povos indiginas

Upload: patricia-sousa

Post on 30-Oct-2015

155 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 2fich

    a ca

    talo

    gr

    fica

    Ficha catalogrfica

    C744d Conselho Regional de Psicologia da 6 Regio (org). Psicologia e povos indgenas / Conselho Regional de Psicologia da 6 Regio So Paulo: CRPSP, 2010. 250f.; 23cm. Bibliografia ISBN: 978-85-60405-13-8 1.Povos indgenas 2.Antropologia 3. Cidadania 4. Sade 5. Psicologia I.Ttulo. CDD 150

    Psicologia, Indgenas, Sade, Antropologia, Polticas Pblicas

    Elaborada por:Vera Lcia Ribeiro dos Santros Bibliotecria CRB 8 Regio 6198

    Psicologia e Povos Indgenas

    DiretoriaPresidente | Marilene Proena Rebello de SouzaVice-presidente | Maria Ermnia CilibertiSecretria | Andria De Conto GarbinTesoureira | Lcia Fonseca de Toledo

    Conselheiros efetivosAndria De Conto Garbin, Carla Biancha Angelucci, Elda Varanda Dunley Guedes Machado, Jos Roberto Heloani, Lcia Fonseca de Toledo, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, Maria Cristina Barros Maciel Pellini, Maria de Ftima Nassif, Maria Ermnia Ciliberti, Maria Izabel do Nascimento Marques, Maringela Aoki, Marilene Proena Rebello de Souza, Patrcia Garcia de Souza, Sandra Elena Sposito e Vera Lcia Fasanella Pomplio.

    Conselheiros suplentesAdriana Eiko Matsumoto, Beatriz Belluzzo Brando Cunha, Carmem Silvia Rotondano Taverna, Fabio Silvestre da Silva, Fernanda Bastos Lavarello, Leandro Gabarra, Leonardo Lopes da Silva, Lilihan Martins da Silva, Luciana Mattos, Luiz Tadeu Pessutto, Lumena Celi Teixeira, Maria de Lima Salum e Morais, Oliver Zancul Prado, Silvia Maria do Nascimento e Sueli Ferreira Schiavo.

    Gerente geralDigenes Pepe

    Organizao do LivroLumena Celi Teixeira e Luiz Eduardo Valiengo Berni

    Reviso finalWaltair Marto

    Projeto Grfico e EditoraoEstdio 196 Design e Comunicaowww.estudio196.com.br

  • 3intr

    odu

    o

    introduo

    A XII Plenria do Conselho Regional de Psicologia de So Paulo incluiu, entre

    as suas aes permanentes de gesto, o registro e a divulgao dos debates

    realizados no Conselho em diversos campos de atuao da Psicologia.

    Essa iniciativa atende a diversos objetivos. O primeiro deles concretizar um

    dos princpios que orienta as aes do CRP SP o de produzir referncias para

    o exerccio profissional dos psiclogos; o segundo o de identificar reas que

    merecem ateno prioritria, em funo da relevncia social das questes

    que elas apontam e/ou da necessidade de consolidar prticas inovadoras e/ou

    reconhecer prticas tradicionais da Psicologia; o terceiro o de, efetivamente,

    dar voz categoria, para que apresente suas posies e questes, e reflita sobre

    elas, na direo da construo coletiva de um projeto para a Psicologia que

    garanta o reconhecimento social de sua importncia como cincia e profisso.

    Os trs objetivos articulam-se e a produo de publicaes que registrem os

    debates permite contar com a experincia de pesquisadores e especialistas da

    Psicologia e de reas afins para apresentar e discutir questes sobre as atuaes

    dos psiclogos, as existentes e as possveis ou necessrias, relativamente a reas

    ou temticas diversas, apontando algumas diretrizes, respostas e desafios que

    impem a necessidade de investigaes e aes, trocas e reflexes contnuas.

    A publicao de trabalhos como Psicologia e Povos Indgenas , nesse sentido,

    um convite continuidade dos debates. Sua distribuio dirigida aos

    psiclogos e aos parceiros diretamente envolvidos nesta temtica, criando uma

    oportunidade para que provoque, em diferentes lugares e de diversas maneiras,

    uma discusso profcua sobre a prtica profissional dos psiclogos.

    Nossa proposta a de que este material seja divulgado e discutido amplamente

    e que as questes decorrentes desse processo sejam colocadas em debate

    permanente, para o qual convidamos os psiclogos.

    Diretoria do CRP SPGesto 2007-2010

  • nd

    ice

    4

  • 5nd

    ice

  • 6apre

    sen

    ta

    o

  • 7apre

    sen

    ta

    o

    breve histrico

    Ao considerar os desafios da realidade brasileira contempornea e as

    consequentes inovaes que surgem no exerccio profissional dos psiclogos,

    o Sistema Conselhos de Psicologia tem apoiado e promovido oportunidades de

    discusso visando ao aprofundamento e compartilhamento de novos saberes e

    prticas, alinhados s necessidades emergentes da sociedade. Neste contexto

    que a aproximao da Psicologia aos Povos Indgenas se apresenta como uma

    dessas necessidades.

    Os movimentos indgenas que se fortaleceram nas ltimas dcadas pautam-

    se nos ideais de autodeterminao desses povos, na valorizao da prpria

    cultura e na expectativa de um dilogo intertnico e intercultural com base na

    tica e no respeito diversidade. Considerando-se que as questes enfrentadas

    atualmente pelos povos indgenas brasileiros apresentam razes histricas

    marcadas pela dominao sociocultural dos no-ndios, o principal desafio das

    sociedades indgenas poder manter um contato com a sociedade nacional sem

    perder a integridade cultural e tnica. Esse desafio deve ser tratado tambm

    como premissa na ateno s necessidades das comunidades indgenas, no

    sentido de embasar as prticas e as concepes de trabalho com estes povos.

    Fruto deste processo scio-histrico, muitas so as marcas de ordem psicossocial

    identificadas pelas comunidades, que comprometem a qualidade de vida e a

    sade mental desses indivduos. Nesta medida, a Psicologia e os psiclogos so

    convocados a encontrar seu lugar neste campo.

    O ponto de partida no Sistema Conselhos de Psicologia foi o Seminrio

    Nacional Subjetividade e Povos Indgenas, realizado em 2004 pelo Conselho

    Federal em parceria com o Conselho Indigenista Missionrio, em Braslia.

    O evento contou com a presena de lideranas indgenas de vrias etnias

    e Estados brasileiros, alm de psiclogos representando todos os Conselhos

    Regionais. O referido evento atendia diretrizes do IV CNP Congresso

    Nacional da Psicologia, o qual recomendava que a Psicologia deveria se

    aproximar das questes indgenas do nosso pas.

    Esta tem sido a direo das aes realizadas pelo CRP SP desde ento, ao propor

    dilogos entre psiclogos, lideranas indgenas e profissionais de reas afins,

    como os da sade, antroplogos, assistentes sociais, educadores e historiadores.

    Isso reflete um jeito de trabalhar que entendemos ser o melhor, pois nos garante

    uma interlocuo com a sociedade, com os psiclogos, com demais profissionais,

    com entidades parceiras e outras instituies ligadas temtica.

  • 8apre

    sen

    ta

    o

    Outra ao que consideramos importante, tambm como papel do Conselho,

    criar referncias para a atuao dos psiclogos. No no sentido de dizer como

    o trabalho deve ser feito, mas, sim, afirmando que o Conselho acompanha e

    fomenta uma discusso importante, que oferece princpios para uma atuao

    profissional com qualidade, de acordo com o contexto social e cada problemtica

    que se apresenta como desafio para a categoria.

    Desde 2005, o CRP SP tem realizado uma srie de aes e, para tanto,

    constitumos um Grupo de Trabalho, em cuja pgina eletrnica pode-se

    encontrar o histrico dessas aes, legislao de interesse, galeria de fotos e

    outras informaes relevantes: www.crpsp.org.br/povos

    Inicialmente, procedemos a um levantamento de psiclogos que trabalhassem

    com indgenas no Estado, de maneira a articul-los por meio de um grupo

    eletrnico que contasse tambm com a participao de outros profissionais da

    rea. Esse grupo conta hoje com mais de 200 participantes e tem servido como

    ponto de encontro e troca de experincias. Endereo: http://br.groups.yahoo.

    com/group/Psicologia-Indigenas.

    Em seguida, produzimos o CD-Rom Subjetividade e Povos Indgenas, para

    sensibilizao dos psiclogos sobre o tema. Esse produto foi distribudo s

    subsedes para subsidiar as discusses em 2006.

    Em 2007, realizamos os primeiros encontros presenciais. O primeiro colquio,

    realizado na Capital em maro daquele ano, se constituiu em evento preparatrio

    para o VI CNP, cujas teses foram aprovadas nacionalmente e garantiram as

    aes subsequentes. Em agosto, promovemos um Encontro de Profissionais das

    Cincias Humanas sobre as Questes Indgenas, tambm na Capital, marcando

    a interdisciplinaridade necessria neste dilogo.

    Produziu-se ainda uma edio do TV Diversidade (n 68) sobre a temtica,

    em parceria com a TV PUC, com imagens e entrevistas colhidas durante os

    eventos. O acesso est disponvel no site do Conselho.

    No ano seguinte, 2008, realizamos dois eventos. Em maio, organizamos o

    Encontro Multiprofissional de Ateno aos Povos Indgenas, no municpio de

    Santos. Em novembro realizamos novo colquio, fortalecendo principalmente

    a interlocuo com a Antropologia.

    Em 2009, realizamos cinco Encontros Interdisciplinares nas regies onde se

    localizam as aldeias existentes hoje no Estado, articulando a localizao das

    mesmas s regies de abrangncia das subsedes do Conselho. Os eventos foram

    em Boiucanga/So Sebastio (Subsede do Vale do Paraba), Itanham (Subsede

    da Baixada Santista e Vale do Ribeira) e Tup (Subsede de Assis), sendo que neste

    ltimo participaram profissionais e indgenas tambm de Bauru, Itaporanga e

  • 9apre

    sen

    ta

    o

    Baro de Antonina. Finalizamos com um colquio na Capital, em novembro,

    que se constituiu em evento preparatrio para o VII CNP.

    Nosso objetivo, em todos os encontros, foi o de propiciar dilogos entre

    profissionais de diversas reas, seus saberes e prticas, compreendendo que a

    atuao nessa rea deve se pautar pela interdisciplinaridade. Nesses dilogos,

    contamos tambm com a presena imprescindvel das lideranas indgenas

    locais, de maneira a legitimar a construo coletiva de referncias que vimos

    empreendendo.

    Temos nos empenhado na criao desses espaos, na abertura ao dilogo

    interdisciplinar e na sistematizao das reflexes produzidas coletivamente.

    Este percurso j aponta importantes recomendaes para atuao dos psiclogos

    junto s comunidades indgenas, as quais so apresentadas no captulo final

    desta publicao.

    Apresentamos ainda a maioria das palestras proferidas nos eventos, j

    que algumas infelizmente no puderam ser gravadas, com o propsito de

    compartilhar a riqueza dessa produo com todos os interessados e simpatizantes

    das lutas indgenas por melhores condies de vida.

    Esperamos contribuir, especialmente, com as discusses que envolvem

    as relaes interculturais intrnsecas a esse novo campo de atuao para

    os psiclogos, acentuando que os cuidados de ordem tcnica no devem se

    sobrepor aos de ordem tica, mas andar juntos. Tal atuao precisa expressar

    o compromisso social e o apoio da Psicologia brasileira autodeterminao

    dos povos, sem constituir-se em uma nova forma de dominao cultural. Ao

    contrrio, deve se fundamentar no universo simblico e na escuta s demandas

    de cada etnia, contribuindo para o fortalecimento da diversidade cultural

    brasileira.

    Agradecemos a todos que contriburam para a produo deste material e

    nutrimos a expectativa de que a categoria prossiga nesse importante caminhar.

    Por fim, desejamos bom proveito na leitura a todos!

    Lumena Celi TeixeiraCoordenadora do GT Psicologia e Povos Indgenas

  • 10

    apre

    sen

    ta

    o

    percepes sobre os encontros interdisciplinares

    Este texto foi escrito paulatinamente ao longo dos trs anos em que o autor esteve envolvido

    junto ao Conselho Regional de Psicologia de So Paulo GT Psicologia e Povos Indgenas,

    na tarefa de buscar uma aproximao da Psicologia, Cincia e Profisso, com o saber

    dos povos originrios. Cada item refere-se a um dos eventos realizados, seguido de um

    subttulo em que procurou expressar a essncia das aprendizagens realizadas. Como as

    percepes so seletivas, as falas dos palestrantes aqui reproduzidas podem no refletir

    a exatido da opinio de seus autores, fato que o leitor poder constatar ao ler os textos

    originais apresentados tambm nesta publicao. O que se pretendeu aqui foi apresentar

    a cronologia de um processo de aprendizagem com enfoque transdisciplinar que todo

    psiclogo dever necessariamente buscar para a mediao transcultural fundamental ao

    lidar com as populaes indgenas.

    Luiz Eduardo Valiengo BerniMembro do GT Psicologia e Povos Indgenas

    Maro de 2007 Primeiro Colquio Psicologia e Povos Indgenas - So Paulo, SP

    Iniciando a Conversa: Mesas-Quadradas e Cerimnias Sagradas

    O ambiente no era exatamente tribal. Ao se adentrar pela porta do auditrio

    do Conselho Regional de Psicologia de So Paulo, era possvel ouvir a msica

    guarani com sua marcao rtmica caracterstica: tambor, rabeca, violo e o canto

    unssono dos ndios. Infelizmente era uma gravao. Essa foi a recepo que ns,

    psiclogos, tivemos em So Paulo por ocasio do primeiro evento Psicologia e

    Povos Indgenas, promovido pelo CRP SP, no dia 30 de maro de 2007. O evento

    congregou aproximadamente 100 profissionais da Psicologia e de reas afins,

    alm de lideranas indgenas de So Paulo e de Mato Grosso do Sul. Desde 2004,

    quando da realizao de um importante evento na regio de Braslia, os psiclogos

    organizados pelo Conselho Federal tentam uma aproximao da Psicologia com os

    povos indgenas e, neste sentido, o evento se constituiu num importante marco.

  • 11

    apre

    sen

    ta

    o

    Aps uma sensibilizao audiovisual, preparada pela Conselheira Lumena Celi

    Teixeira, com imagens, frases e msica, com elementos de eventos ligados

    cultura indgena, os trabalhos foram iniciados. Trs foram mesas-redondas

    realizadas no encontro.

    A primeira mesa, Os desafios na relao com a sociedade nacional, sob a tica

    das lideranas indgenas, com as participaes de lideranas de algumas aldeias

    de etnia guarani em So Paulo e da etnia kadiwu do Mato Grosso do Sul, foi

    no mnimo curiosa. Sob a coordenao apaixonada da psicloga Sonia Grubits,

    que trabalha com o povo kadiwu, teve a durao de 15 minutos! Os ndios,

    povo de poucas palavras, foram enfticos em demonstrar que no haviam

    entendido exatamente o que estavam fazendo ali. Suas falas foram curtas,

    alternando os tons de pedintes com outros reivindicatrios e desconfiados.

    Quem so esses psiclogos, alis, o que isso significa mesmo? Isso no foi

    verbalizado, mas pairava no ar.

    Naquele momento, ficou claro para mim que nossas melhores intenes no

    estavam sendo bem compreendidas, pois havia um fosso cultural que nos

    separava dos indgenas. Num impulso emptico com o desconforto da mesa,

    levantei essa questo, transgredindo o esquema proposto. Tive a cumplicidade

    discreta do cacique Davi da Aldeia Aguape, de Mongagu, que sorriu

    furtivamente diante de minha reao.

    No decorrer da mesa, que s teve um carter um pouco parecido com isso (mesa-

    redonda) graas ao esforo da dra. Grubits, que naquele momento assumia uma

    postura de alternncia entre pesquisadora e militante da causa indgena, ficou

    claro para mim que as comunidades indgenas, alm de deverem ser tratadas

    com diferenciao, pois so povos distintos, tambm esto em diferentes

    estgios de organizao, o que dificulta ainda mais esse incio de dilogo.

    Enquanto a plateia interagia entusiasticamente frente s questes ali levantadas

    e no meio de minhas reflexes sobre as falas de alguns colegas que tratavam

    da questo poltica, levantou-se o ndio Eurico Sena, da etnia baniwa, da

    Amaznia. Ao apresentar-se, alm de ndio, desfilou um breve currculo

    que inclua duas graduaes, Filosofia e Teologia, e uma terceira em curso,

    Direito. Num tom de palanque, Eurico, que s aprendeu a falar portugus

    aos 12 anos, afirmou que os Psiclogos poderiam atuar junto aos indgenas

    na interao ou na incluso dos ndios com a sociedade envolvente. Numa

    espcie de interlocuo ou comunicao dos valores indgenas com os valores

    neoliberais sob os quais se vive hoje. A fala surpreendeu a todos, no apenas no

    contedo, mas tambm na forma precisa e bem articulada, refletindo a nobreza

    do interlocutor descendente dos povos originrios.

  • 12

    apre

    sen

    ta

    o

    O sofrimento do pesquisador na rea indgena tambm pode ser constatado

    quando a colega da Marlia Vizzotto, da Universidade Metodista, contou sua

    epopeia burocrtica para conseguir uma autorizao governamental, de modo

    a continuar sua pesquisa com os indgenas guarani em So Paulo. O trabalho de

    pesquisa estava interrompido, pois a autorizao no fora renovada. A pessoa

    que analisara o pedido, no sendo psicloga, no conseguiu entender a natureza

    do trabalho de pesquisa, interpretando a questo de maneira equivocada,

    negando, assim, a solicitao. Este relato deixava claro a todos como a questo

    da comunicao no era exclusiva entre psiclogos e indgenas.

    A segunda mesa-redonda, Anlise da situao nas aldeias: Educao e Sade,

    teve a participao de dois representantes indgenas com formao superior,

    um enfermeiro da etnia kadiwu e uma pedagoga da etnia pankararu, alm de

    um outro enfermeiro caucasiano. O debate teve uma cara mais acadmica,

    conforme reza o figurino. Com apresentaes claras e articuladas a situao da

    Funasa foi bem apresentada e pudemos constatar como essa diviso da Funai

    foi providencial para a questo indgena, pois a qualidade do atendimento em

    sade ao indgena sofreu uma melhora significativa, segundo o compreendi.

    Posso dizer que foi emocionante acompanhar o enfermeiro Hilrio, da etnia

    kadiwu. Antes de fazer suas consideraes sobre o tema que iria ser abordado,

    honrou suas razes se apresentando como um membro de seu povo e passou

    a falar como tal. Num portugus muito bem falado, explicou as implicaes

    negativas do contato dos povos indgenas com a sociedade envolvente.

    Interpretou algumas falas de seus parentes, como sendo um reflexo desse

    fato, o que os colocava numa condio de pedintes, frente ao assistencialismo e

    tutela s quais estavam acostumados. Sua fala clamava por dignidade.

    Dora Pankararu, por sua vez, contou-nos da militncia e dos espaos que vm

    sendo ocupados pelos indgenas desaldeiados na cidade de So Paulo. Sua fala

    refletia a dor daquele que se viu muitas vezes enganado por promessas no

    cumpridas. Numa viso bem lcida da realidade dos indgenas, reconheceu os

    avanos conseguidos pelos povos indgenas da cidade, mas tratou tambm por

    reivindicar equidade na formao superior oferecida ao indgena, visto que,

    em muitos casos, depois de formados, eles s podem atuar numa aldeia. Sua

    advertncia chamou a ateno para a importante questo da incluso.

    O enfermeiro Newton exps com muita didtica a estrutura mantida pela Funasa

    para atender sade indgena. Respondeu com pertinncia ao questionamento

    de uma indgena presente, demonstrando conhecimento de causa. O alcoolismo

    e a gravidez precoce foram temas abordados como sendo relevantes nesta mesa

    e indicavam tambm reas de atuao para o profissional da Psicologia.

  • 13

    apre

    sen

    ta

    o

    A terceira mesa foi verdadeiramente acadmica. O dr. Ivan Darrault-Harris,

    francs, falou sobre a importncia da preservao da diversidade dos povos

    indgenas. No como um tributo, ainda que merecido, s culturas originrias

    da terra, mas como uma contribuio para a humanidade, visto que nestas

    culturas podem estar solues para muitos dos problemas vividos pelas

    sociedades contemporneas ocidentais.

    Yanina Otsuka Stasevskas, brasileira de descendncia nipo-polonesa, nos

    deu uma demonstrao de leveza, compreenso e integrao com as culturas

    indgenas. Antes de sentar-se mesa, arrumou cuidadosamente um altar

    sua frente. L foram colocadas: uma cermica kadiwu e um leque guarani.

    No houve palavras, nem comentrios sobre sua ao, que para alguns passou

    despercebida. Foi uma demonstrao inequvoca de respeito ao encontro que ali

    era realizado. Depois, numa postura serena, discorreu sobre seu contato com os

    indgenas mexicanos e brasileiros. Falou de encontro, respeito, discorrendo sobre

    polticas pblicas, procurando demonstrar como era possvel uma comunicao

    entre povos diferentes, os brancos e os ndios. Essa mesa foi encerrada por Sonia

    Grubits, hngaro-brasileira que mostrou imagens de seu trabalho frente de

    diferentes populaes kadiwu do Mato Grosso do Sul.

    Agora, meus amigos, quando os trabalhos caminhavam para o encerramento,

    algo surpreendente aconteceu. J passava das 10 horas da noite. A comisso

    organizadora do evento, coordenada pela conselheira Lumena, j havia

    encontrado em nossas falas as teses que deveriam ser levadas ao VI

    Congresso Nacional de Psicologia CNP. L do fundo da plateia, veio um

    chamado. Era dona Joana, da etnia kadiwu, quem pedia a palavra. Ento,

    num portugus com muita dificuldade, agradeceu a todos, mas dirigiu-se

    especialmente a Sonia Grubits. Dizendo que sua me havia mandado ela dar

    dra. Grubits um nome, e ento mencionou o nome que evidentemente

    eu no consigo lembrar. Naquele momento, o enfermeiro Hilrio, que no

    tem nada de engraado, tomou a palavra e, num tom emocionado e srio,

    explicou a todos o que estava acontecendo ali. Ele disse: Se estivssemos em

    nossa aldeia, este seria um momento solene, com cnticos, pois a dra. Snia

    acabara de ser adotada como filha da famlia de dona Joana...

    Meus amigos, isso foi verdadeiramente emocionante! Penso que todos os que

    estavam presentes, infelizmente muito poucos dado o avanado da hora, ficaram

    emocionados. Estvamos ali naquele auditrio ocidental, com ar condicionado, e

    a fora milenar das culturas da terra estava se manifestando nas palavras daquela

    representante da etnia kadiwu. Que beleza! Quanto ensinamento. Senti-me grato

    por estar ali e poder compartilhar com todos daquele momento.

  • 14

    apre

    sen

    ta

    o

    Agosto de 2007 Primeiro Encontro de Profissionais das Cincias Humanas sobre Questes Indgenas

    - So Paulo, SP

    Desafios aos Pesquisadores e os Conflitos Metodolgicos

    No dia 3 de agosto de 2007, embora com poucas pessoas presentes, penso

    que demos mais um passo importante na reflexo para a aproximao

    da Psicologia com a questo indgena com a realizao do I Encontro de

    Profissionais de Cincias Humanas sobre as Questes Indgenas. Presentes,

    psiclogos, antroplogos, historiadores, graduandos, graduados e ps-

    graduados, doutores e mestres. Foram cinco as apresentaes: (1) Luiz Eduardo

    Valiengo Berni (Psicologia): Contribuies da transdisciplinaridade para o

    dilogo com a questo indgena; (2) Marcelo Lemos (Histria): Dificuldades

    para o estudo da populao indgena yanomami em Roraima; (3) Elisa Sayeg

    (Lingustica): Educao escolar Indgena, literatura e lnguas indgenas:

    conceitos bsicos; (4) Lucila Gonalves (Psicologia): Entre culturas: uma

    experincia de intermediao em sade indgena e (5) Gleise Arias e Tnia

    Bonfim (Psicologia): Oficinas teraputicas de foto e vdeo como forma de

    interveno em comunidades indgenas guarani myya de So Paulo

    As apresentaes focaram relatos de pesquisas, realizadas e em curso,

    vivncias e impresses de campo, intervenes formais e informais no contato

    com populaes de diferentes etnias, e aproximaes (contato ou convivncia

    com indgenas) mediadas (ou no) por reflexo terica, militncia, alm de

    proposta de abordagem para mediao.

    Duas questes me chamaram ateno e, de certa forma, polarizaram a

    discusso. A primeira sobre a qual irei brevemente discorrer foi a questo

    da pesquisa com populaes indgenas e a apropriao que essas populaes

    tm (ou no) dos resultados obtidos. Este ponto foi, sem dvida, o mais

    polmico, gerando discusso e conflito entre profissionais de diferentes reas

    (disciplinas) ali representadas. O conflito, inerente ao humano, acabou sendo

    muito bem gerenciado pelos participantes, cada qual avaliando o peso de suas

    colocaes durante o encontro.

    A questo, entretanto, revelou um foco importante, trazendo tona uma

    problemtica antiga, mas que sempre merece destaque e que poderia ser

    resumida da seguinte forma, ao tratar a questo da pesquisa com populaes

    indgenas (mas no somente com essas populaes): (a) A questo histrica das

    pesquisas pioneiras, cujos frutos contriburam nacional e internacionalmente,

    para um mapeamento, descrio e apresentao de etnias; muito comum

  • 15

    apre

    sen

    ta

    o

    que as populaes estudadas em tais pesquisas desconheam os resultados

    das mesmas, cuja contribuio maior parece situar-se no mbito informativo,

    ou seja, o mundo (acadmico ou no) passou a conhecer a existncia de uma

    determinada etnia; (b) A questo das pesquisas contemporneas, cujos

    frutos, alm de aprofundarem os conhecimentos das pesquisas pioneiras, so

    apresentados s populaes estudadas, que, desta forma, podem se apropriar

    dos resultados das mesmas.

    No primeiro Colquio, em maro de 2007, pudemos ouvir dos indgenas muitas

    queixas em relao aos pesquisadores pioneiros. Na ocasio, havia um sentimento

    de usurpao por parte de alguns dos representantes das etnias presentes,

    marcadamente entre os kadiwu do Mato Grosso do Sul, refletindo indignao

    por sentirem-se usados em pesquisas, cujos frutos, acadmicos e ou financeiros,

    jamais conheceram, enquanto os pesquisadores usufruam todo tipo de benefcio.

    As queixas na ocasio recaram maciamente sobre profissionais da Antropologia

    porque, afinal de contas, so os antroplogos os que tm maior tradio de

    pesquisas nessa rea com essas populaes. Talvez, se a Psicologia tivesse tradio

    de pesquisar neste campo, fosse alvo do mesmo tipo de queixa. Felizmente, no

    tem. Essa questo, entretanto, ainda se trata de um vis que no exclusivo da

    Antropologia, mas, sim, da maneira como a pesquisa cientfica encaminhada nas

    Cincias Humanas de maneira geral. H, evidentemente, abordagens metodolgicas

    que podem reduzir ou mesmo evitar esse tipo de impacto.

    Durante o encontro, um mal-estar eclodiu quando esta questo foi apontada,

    ainda que promovido por uma generalizao precipitada na fala de um dos

    apresentadores, fruto de sua vivncia. O fato pareceu ter sido bem elaborado pelos

    presentes, mas evidenciou algo que bastante comum no mbito disciplinar da

    cincia, sobretudo quando duas reas muito prximas debruam-se sobre um

    mesmo objeto. No meu entender, reflete um cuidado fundamental que a Psicologia

    dever tomar ao entrar neste campo de estudo.

    Neste sentido, a postura transdisciplinar, descrita na Carta da

    Transdisciplinaridade e presente no esprito dos participantes ao debate,

    poder ser de grande valia, contribuindo para aproximaes desarmadas e

    imbudas do rigor e da clareza necessrias para que a Psicologia e os psiclogos

    possam se incluir no trabalho com as populaes indgenas com o respeito e

    a reverncia que elas demandam. Fato que evidentemente j acontece, no

    apenas no mbito da Psicologia, mas tambm no da Antropologia e certamente

    no de outras cincias que se debruam sobre esta questo. O que importa aqui

    salientar que existe um referencial que pode ser utilizado como princpio

    norteador e pode facilitar sobremaneira o necessrio dilogo.

  • 16

    apre

    sen

    ta

    o

    A outra questo abordada e, no meu modo de ver, muito relevante, ligada

    atuao do psiclogo ou do profissional da subjetividade (seja ele psiclogo

    ou no), subjaz questo da pesquisa cientfica. Tratou-se, pois, da mediao

    transcultural, ou da interface que necessariamente deve ser criada (e que

    possivelmente j exista no mbito da antropologia?) para que os povos indgenas

    possam usufruir alguns benefcios da sociedade envolvente (por exemplo, na

    recuperao da sade, como foi mencionado) sem que com isso percam a relao

    com sua cultura. Ou, ainda, que os elementos culturais fundamentais possam

    ser compreendidos e respeitados, ainda que possam ser contrrios ou mesmo

    conflituosos para nossa sociedade.

    Na verdade, talvez fosse melhor dizer que, alm disso, em muitos casos,

    necessrio dizer o contrrio, ou seja, como o indgena pode recuperar o vnculo

    com sua cultura apesar da interveno nem sempre benfica (mas s vezes

    necessria) de seu contato com a sociedade envolvente. Novamente os princpios

    transdisciplinares podero atuar como mediadores, ou norteadores, na relao

    entre profissionais e disciplinas, conforme consta do documento j mencionado.

    Em sntese, a discusso girou em torno desses dois eixos: um, que apontou para

    os necessrios cuidados que devem ser tomados na pesquisa cientfica, e outro,

    que apontou para a um importante papel que o psiclogo pode ter na mediao

    da subjetividade do ponto de transcultural.

    Maio de 2008Encontro Multiprofissional de Ateno aos Povos Indgenas - Santos, SP

    Um Incipiente Dilogo Transcultural

    Frente a uma pequena plateia de psiclogos e profissionais da rea da Sade,

    realizou-se em Santos, em 8 de maio de 2008, o Encontro Multiprofissional

    de Ateno aos Povos Indgenas. O ndio, filsofo, telogo e acadmico de

    Direito, Eurico Sena Baniwa, que atua na rea de Marketing em So Paulo,

    contou sua trajetria, como aprendeu portugus aos 12 anos e conseguiu

    se adaptar sociedade envolvente sem perder suas razes amaznicas. Ao

    contrrio, alm de estar perfeitamente adaptado sociedade branca, falando

    um portugus corretssimo, contou de sua etnia, baniwa, com elementos de

    sua cultura material, cocares e objetos de adorno pessoal. Falou tambm da

    preocupao com a adaptao de seus parentes cultura branca, mostrando-

    se particularmente alarmado frente ao suicdio de um amigo que estava

    aparentemente adaptado cultura envolvente.

  • 17

    apre

    sen

    ta

    o

    Eu tive a honra de dividir a mesa com Eurico. Abordei, uma vez mais, a questo

    da transdisciplinaridade e como ela poder auxiliar a Psicologia em seu dilogo

    com as tradies indgenas, destacando as diferenas na forma de abordar a

    realidade. A sociedade envolvente de caractersticas ocidentais tem um foco mais

    centrado num olhar lgico-epistmico, enquanto que as tradies originrias

    olham a questo com um enfoque mais centrado no mito-simblico.

    Com o objetivo de propor a adoo de uma postura de abertura, liberdade

    e amor, a transdisciplinaridade se apresenta como abordagem epistemolgica

    que no privilegia nenhum tempo ou espao como correto por excelncia.

    No seio desta proposta, o sagrado resgatado como um elemento paradoxal

    que confere unidade realidade, ao mesmo tempo em que, sua compreenso

    como nvel de realidade possibilita um novo modo de olhar para as prticas, em

    diferentes reas do conhecimento, pois atua por meio da religao de saberes,

    construindo uma teia de dilogo e interao. Desta forma, propicia um novo

    olhar, mais abrangente e flexvel para o dilogo com a questo indgena.

    Novembro de 2008Colquio Psicologia e Antropologia - So Paulo, SP

    Rumo Interdisciplinaridade

    Em 28 de novembro de 2008 o Grupo de Trabalho Psicologia e Povos Indgenas

    do CRP SP realizou mais um colquio visando a aproximao da Psicologia com

    a questo dos povos indgenas. Na oportunidade, foram realizadas duas mesas-

    redondas. Pela manh, sob a coordenao da psicloga conselheira Lumena

    C. Teixeira e com as participaes de Helena S. de Biase, gerente de projetos

    da Funai, e de Rinaldo S. V. Arruda, professor da PUC-SP, tivemos a mesa

    Antropologia, Sade e Povos Indgenas, que tive o prazer de acompanhar e a

    partir da qual produzi esta reflexo.

    O professor Rinaldo iniciou a apresentao trazendo elementos fundamentais

    para nossa reflexo. Sua fala chamava ateno para o tipo de enfoque que

    dado Sade, que, como rea do conhecimento, sempre reflete uma

    cosmoviso compartilhada por uma cultura. Isso extremamente importante

    e, no raro, origem de muitos mal-entendimentos culturais. Helena de Biasi,

    por sua vez, apresentou a interessante pesquisa realizada pela Funai com 1%

    da populao indgena brasileira, tratando de diversos temas, dentre eles, a

    questo da educao ocidental e tribal, bem como das perspectivas de valores

    inter-geracionais nas diferentes etnias pesquisadas.

  • 18

    apre

    sen

    ta

    o

    No que diz respeito cosmoviso, evidentemente a dos povos originrios

    difere da cosmoviso da sociedade ocidental envolvente, mas nem sempre isso

    levado em conta. claro, tambm, que as cosmovises indgenas difiram

    entre si, mas elas comungam de uma mesma perspectiva paradigmtica

    sob a gide de um paradigma de conjuno, onde o sagrado, o humano e

    a natureza encontram-se completamente integrados. Ns, ocidentais, como

    diria Edgar Morin, de quem tomo estes conceitos, vivemos sob a gide do

    Grande Paradigma Ocidental, que promove uma reduo ou, na melhor das

    hipteses, uma disjuno das diferentes instncias que compem a realidade

    que, em termos bem simplificados, nos leva a ter diferentes abordagens

    para compreender uma mesma questo: uma abordagem para a sade fsica

    (biolgica) e uma abordagem para sade mental (psicolgica), apenas para

    citar dois exemplos, que podem atuar de forma distinta. Felizmente, vivemos

    hoje em tempos em seu se busca a religao dos saberes, o que nos possibilita

    uma atuao em equipes multiprofissionais com enfoques interdisciplinares.

    Nas culturas originrias, a cura intermediada por um mediador, cuja

    formao no se deu no campo lgico-epistmico (acadmico), mas

    no campo mito-simblico ou mesmo mistrico (psicolgico-religioso),

    conforme classificao de Augusti Coll, um terico da transdisciplinaridade.

    Assim, os curadores nativos tm uma formao tradicional, ritualstica

    e, no raro, so versados em tratamentos fitoterpicos. Desta forma, para

    os povos nativos temos o xam, o curandeiro ou, talvez fosse mais acertado

    dizer, o paj. Embora haja diferenas entre essas funes, o elemento

    transdisciplinar presente em todas elas implica numa compreenso da sade

    a partir de seus elementos intangveis, transpessoais ou transcendentais e

    por que no dizer? psicoespirituais, refletindo uma dimenso sagrada

    que indissocivel da racional nessas culturas, o que lhes atribui uma

    caracterstica de integralidade.

    Por sua vez, os curadores do ocidente tm uma formao estritamente racional,

    acadmica, fundamentada exclusivamente num nvel lgico-epistmico

    altamente especializado. Em nossas vises reducionistas toda a sade

    olhada por essa perspectiva de fragmentao sob a tica da disjuno, que

    separa a realidade em vrios Nveis de Observao. A ns, psiclogos, cabe a

    rea de Sade Mental, enquanto outros profissionais tratam da Sade fsica.

    Ser que possvel lidar com essa abordagem com as populaes indgenas?

    Onde ficam os saberes tradicionais da cultura? Ser que h uma tendncia a

    julgar os saberes tradicionais como inferiores ou primitivos?

    Embora centrados no paradigma lgico-epistmico, ns, psiclogos, sabemos

  • 19

    apre

    sen

    ta

    o

    bem o que esse tipo de julgamento pode significar. Pois no raro que nossos

    conhecimentos sejam alvo de crticas de profissionais de outras formaes,

    como, por exemplo, pelos mdicos. O prprio Freud enfrentou esse tipo de

    discriminao em sua poca, e lembremos que ele tambm era mdico! Por

    isso, temos que nos acautelar para no repetirmos com os saberes indgenas

    esse tipo de equvoco. Em nossa sociedade, a dimenso sagrada, no que diz

    respeito cura, est praticamente banida ou cargo dos no-acadmicos, dos

    religiosos, sacerdotes, sendo amplamente desvalorizada, claro, muitas vezes

    vista como falaciosa.

    Felizmente, hoje j temos a Medicina Complementar, cujas tcnicas vm

    sendo cada vez mais reconhecidas como eficazes. Esta abordagem resgata as

    tcnicas tradicionais. Veja-se a cromoterapia, por exemplo, que recentemente

    foi reconhecida pela OMS como eficaz. Est ocorrendo tambm a proliferao

    de novos cursos de bacharelado, como os de Naturologia e Naturopatia,

    cujos enfoques esto quase que exclusivamente ligados a um resgate dos

    saberes tradicionais de cura e de outros que apontam para os aspectos sutis

    ou transcendentais da existncia. Os florais, por exemplo, que no so

    medicamentos, pois no tm princpio ativo, apenas um princpio sutil

    que reside exclusivamente no campo da espiritualidade ou do sagrado, tm

    sido usados cada vez com mais frequncia, a ponto da Escola de Enfermagem

    da USP j os ter adotado em cursos de especializao.

    Voltando s apresentaes, a pesquisa apresentada por Helena deixou claro

    que o problema do lcool e das drogas confirma-se como uma das maiores

    ameaas a essas populaes, num reflexo inequvoco do enfraquecimento

    cultural. A imposio da educao formal ocidental constitui um grave

    problema, pois cria expectativas no atendidas principalmente pelas

    incapacidades governamentais em atender demanda, ainda que se tenha

    avanado muito no governo Lula, como afirmou a palestrante. Por meio

    das programaes decadentes e invasivas da TV, valores equivocados tm

    entrado cada vez mais aldeia a dentro. Neste quesito, uma colega da plateia

    foi bem feliz ao lembrar que no s os indgenas sofrem com as mdias

    invasivas e questes afins, nossa sociedade tambm sofre, sobretudo nas

    questes ligadas ao consumismo. Neste sentido, os indgenas esto melhores

    que ns, pois eles tm valores que podem ser resgatados, mas e o resto

    da populao, que resgate podero fazer? Assim, no que diz respeito aos

    nativos, temos a desunio das comunidades, onde os jovens tm dificuldade

    em ouvir os velhos e vice-versa, promovendo o enfraquecimento das

    lideranas. E por a vai...

  • 20

    apre

    sen

    ta

    o

    Gostaria de lembrar o 8 artigo da Carta da Transdisciplinaridade:

    Artigo 8

    A dignidade do ser humano tambm de ordem csmica e planetria. O aparecimento

    do ser humano na Terra uma das etapas da histria do universo. O reconhecimento

    da Terra como ptria um dos imperativos da transdisciplinaridade. Todo ser humano

    tem direito a uma nacionalidade; mas com o ttulo de habitante da Terra, ele ao mesmo

    tempo um ser transnacional. O reconhecimento, pelo direito internacional, dessa dupla

    condio - pertencer a uma nao e Terra - constitui um dos objetivos da pesquisa

    transdisciplinar.

    Eu diria que os nativos tm uma tripla condio, pertencem a um povo

    tradicional, a uma nao e so tambm habitantes da Terra. Bom isso eles

    sempre souberam, no verdade?

    Uma coisa parece haver concordncia: estamos num estgio onde no h

    mais retrocesso. No mais possvel pensar que algum possa preterir de

    muitos elementos da cultura ocidental. Alis, o Rinaldo lembrou muito bem

    que nenhuma cultura que teve contato com o branco quer voltar a viver

    sem muitos dos confortos por ns produzidos. So questes ps-modernas

    que no podem ser esquecidas.

    Vivemos em tempos velozes, penso ser esta a palavra-chave. Como lidamos

    com a velocidade das mudanas, dos conhecimentos, da interpenetrao

    cultural? Penso que a Psicologia possa ajudar na assimilao de uma cultura

    pela outra, ao lidar com choque cultural. Estes so alguns dos desafios que

    se apresentam ao psiclogo no trato com a sade dos povos indgenas. Por isso,

    volto a enfatizar a importncia da transdisciplinaridade na intermediao deste

    dilogo de aproximao, visto que esta abordagem cientifica est preocupada

    em religar saberes, relativizar pontos de vista. Chamo uma vez mais ateno

    para os Artigos 10 e 11 da Carta da Transdisciplinaridade:

    Artigo 10:

    No existe um lugar cultural privilegiado de onde se possam julgar as outras culturas. O

    movimento transdisciplinar em si transcultural.

    Artigo 11:

    Uma educao autntica no pode privilegiar a abstrao no conhecimento. Deve ensinar

    a contextualizar, concretizar e globalizar. A educao transdisciplinar reavalia o papel da

    intuio, da imaginao, da sensibilidade e do corpo na transmisso dos conhecimentos.

  • 21

    apre

    sen

    ta

    o

    Esses aspectos, penso eu, devem ser princpios adotados por ns, psiclogos, no

    trato com as comunidades nativas e sinto que sob essa perspectiva que nosso

    GT tem se pautado na abertura dos canais que possibilitaram aos que assim

    desejarem uma atuao respeitosa e reflexiva com nossos irmos nativos.

    Imperdovel foi o fato de que no pude estar na mesa realizada no perodo

    da tarde.

    Maio de 2009Encontros Interdisciplinares sobre Psicologia

    e Povos Indgenas - So Sebastio, SP

    A Complementaridade do Disciplinar e do Interdisciplinar

    Durante todo o dia cinzento de chuva, as ondas aoitaram com fora a praia de

    Boiucanga (cobra de cabea grande, em tupi-guarani), onde, abrigados numa

    oca da prefeitura de So Sebastio, realizou-se o primeiro evento da srie

    Encontros Interdiscipinares sobre Psicologia e Povos Indgenas, programado

    para 2009. Estiveram presentes aproximadamente 50 pessoas, entre psiclogos,

    nativos guarani e profissionais de diferentes reas.

    No perodo da manh, os trabalhos foram iniciados com uma mesa de abertura

    composta por representantes das autoridades locais e lideranas do povo

    guarani, sob a coordenao da conselheira Lumena C. Teixeira, que numa

    breve fala introdutria resgatou o caminho traado pelo GT Psicologia e Povos

    Indgenas do CRP SP at aquele momento. Aps as tradicionais saudaes de

    boas-vindas e consideraes sobre a importncia do evento, uma nova mesa

    foi composta, agora com a antroploga Vanessa Caldeira e o psiclogo Cludio

    Loureiro, sob a coordenao de Cilene Apolinrio.

    Foi muito interessante observar o contedo disciplinar, interdisciplinar e

    transdisciplinar nas falas dos presentes e sob essa tica que fao esta reflexo.

    Do ponto de vista interdisciplinar, Vanessa, iniciou a conversa e, apesar de

    bastante jovem, nos contou de sua longa trajetria de trabalho com os povos

    indgenas e de seu atual trabalho na Casai So Paulo, onde compartilha com

    colegas de outras reas, uma psicloga e uma pedagoga, a ateno aos povos

    indgenas de diferentes etnias. Neste relato, pode-se perceber com clareza

    importantes elementos de troca interdisciplinar. A palestrante, por mais de uma

    vez, mencionou a profcua troca que ela e sua colega psicloga Joana Garfunkel,

    vm realizando, demonstrando o melhor do esprito interdisciplinar.

  • 22

    apre

    sen

    ta

    o

    A antroploga e a psicloga tm trocado muito em termos metodolgicos, um

    aspecto refletido com clareza na valorizao que Vanessa faz do aprendizado que

    tem nesse contato, situando a escuta ativa como um ponto de interseo entre

    as reas. importante ressaltar que uma das caractersticas mais marcantes

    da interdisciplinaridade exatamente a troca metodolgica que existe entre

    as disciplinas. Assim, pode-se observar a escuta na dimenso antropolgica

    no que diz respeito cultura, memria de grupo e na psicolgica quanto

    individualidade e a memria pessoal.

    A palestrante ressaltou tambm a importncia de reconhecermos a histria

    da dominao, para que a relao dominador-dominado possa ser rompida,

    apontando para um dos aspectos mais importantes da transdisciplinaridade

    contido no dcimo artigo da Carta da Transdisciplinaridade:

    Artigo 10:

    No existe um lugar cultural privilegiado de onde se possam julgar as outras culturas. O

    movimento transdisciplinar em si transcultural.

    O psiclogo Cludio, com quem tive o prazer de trabalhar por um breve

    perodo, no incio de nossas carreiras, nos trouxe uma reflexo disciplinar do

    olhar da Psicologia com traos marcadamente junguianos sobre a questo do

    uso abusivo do lcool e drogas. Destacando o carter quase epidmico que a

    questo assume na contemporaneidade, transcendendo as fronteiras culturais e

    sociais, apontou a importncia da tica no trabalho de recuperao das pessoas

    afetadas por essa questo, ressaltando o fundamental lugar da escolha como

    possibilidade de recuperao. Num discurso mais acadmico, porque lido, com

    elementos quase poticos, apontou o enfraquecimento dos valores como um

    dos elementos que merecem destaque na questo abordada.

    No perodo da tarde, na Subsede Vale do Paraba e Litoral Norte do CRP SP,

    teve lugar a reflexo grupal a partir do texto disparador Rede de Ateno aos Povos

    Indgenas. As lideranas nativas, todos da etnia guarani, que representavam as

    aldeias da regio, distriburam-se nos trs grupos formados.

    No grupo onde estive, o representante era o vice-cacique Celso, de uma das

    tribos da regio. Esse grupo era formado maciamente por psiclogas que

    vieram para o evento por interessarem-se pelo tema, a partir da divulgao

    feita pelo CRP. Estava presente tambm a palestrante Vanessa, antroploga.

    No melhor esprito disciplinar, as colegas fizeram de pronto a pergunta que

    no queria calar ao nosso convidado nativo: Como podemos ajudar vocs

    na aldeia? Vanessa, com sua sensibilidade interdisciplinar, tentou iniciar a

  • 23

    apre

    sen

    ta

    o

    conversa com um approach mais psicolgico. Ningum ouviu, to interessados

    que estavam em ajudar nosso convidado, que, por sua vez, pressionado pela

    pergunta, j saiu respondendo sem ter claramente entendido a questo.

    Ento, caminhamos para trs, nos apresentamos e procuramos esclarecer o

    que era a Psicologia e quem eram os psiclogos, intermediados por Vanessa,

    que j conhecia bem a aldeia, e o Celso. A Psicologia pode ser mais bem situada

    entre a funo do paj, que cuida da sade, e a de um conselheiro (ancio), que

    cuida da educao. Recorrendo a uma explicao corporal, com uma das mos

    tocando a cabea e a outra, o corao, Vanessa explicou ao Celso como um

    psiclogo poderia atuar junto sua comunidade. Isso evidenciou uma diferena

    importante que existe entre cultura nativa e cultura envolvente, conforme j

    mencionei anteriormente. Ns estamos muito acostumados a lidar com uma

    dimenso lgico-epistmica, enquanto os nativos, com uma dimenso mito-

    simblica. Ento, a conversa fluiu com maior clareza.

    No final, todos os grupos apresentaram suas reflexes, ainda muito no campo

    da inteno, mas j com alguns reflexos para o desenvolvimento de aes, que,

    evidentemente, s sero efetivadas com o tempo.

    O evento foi encerrado no melhor esprito transcultural: fizemos uma dana

    circular ao som de uma flauta andina e ouvimos uma cano guarani.

    Junho de 2009Encontros Interdisciplinares sobre Psicologia e Povos Indgenas - Itanham, SP

    Exerccios Transculturais e Pesquisa Disciplinar

    Durante todo o dia cinzento de chuva, as ondas aoitaram com fora a praia de... No, isso

    no uma repetio do texto da reflexo anterior, quando se deu o Encontro

    Interdisciplinar em So Sebastio. que parece que Tup, o trovo, resolveu

    sempre aparecer nos encontros dos psiclogos sobre os povos indgenas... Ser

    isso um bom ou mau augrio? Bem, vamos ns novamente:

    Durante todo o dia cinzento de chuva, as ondas aoitaram com fora a praia

    de Itanham, palavra tupi que significa pedra que chora. Esse choro, alis,

    provado pelo aoitar das ondas nas pedras fazendo, digamos assim, um

    nhe-nhe-nhm, ou um Ita-nham. Assim inicio estas novas reflexes sobre o

    Encontro de Itanham, realizado no dia 26 de junho de 2009, que gostaria de

    compartilhar com os colegas.

    Iniciamos com um muito bem-vindo caf da manh, aps uma sada de

    So Paulo na madrugada. ramos poucos ao chegarmos, mas logo j havia

  • 24

    apre

    sen

    ta

    o

    aproximadamente 60 pessoas, entre psiclogos, profissionais da sade,

    educadores, antroplogos, estudantes e at um advogado!

    As apresentaes daquela manh foram bastante emblemticas, comandadas

    pela conselheira Beatriz Beluzzo, da Subsede Baixada Santista e Vale do Ribeira

    do CRP SP. Iniciadas pelo mdico de origem Argentina, com formao em

    Etnopsiquiatria e Antropologia Mdica, Carlos Coloma, que atua como tcnico

    do Ministrio da Sade; e pela pesquisadora, educadora, profunda conhecedora

    da cultura guarani a antroploga Maria Dorothea Darella.

    Coloma foi quem iniciou os trabalhos. A forma escolhida para realizar sua

    apresentao por pouco no foi arqueolgica, pois ele utilizou uma ferramenta

    quase extinta no campo das apresentaes em eventos: um bom e velho flipchart.

    Nele, traou alguns esquemas para orientar sua rica fala, que conteve tudo,

    menos um carter de epidemiologia de interveno, para desespero de um de

    nossos participantes, mdico, vido pelo assunto, visto que o palestrante era

    tambm epidemilogo de formao. Seu tom, entretanto, foi mais inclinado

    para a Antropologia, assumindo um carter claramente inter e transcultural,

    constatado, tambm no idioma da apresentao, que foi o espanhol.

    Iniciou enfatizando um elemento-chave para o dilogo intercultural, ao

    salientar que as pessoas imersas numa determinada cultura tm a tendncia a

    verem sua prpria cultura como sendo superior s demais. Isso se constitui em

    grave equvoco, pois, assim como peixe inconsciente quanto gua que o cerca,

    as pessoas podem ser inconscientes, como normalmente o so, da maravilhosa

    diversidade cultural que abunda no planeta, estando centradas apenas em sua

    prpria cultura. Isso faz com que julguem culturas diferentes a partir de seus

    prprios referenciais. Essa , alis, a histria do contato com os indgenas, no

    verdade? No por acaso que a Carta da Transdisciplinaridade enfatiza em seu

    artigo 10 a importncia de que no existe um lugar cultural privilegiado de

    onde se possam julgar as outras culturas. O movimento transdisciplinar em

    si transcultural. Perdoem-me por ser repetitivo, mas nunca pouco que esta

    questo seja enfatizada.

    Coloma apontou um item (trans)cultural fundamental: a questo do territrio

    (do espao), destacando como para ns, da sociedade envolvente, essa questo

    perde relevncia, visto que nosso territrio muitas vezes se restringe a uma

    habitao de poucos metros quadrados. Para os povos originrios de qualquer

    etnia, o territrio fundamental e se constitui num elemento espiritual e

    sagrado! Alis, para todos ns, s que no nos damos conta disso.

    A transdisciplinaridade entende que as culturas refletem Nveis de Realidade que

    fornecem explicaes completas para o conjunto da realidade. Neste sentido,

  • 25

    apre

    sen

    ta

    o

    fundamental que se tome conscincia dos limites culturais, um ponto apontado

    pelo palestrante, fundamental para a circunscrio das questes ligadas

    identidade. Qualquer projeto identitrio, destacou, reflete uma cosmoviso,

    uma concepo scio-politico-ideolgica que funda, por assim dizer, a

    territorialidade. Para o ndio, a terra , pois, o que em transdisciplinaridade

    denomina-se zona de no-resistncia, um espao sagrado entre os mundos

    superiores e inferiores que cada cultura preenche com rica mitologia. O

    conhecimento dos limites, ou seja, da resistncia do outro, refora a identidade

    salientando as fronteiras do territrio.

    Aps essas colocaes transculturais, o palestrante inclinou-se num mergulho

    intra e intercultural destacando elementos do povo maia, asteca, bem como

    da cultura guarani. Em sua reflexo, transparecia o problema do julgamento

    intracultural, quando uma cultura julga a outra a partir de sua prpria

    perspectiva. Isto pode ser visto como fonte de inmeras concluses desastrosas,

    ao explicar uma dimenso de outra cultura (nvel de realidade) sem que fosse

    feito o necessrio exerccio transcultural. Neste sentido, a questo do suicdio

    na cultura guarani pode assumir uma viso completamente distorcida se

    julgado sem a necessria mediao transcultural. E, assim, concluiu sua rica

    apresentao salientando a importncia do mergulho inter e transcultural para

    a compreenso do outro.

    A professora Dorothea, por sua vez, nos falou da complexidade (um dos pilares

    da transdisciplinaridade) ao explorar de forma disciplinar seus estudos sobre

    a cultura guarani. Alis, saudou a cultura e seu representante presente, de

    forma particularmente reverente. Assim como a louvvel iniciativa do CRP na

    promoo do dilogo. Munida de volumosos estudos e muitos apontamentos,

    apresentou-nos o olhar do pesquisador, o olhar do antroplogo profundamente

    comprometido com sua disciplina no estudo da complexidade da cultura.

    Iniciou com uma apresentao de fotos, levando-nos ambincia de uma

    aldeia guarani. Um mergulho visual na cultura, de diferentes aldeias de Santa

    Catarina. As dimenses da roa, cujas sementes so verdadeiras. A cestaria

    e a escultura, nas quais se pode observar a subjetividade de diferentes artistas.

    O territrio o segundo mundo, aspecto no exclusivo para o povo guarani.

    Assim, salientou a dificuldade do povo em lidar com a demarcao de terra,

    aspecto que quase chega a profanar a cosmologia desse povo. Falou tambm

    de como uma cultura pode permear a outra sem que uma seja absorvida pela

    outra.

    De repente, o papel de pesquisadora cedia lugar ao de educadora, quase

    militante (?). Enfatizou o projeto encaminhado ao MEC para a formao de

  • 26

    apre

    sen

    ta

    o

    um curso superior em licenciatura para que os povos originrios possam ter,

    de fato, a respeitabilidade e autonomia preconizada na Carta Magna, por meio

    de sua educao escolar.

    Mas a pesquisadora, frente ao desafio do complexo, no conseguiu concluir,

    pois o tempo tornou-se seu inimigo.

    Ento, vieram as perguntas. O advogado quis saber como os guarani

    compreendiam e lidavam com o estado de direito. A liderana presente, Luiz

    Kara, destacou a apropriao que os guarani tm feito de seus direitos. O

    mdico trouxe uma proposta para reduo de impactos epidemiolgicos.

    Mas foi o estudante de Psicologia, Leandro, quem formulou a questo mais

    contundente a meu ver: Como lidar com a espiritualidade, que tem valor

    constitucional para as culturas indgenas, frente a uma cincia psicolgica que

    no afirma sua relevncia?

    Rompendo com a linearidade do pensamento. Foi uma das respostas. E

    eis que vejo novamente a abordagem transdisciplinar despontando como uma

    possvel sada!

    Assim, findou-se uma manh introdutria de maneira absolutamente rica,

    dando lugar a uma tarde plena de reflexes que compuseram o primeiro

    documento de referncia para os psiclogos.

    Outubro de 2009Encontros Interdisciplinarares sobre Psicologia e Povos Indgenas - Tup, SP

    Um Olhar Multidisciplinar para a Identidade

    Diferentemente do que se pudesse esperar, Tup, o trovo, no apareceu na

    ensolarada cidade de Tup, no Oeste Paulista, onde foi realizado o terceiro

    evento da srie Encontros Interdisciplinares sobre Psicologia e Povos

    Indgenas, realizado no dia 2 de outubro de 2009. O que se viu foi um sol

    escaldante e uma temperatura de aproximadamente 35 graus, bem diferente

    dos encontros anteriores realizados no litoral com tempo chuvoso.

    Nossos irmos indgenas, vindos das diferentes aldeias da regio, estavam a

    carter, usando seus penachos e pinturas. Eram kaingang, krenak, guarani

    e terena, mais de 60 indgenas, muitos caciques, dentre os 85 participantes

    conclamados ao trabalho pela enfermeira da Funasa, Eunice, a partir das

    articulaes dos colegas Elizabeth Pastore e Fernando Zanetti da Subsede de

    Assis do CRP SP, que, com primor, estruturou o evento organizado pelo GT

    Psicologia e Povos Indgenas.

  • 27

    apre

    sen

    ta

    o

    Os trabalhos, como de costume, foram abertos pela conselheira Lumena Celi

    Teixeira, que fez uma longa e necessria explanao sobre os objetivos dos

    trabalhos, para que os presentes, principalmente os indgenas, pudessem

    compreender com clareza as razes de ali estarem.

    Naquela manh, tivemos duas mesas-redondas. A primeira foi iniciada

    pelo etnoarquelgo Robson Rodrigues, que trouxe suas Contribuies

    etnoarqueolgicas para a construo da identidade ente os kaingang no Oeste

    Paulista, abordando a questo a partir da materialidade da cultura e da

    importncia do territrio para os povos nativos. Havia uma explicita preocupao

    em devolver para as comunidades presentes e estudadas por ele os resultados

    de sua pesquisa, que, entre outros itens, continha um detalhado mapeamento

    dos territrios indgenas da regio visando sua ampliao futura.

    Do ponto de vista transdisciplinar, a pesquisa apresentada pode ser compreendida

    pelo eixo da complexidade, ou seja, havia uma detalhada descrio da cultura

    material kaingang a partir da lgica que lhe implcita. Isso possibilitou aos

    presentes a compreenso do conceito de beleza desta cultura, a partir do belo

    na confeco de cermica.

    No resgate temporal que pode realizar, o pesquisador situou a ocupao kaingang

    como sendo claramente anterior fundao do municpio de Tup, que tem

    apenas 80 anos. Essa ocupao se deu pelas mos do colonizador Luiz de Souza

    Leo, curiosamente fundador tambm do ativo Museu Histrico e Pedaggico

    ndia Vanuiri, onde fomos recebidos pela curadora, senhora Tamimi, com muita

    gentileza. A instituio abriga, entre outras, uma valiosa coleo de peas de

    cermica indgena estudadas pelo pesquisador. Essa importante personagem da

    histria da regio, ndia Vanuiri, d nome tambm a uma das aldeias da regio.

    Aldeia com caractersticas multitnicas, abrigando majoritariamente as etnias

    kaingang e krenak. Enquanto os kaingang so nativos da regio, os krenak

    foram deslocados para l posteriormente, ao serem expulsos de suas terras.

    Robson, o pesquisador em busca do dilogo transdisciplinar, demonstrou

    como a construo da identidade tnica pode se dar pela ao da cultura e

    pode ser compreendida, resgatada, na materialidade da mesma a partir de pelo

    menos oito aspectos fundamentais: (1) pela agricultura no cultivo do tradicional

    milho crioulo; (2)pela produo de cermica; (3) pela demarcao de um

    territrio compatvel com as necessidades da populao que lhes possibilite a

    mobilidade, to fundamental s culturas nativas para o acesso caa e pesca;

    (4) pelo artesanato de fibras com seus aspectos simblicos; (5) pela valorizao

    da lngua e dos ancios; (6) pelo intercmbio com outras aldeias, pela visitas

    aos parentes; (7) pela necessidade de estruturao de um centro cultural

  • 28

    apre

    sen

    ta

    o

    capaz de reunir todos os elementos dessa cadeia cultural; (8) e por aspectos

    que assegurem a sustentabilidade das comunidades.

    A segunda a falar foi a historiadora Daniela, pesquisadora estreante em mesas-

    redondas, que abordou a construo da identidade a partir da relao intertnica

    entre os kaingang, krenak e terena. Resgatou o momento da transferncia dos

    krenak para a regio marcado pela imposio do antigo SPI (Servio de Proteo

    ao ndio, rgo precursor da Funai), abordando tambm o deslocamento

    terena, como uma estratgia desse rgo para promover essa integrao, pois

    esperava-se que a etnia pudesse ensinar aos kaingang a agricultura de modo a

    limitar seu deslocamento pelo territrio.

    Assim, abordou a construo e a reconstruo das identidades falando da

    importncia de se aprender a ler o silncio. Abordou o processo de miscigenao

    entre as etnias e o resgate da memria coletiva dos misturados, como

    carinhosamente parecem se identificar aqueles que muitas vezes escolhem

    a qual etnia querem pertencer. Contando de forma a ilustrar sua fala o caso

    de uma defesa tnica de uma pessoa que, de maneira simblica, explicava a

    existncia de ndios pretos e de olhos verdes da seguinte forma: ndia negra

    teria sido concebida noite, enquanto que a de olhos verdes teria sido concebida

    na mata.... Terminou ressaltando que uma comunidade ganha membros

    quando o homem ndio casa com uma no-ndia e perde membros quando

    uma ndia casa com um homem no-ndio.

    A terceira e ltima a falar foi a psicloga Bianca Stock, que tem trabalhado com

    os kaingang e os guarani na regio de Porto Alegre. Ela nos trouxe o relato do

    projeto Sade Mental e Sade Indgena - Conviver para Melhorar a Vida,

    nome escolhido pela comunidade para o projeto em questo. Falando em tom

    coloquial, de modo a se aproximar muito da plateia eminentemente composta

    por indgenas, demonstrou de maneira viva como a Psicologia, com seus saberes

    dialgicos, pode promover o protagonismo indgena. A interveno relatada

    iniciou-se num daqueles flagrantes momentos onde a sociedade envolvente

    invade e destroa a cultura nativa, com aquilo que h de mais perverso na

    integrao do ndio sociedade branca, ainda presente na contemporaneidade

    e to falado pelos palestrantes anteriores. Na comunidade estudada, 70% das

    mulheres estavam tomando algum antidepressivo.

    A violncia abundava promovendo a morte de alguns de seus membros. As

    pessoas estavam isoladas em suas individualidades, recolhendo-se amedrontados

    em suas casas. Ento, com saber prprio da Psicologia, se deu a escuta e dela

    se fez o simposium, sendo criada uma roda de conversa ao p do fogo, numa

    refeio comunitria. No comeo, eram apenas adultos e crianas, enquanto

  • 29

    apre

    sen

    ta

    o

    os jovens olhavam desconfiados ao longe. Depois, esses tambm se integraram

    ao grupo, havendo um resgate do esprito comunitrio to fundamental para

    os povos nativos. Entre o bolo de cinzas, prprio da cultura tradicional da

    regio, e o bolo do dia dos pais, prprio da cultura ocidental envolvente, o

    dilogo se fez de forma sutil e gentil. Aos poucos, a psicloga e a Psicologia vo

    saindo de cena de uma forma sutil, como se nunca tivesse entrado...

    A segunda mesa-redonda foi comandada pelo etnoarquelogo Robson e reuniu

    algumas das muitas lideranas presentes. Dar, vice-presidente distrital, de

    terno e gravata para poder introjetar os elementos da cultura branca de modo

    a poder enfrent-la, como se faz tradicionalmente a se usar uma mscara para

    incorporar o esprito de um animal a ser caado, abordou a importncia da luta

    por melhores condies de vida para os povos indgenas. Valorizou o trabalho

    realizado por Robson, afirmando que a Psicologia poderia contribuir muito

    para a construo da identidade indgena, porm ressaltou com veemncia a

    importncia de que essa entrada da Psicologia junto s comunidades indgenas

    seja muito cuidadosa, apontando para uma interveno ampliada como sendo

    o papel desejvel para a Psicologia na rea indgena.

    Depois, a palavra foi passada ao cacique ancio da etnia terena, Josoane, de 72

    anos, 25 dos quais atuando como cacique. Esse conclamou os ndios a assumirem

    seu papel como tal. Valorizou a importncia do paj e dos elementos religiosos

    de sua cultura abordando como a cultura envolvente seduz os jovens indgenas

    de modo a destruir suas referncias tradicionais, sendo este um grande mal no

    qual a Psicologia talvez pudesse atuar. Na sequncia o cacique krenak Gerson,

    da comunidade vanuiri, num tom profundamente cristo, falou de sua emoo

    e agradecimento pelo encontro em curso.

    O terena Ranulfo apontou para a importncia do desenvolvimento de lideranas,

    abordando tambm a questo do alcoolismo. Falou dos problemas enfrentados

    pela superpopulao de seu grupo que ficam confinados a territrio restrito,

    enfatizando a importncia de trabalhos prticos, como o de Robson, que possam

    fazer a diferena. Trouxe a questo da valorizao dos mais velhos como forma

    de honrar a memria. Terminou falando algumas palavras de gratido em sua

    lngua nativa.

    A ltima a falar naquela manh emocionou a todos. Foi dona Juraci, que

    comeou afirmando j ter feito uso de antidepressivos. Nos contou que viveu

    nos tempos do SPI relatando que as pessoas morriam de tristeza porque no

    tinham mas a mata e o rio. Falando na lngua de sua etnia, com visvel emoo,

    expressou seu profundo agradecimento pelo evento que estava sendo realizado.

    Abordou tambm seus esforos para preservar a tradio, destacando as vrias

  • 30

    apre

    sen

    ta

    o

    pessoas presentes que haviam sido curadas com os recursos tradicionais. Um

    detalhe importante a ser mencionado que Juraci no nasceu ndia, tornou-se

    uma.

    O perodo da tarde foi iniciado pelo terena Jlio, que apresentou um projeto

    que vem desenvolvendo para recuperao da mata ciliar. Depois dessa

    apresentao, passamos ao momento de dilogo com os presentes em busca

    das informaes sobre como a Psicologia poder contribuir para a criao

    de uma rede de ateno aos povos indgenas. Muitas foram as falas e uma

    vez mais pudemos constatar como difcil o entendimento do papel de

    uma instituio como CRP, ocupado na criao de referenciais para atuao

    profissional.

    Em sntese, foram apontados os seguintes pontos fundamentais para essa

    aproximao: (1)A necessidade de divulgao junto aos povos indgenas de seu

    direito de acesso ao SUS; (2)A necessidade de divulgao das possibilidades

    de ajuda que a Psicologia pode proporcionar s comunidades indgenas; (3)

    Houve um chamado dos professores indgenas para que a Psicologia possa

    atuar junto Educao Escolar Indgena;

    Muitos foram os avisos da necessidade de que a Psicologia tenha uma entrada

    cuidadosa nessa nova rea de atuao.

    O evento foi encerrado com um triste canto em honra aos ancestrais.

    Entoado de forma bilngue (na lngua nativa e em portugus), uma

    homenagem dos parentes presentes ao autor, um rapaz que havia falecido

    recentemente. Todos se emocionaram muito. Particularmente emocionante

    foi o momento em que me despedi de dona Juraci, que do alto de sua sabedoria

    e simplicidade, afirmou que iria sentir saudade, pois das pessoas boas a gente

    sente saudade...

    Novembro de 2009Colquio Psicologia e Povos Nativos: Um Encontro Transdisciplinar - So Paulo, SP

    A Teia Transcultural para a Sustentabilidade das Relaes

    Desde 2006, o CRP SP vem promovendo aes que visam a interlocuo

    da Psicologia, cincia e profisso, com os povos indgenas de sua regio de

    abrangncia, o Estado de So Paulo. Nesse trajeto, que se iniciou atendendo

    a um chamado dessas populaes procurou-se manter um posicionamento

    tico-politico baseado no respeito irrestrito s etnias contatadas, considerando

    suas lutas, e sua forma particular de ser e de viver.

  • 31

    apre

    sen

    ta

    o

    Articulando uma parceria com a Funasa, o enfoque desse olhar acabou se dando

    prioritariamente na rea da Sade e, a partir da, procurou-se estabelecer um

    dilogo com outras reas de conhecimento, marcadamente a Antropologia,

    mas tambm a Histria, a Medicina e a Arqueologia, entre outras. Desta

    forma, nos foi possvel, ao longo destes anos, aprender muito com a troca

    que se estabeleceu na relao multiprofissional, mas tambm, ou sobretudo,

    com a troca que pudemos ter com nossos irmos indgenas nos inmeros

    momentos em que nos emocionamos com a sensibilidade e profundidade de

    sua subjetividade cultural...

    Pode-se observar os dilogos interdisciplinares entre psiclogos e antroplogos

    e outros profissionais, quando estes trocaram metodologias de forma a otimizar

    suas prticas. Mas tambm observaram-se e viveram-se os embates pelo

    poder, sejam eles entre as disciplinas, as correntes tericas ou polticas. Tanto

    no meio acadmico quanto junto s lideranas contatadas. Desta forma, foi

    um caminho que se procurou trilhar de forma cuidadosa. No para remover

    as pedras, mas para com elas compor uma estrada de respeito diversidade

    de opinies e posicionamentos, sempre com foco na sustentabilidade para

    manuteno do bem maior, a vida.

    E foi assim que, no dia 13 de novembro, na sede do CRP SP, na cidade de

    So Paulo, realizou-se o ltimo encontro da srie de colquios previstos para

    2009. Almejou-se ir alm do interdisciplinar focando-se no transdisciplinar,

    portanto, indo alm das disciplinas, sem, claro desrespeit-las, at porque o

    esprito transdisciplinar s se justifica em razo do disciplinar. Mas, como diria

    o professor Ubiratan DAmbrsio, que esteve presente a uma das mesas: indo

    alm das gaiolas que podem cercear as liberdades.

    Toda esta iniciativa guardou inspirao tambm no melhor estilo

    revolucionrio da grande psicloga brasileira Madre Cristina, to bem

    conhecida de muitos, especialmente do psiclogo Paulo Maldos, presente ao

    evento, que com ela trabalhou nos anos 1980.

    Ao longo destes anos, defendeu-se que a transdisciplinaridade um enfoque

    fundamental para que a Psicologia faa sua aproximao com as questes

    indgenas. No porque ela queira apenas ir alm, mas por considerar

    tambm aquilo que est entre e nas disciplinas. Seu esprito o do respeito

    ao transcultural, transreligioso, transpessoal que, evidentemente, lhe so

    implcitos. A transdisciplinaridade considera que nenhuma cultura, nenhum

    conhecimento mais do que outro. sabedora que cada um tem o seu lugar na

    estrutura que compe a realidade e, desta forma, dialoga com a sabedoria dos

    povos indgenas de igual para igual.

  • 32

    apre

    sen

    ta

    o

    O evento foi iniciado pela conselheira Lumena Teixeira, que fez um resgate

    de toda a trajetria do trabalho do GT Psicologia e Povos Indgenas ao longo

    destes trs anos de trabalho. Ressaltou as teses assumidas pelos psiclogos

    em seu Congresso Nacional que nos autorizaram a realizao de todas estas

    aes. O CRP SP foi o pioneiro ao dedicar-se a estas questes.

    Aps essa apresentao fundamental, Lumena coordenou a primeira

    mesa-redonda, que reuniu lideranas indgenas do Estado de So Paulo: o

    guarani Luiz Kara, representando as aldeias do litoral, e o tupi-guarani

    Dar, representando as aldeias do interior. Ambos j haviam participado

    de eventos anteriores. Foi incrvel poder constatar como em to pouco

    tempo houve uma grande apropriao por parte dessas lideranas sobre

    as possibilidades oferecidas pela Psicologia. O que nos primeiros eventos

    parecia algo distante para os indgenas, neste ltimo encontro pareceu algo

    j carregado de sentido. Certamente isso pode ser compreendido como uma

    conquista.

    Dar, novamente de terno e gravata, apontou a necessidade de serem includos

    nos debates os professores indgenas. Apresentou diferentes instncias da

    cultura tradicional, como os rituais, o artesanato e a questo do territrio,

    apontando elementos nos quais a Psicologia poderia atuar, com destaque

    para a questo da estigmatizao que os ndios sofrem ao serem vistos pela

    sociedade envolvente como vagabundos. Lembrou tambm, no entanto,

    que no s os ndios sofrem com isso, os negros tambm sofrem ao serem

    vistos como ladres. Falou da grande tenso vivida na atualidade frente

    s incertezas governamentais no que tange situao da Sade Indgena e

    permanncia ou no da Funasa como rgo mediador. A primeira mesa

    terminou salientando esses importantes aspectos que constituem, sem dvida

    nenhuma, elementos fundamentais para orientar as polticas pblicas.

    Tive a honra de coordenar a segunda mesa-redonda: O encontro

    transdisciplinar das cincias com a realidade dos povos nativos e seu impacto

    nas polticas pblicas, composta por um indgena, uma antroploga, um

    psiclogo e um matemtico.

    A representao indgena ficou a cargo de Marcos Tup, da aldeia Krukutu,

    pois Kak Wer lamentavelmente no pde estar presente. A fala do indgena

    foi marcada pelas importantes conquistas no campo da poltica, a partir de

    sua atuao na Comisso Nacional de Poltica Indigenista CNPI. Tratou

    tambm do delicado momento vivido na aldeia, pois, como eles no tm rio

    nas proximidades, o fato da bomba dgua do poo artesiano ter queimado

    com o apago trazia inmeros problemas para os 250 moradores que estavam

  • 33

    apre

    sen

    ta

    o

    havia trs dias sem gua. Mas Marcos falou tambm de suas preocupaes

    com a tradio, pois o servio tradicional das parteiras conflitava com a

    prtica dos partos feitos em hospitais.

    Maria Ins Ladeira foi a palestrante seguinte. A antroploga abordou

    importantes questes etnogrficas da cultura guarani, salientando que os

    momentos de crise (psicolgica) existem em todas as culturas. Apontou para

    a importncia do respeito viso integral e sincrtica que muitas culturas

    tradicionais, como as indgenas, parecem possuir ao considerarem, por

    exemplo, a construo da identidade como um aspecto que se d antes mesmo

    do nascimento. Destacou tambm aspectos da corporalidade nessas culturas

    para localizao de algumas funes psquicas que, portanto, so distintas

    de cultura para cultura. O sagrado foi abordado novamente ao salientar

    a importncia do xam nas tradies indgenas, pois ele que orienta e

    diagnostica, atuando na mediao entre o mundo visvel e o invisvel.

    Na sequncia, tivemos a fala do psiclogo Paulo Maldos, que hoje atua junto

    Presidncia da Repblica na promoo do dilogo com as comunidades

    indgenas. Foi ele, ainda, um dos articuladores dos encontros promovidos

    em 2004 que levaram o CFP a colocar a questo indgena na pauta de

    discusso dos psiclogos. Sua fala teve um tom poltico, da qual se pode

    destacar a importncia do CNPI. Apontou para o crescimento histrico

    da populao indgena, fato sem precedente na histria do Brasil desde

    o Descobrimento! Falou tambm das importantes conquistas no que diz

    respeito reconstruo tnica em curso no Pas. Falou da importante e

    necessria reviso do Estatuto do ndio, que remonta ainda poca da

    Ditadura Militar.

    Um destaque muito importante foi dado para as novas subjetividades,

    quando relatou uma curiosa intermediao poltica que pde presenciar

    quando o esprito de Macunama supostamente teria participado de

    uma negociao! Destacou a importncia do respeito aos, pelo menos, 70

    povos que ainda vivem isolados no territrio nacional, salientando que a

    melhor forma de respeit-los a do direito que tm ao no-relacionamento.

    Abordou o desafio que os trs poderes da Repblica tm no trato com os

    indgenas, apontando para a difcil situao vivida no Mato Grosso do Sul,

    onde se concentram os maiores ndices de suicdio indgena do Pas. A

    responsabilidade da mdia tambm foi destacada, apontando-se necessria

    crtica a uma subjetividade globalizante. Por fim, fazendo meno s

    conquistas dos indgenas na Bolvia, apresentou a importante noo do

    bem-viver como forma de harmonizao das questes entre o ter e o ser.

  • 34

    apre

    sen

    ta

    o

    Ao professor Ubiratan DAmbrsio, importante figura da transdisciplinaridade

    no cenrio mundial, coube a tarefa do fechamento da mesa. Tomando

    Freud como guia, fez observaes transdisciplinares a partir do pulso de

    sobrevivncia. e sua base gentica, e o pulso de transcendncia, e sua

    base tica. Destacou a fundamental importncia da educao na manuteno

    da dignidade da condio humana que requer o equilbrio entre essas foras

    constitucionais do humano. Advertiu para o cuidado necessrio contra o

    fundamentalismo de qualquer tipo. Abordou a importncia equnime da arte,

    da religio, da filosofia e da cincia na constituio do conhecimento para que

    este possa resgatar uma viso csmica.

    No perodo da tarde, o grupo discutiu as teses que sero encaminhadas ao VII

    Congresso Nacional da Psicologia, concluindo que as teses que esto em curso

    so ainda vlidas para a prxima gesto.

    Concluo este relato com a prece guarani feita na abertura dos trabalhos:

    Nhanderu Tenonde

    Oikua maway

    Nhamandu jexaka reae

    Oguero porandu

    Jaguata agu mombyry

    Jaguata agu mombyry

    Que nosso Deus, o primeiro

    com Sua sabedoria

    e com os raios do sol,

    nos Ilumine

    para caminharmos longe

  • 35

    apre

    sen

    ta

    o

  • 36

    man

    ifes

    ta

    es d

    e li

    der

    ana

    s in

    dg

    enas

  • 37

    man

    ifes

    ta

    es d

    e li

    der

    ana

    s in

    dg

    enas

    introduo

    Os depoimentos apresentados a seguir foram colhidos durante os

    eventos promovidos pelo CRP SP no perodo abordado por este livro. As

    manifestaes das lideranas foram gravadas, transcritas, editadas de

    maneira a destacar trechos mais significativos e posteriormente revisadas

    pelos seus autores. Exceo ao primeiro trecho deste captulo, que j foi

    produzido na forma escrita por ocasio da palestra proferida pelo autor em

    um dos primeiros eventos. Nos casos em que o autor participou de mais

    de um evento, reunimos seus depoimentos no mesmo tpico de forma a

    apresentar o conjunto dos seus posicionamentos.

    Trata-se de um material muito rico e relevante, pois retrata a viso de lideranas

    de diversas etnias e regies do estado de So Paulo com relao aos problemas

    enfrentados hoje pelas comunidades, os principais desafios e possibilidades de

    atuao para os psiclogos. Em sntese, configura-se como um bom ponto de

    partida para uma aproximao da Psicologia a esse campo.

    Eurico Loureno SenaIndgena da etnia baniwa (alto Rio Negro, AM), bacharel em Filosofia e Teologia, cursa

    Direito; coordenador do Centro de Estudos Avanados das Naes Indgenas NEAI

    (SP); gestor da Comisso Intersecretarial de Monitoramento e Gesto da Diversidade

    (Secretaria do Trabalho, SP); membro da Associao Indgena do Mrito Rio Negro

    ACMIRN; membro do Ncleo de Estudos Jurdicos do Indgena (Unisal, SP).

    A funo social das reservas indgenasAps a materializao, solidificao do Estado brasileiro e passado o projeto

    integracionista em relao aos povos autctones, houve necessidade de delimitar

    o que se poderia definir como rea pertencente a esses povos. Isso tudo por uma

    forma de limitar uma rea, onde se sabia que havia povos clamados silvcolas,

    que no tinham um grande significado para os governantes. Por isso, essa rea

    era apenas uma forma de identific-los sem uma poltica social adequada.

    Aps um perodo de tempo, com o avano da cultura canavieira e da soja, e com

    o surgimento da ilustre Transamaznica proposta pelo governo brasileiro para

    povoamento da Amaznia, d-se incio disputa por terras. At ento as reas

    indgenas eram insignificantes, pois no tinham um valor comercial e scio-

  • 38

    man

    ifes

    ta

    es d

    e li

    der

    ana

    s in

    dg

    enas

    ambiental que agora passaram a ser significado de terra indgena, trazendo

    com isso a nova categoria de indgenas donos de terras.

    Atualmente, aqui no Brasil quando se fala em Terras Indgenas, tem-se claramente

    a definio e alguns conceitos jurdicos contemplados na Constituio Federal

    de 1988 e tambm na legislao especfica, o Estatuto do ndio (Lei 6.001/73).

    A Constituio de 1988 consagrou o princpio de que ns indgenas

    somos os primeiros e naturais senhores da terra. Esta a fonte primria

    do nosso direito, que anterior a qualquer outro. Consequentemente, o

    direito da comunidade indgena a uma rea determinada independe de

    reconhecimento formal.

    A definio de terras tradicionalmente ocupadas por ns indgenas encontra-

    se no pargrafo primeiro do artigo 231 da Constituio Federal, que diz: so

    aquelas por eles habitadas em carter permanente, as utilizadas para suas atividades

    produtivas, as imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios ao

    seu bem-estar e as necessrias a sua reproduo fsica e cultural, segundo seus usos,

    costumes e tradies.

    No artigo 20 est estabelecido que essas terras so bens da Unio, sendo

    reconhecidos aos ndios a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do

    solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

    No obstante, por fora da Carta Magna, o Poder Pblico est obrigado a

    promover tal reconhecimento. Sempre que uma comunidade indgena

    ocupar determinada rea nos moldes do artigo 231, o Estado ter que

    delimit-la e realizar a demarcao fsica dos seus limites. A prpria

    Constituio estabeleceu um prazo para a demarcao de todas as Terras

    Indgenas (TIs): 5 de outubro de 1993. Contudo, isso no ocorreu, e as TIs

    no Brasil encontram-se em diferentes situaes jurdicas.

    A partir desta nova concepo das terras indgenas, agora reservas indgenas,

    vale ressaltar que a concepo de reserva uma condio sine qua non na

    vida social indgena, no que diz respeito preservao ambiental e no que

    tange ao usufruto equilibrado e sustentvel nos moldes culturais prprios.

    Enquanto que no Direito Ambiental, tem-se atualmente grande relevncia

    desta terminologia, as comunidades indgenas j tinham um relacionamento

    sustentvel com o meio ambiente.

    A partir disso tem-se a dimenso da importncia das reas indgenas, no

    que diz respeito preservao ambiental e ao uso equilibrado, que tem uma

    grande importncia hoje, quando se reporta necessidade de preservar e

    viver de forma sustentvel.

    Com isso, as reservas indgenas extrapolam os limites da delimitao

  • 39

    man

    ifes

    ta

    es d

    e li

    der

    ana

    s in

    dg

    enas

    territorial, cumprindo um papel social fundamental para toda populao,

    pois essas so parte de um patrimnio nacional e ainda oferecem um

    usufruto equilibrado da fauna e da flora.

    Atualmente, com a corrida desesperada ante o aquecimento global, sobressai o

    valor e a colaborao das comunidades nativas para a ao social planetria, no

    tocante preservao ambiental.

    Sobre essa funo social, a Constituio Federal categrica, quando

    diz no Art. 186: A funo social cumprida quando a propriedade rural atende,

    simultaneamente, segundo critrios e graus de exigncia estabelecidos em lei, aos seguintes

    requisitos:

    I - aproveitamento racional e adequado;

    II - utilizao adequada dos recursos naturais disponveis e preservao do meio

    ambiente.

    Assim, pela realidade da maioria das reservas j demarcadas no Brasil, as

    reservas indgenas so as mais preservadas no que diz respeito ao meio

    ambiente, recursos naturais e biodiversidade, como por exemplo as reservas

    do Xingu, que ficam isoladas pelas plantaes de soja e a do alto Rio Negro na

    Amaznia, regio da maior biodiversidade do planeta. Por isso, conclui-se que

    as reservas indgenas por si s tm uma funo social vital.

    Integrao entre culturas para enfrentamento de problemas

    Eu diria, na verdade, que ns no temos problemas, eu sempre falo nas

    palestras que eu vou: Eu estou feliz, eu me sinto bem aqui com vocs. E venho

    buscar isso, quero levar isso para eles entenderem nas comunidades indgenas

    tambm. Ento eu acho que ns estamos no caminho certo, vamos chegar

    a essa concluso de que ns estamos vivendo no ano de 2008, no podemos

    viver nos anos 70 agora. Temos que conviver com os nossos problemas e criar

    solues para enfrent-los. Estamos aqui fazendo isso, ento eu no posso

    lamentar, tenho que agradecer a vocs.

    Concepo de doenaA primeira coisa quando chegar em uma comunidade indgena, deve-se

    dizer: qual a concepo de doena? Como que vou conceber essa doena?

    Sempre quando eu converso com a minha me, ela fala assim: Algum, o

    Curupira ou alguma coisa, fez um sopro e est doendo aqui no ombro ou

  • 40

    man

    ifes

    ta

    es d

    e li

    der

    ana

    s in

    dg

    enas

    estou sentindo uma dor aqui..., entendeu? A, vem o mdico. E eu tenho

    que dizer, que convenc-la primeiro e dizer, No, isso uma doena que

    por causa disso e daquilo, uma gastrite e tudo mais. Mas, antes de chegar

    ao mdico eu preciso fazer uma interveno cultural. E isso ns sabemos

    que a nossa, digamos, medicina tradicional.

    Ser ou no ser ndio?Estatuto do ndio diz que se voc sair da aldeia, voc no mais ndio.

    Eu fico brincando com eles ento que uma hora eu sou ndio, uma hora

    eu no sou, uma hora eu sou ndio, uma hora eu no sou. Parece que eu

    estou brincando de ser e no ser ndio. Enquanto que na verdade no existe

    isso, se voc vai para os Estados Unidos, voc brasileiro l e aqui, no

    importa... Eu tenho que me sentir bem trabalhando aqui numa empresa

    como consultor de marketing e me sentir bem l na comunidade indgena,

    pescando, flechando, comendo peixe assado. Eu sou eu mesmo.

    Eu acho que esse colquio est trazendo questes importantssimas para ns

    que estamos trabalhando, ns que estamos sempre ativos nas comunidades

    indgenas, percebendo essas necessidades. Nas comunidades, quando o

    menino tem uma educao que est totalmente ocidentalizada, ento

    natural, normal que comece a adquirir novas culturas, novas formaes,

    novas formas de ser. E quem vai me ajudar a... no deixar de ser ndio,

    mas fazer essa passagem para uma outra cultura, tentar fazer essa viagem

    do tipo transitar por duas culturas, quem vai me ajudar a fazer isso?

    Suicdio entre indgenas: um problema queprecisa de estudo

    Para ns