos

9

Ressalta-se na questão da delimitação do território uma necessidade de reafirmar sua

conexão com a terra, pois não havendo ainda sido definido as áreas que reivindicam, o grupo

conseguiu adquirir com recursos próprios um pequeno terreno na zona urbana de Piripiri, no

qual estão construindo uma Maloca15

com o objetivo de praticar o Toré, produzir artesanato e

agricultura no seu entorno.

Neste caso a Maloca representa um espaço identitário, constituindo-se em um lugar

para os índios, no qual eles pretendem não somente realizar seus rituais, mas também

desenvolver atividades relacionadas a produção de artesanato na busca de consolidar sua

cultura.

Voltando a discussão sobre a mata, ao mesmo tempo em que esta é percebida,

associada à sua identidade16

, ela também é vista como um meio de sobrevivência para a

comunidade Tabajara de Piripiri. Quando questionada sobre a demarcação de terras, a

Cacique Raimunda Maria da Silva respondeu o seguinte:

É importante porque aí nós temos terra para nós trabalharmos, para fazer nosso

plantio, para tirarmos de dentro para comermos, dar de comer à nossa família,

nossos filhos e render para pegar naquele dinheirinho para a pessoa ir botando

para frente.17

Muito além de uma necessidade cultural, a demarcação de terras para a comunidade

Tabajara em Piripiri também significa a busca por sua sobrevivência e, juntamente a

necessidade de seu reconhecimento enquanto indígenas, uma luta por seus direitos políticos e

sociais, conforme assegurados pela Constituição Federal de 198818

.

Neste contexto o próprio ritual do Toré legitima a mata e suas terras enquanto

elementos de identidade e também se torna um componente de concordância e união da

comunidade, mas antes de comentar sobre o Toré em si, é preciso primeiramente indicar que

os Tabajaras que se encontram em Piripiri vêm passando por um processo de hibridização

cultural. É inegável que os indígenas piauienses não foram totalmente dizimados, muito

15

Segundo Maestri (2013) Maloca é o nome dado a aldeia indígena com habitação para várias famílias

pertencentes a mesma comunidade. Contudo, utiliza-se este termo, pois é assim que o indigenista entrevistado da

FUNAI se refere a esta. 16

Nesse caso o termo refere-se a Identidade territorial, esta sendo associada à posse de um espaço comum que

remete a identidade de um povo pela delimitação de fronteiras e multiplicação de suas marcas (CLAVAL, 2007). 17

Entrevista concedida pela Cacique Raimunda Maria da Silva da comunidade indígena Tabajara de Piripiri a

Marcus Pierre de Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri

em 2016. 18

O Artigo 231 da Constituição Federal de 1988 reconhece às comunidades indígenas suas organizações sociais,

crenças, tradições, línguas e o direito às terras originalmente ocupadas por estes. (BRASIL, 1988). Ainda assim,

até o ano de 2016, mesmo com o reconhecimento da FUNAI e do IBGE da Comunidade Tabajara em Piripiri e

apesar do direito a demarcação assegurada pela Constituição, as demarcações de terras ainda não foram feitas.

Page 10: “SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: … · dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, ... povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos

10

menos sofreram um processo total de etnocídio. Afirma-se, no entanto, que o que resultou

desta relação violenta que se impôs ao nativo foi um processo de Tradução19

, ou seja, os

nativos que habitavam e que ainda vivem foram forçados a assimilarem os valores culturais

dos europeus transformando e hibridizando, assim, sua cultura e sua identidade sem, contudo,

apagá-la.

Dessa forma, aspectos de sua cultura, como o Toré, se “perderam” ao longo do tempo,

ou mesmo sua religião, considerando que todos os entrevistados afirmaram ser católicos, e

nos últimos anos estes elementos passam a ser retomados pelos Tabajara. No que se refere ao

reaprendizado do Toré pela comunidade Tabajara em Piripiri, Lima Neto, indigenista da

FUNAI, nos diz o seguinte:

[...] um processo que foi iniciativa deles, né, de resgate de um ritual que é o Toré,

né. Isso se deu a partir da aproximação também com a comunidade de Poranga que

fica a 120 km de Piripiri, depois de Pedro II mais 58 km, né, a cento e poucos

quilômetros lá de Piripiri. E aí a gente tem apoiado essa aproximação, esse

movimento, né. Traz o pessoal de Poranga pra Piripiri, leva o pessoal de Piripiri

pra Poranga, eles tão... porque o pessoal de Poranga que é do mesmo grupo étnico,

Tabajara, né. Lá é Tabajara e Calabaça, mas a maior parte da comunidade é

Tabajara. Eles já estão dentro de um contexto de movimento indígena com maior

experiência que é o movimento indígena do Ceará, né. E eles trocaram experiência

e apoiaram num processo de resgate cultural do Toré. Então em Piripiri hoje você

tem grupos que já... é... de forma espontânea, né, e autônoma eles não precisam

mais do pessoal de outros grupos pra assim, pra poder conduzir um Toré. Eles

mesmo conduzem agora um Toré.[...]. 20

O “reaprendizado” do Toré torna-se, então, uma maneira da comunidade de “retomar”

sua identidade indígena. Mesmo que em nossa percepção a identidade não seja algo estático e

esteja em constante transformação, não é dessa forma que os Tabajara de Piripiri percebem

essa questão. Sendo assim, quando questionados sobre a importância do Toré foram unânimes

as respostas que apontavam a relevância do mesmo para a comunidade e a necessidade do

índio de ter o seu “cante”, referindo-se assim ao Toré. Observemos a fala da Cacique

Raimunda Maria da Silva ao ser questionada sobre a importância do Toré: “Rapaz, a

19

A partir de Stuart Hall (2005) entende-se o conceito de Tradução da seguinte maneira: Refere-se as identidades

construídas a partir de sujeitos que ultrapassaram as fronteiras “naturais” ou se encontram no limiar destas, no

sentido de perceber esses sujeitos enquanto pessoas que se dispersaram de suas terras de origem, mantendo, no

entanto, um significativo vínculo com estas e com suas tradições. Estas condições exigem uma negociação com

novas culturas com as quais passam a conviver, para não serem por elas assimiladas e não perderem totalmente

suas identidades. Estes sujeitos trazem em si aspectos de suas culturas, tradições, linguagens, memória e histórias

que marcam suas trajetórias, tendo como diferença a percepção que estes aspectos nunca mais serão unificados

ou significados da mesma maneira, pois passam a ser o produto de diversas histórias e culturas interligadas,

pertencendo a vários grupos e não somente a um em particular. Estes sujeitos passam a formar uma cultura

híbrida, sendo obrigados a abdicar da ideia de uma cultura pura, ou seja, da possibilidade de retomar uma

essência que na prática nunca existiu, configurando, deste modo, em uma Tradução. 20

Entrevista concedida por Romeu Tavares Lima Neto, indigenista da FUNAI, a Marcus Pierre de Carvalho

Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Teresina em 2016.

Page 11: “SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: … · dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, ... povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos

11

importância do Toré é porque nós que somos índios temos que ter um cante nosso, né. Todo

índio tem que ter seu cante”21

.

Em sua perspectiva, a relevância do ritual do Toré dentro da comunidade é justamente

a de reforçar sua identidade. A partir do momento em que a Cacique afirma que todo indígena

tem que ter seu “cante” ela significa o Toré enquanto um ritual de identidade.

Dessa forma, o ritual do Toré apresenta uma significação mais profunda no que se

refere aos Tabajara de Piripiri, e esta está intrinsicamente conectada a identidade deste povo.

Vale lembrar que segundo Catroga (2005) um dos papeis da religião é a produção de um

espírito de coesão e de identidade dos quais as pessoas se utilizam para construção de uma

sociedade. Entretanto, segundo Eliade (1972) os rituais de sociedades “arcaicas” podem ter as

mais distintas significações, nem sempre atrelados a religiosidade. Esse parece ser o caso do

Toré.

A partir da análise da percepção do Toré pelos indígenas retomamos a questão de uma

visão essencialista sobre a identidade destes. Não apenas o Toré representa essa perspectiva

considerado como um aspecto da cultura que todo índio deve ter, mas outros elementos

também podem ser inseridos nesse ideário, como a linguagem, por exemplo. Vejamos o

trecho a seguir:

E aí a gente foi e perdeu por causa da mudança do povo que aí se aquele, como se

diz, eu se eu casar uma filha minha com outro dacolá, aí já a família já vem, como

se diz, no estudo já é do outro jeito, já é inglês e tudo. Aí o índio perdeu a, como se

diz, a etnia... a identidade da língua, né. A língua como os que são do Pará e aqui

nós aqui, já somo, como se diz, já somo regalizado... se diz é, né, regalizado, é?

Sobre a linguagem que aí tamo o índio branco, bem dizer, bem dizer, aí os índio

branco como vocês. Perdemo, né, a linguagem dos índio antigo e daí por diante.

[...] Sobre essas escolas indígena é o seguinte é sobre pra voltar a linguagem do

tempo antigo dos velho pai da gente porque aí gente tem que aprender e aí se

formar como eu vejo no Pará e no Amazonas [...]22

Ao falar sobre a “perda” de sua identidade indígena, de não terem mais a História dos

seus ancestrais, o Cacique José Guilherme da Silva comenta também sobre o esquecimento da

linguagem. Aponta igualmente para o processo de Tradução que sofreram ao afirmar que

atualmente encontram-se como “índios brancos como nós”, ou seja, refere-se à hibridização

das culturas e a assimilação de valores culturais dos brancos, no caso em específico a

21

Entrevista concedida pela Cacique Raimunda Maria da Silva da comunidade indígena Tabajara de Piripiri a

Marcus Pierre de Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri

em 2016. 22

Entrevista concedida pelo Cacique José Guilherme da Silva da comunidade indígena Tabajara de Piripiri a

Marcus Pierre de Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri

em 2016.

Page 12: “SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: … · dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, ... povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos

12

linguagem. Vale ressaltar que esse processo de hibridização é perceptível também em outros

aspectos, como, por exemplo, a religião, visto que todos os entrevistados afirmaram ser

católicos quando questionados se tinham religião e qual seria esta.

No entanto, no caso da linguagem, percebe-se uma preocupação do Cacique em

retomar a “linguagem antiga” dos seus ancestrais. Mais uma vez pode-se afirmar a partir disso

uma percepção essencialista sobre o ser índio por parte da comunidade Tabajara em Piripiri.

Acredita-se em uma essência da identidade indígena, pautada pela sua presença na mata, por

seus rituais, como o Toré, e também pela linguagem utilizada por seus ancestrais. E, em

virtude disso, a necessidade da retomada destes elementos para a autoafirmação de sua

identidade enquanto indígenas.

O interessante aqui é que a “recuperação” destes aspectos de sua cultura são relevantes

não apenas para a comunidade, mas para que a própria sociedade os reconheça enquanto

indígenas, visto que ela também tem essa percepção cristalizada da cultura e do ser índio. No

que se refere ao resgate do Toré, Lima Neto nos diz o seguinte:

Então com essa revitalização do Toré eles também passaram a ter mais notoriedade

inclusive em Piripiri, então eles participam de eventos culturais nas escolas, né, nas

rádios, então eles tão agora tendo mais visibilidade que também era um outro projeto

nosso, né, da CTL também em discussão com a comunidade de dar visibilidade para

esse grupo, né, dentro do estado. Dentro de Piripiri já começou esse processo, já tem

amplo, ampla participação diante da... E antes disso, antes disso, eles já eram

reconhecidos, né, eles já eram reconhecidos como índios, antes de terem uma

associação indígena, pelos traços físicos deles, né. Lá em Piripiri ainda tem uma

marca biotípica muito forte, né, os traços... que isso não é determinante pra

reconhecimento de um indígena, né, mas isso tem um peso, né, visual. Então eles

são reconhecidos como índios pelos traços deles, inicialmente e depois pela forma

também de se organizarem, né. Esse é um ponto. 23

Fica notório para o indigenista a relevância do resgate do Toré para uma maior

aceitação da sociedade piripiriense da comunidade enquanto indígenas. De maneira similar, os

próprios índios também pensam assim como podemos observar no trecho a seguir: “O Toré é

bom aqui pra nós porque onde a gente chega a gente representa, né, o Toré da gente aí o

pessoal vai mais reconhecendo nós aqui em Piripiri.”24

Dessa forma, o “resgate” de elementos culturais vinculados à etnia indígena não

apenas apresenta uma percepção essencialista de sua identidade, mas também se torna uma

forma de legitimá-los perante a sociedade enquanto indígenas. Notou-se então, ao longo das

23

Entrevista concedida por Romeu Tavares Lima Neto, indigenista da FUNAI, a Marcus Pierre de Carvalho

Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Teresina em 2016. 24

Entrevista concedida por Maria dos Remédios da Silva da comunidade indígena Tabajara de Piripiri a

Marcus Pierre de Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri

em 2016.

Page 13: “SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: … · dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, ... povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos

13

entrevistas, que, segundo a comunidade indígena de Piripiri, a sociedade se encontra

fortemente marcada pelo discurso do extermínio e etnocídio, não acreditando na existência de

índios em 2016, reconhecendo-os apenas pelo fenótipo e não por sua identidade.

CONCLUSÃO

Evidentemente nada acontece de imediato e transformações levam tempo,

principalmente quando estamos tratando de um discurso construído ao longo de séculos, mas

a partir das lutas empregadas pelos povos Tabajara em Piripiri certas mudanças começam a

ser percebidas no âmbito da sociedade. Embora a Constituição Federal assegure o direito a

demarcação de terras e mesmo com as políticas públicas federais direcionadas a populações

marginalizadas que surgiram nos últimos anos, é indiscutível que o Estado, em sua esfera

federal, continua a negar para alguns grupos sua identidade, bem como os próprios direitos

que este haveria de assegurar, sendo o caso da comunidade Tabajara em Piripiri.

Contudo, no que se refere ao Estado, no âmbito estadual, o governo do Piauí lançou

em 2016 um projeto denominado “O Piauí tem índio sim” (PIAUÍ, 2016), que, inicialmente,

visa pesquisas sobre a identificação das populações indígenas e a criação de um polo especial

de saúde para estes. A relevância de projetos como este é justamente a ruptura com o discurso

de etnocídio e de genocídio que antes prevalecia na sociedade. É o Estado aceitando e

afirmando que ainda existem índios no Piauí e, não apenas isso, reconhecendo a importância

de sua cultura e identidade, em contrapartida ao discurso anterior.

Embora a perspectiva apresentada pelos índios Tabajara de Piripiri remeta a uma

identidade essencialista, o que se pode observar é uma Tradução e Hibridização de sua cultura

com a do conquistador, indicado a partir da prática da religião católica, que influencia seus

rituais e também a própria língua, já que não mais conhecem seu “idioma original”, mas sim

falam o português.

Destarte, os indígenas de Piripiri ainda têm um percurso significativo na consolidação

de sua identidade, uma vez que permanece o predomínio do discurso pelo caráter do

extermínio e da inexistência de seus remanescentes no Piauí, embora com herança

reconhecida na sociedade em função de diversos costumes derivados do encontro ocorrido

entre o branco e o nativo indígena que habitava o território piauiense. O ressurgimento de

comunidades indígenas no Piauí desconstrói esse discurso e estabelece novas possibilidades

para se pensar a história indígena piauiense.

Certa vez Ribeiro (2015) disse que para além das fronteiras da civilização os indígenas

brasileiros poderiam ser encontrados isolados em micro tribos ao longo do território nacional.

Page 14: “SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: … · dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, ... povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos

14

No caso dos indígenas que habitam o Piauí o mais acertado seria dizer que para além das

fronteiras dos livros eles permanecem, lutam e sobrevivem e à sociedade falta a sensibilidade

para compreendê-los e aceita-los.

São índios? São!

REFERÊNCIAS

BAPTISTA, Marcus Pierre de Carvalho. Da “selva” ao sangue à vida: O discurso

historiográfico indígena no Piauí. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 29., 2017,

Brasília. Anais... Brasília: ANPUH, 2017. p. 1 – 17.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar,

2005.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,

DF: Senado Federal, 1988.

CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito: religião civil e comemoracionismo: EUA, França

e Portugal. Fortaleza: NUDOC-UFC / Museu do Ceará, 2005.

CLAVAL, Paul. A geografia cultural. 3. ed. Florianópolis: UFSC, 2007.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.144p.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7.ed.

Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

FRANCO, Roberto Kennedy Gomes. Histórias Orais dos Remanescentes Indígenas no

Território do Piauí no Século XXI. In: ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA ORAL:

POLÍTICA. ÉTICA E CONHECIMENTO, 21., 2014, Teresina. Anais...Teresina: ABHO,

2014.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Dp&A, 2005.

LANG, Alice Beatriz da Silva Gordo; CAMPOS, Maria Christina Siqueira de Souza;

DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri. História Oral e Pesquisa Sociológica: a experiência do

ceru. São Paulo: Humanitas Publicações, 1998.

Page 15: “SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: … · dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, ... povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos

15

MACHADO, Paulo Henrique Couto. As trilhas da morte: extermínio e espoliação das

nações indígenas na região da bacia hidrográfica parnaibana piauiense. Teresina: Corisco,

2002. 57p.

MAESTRI, Mário. Os senhores do litoral: conquista portuguesa e agonia tupinambá no

litoral brasílico. 3. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2013.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História Oral: como fazer, como

pensar. São Paulo: Contexto, 2007.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:

Companhia das Letras, 2015.

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. 4. ed. São Paulo: WMF

Martins Fontes, 2010.

TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira.

Londrina: EDUEL, 2013.

SILVA, Tomaz Tadeu da; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn (Orgs.). Identidade e

diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

FONTES

LIMA NETO, Romeu Tavares. Romeu Tavares Lima Neto: Depoimento [jul. 2016].

Entrevistador: Marcus Pierre de Carvalho Baptista. Teresina/PI, 2016. Gravação digital.

SILVA, José Guilherme da. José Guilherme da Silva: Depoimento [jul. 2016].

Entrevistador: Marcus Pierre de Carvalho Baptista. Piripiri/PI, 2016. Gravação digital.

SILVA, Maria dos Remédios da. Maria dos Remédios da Silva: Depoimento [jul. 2016].

Entrevistador: Marcus Pierre de Carvalho Baptista. Piripiri/PI, 2016. Gravação digital.

SILVA, Raimunda Maria da. Raimunda Maria da Silva: Depoimento [jul. 2016]. Entrevistador: Marcus Pierre de Carvalho Baptista. Piripiri/PI, 2016. Gravação digital.

PIAUÍ. (Estado). “Piauí tem índio sim” é lançado hoje no Palácio de Karnak. Disponível

em: http://www.piaui.pi.gov.br/noticias/index/categoria/2/id/25103. Acesso em: 08 set. 2016.