primavera na sombra

9
Nos escombros Os países que derrubaram seus ditadores vivem momentos de crise política, econômica e social EU & Sexta-feira e fim de semana, 3, 4 e 5 de maio de 2013 - Ano 14 - Nº 651 FIM DE SEMANA Manifestante exibe uma cruz e o Corão, na praça Tahrir: protesto pela defesa da liberdade religiosa no Egito da revolução

Upload: dubes-junior

Post on 10-Mar-2016

244 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Dois anos após os levantes no mundo árabe, a economia patina, a política não avança e há quem tenha saudade da ditadura. Reportagem sobre a situação política, econômica e social no Egito, Tunísia, Líbia e Síria, após o movimento que ficou conhecido no Ocidente como a Primavera Árabe.

TRANSCRIPT

Nos escombrosOs países que derrubaram seus ditadores vivemmomentos de crise política, econômica e social

EU&Sexta-feira e fim de semana, 3, 4 e 5 de maio de 2013 - Ano 14 - Nº 651

FIM DE SEMANA

Manifestante exibe uma cruze o Corão, na praça Tahrir:

protesto pela defesa daliberdade religiosa no Egito

da revolução

4 | Valor | Sexta-feira e fim de semana, 3, 4 e 5 de maio de 2013

REPORTAGEM DE CAPA

A Primavera na

Sexta-feira e fim de semana, 3, 4 e 5 de maio de 2013 | Valor | 5

Dois anos após os levantes nomundo árabe, a economia patina,a política não avança e há quemtenha saudade da ditadura. PorYan Boechat e Dubes Sônego,para o Valor, de Túnis e Cairo

s ombraFOTOS: YAN BOECHAT/VALOR

6 | Valor | Sexta-feira e fim de semana, 3, 4 e 5 de maio de 2013

Meia dúzia de toalhas puídas des-cansam em um varal de chãoem frente à barbearia. Secamsob o sol ainda tímido. Lá den-

tro, a luz fraca, no teto baixo, ilumina a sale-ta onde mal cabem duas cadeiras de barbei-ro, decorada com versos do Corão emoldu-rados nas paredes e bancos de madeira naslaterais. Merhez Zouri usa uma máquinapreta pequena e barulhenta para fazer os úl-timos ajustes no cabelo do cliente, cortadobem curto nas laterais e com volume em ci-ma, como gostam os jovens tunisianos. Falapouco, mas segue o ritual universal dos bar-beiros. Espelho a 45 graus de cada lado daorelha para checar como está o corte na nu-ca, escovinha no pescoço para retirar os pe-los, batida nos ombros para não deixar queos fios de cabelo se juntem à roupa. Tudomuito cerimonioso, tudo em silêncio.

Aos 21 anos, Zouri é um veterano das ba-talhas de rua que incendiaram a Tunísia ederam início ao movimento que ficou co-nhecido como Primavera Árabe. Assim co-mo milhares de jovens de sua idade, em ja-neiro de 2011 ele foi às ruas da capital, Tú-nis, para atirar paus, pedras e tudo o que en-contrassem pela frente contra as forças derepressão, nos protestos que acabaram porderrubar o ditador Zine el Abidine Ben Ali.A desilusão com os resultados do levante,no entanto, o tornaram saudosista.

“Sabem quem é esse?”, pergunta, apontan-do para a foto de um homem de terno preto,uma faixa roxa repleta de medalhas grandes acruzar-lhe o peito, postado ao lado da bandei-ra da Tunísia, que faz as vezes de tela de fundode seu telefone celular. “É Ben Ali. Deixo a fotodele aqui para mostrar para todo mundo queeu queria que ele voltasse”, diz, olhando para aimagem clássica do ex-ditador, que por déca-das decorou os prédios públicos do país.

Zine el Abidine Ben Ali, o homem que co-mandou a Tunísia com mão de ferro por 23anos, partiu no dia 14 de janeiro de 2011.Acuado por maciços protestos populares,reuniu a família, juntou os pertences maisvaliosos e embarcou em um jatinho parti-cular com direção à Arábia Saudita. Com aqueda do ex-general do exército que con-quistara o poder por meio de um golpe deEstado, chegava ao fim um ciclo de seis dé-cadas de ditaduras caracterizadas pelacombinação de valores seculares e brutal re-pressão política e religiosa neste pequenopaís do Norte da África, famoso por suaspraias paradisíacas e por seus cenários de-sérticos exuberantes nas dunas do Saara.

Foi a queda de Ben Ali, muito mais do queas manifestações de rua iniciadas em 18 dedezembro de 2010, após a auto-imolação de

Mohammed Bouazizi, um jovem vendedorde frutas no interior do país, que serviu comoestopim para as revoltas que tomaram omundo árabe no inverno de 2011. A quedado tirano diante de protestos populares foi ocatalisador para que jovens reunissem cora-gem suficiente para ir às ruas do Egito, da Lí-bia, da Síria e de outros países para enfrentarditadores. Mas muito mais do que um movi-mento ideológico, a Primavera Árabe foiuma resposta às condições econômicas e so-ciais que entraram em um processo de deca-dência ainda mais acelerada após a crise fi-nanceira de 2008. Merhez Zouri foi à rua porisso. Nos meses que antecederam a chamadaRevolução de Jasmim, não conseguiu entrarem uma das universidades financiadas peloEstado. Sem conhecer quem tivesse boas re-lações no governo, viu suas repetidas tentati-vas de conquistar um emprego no serviçopúblico frustradas. “Eu me arrisquei na revo-lução porque não havia chances para mim epara praticamente ninguém aqui do meubairro. Acreditávamos que tirando Ben Alideixaríamos de ser pobres”, diz.

Zouri é um jovem moreno, de cabelosquase lisos e de cara fechada, que facil-mente passaria por brasileiro. Vive com ospais no Ibn Khal Doun, bairro operário co-mo muitos das periferias das grandes cida-des brasileiras, distante pouco mais deuma dezena de quilômetros do centro deTúnis. Por ali, é fácil encontrar grafitado otradicional “A . C . A . B.”, anagrama para “AllCops Are Bastards” (todos os policiais são“bastardos”). Nos cafés, dezenas de jovenspassam o dia tomando chá, vendo futebole fumando shisha, o narguilé.

Nos últimos dois anos, pouca coisa mudouno Ibn Khal Doun. “Só piorou. Os preços estãomais altos e os empregos, que já eram poucos,s u m i r a m”, diz. A única ocupação que Zouriencontrou foi na pequena barbearia de umconhecido, nas proximidades de casa, ondegarante a principal renda da família: “Foi tudoum erro, queria mesmo que a revolução nun-ca tivesse acontecido”. A frustração que acom-panha o jovem barbeiro tunisiano é compar-tilhada por milhões de pessoas no Norte daÁfrica, no Oriente Médio em boa parte dospaíses ocidentais, que viam a chamada Prima-vera Árabe como um momento de transfor-mação profunda nessa que é uma das regiõesmais conturbadas do planeta. As decepçõesnão são homogêneas. Longe disso.

Há jovens pouco politizados que espera-vam uma melhora rápida e significativa nascondições econômicas. Há a elite educadadesses países, que acreditava estar colocandofim a décadas de controle social e cultural porparte dos ditadores. E, por fim, havia toda a

Sexta-feira e fim de semana, 3, 4 e 5 de maio de 2013 | Valor | 7

A queda de Ben Ali tevesentidos diferentespara o boleiro AnisHamrouni (à esq.), oradialista Ashraf Ayadi(centro) e o barbeiroMerhez Zouri (à dir.),que exibe a imagem doditador como pano defundo do celular

expectativa da comunidade internacional deque os países árabes entrassem em um ciclode democratização aos moldes ocidentais.

Nada disso ocorreu. Dois anos após o quemuitos analistas políticos chamaram de “aqueda do muro de Berlim árabe”, os paísesque derrubaram seus ditadores vivem mo-mentos de crise profunda. Seja ela política,econômica ou sectária. No fim, com exceçãoda Síria, onde o futuro ainda é uma incógnita,Tunísia, Egito e Líbia avançam em direção aocenário menos esperado quando das revolu-ções: o acirramento conservador proporcio-nado pelos movimentos islâmicos, os grandesvencedores políticos da Primavera Árabe.

“Os movimentos islâmicos saíram-se ven-cedores não exatamente por serem islâmicos.Ganharam as eleições porque, no fim das con-tas, eram os únicos verdadeiramente organi-zados politicamente”, diz Stacey Gutowski,professora do Programa de Estudos sobreOriente Médio e Mediterrâneo do King’s Col-lege, em Londres. No caos pós-revolução, ne-nhum grupo político era tão organizado, tãocapilarizado quanto os movimentos islâmi-cos, que passaram boa parte das últimas cincodécadas atuando no subterrâneo. O egípcioHosni Mubarak, o líbio Muamar Gadafi, BenAli e mesmo o sírio Bashar Al Assad reprimi-ram com rigor todos os movimentos políticosque tinham base islâmica. No Egito, a Irman-dade Muçulmana, apesar de muito ativa, esta-va na ilegalidade há quase quatro décadas. NaTunísia, o Ennahda, cópia independente domovimento egípcio, foi banido e boa parte deseus principais líderes foi para o exílio.

Mas, em comum, todos eles montaramuma rede de assistencialismo, tendo comobase as mesquitas. Em países onde um quar-to da população vive abaixo da linha da po-breza, como no Egito, qualquer auxílio ma-terial ou econômico é sinônimo de poder.

“Os secularistas sempre foram mais liga-dos às forças sociais e culturais internacio-nais, sempre foram mais cosmopolitas, masao mesmo tempo estavam longe da popula-ção mais simples”, diz James Reilly, profes-sor de história moderna do Departamentode Estudos das Civilizações do Oriente Mé-dio da Universidade de Toronto. “Quandochegou o momento das eleições, a históricaorganização dos movimentos islâmicospermitiu que eles mobilizassem os eleitoresde forma muito mais eficiente”, diz.

No Egito, maior e mais importante país daregião, o vencedor das eleições — democráti -cas e limpas, atestam observadores interna-cionais — foi a Irmandade Muçulmana, oprincipal movimento islâmico de todo omundo árabe, nascido nos anos 1920. Desdeque Mohammed Morsi se tornou o presidente

FOTOS: YAN BOECHAT/VALOR

M a n i fe st a n teregistra com tabletimagens de protestopró-governo emTúnis; a tecnologiadigital foi empregadaamplamente nosprimeiros meses daPrimavera Árabe

8 | Valor | Sexta-feira e fim de semana, 3, 4 e 5 de maio de 2013

do país, o Egito aprofundou ainda mais suacrise. Seja por causa da oposição, que não acei-ta o fato de Morsi tentar promulgar uma novaConstituição que lhe dá poderes quase ditato-riais e tem muitos pontos baseados na sharia,a lei do Corão, seja por causa de uma profun-da crise econômica. Na Líbia, o cenário é aindamais complexo. Após uma guerra civil san-grenta, que terminou com a morte brutal doex-ditador Muamar Gadafi, o país tenta evitarque divisões históricas façam surgir um novoconfronto. Como nos tempos de Gadafi, o Les-te, principalmente a região de Benghazi, re-clama de não receber a atenção que merecedo Oeste, onde está a capital, Trípoli.

A diferença agora é que o país está arma-do, com divisões tribais mais acirradas ecom crescente participação de grupos islâ-micos extremistas. Um ataque orquestradopela Al Qaeda matou o embaixador ChrisStevens no consulado dos Estados Unidosem Benghazi, em setembro. Na semana pas-sada, um carro bomba explodiu na frenteda embaixada francesa em Trípoli, na Líbia,deixando dois guardas feridos.

Grupos islâmicos radicais também têm ti-do participação importante na Síria, onde aguerra civil, que já matou mais de 70 mil pes-soas, parece distante do fim. Desde que umajihad foi decretada por clérigos sunitas, com-batentes ligados a movimentos radicais de to-do o mundo árabe seguiram para a Síria paracombater as forças do ditador Bashar Al As-sad, que pertence à corrente minoritáriaAlauita e é apoiado pelos xiitas do Irã. Bem ar-mados e experientes, esses combatentes estãoganhando espaço na guerra civil e já há quempreveja que, em caso de derrota do regime,ocorra uma tentativa de instalar um Estado is-lâmico radical no país. É na Tunísia, no entan-to, que a vitória dos movimentos islâmicos eda crescente onda de conservadorismo é maisemblemática. E não só pelo fato de ter sido alio berço da Primavera Árabe. Nenhum país nomundo árabe tinha uma relação tão distanteentre Estado e igreja quanto a Tunísia, que, aolongo das últimas seis décadas, se transfor-mou em uma ilha de secularismo, impostopela mão pesada do Estado.

“Antes da revolução, o uso do véu e da barbaeram até malvistos. Hoje, já se escutam histó-rias de famílias que pressionam as filhas a usaro véu, com medo de que sejam discriminadasou tenham dificuldade para arrumar um na-morado e casar”, diz o embaixador brasileiroem Túnis, Luiz Antônio Fachini Gomes, quechegou ao país em setembro de 2010, três me-ses antes do estouro da revolução.

Túnis ainda tenta ser uma pequena Paris.Na avenida Habib Bourguiba, que homena-geia o ex-ditador que garantiu às mulheres li-

berdades como o direito de escolher o maridoe a participação ativa em todas as áreas da vi-da civil, há dezenas de cafés em estilo francês,com pequenas mesas redondas e cadeiras devime. São pontos de encontro onde os tunisia-nos se reúnem para conversar, tomar café ebeber cerveja, uma liberdade impensável navizinha Líbia ou na distante Arábia Saudita.Mulheres elegantes ainda caminham sobresaltos altos por entre as árvores de copas apa-radas desta alameda de prédios em estilo neo-clássico do século XIX. Mas, lentamente, osvéus, antes proibidos, vão ganhando as ruas.

Pela força e por políticas públicas, a Tunísiacoibia manifestações religiosas que ameaças-sem interferir na estrutura social de um paísque se vê, ainda, mais europeu que árabe. Du-rante os últimos governos ditatoriais do país,mulheres que usassem o véu e homens que os-tentassem a barba no estilo muçulmano eramconvidados a dar explicações à polícia. A libe-ração só era feita depois da assinatura de umdocumento em que se comprometiam a tiraro véu e cortar a barba. A recusa poderia signi-ficar a perda de documentos e dificuldadespara encontrar emprego, estudar e usar servi-ços públicos básicos. O ex-jogador de futebolAnis Hamrouni, ponta-direita promissor quechegou à seleção sub-20 da Tunísia, foi vítimade situações como essa inúmeras vezes.

Desde que parou de jogar, há sete anos,por causa de uma meningite, Hamrouni seaproximou da religião e se tornou salafista,membro da corrente muçulmana que advo-ga uma interpretação mais radical do Corãoe que pretende implantar a sharia em todo omundo árabe. Salafistas como ele foram du-ramente perseguidos no governo de Ben Ali.“Fui preso inúmeras vezes, só porque manti-nha a barba grande, como agora, ou porquesimplesmente não queria usar roupas oci-dentais”, conta. “Não podíamos ser o quenosso profeta Maomé nos ensinou a ser.”

Hamrouni frequenta uma das 500 — de umtotal de 5 mil — mesquitas tunisianas que pas-saram a ser dominadas por salafistas após aqueda de Ben Ali, há dois anos. Ele, como to-dos os que seguem a mesma linha religiosa,acredita que não há espaço para democraciana Tunísia, assim como não há espaço para di-reitos das mulheres ou mesmo a necessidadede criar uma nova constituição. “Alá nos deutudo, está tudo no Corão, não precisamos denovas leis, não precisamos de homens nos go-vernando, quem nos lidera é Alá”, diz ele, pro-fundo admirador de Osama Bin Laden.

São homens como Anis Hamrouni que re-presentam, ao menos para a população maisocidentalizada da Tunísia, a maior ameaça adécadas de contínuas conquistas liberalizan-tes. “Essa não é a Tunísia que conheço. Não

Sexta-feira e fim de semana, 3, 4 e 5 de maio de 2013 | Valor | 9

consigo acreditar que mulheres sem véu estãosendo xingadas nas ruas, e que pessoas quedefendem a sharia têm voz na sociedade”, dizo jovem Ashraf Ayadi. Ele, como uma parcelaimportante da população urbana da Tunísia, éum muçulmano não muito praticante. Vai àmesquita vez ou outra, mas tem um estilo devida muito ligado ao Ocidente. “Aqui na Tuní-sia, não somos 100% árabes, somos uma mis-tura de povos. Por isso somos essa ilha de secu-l a r i s m o”, afirma, em inglês impecável. “Mas seos islamistas continuarem a ganhar força, ascoisas vão piorar”, diz ele, que, aos 22 anos,trabalha como tradutor e radialista em Túnis.

Para as mulheres, as coisas já pioraram. NoEgito, onde em 2010 a maior parte da popula-ção (54%) era a favor da segregação por gêne-ros no ambiente de trabalho e 82% apoiavama adoção da pena de morte por apedrejamen-to em caso de adultério, o retrocesso em rela-ção a conquistas femininas consolidadas noOcidente é imenso. Não só a promessa decampanha de uma vice-presidente mulhernão vingou, como a cota parlamentar de mu-lheres, que existia, foi removida.

Entre mulheres de classe média, muitas dasquais são muçulmanas e foram às ruas ajudara derrubar o governo em 2011, o medo agoraé que uma nova constituição legalize práticasque são regra em áreas mais pobres, como ocasamento a partir dos 13 anos — a Irmanda-de Muçulmana defende a idade de 9 anos.

No Egito, até a descriminalização da muti-lação do clitóris, da qual escapa somente umterço das meninas egípcias, chegou a ser cogi-tada pelo atual presidente, ligado à Irmanda-de Muçulmana. Mas acabou descartada. O nú-mero de casos de violência sexual também au-mentou significativamente, mesmo em áreasque eram frequentadas livremente por mu-lheres nos protestos de 2011, como a PraçaTahrir, território proibido para mulheres sozi-nhas, em especial à noite. A área ficou tão peri-gosa que, só no aniversário do início dos pro-testos, em 25 de janeiro, foram confirmados18 casos, muito deles de estupros coletivos.

Na Líbia, onde um dispositivo de lei quegarantia igualdade de direito às mulheresfoi removido da constituição redigida após aguerra civil, a situação é semelhante, segun-do informações da Anistia Internacional.

Na Tunísia, onde até a queda do antigo regi-me as mulheres iam à praia em biquínis, Ami-na Tyler, uma jovem de 19 anos, foi condena-da à morte por apedrejamento por um clérigoradical depois de postar na internet uma fotoem que aparecia fazendo topless, com a frase“F... a sua moral” pintada no corpo, em árabe.O protesto contra a crescente repressão àsmulheres no país repercutiu mundialmente eterminou com o rompimento de Amina com

FOTOS: YAN BOECHAT/VALOR

Apoiadores do lídermorto se manifestamcom imagens (à esq.) ecartazes (à dir.); emprotesto pró-governo,a Tunísia aparececomo lutador de sumôcontra adversáriomuito menor (centro)

Durante o enterro dolíder oposicionistatunisiano ChokriBelaid, assassinadoem fevereiro, atensão política dopaís transbordou embrigas e discussõesa c a l o ra d a s

10 | Valor | Sexta-feira e fim de semana, 3, 4 e 5 de maio de 2013

a família religiosa. Ela está escondida e querfugir para a França. Teme ser violentada porpoliciais ou morta por salafistas.

Os salafistas fazem parte do grupo mais ex-tremo dos movimentos islâmicos. Ao contrá-rio da Irmandade Muçulmana ou do Ennah-da, na Tunísia, advogam que todo o mundoárabe precisa voltar a ser um califado. De ori-gem sunita e surgido em sua versão modernano século XVIII, o salafismo passou a ganharmais força nos anos 1960 e veio a desaguar emmovimentos radicais como a Al Qaeda.

Apesar de os partidos moderados islâmi-cos, como a Irmandade Muçulmana, no Egito,ou o Ennahda, na Tunísia, não compartilha-rem da visão desses movimentos, nenhum de-les teve força suficiente para impedir o avançodos salafistas no período pós-revolução. Paraesses grupos não há espaço para negociação eo uso da força tem sido sistemático em defesade suas ideias. "Há um crescente descréditonas instituições que deveriam proteger os di-reitos humanos", diz o vice-diretor da AnistiaInternacional para o Oriente Médio e Norte daÁfrica, Hassiba Hadj Sahraoui.

O auge dessa política de medo ocorreu em6 de fevereiro na Tunísia, quando o líder daoposição Chokri Belaid foi assassinado comquatro tiros. Belaid era crítico feroz dos sala-fistas e acusava o Ennahda de não tomar ne-nhuma ação para controlar os mais radicais.A morte de Belaid pode muito bem ter se-pultado o sonho de que um novo mundo dedemocracia e liberdade floresceria nos paí-ses árabes. A pergunta que ficou no ar foi: senão deu certo na Tunísia, o mais secular dospaíses da região, onde mais poderá dar?

“As próximas eleições vão definir se os isla-mitas vão consolidar o poder que conquista-ram. Agora, mais do que antes, a questão eco-nômica será crucial para definir quem sairá vi-t o r i o s o”, diz Amel Saffar, professor do Institu-to de Altos Estudos Econômicos de Cartago eintegrante da Associação Tunisiana para a De-mocracia, um dos grupos responsáveis pelaobservação das disputas eleitorais.

As próximas eleições parlamentares no Egi-to e na Tunísia estão marcadas para outubro,apesar de não haver certeza se elas de fatoocorrerão. No Egito, estavam programadaspara o mês passado, mas os protestos violen-tos do início do ano no Cairo e em cidadespróximas ao canal de Suez, somados às pro-messas da oposição de boicote, levaram Morsia adiá-las para outubro. Agora o presidente dásinais de que haverá novo adiamento. A razão,segundo ele, é que precisa de mais tempo paranegociar um acordo de auxílio financeirocom o FMI (Fundo Monetário Internacional).

Muito mais que a Tunísia ou a Líbia, quepassa por um momento de reconstrução

pós-guerra civil, é o Egito o país mais pres-sionado pela decadência econômica que to-mou conta dos países da região. Desde aqueda de Hosni Mubarak, há dois anos, oprocesso de deterioração do cenário econô-mico se acelerou rapidamente. O PIB, quecrescera 5,14% em 2010, decepcionou, com1,7% em 2011; no ano passado, teve apenasuma leve recuperação, fechando em 2,21%.

Mas o problema mais grave está no balançode pagamentos. Desde janeiro de 2011, as re-servas em moeda forte caíram de US$ 36 bi-lhões para cerca de US$ 13 bilhões. O proble-ma é grave para um país que mantém uma po-lítica de subsídios agressiva em produtos queprecisa importar, como o trigo, do qual é omaior importador mundial, e o petróleo. Hojeo pão comercializado nas ruas do Cairo, porexemplo, custa o equivalente a menos de US$0,10, enquanto o litro da gasolina é vendidonas bombas a US$ 0,20. O gás de cozinha che-ga ao consumidor egípcio a meros 7% do valorinternacional de mercado. Sem ajuda externa,os US$ 13 bilhões em caixa são suficientes pa-ra apenas três meses de importações.

A inflação disparou nos últimos meses. Ataxa anual, que em dezembro estava em 5%,pulou para 8% em fevereiro. Ao mesmo tem-po, a libra egípcia perdeu mais de 10% deseu valor apenas neste ano, tornando a mis-são do governo de abastecer o país comcommodities importadas ainda mais difícil.A taxa de desemprego oficial saiu de 9% em2010 para 12,3% no ano passado. O FMI, noentanto, projeta que os desempregados se-rão 13,5% da população economicamenteativa ao fim deste ano e 14,2% em 2014.

O Egito não quer aceitar o acordo com oFundo para receber um pacote de auxílio deUS$ 4,8 bilhões porque sabe que terá de ado-tar medidas de austeridade duras, como ocorte de subsídios e o aumento de impostos,como exige o FMI. Os reflexos de um acirra-mento econômico em um país já dividido einstável são imprevisíveis.

Para não quebrar, o Egito anda de pires namão. O Catar já deu US$ 5 bilhões e prome-teu mais US$ 3 bilhões. A Turquia se compro-meteu a transferir em dois meses US$ 1 bi-lhão, dos US$ 2 bilhões que prometeu noano passado. Mesmo a Líbia, que se transfor-mou em pouco mais que um punhado de ci-dades autônomas ricas em petróleo, anun-ciou no mês passado ajuda de US$ 2 bilhões.

A Tunísia também sofre com uma econo-mia que caminha a passos lentos. Mas foimais rápida nas negociações com o Fundo egarantiu, na semana passada, crédito deUS$ 1,75 bilhão em caso de necessidade. Ovalor ficará disponível por 24 meses, segun-do anunciou no dia 19 a diretora-gerente

Sexta-feira e fim de semana, 3, 4 e 5 de maio de 2013 | Valor | 11

do Fundo, Christine Lagarde. Na lista de exi-gências do Fundo estão velhas recomenda-ções conhecidas dos brasileiros, como polí-ticas para a contenção da inflação, ajustesde despesas públicas, garantias à estabilida-de do setor bancário e maior flexibilidadedo câmbio, para que o país possa ganharcompetitividade, melhorar suas contas ex-ternas e reservas internacionais.

Na praça Tahrir, na região central do Cai-ro, talvez o maior símbolo da PrimaveraÁrabe, ainda estão as tendas montadas pe-los manifestantes para marcar território eresistir às investidas das forças de segurançado governo. Um museu foi improvisadocom paus e lonas plásticas para homena-gear os mártires dos conflitos. Lá estão ex-postas charges políticas, pequenos textos efotos de jovens desfigurados pela violência,de batalhas, de momentos de heroísmo ealegria. Há carcaças de carros incendiados,fezes nas entradas do metrô e muita poeiracobrindo a rua. Suja, decadente e insegura,ela, de certa forma, se transformou em umsímbolo também do período atual.

“Os egípcios que fizeram a revolução estãocheios de perguntas sem resposta”, diz Moha-mad Shinnewy, jovem documentarista egíp-cio que vive na Tahrir desde o início dos pro-testos. Magro, a barba por fazer, os cabelossem corte presos em um rabo de cavalo, Shin-newy é o retrato dos manifestantes de hoje. Es-tá ali sem saber muito o que fazer, e diz: “Con -tinuamos aqui para defender a revolução”.

A rotina modorrenta e desesperançada équebrada pelos constantes choques com apolícia. Eles ocorrem, em geral, nas proximi-dades da embaixada americana, a cerca de500 metros da Tahrir. Sob as luzes fortes daavenida que margeia o Nilo, os manifestan-tes avançam e recuam em ondas, atirandopaus, pedras e coquetéis molotov. Os maisdestemidos à frente, alguns deles crianças,de peito aberto, se arriscando a receber tiroscom munição para matar passarinhos. Dooutro lado, a polícia responde também compedras e bombas de gás lacrimogêneo. De-pois de dois anos de enfrentamentos, um arde normalidade toma conta do cenário.

O caos controlado atrai uma leva de vende-dores ambulantes que se acostumaram a ga-nhar a vida em meio a conflitos como esse,que neste ano já fizeram mais de 70 mortos ecerca de 1.400 feridos. Misturados aos mani-festantes, no meio da avenida, eles comerciali-zam pães, lenços de pano – bastante úteis pararespirar no ar saturado de gás lacrimogêneo –,água, sucos e chás. Alguns, como o dono deum grande carrinho de metal, já têm até slo-gans para desbancar a concorrência: “Aque -ça-se com um chá para derrubar Morsi”. !

FOTOS: YAN BOECHAT/VALOR

A praça Tahrir, noCairo, foi o epicentroda Primavera Árabe;o cineasta MohamadShinnewy (à dir.)ainda acampa nolocal, que abriga ummuseu improvisadodo levante (centro); eambulantes (à esq.)vendem suvenires

A condição femininaé um dos pontossensíveis depois darevolução; na Tunísia,mulheres vão à praiade biquíni: na imagemao lado, duas egípciascontemplam o mar deA l exa n d r i a