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Apólogo, fábula, parábola, não importam as classificações, “Sombras de reis barbudos” é uma opressiva história de terror e tensão logo fecundada por mais amplos e profundos objetivos. O que nela há de delirante, de pesadelo angustioso, em última análise não nasceu da imaginação do escritor. Promana do mundo em que o homem vive sufocado, com seus passos seguidos e perseguidos por estranhas e invisíveis forças. E o retrato de um tempo histórico universal. O drama dos que perderam a própria vontade e foram despersonalizados por aparatoso aparelho controlador dos seus mínimos gestos. Nessa narrativa cheia de símbolos está o desespero do ser humano —enquanto indivíduo e componente de um todo coletivo— quando privado do ar puro e da luz iluminadora da Liberdade.

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    Sombras de reis barbudos(Jos Jacinto Pereira Veiga, 1972)

    A Gabriel, meu co-piloto.

    primeiro captulo:A CHEGADA

    Est bem, me. Vou fazer a sua vontade. Vou escrever ahistria do que aconteceu aqui desde chegada de tio Baltazar. Seique esse pedido insistente um truque para me prender em casa, asenhora acha perigoso eu ficar andando por a mesmo hoje,

    quando os fiscais j no fiscalizam com tanto rigor. Talvez sejamesmo uma boa maneira de passar o tempo, j estou cansado debater pernas pelos lugares de sempre e s ver essa tristeza de casasvazias, janelas e portas batendo ao vento, mato crescendo nosptios antes to bem tratados, lagartixas passeando atrevidas atem cima dos mveis, gambs fazendo ninho nos foges apagados,se vingando do tempo em que corriam perigo at no fundo dosquintais. Pensei que ia ser fcil escrever a nossa histria, estando osacontecimentos ainda vivos na minha lembrana. Mas foi s eu me

    sentar aqui, pegar o lpis e o caderno, e ficar parado sem sabercomo comear. Mame diz que no vai ler os meus escritos porqueno tem cabea para leitura e tambm porque j sabe tudo melhordo que eu. Est claro que mais um truque para me deixar vontade. Ela esperta, pensa em tudo. Preciso ter muito cuidadopara no deixar o caderno esquecido por a, principalmente se euresolver falar no meu procedimento em casa de tio Baltazar. Ser que eu estaria aqui escrevendo se tio Baltazar notivesse vindo para c com a idia de fundar a Companhia? Noestou pensando que a culpa foi dele; a idia era boa e entusiasmoutodo mundo. Mas a histria que vou contar comea mesmo coma chegada de tio Baltazar. Quem podia imaginar naquele tempo dealegria e festa que um sonho to bonito ia degenerar nessa

    calamitosa Companhia Melhoramentos de Taitara? Pobre tioBaltazar, como estaria sofrendo se ainda vivesse. Acho que foipensando no sofrimento dele que mame no chorou muitoquando finalmente recebemos a notcia. Eu tinha onze anos quando tio Baltazar chegou da primeiravez. Estava casado de novo, mas veio sozinho e com fama de muitorico. Relembrando aqueles tempos meu pai me disse que depois dealguns dias aqui tio Baltazar pensou em desistir da Companhia evoltar. Agora eu pergunto de novo: se ele tivesse voltado naquelaocasio, ser que ainda estaria vivo? E se ele no tivesse fundado aCompanhia, ser que teramos passado por tudo o que passamos?Mas perguntar essas coisas agora o mesmo que dizer que se obezerro da vizinha no tivesse morrido ainda estaria vivo. Estouaqui para falar do que aconteceu, e no do que deixou deacontecer. Tio Baltazar. Um nome, a fama, muitas fotografias assimera que eu o conhecia. Parece que ele achava absolutamentenecessrio a pessoa tirar retrato todo ms, ou toda semana.Freqentemente mame recebia uma fotografia dele tirada emestdio de retratista ou ao ar livre por algum amigo. Lembro-meespecialmente de uma tirada ao volante de um lustroso carroesporte que os entendidos aqui diziam ser de fabricao italiana emuito caro: tio Baltazar aparecia com o brao esquerdodescansando na porta do carro, o cabelo repartido no meio, camisade gola aberta dobrada sobre o palet xadrez igual aos que osartistas de cinema estavam usando, piteira com cigarro na boca,sorriso de rico no rosto simptico. Essa fotografia, com dedicatriapara mame, fez o maior sucesso entre nossos amigos, alm de v-la muitos queriam mostrar a outros. Entre zelosa e vaidosa mameemprestava; mas se a pessoa demorava a devolver, eu recebia amisso de ir busc-la, um documento daquela importncia nopodia passar muito tempo em mos profanas. Se estou aqui para contar a verdade no posso esconder Omeu desapontamento quando vi tio Baltazar descendo do carro emnossa porta. No primeiro momento pensei que fosse outra pessoa,um amigo ou empregado. O cabelo era bem mais ralo e no estavamais repartido ao meio, acho que porque essa moda j tinhapassado. E o rosto no era to moo como o das fotografias.

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    quinto captulo:CRUZES HORIZONTAIS

    Principalmente urubus. No sei se era iluso, se tinha sidoassim sempre; mas depois que adquirimos o hbito de descansar avista dos muros olhando para cima ficou parecendo que o nmerode urubus sobre a cidade estava aumentando dia a dia. E urubu nosendo bicho que tenha ficado famoso por levar alegria aos lugaresque escolhe para se reunir, as pessoas forosamente se lembravamdas muitas lendas que os acompanham e ficavam apreensivas coma preferncia. Por que acharam eles de se concentrar logo aqui?Estariam prevendo algum acontecimento proveitoso para eles enaturalmente prejudicial para ns? Urubu de viglia, luto na famlia;urubu no telhado, choro dobrado diziam com a caretacorrespondente os que se guiavam por ditados.

    Os urubus ainda no estavam em nossos telhados, mas assombras deles estavam. Os primeiros chegavam logo depois do sol,e pelo meio-dia o cu ficava coalhado deles, as sombras caindovertical nas ruas, nos muros, nos gramados, em toda parte aquelascruzes negras volteando sobre nossas cabeas. Na esperana de descobrir as intenes deles, e muitotambm por passatempo, passamos a observ-lossistematicamente. Quem tinha recursos comprava lunetas,binculos, o que encontrasse nas lojas, at telescpios debrinquedo serviam na falta de aparelhagem melhor; quem no

    podia comprar nada dessas coisas se arranjava a olho nu mesmo,ou fazendo canudos de papel. Foi uma mania que atacou o povo

    todo, muita gente j se queixava de dor no pescoo de tanto ficarcom a cabea escangotada olhando urubu em vo. Alguns colegas meus tinham binculo, outros luneta, e meemprestavam com boa vontade quando eu pedia. Mas para noficar dependendo deles, e devendo favores, e chateando mesmo,resolvi passar a conversa em meu pai para ver se ele me compravaum desses aparelhos, no fazia mal que fosse uma luneta das maisbaratas. Ele mesmo tinha dito que agora ganhava bem e que at

    andava emprestando dinheiro a juro. Depois de vrios ensaios erecuos um dia criei coragem. Ele estava em p diante do espelho da sala, nu da cinturapara cima, o rosto ensaboado, passando a navalha no afiador. Para que voc precisa de luneta? ele perguntou semme olhar. Para olhar urubu eu disse j desanimado. Ele no respondeu logo. Examinou muito interessadoqualquer coisa no fio da navalha, depois no afiador, passando osdedos em cima de leve. Pensei que no ia responder, e j virava ascostas desapontado quando ele falou: Olhar urubu, ? Era s o que faltava. divertido, pai. Todo mundo est olhando. Mas no por muito tempo ele disse esticando umlado do rosto para passar a navalha. Pensando que ele queria dizer que luneta no dura muito,estraga -toa, enguia, acaba, expliquei mais animado: Dura a vida inteira, pai, se a gente no deixar cair do alto. No por isso. E que dentro de alguns dias no vai terningum andando por a de lunetinha e binoculinho na mo. Jestamos de olho neles.

    Mal falou, ele virou-se para mim com a navalha no ar epreveniu, como arrependido: Isso fica entre ns. No para contar l fora. A ningum,entendeu? E agora, besta? Est contente? Alm de no ter conseguidoluneta, eu ainda ficava condenado a ver meus colegas perderem asdeles sem poder fazer nada. Do jeito que meu pai falou, as lunetase binculos iam ser apreendidos de surpresa, e dentro de poucosdias. Ser que no havia mesmo um jeito de evitar? Sabendo doque ia acontecer e ficando de boca fechada, como que eu podiaencarar meus colegas depois?

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    stimo captulo:O CADERNO PROIBIDO

    Logo que o trem comeou a andar, e eu fui vendo as casas, aspessoas, at os muros, com olhos de quem se despede, ca na tristeza eno arrependimento. Viajar bom em imaginao, a pessoa sentada emcasa olhando livros de gravuras, a mente l longe mas o corpo a mesmo,no mundo que j nosso e nos obedece. E eu no podia estar viajando em poca pior, com meu pai emvspera de deixar o emprego, j me chamando de filho e me convidandopara pescar; vamos que no me vendo todo dia para anim-lo eleperdesse o entusiasmo pelo armazm e voltasse atrs na idia demudar de vida? Por que lia Dulce achou de me convidar justamenteagora? Meu pai tinha razo; parentes s servem para atrapalhar. Tambm no custava nada meu pai ter proibido a minha viagem,bastava ele dizer que precisava de mim; mame ficava triste uns dias rnas

    logo se conformava, j estava calejada de ser contrariada. E eu tambm,por que no falei que preferia no ir, em vez de ficar calado esperando adeciso dos outros? Agora o mximo que eu podia fazer para consertar aburrada era chegar, ficar uns dias, inventar uma desculpa e voltardepressa. Ou ento chegar j com a desculpa pronta, se eu encontrasseuma boa durante a viagem. Ningum me esperava na estao. Desembarquei com a mala eum saco de lona com os presentes que mame teimou em mandar efiquei perdido na plataforma, levando esbarres de gente que embarcavae desembarcava, atropelado pelos carrinhos de carga, me assustando

    com tudo, j com raiva de tia Dulce por ter me convidado e meesquecido. Num instante a plataforma se limpou, o trem apitou e foi emboracom um barulho compassado de ferragens, o claro da mquinailuminando moitas de bananeiras atrs de cercas de quintais. Sem saber o que fazer, nem para onde ir, continuei esperandono sei o que, arrependido e enfezado. Um empregado da estaopassou por mim assoviando, parou, voltou-se: O trem j passou, menino. Hoje no tem mais. Eu sei respondi sem pensar. Ah disse ele, e continuou a sua caminhada.

    Eu podia ter aproveitado a boa vontade dele e explicado asituao, mas fui contido por aquele orgulho bobo que todo menino tem

    de no mostrar inexperincia. Quando vi que ele me olhava novamente lda ponta da plataforma virei o rosto para o outro lado, fingindotranqilidade. De repente as luzes foram se apagando, ficando apenas trslmpadas mortias em roda a plataforma. Ouvi barulho de portas de ferrose fechando, grades correndo, vozes se despedindo. Peguei a mala e osaco e procurei a sada. A nica passagem ainda aberta fazia ngulo comum guich, onde o empregado j meu conhecido, em p do lado de fora,

    conversava com algum l dentro. Ele tem palavra. Disse que trazia e trouxe. Ele canta? perguntou a voz l de dentro. No vai cantar agora, no ? Viajou o tempo todo no calor damquina. J deu gua pra ele? A primeira coisa. Coitado, bebeu quase meio copo. Voc achaque hoje eu devo deixar ele na varanda ou dentro de casa? Sei l. Tenho prtica de criar isso no. Eu gosto de passarinho cantando no mato. No sabendo que pssaro era, porque a gaiola estava no escuro,

    eu no podia dar minha opinio e fazer as pazes com o moo. E no foipreciso. Ele olhou para mim e disse para dentro do guich: Hei, Lula. Tem um menino aqui com jeito de quem estperdido. Fiquei encabulado mas agradecido. O homem chamado Lulaenfiou a cabea pelo guich e mostro a cara redonda gorda. Deixa eu ver disse ele procurando-me na sombra. Chegueipara a frente dele, o mnimo que eu podia fazer para que eles meajudassem. Pode ficar a mais no. J vamos fechar. Para onde voc ia? Ento eu disse a eles quem era, e qual o meu destino.

    Ah, o engenheiro disse Lula. Fica no seu caminho, no ,Braz? Leva ele l. Braz era alegre e conversador, carregou a mala para mim, contouque estava estudando contabilidade pelo correio, no ano seguinte iafazer concurso para guarda-livros da estrada de ferro. O passarinho queele levava era um corrupio, difcil de encontrar nos matos dali. Ele tinhamuitos outros passarinhos em casa, se eu quisesse v-los um dia era sperguntar pelo Braz dos Passarinhos. De repente perguntou, mudando deassunto: Por que ser que todo garoto que se perde na estao pensa

    que engana a gente?

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    lagartixa e calango, e dizem que tambm de assombrao, e onde nenhum

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    nono captulo:DAS PROFUNDEZAS DO CU

    Felipe de dr.Marcondes disse uma coisa muito certa, s agora quepercebo. Um homem foi ferrado de arraia numa pescaria aqui perto,disseram que ele chorou uma tarde e uma noite pedindo aos companheirosque o matassem porque a dor era insuportvel. Comentei o caso comFelipe, ele no ficou impressionado como eu esperava; disse apenas que

    isso ou era fita ou exagero ou lenda porque no existe dor insuportvel; dorinsuportvel ningum sabe como porque ainda no sofreu. Pensei quefosse uma dessas idias tiradas de livro, Felipe lia muito e gostava demostrar leitura. Pensando agora em nossa situao aqui, vejo que Felipe tinharazo. Todo mundo vem dizendo h muito tempo que a vida estinsuportvel, e que se continuar assimPois continua, e cada dia piora, eestamos a agentando. Quando parece que no vamos agentar mais e cairno desespero, algum inventa um passatempo para nos distrair. Foi numa dessas ocasies que eu sofri o maior susto de minha vida.Tinha chegado o ponto em que o nosso nico consolo era subir a um lugar

    alto e olhar os campos e estradas alm de nossas divisas, onde no vigoramainda os regulamentos da Companhia. Nos dias claros podamos veranimais pastando, gente passando, e quem tinha lunetas e binculosguardados do tempo da invaso dos urubus via at o vento balanandofolhas, um vento diferente, mais solto, sem muros para det-lo. Essepassatempo de olhar para longe estava viciando um nmero cada vez maiorde pessoas. Vamos sempre as mesmas coisas, mas no cansvamos deolhar. Acho que fazamos isso como quem olha uma festa pelo buraco dafechadura, imaginando mais do que vendo. Eu e uns colegas descobrimos um lugar timo para olhar os camposescondido dos fiscais. Quase toda tarde nos reunamos na torre do

    convento velho, cercada de mato e carrapicho, lugar de muita cobra,

    fiscal se lembraria de procurar gente. amos para l um de cada vez para no chamar ateno. Um diacheguei primeiro. Subi torre e fiquei sentado numa plataforma de barrotesesperando os companheiros, um deles tinha prometido levar o binculo dopai. Enquanto esperava eu me distraa olhando sem binculo mesmo, maslogo me desinteressei. Do lado da cidade nada para ver alm do labirinto demuros brancos acompanhando o traado tortuoso de ruas antigas, etelhados empretecidos pelo tempo, aqui e ali um penacho de fumaa

    saindo do fundo de uma casa, no mais o deserto. Para o outro lado do rio tambm no estava tendo muito que ver. Vium caminho carregado subindo moroso a estrada que vem de Andiara esegue para o norte quando o viajante no quer parar aqui. Olhei o caminhoat ele sumir num corte da estrada e fiquei pensando nas duas pessoas queiam nele, quase de costas para ns, alheias a nossos problemas, gente deum mundo sem tantas proibies e tantos fiscais. No achando o que ver fora da torre, passei a me distrair com osdesenhos e inscries das paredes escalavradas. Muita imoralidade, muitaasneira em versos, muito nome feio, desenhos de homens nus com o birrolevantado ameaando mulheres tambm nuas, de vez em quando um

    pensamento desses que a gente encontra em almanaques antigos. Tudoisso devia ter sido feito h muito tempo porque nada constava contra aCompanhia. Pensei em corrigir a falta mas desisti por no ter levado carvonem nada pontudo. Quando esgotei as inscries e desenhos e olhei novamente parafora, mais para descansar a vista do que esperando ver alguma coisa, leveiaquele bruto susto e fiquei sem ao por algum tempo. Pois se o homempassava voando bem na minha frente, justamente diante da parte aberta datorre! Foi rpido, mas deu para ver. Ia deitadinho como nadando, s queno dava braadas, apenas mexia discretamente com os braos, e mepareceu que tinha um cigarro aceso na boca, se no era cigarro era um

    canudinho outro que tambm soltava fumaa. Essa parte mais alta da torre onde ns ficvamos s tinha trsparedes: a da frente, com uma janelinha que nunca tentamos abrir, e as doslados. O fundo era arrematado por dois barrotes quadrados com aspontas embutidas em uns dois palmos de parede de cada lado. O barrotede baixo estava despencado de um lado quando comeamos a freqentar atorre, e ns acabamos de derrub-lo s para ouvir o barulho dele batendo lembaixo. O homem passava da direita para a esquerda, eu o peguei j nametade do caminho; e quando ele sumiu atrs da parede da esquerda e eurecuperei os movimentos apoiei as coxas no barrote restante, firmei a moesquerda na parede e inclinei o corpo para fora, mas no o vi mais, ele

    devia estar circulando a torre.

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    Parece que a Companhia no sabe mais o que fazer para

    l f di i d l d i Estava l um senhor magro de olhos fundos vestido deb f l d d d d i l Q d

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    segurar o pessoal, faz dias que no cai nada l de cima, e osfiscais andam tontos de um lado para outro ameaando,implorando, prometendo vantagens, mas ningum liga paraeles, e dizem que muitos esto voando tambm.

    E triste ver as ruas vazias, as casas abandonadas comjanelas e portas batendo ao vento, e de noite ouvir o uivo de

    cachorros que no puderam acompanhar os donos (por ummotivo desconhecido cachorro no consegue voar). Felizmenteesses pobres bichos esto morrendo de fome e de tristeza, elogo ficaremos livres dos uivos. De vez em quando a Companhia acorda e organizadesfiles de funcionrios com banda de msica e foguetes,carros com alto-falantes rodam por a fazendo barulho comoantigamente em poca de eleio, e isso em vez de animar,como parece ser o objetivo, entristece mais porque trazsaudade. Os prprios funcionrios sopram os instrumentos emalham as zabumbas com aquela moleza de quem trabalha acontragosto, pensando em outra coisa. Passado o desfile, osilencio volta com mais peso. s vezes largo este trabalho e vou dar umas voltas,caminho muito tempo sem encontrar ningum, de repenteesbarro numa pessoa que no vi e que no me v. Parece quequem no est voando de um jeito est voando de outro. Oque mais se v nas ruas agora p de sapato avulso, peas deroupas, pencas de chaves, at dinheiro, principalmente

    moedas; o dinheiro vou apanhando, pode ser que volte a tervalor.

    Hoje estive na loja de Seu Chamun, uma tristeza. Poeirae cisco por toda parte, qualquer dia vira monturo. Os doisempregados do meu tempo foram embora, no sei sedispensados, e o dono no tem disposio para limpar. Mas um lugar onde ainda se pode saber notcias, acho que porisso que Seu Chamun continua abrindo, vendas ele no deveestar fazendo mais.

    branco falando com voz de corda grossa de violo. Quandocheguei esse homem dizia com a maior naturalidade que notem ningum voando. Estranhei mas fiquei calado, podia seralguma brincadeira entre os dois. Mas Seu Chamun falouperguntando: Ento ns todos estamos malucos? Malucos propriamente no. Estamos sofrendo de uma

    alucinao coletiva. Explica isso, professor pediu Seu Chamunapontando um lpis com o canivete, no sei se pornecessidade mesmo ou se para mostrar desinteresse numaconversa to absurda. Alucinao coletiva. Todo mundo pensa que estvoando ou que est vendo outros voarem. Porque todo mundodeseja muito voar, quanto mais alto e mais longe melhor. Alucinao coletiva. uma doena ento? No, no. Pelo contrrio. E remdio. Remdio. E serve para que? Contra loucura, justamente. Seu Chamun ficou calado, pensando ou simplesmentecaprichando na apontao do lpis. Depois perguntou: E quando que vamos parar de tomar esse remdio?Quero dizer, quando que aqueles l em cima vo voltar? Ouno voltam nunca mais? Voltam. Um dia voltam. Mas quando vai ser?

    Para a festa dos reis barbudos. Esperei que Seu Chamun perguntasse que reis eramesses, e que festa, mas ele no perguntou. Eu tambm no,porque estava s escutando. E quando vi, o tal professorabotoou o palet e saiu depressa. Eu estava de costas para aporta, olhando para Seu Chamun, interessado na reao dele, etive a impresso de que a sombra do professor se elevava noespao. No me interessei em tirar a limpo porque j estoucansado de ver gente voando.

    http://www.elivros-gratis.net/elivros-gratis-literatura-brasileira.asp