À sombra de um cajueiro

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4 4 4 4 Fundação CEPEMA Danillo Galvão - Presidente Henrique César Paiva Barroso - Vice-Presidente Heleni Lima da Rocha - Dir. Adm. Financeiro Patrimonial Adalberto Alencar - Coordenador Pedagógico e-mail: [email protected] / www.fundacaocepema.org.br A história dos índios no Ceará é marcada por um intenso processo de lutas e resistências. Lutas contra as invasões que já no início do século XVII tentavam expulsá-los de seus territórios e negar suas existências e culturas. No alvorecer da moderni- dade, discutia-se se os índios tinham alma, se eram gente, pois se não o fossem, poderiam ser escravizados e ter suas terras legitimamente apossa- das pelos invasores. Hoje, a justifica- tiva de que as populações tradicionais não são indígenas basta para tentar expulsá-las dos locais onde vivem há várias gerações. Concomitantemente à cons- trução deste discurso, as elites locais impõem à sociedade cearense um projeto de modernização que está modificando completamente sua paisagem, com a construção de uma complexa infra-estrutura que visa à imersão efetiva do estado nas ma- lhas do neoliberalismo. Sob a capa do velho discurso do progresso, pro- metem emprego e “desenvolvimen- to”. Na verdade, um projeto de de- senvolvimento nitidamente elitista e concentrador de renda. Insustentá- vel e explorador de recursos huma- nos e naturais, com fortes impactos no modo de vida das populações in- dígenas e tradicionais, tanto do ser- tão quanto do litoral cearenses. Não é de se estranhar que o mesmo Estado que negou a existên- cia de índios no Ceará na segunda metade do século XIX, venha hoje apoiar empreendimentos que têm na apropriação da terra e na utilização de nativos como mão de obra barata sua lógica, sob a justificativa de que trarão o famigerado “progresso” e “desenvolvimento”. Afinal, a existên- cia de populações indígenas organi- zadas emperram o projeto político e econômico em curso. Pois pressupõe a existência de terras tradicionais, ha- bitadas pelos índios, que não podem ser vendidas, uma vez que estão pro- tegidas por lei federal desde 1988. A problemática da etnicidade no Ceará coloca-se como um fator mais complexo no contexto das relações político-econômicas locais e externas. A agressiva especulação imobiliária avança Ceará adentro sem nenhuma preocupação com os impactos sócio- ambientais por ela ocasionada. O que importa é saber se o Estado con- cede meios legais e estruturais para receber os recursos internacionais tão sonhados pelas elites industriais e agrárias locais. Em outras palavras, se está apto a se incorporar ao projeto de modernização capitalista. É imprescindível denunciarmos a falsidade do discurso ancorado em declarações infundadas, baseadas numa visão estereotipada, há tanto ultrapassada, de que não existem mais índios no Ceará, ou de que os índios que existem se travestem a partir de invenções de intelectuais e organizações não-governamentais. Pois, as comunidades indígenas or- ganizadas no Ceará, que totalizam cerca de doze etnias e mais de 20 agrupamentos, afirmam sua etnici- dade e se mobilizam pelo reconheci- mento e demarcação de suas terras. Resta-nos, pois, desmascarar essas afirmações e apoiar a luta des- tes povos, dando visibilidade às suas ações políticas e o apoio jurídico e científico necessários à demarcação definitiva de seus territórios. Torna- mos nossa a consigna dos índios no Ceará que diz: Não nos vendemos nem nos rendemos! Alexandre Gomes e João Paulo Vieira, historiadores e integrantes do Projeto Historiando* * O Projeto Historiando realiza programa de educação patri- monial em comunidades étnicas no Ceará. O projeto apóia a criação de museus indígenas, como espaços de formação, mobilização e organização comunitária. Ponto de Vista Que interesses há na negação da etnicidade dos índios no Ceará? Os Programas da Fundação Cepema são financiados por: Governo Federal - Ministério do Meio Ambiente/ Fundo Nacional do Meio Ambiente/PDA, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Ministério da Educação, Ministério da Cultura e Terra do Futuro/UBV - Suécia.

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Entrevista com Adriana Tremembé. Revista Agrofloresta

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Page 1: À Sombra de um cajueiro

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Fundação CEPEMADanillo Galvão - PresidenteHenrique César Paiva Barroso - Vice-PresidenteHeleni Lima da Rocha - Dir. Adm. Financeiro PatrimonialAdalberto Alencar - Coordenador Pedagógicoe-mail: [email protected] / www.fundacaocepema.org.br

A história dos índios no Ceará é marcada por um intenso processo de lutas e resistências. Lutas contra as invasões que já no início do século XVII tentavam expulsá-los de seus territórios e negar suas existências e culturas. No alvorecer da moderni-dade, discutia-se se os índios tinham alma, se eram gente, pois se não o fossem, poderiam ser escravizados e ter suas terras legitimamente apossa-das pelos invasores. Hoje, a justifi ca-tiva de que as populações tradicionais não são indígenas basta para tentar expulsá-las dos locais onde vivem há várias gerações.

Concomitantemente à cons-trução deste discurso, as elites locais impõem à sociedade cearense um projeto de modernização que está modifi cando completamente sua paisagem, com a construção de uma complexa infra-estrutura que visa à imersão efetiva do estado nas ma-lhas do neoliberalismo. Sob a capa do velho discurso do progresso, pro-metem emprego e “desenvolvimen-to”. Na verdade, um projeto de de-senvolvimento nitidamente elitista e concentrador de renda. Insustentá-vel e explorador de recursos huma-nos e naturais, com fortes impactos no modo de vida das populações in-

dígenas e tradicionais, tanto do ser-tão quanto do litoral cearenses.

Não é de se estranhar que o mesmo Estado que negou a existên-cia de índios no Ceará na segunda metade do século XIX, venha hoje apoiar empreendimentos que têm na apropriação da terra e na utilização de nativos como mão de obra barata sua lógica, sob a justifi cativa de que trarão o famigerado “progresso” e “desenvolvimento”. Afi nal, a existên-cia de populações indígenas organi-zadas emperram o projeto político e econômico em curso. Pois pressupõe a existência de terras tradicionais, ha-bitadas pelos índios, que não podem ser vendidas, uma vez que estão pro-tegidas por lei federal desde 1988.

A problemática da etnicidade no Ceará coloca-se como um fator mais complexo no contexto das relações político-econômicas locais e externas. A agressiva especulação imobiliária avança Ceará adentro sem nenhuma preocupação com os impactos sócio-ambientais por ela ocasionada. O que importa é saber se o Estado con-cede meios legais e estruturais para receber os recursos internacionais tão sonhados pelas elites industriais e agrárias locais. Em outras palavras,

se está apto a se incorporar ao projeto de modernização capitalista.

É imprescindível denunciarmos a falsidade do discurso ancorado em declarações infundadas, baseadas numa visão estereotipada, há tanto ultrapassada, de que não existem mais índios no Ceará, ou de que os índios que existem se travestem a partir de invenções de intelectuais e organizações não-governamentais. Pois, as comunidades indígenas or-ganizadas no Ceará, que totalizam cerca de doze etnias e mais de 20 agrupamentos, afi rmam sua etnici-dade e se mobilizam pelo reconheci-mento e demarcação de suas terras.

Resta-nos, pois, desmascarar essas afi rmações e apoiar a luta des-tes povos, dando visibilidade às suas ações políticas e o apoio jurídico e científi co necessários à demarcação defi nitiva de seus territórios. Torna-mos nossa a consigna dos índios no Ceará que diz: Não nos vendemos nem nos rendemos!

Alexandre Gomes e João Paulo Vieira, historiadores e integrantes do

Projeto Historiando** O Projeto Historiando realiza programa de educação patri-

monial em comunidades étnicas no Ceará. O projeto apóia a criação de museus indígenas, como espaços de formação, mobilização e organização comunitária.

Ponto de Vista

Que interesses há na negação da etnicidade dos índios no Ceará?

Os Programas da Fundação Cepema são financiados por: Governo Federal - Ministério do Meio Ambiente/Fundo Nacional do Meio Ambiente/PDA, Ministério do

Desenvolvimento Agrário, Ministério da Educação, Ministério da Cultura e Terra do Futuro/UBV - Suécia.

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ENTREVISTA

Cepema: Você se considera índia?Adriana: Sim. A gente é da etnia Tre-membé. Os Tremembés vem de Almo-fala [comunidade pesqueira a 242 km de Itarema, município cearense]. Vieram pra cá pela Praia do Mundaú. Aqui é tudo familiar, não só por ser irmãos índios, mas por ter o mesmo sangue. Cepema: Como a comunidade se susten-ta?Adriana: Da agricultura e da pesca. Planta roça, feijão, milho, bananeira, batata, melancia... A gente vem com essa cultura. É da terra que nós sobre-vive. Mas, hoje, a gente tem apoio do Governo Federal, tem o benefício da aposentadoria e o Bolsa Família que vêm ajudando o nosso povo.Cepema: Para o Governo reconhecer como indígena é preciso que a comunida-de se reconheça primeiro. Faz tempo que vocês se reconhecem como índios?Adriana: Faz muitos anos que o nosso povo sabia que era um povo indígena, mas não tinha coragem de falar. Foi em 2002 que a gente realmente levantou essa bandeira de defender a nossa terra e dizer a nossa própria etnia. Já tem 107 famílias que se cadastraram na Funasa [Fundação Nacional de Saúde] se reco-nhecendo como indígena.Cepema: Mas, a Funai [Fundação Na-cional do Índio] já veio aqui?Adriana: Já, já. A gente tem apoio da Funai. E a gente já está cadastrado pela Funasa que é para o saneamento básico.Cepema: Aqui há casas de tijolos. Tem, também, água encanada e energia?Adriana: Não temos energia elétrica, nem encanação de água. A gente tem essas casas porque os nossos antepassa-dos sofreram muito porque não tinham como fazer uma casa. Com essas melho-rias que o Governo tem dado, a gente quer ter um espaço melhor.

Cepema: E isso não tira de vocês o status de serem índios?Adriana: Em nenhum momento. Não é isso que vai tirar de nós o nosso direito de ser índio e de lutar pelos nossos direi-tos. Ter uma casa de tijolo não vai tirar o nosso direito.Cepema: Essa região é muito cobiçada pelo turismo. Como a comunidade vê essa disputa para se construir a cidade turísti-ca do grupo Nova Atlântida?Adriana: O nosso território é um ter-ritório saudável e a ganância do ho-mem branco quer destruir tudo que o Criador nos deu. Tudo aqui é natural e a gente ver esse empreendimento que-rendo instalar uma cidade... Não é nem um projeto pequeno, mas é uma cida-de. Transformar tudo que é nosso em cidade. E a gente ainda sente que eles têm o apoio do governo do estado, do município... Nós que moramos aqui e vivemos no dia-a-dia sentimos uma tris-teza com esse empreendimento.Cepema: Na proposta do Grupo Nova Atlântida, vocês sairiam daqui para onde?Adriana: Eles chegaram com a propos-ta que o empreendimento iria abranger toda a nossa moradia e que era um pro-jeto de tirar nossas casas e fazer casas po-pulares em outro canto. Só que a gente não aceita, porque onde a gente está é a nossa raiz, é um bem da gente. A gente tem uma vida e não aceita essa retirada para outro local que a gente nem sabe onde vai ser. A visão da Nova Atlântida é tirar as famílias pra residir em outro local e nós nem sabemos onde é que fi ca.Cepema: O Ministério Público embargou a construção. Mas, no caminho, eu perce-bi algumas obras, com desmatamento e queimada. O que está acontecendo ali?Adriana: Ali é exatamente obra da Nova Atlântida. A gente já denunciou por duas vezes e até agora nada foi feito. O

Adriana Carneiro de Cas-tro – 37 anos, casada e mãe de dois fi lhos – é descendente dos Índios Tremembés de Almofala, Ceará. Ela é uma das lideran-ças do seu povo na defesa de sua terra e contra o maior projeto turístico da atualidade no País: o empreendimento imobiliário, orçado em US$ 15 bilhões, do grupo espanhol Nova Atlânti-da. Esse grupo (que está sob a mira do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, do Ministério da Fazenda, por suspeita de movimentação fi -nanceira incompatível de seus sócios) quer construir uma ci-dade turística com 13 hotéis cinco estrelas, 14 resorts, seis condomínios residenciais e três campos de golfe de tamanho ofi -cial, na Praia da Baleia a 200 km de Fortaleza. A área de 3,1 mil hectares é uma Reserva In-dígena Tremembé onde moram 200 famílias das comunidades São José e Buriti.

À SOMBRA DE UM CAJUEIRO

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próprio Ibama veio verifi car, mas achou natural essa queimada do pessoal da Nova Atlântida. A gente vê com muita tristeza até agora não ter sido tomada nenhuma posição com relação a isso.

Cepema: Há quanto tempo vocês lutam para manter a terra de vocês?Adriana: Desde os nossos ancestrais que eles vêm lutando para ter a terra que era deles e que deixou de herança pra nós. Mas, nossos antepassados não tinham como lutar pelos seus direitos, pelos seus territórios, então, muitos saíram por não aceitar a chegada dos portugueses. Eles não tinham como re-correr. Hoje, nós somos uma raiz e nós brotamos. Nós já temos os nossos direi-tos pela Constituição. Mesmo assim, a gente ainda tem muito medo de falar por causa do preconceito. Nós sofremos muitos preconceitos, mas a gente vem lutando contra isso. Nosso grito tá eco-ando no mundo inteiro e nós continu-amos aqui pra defender a nossa terra e nossos direitos.Cepema: Que preconceitos vocês sofrem?Adriana: Ficam dizendo que não somos índios, que não adianta lutar contra esse empreendimento. Que não adianta pei-xe pequeno lutar contra peixe grande. Vem com esses preconceitos pra gente continuar calado, mas a gente não fi ca calado diante disso não.Cepema: Existe perseguição a lideranças por defender a permanência de vocês?Adriana: A gente é muito perseguido, eu, minha irmã. Outros parentes foram alvos de processos por conta do nosso movimento. Por não ter medo de dizer o que somos. Eles vêm querendo nos in-timidar levando nós até os tribunais de justiça do município de Itapipoca.Cepema: Então, já houve embates entre vocês e o grupo da Nova Atlântida?Adriana: Houve policiais que vieram contratados pela Nova Atlântida, tanto

de Itapipoca como de Trairi. Perseguição muito forte. Teve parentes presos. Mu-lheres que apanharam de policiais. Até crianças que foram corridas com medo da perseguição da Nova Atlântida.Cepema: Isso intimida vocês?Adriana: Pelo contrário. Quanto mais eles tentam, mais a gente se sente forta-lecido porque é um direito nosso. Nós nascemos e fomos criados aqui. Vive-mos a nossa cultura, a nossa vida. O nosso trabalho é aqui e não tem como a gente se intimidar diante disso. A gente não tem medo de que a Nova Atlântida vai tirar a gente daqui porque se real-mente isso acontecer, aí não é pra existir justiça no mundo... Porque ninguém vai fazer uma barbaridade dessa com o povo Tremembé de São José e Buriti.Cepema: Vocês têm apoio nessa luta?Adriana: Temos apoio de movimentos sociais, de outras comunidades, assen-tamentos. Até da Funai, Funasa, Missão Tremembé. De outros povos [indígenas] que vêm nos ajudando pra gente não se sentir tão abandonado. Até porque está na Constituição os direitos dos povos indígenas. E a gente se mobiliza pra lu-tar juntos pela nossa terra.Cepema: Saiu na mídia que vocês seriam

aliciados por uma Ong para dizer que são índios. O que você me diz disso?

Adriana: A empresa usa isso pra nos intimidar. Mas, a única coisa que está sendo paga aqui é os nossos parentes. A Nova Atlântida está pagando os nossos parentes para não se identifi car como índio. A única que está pagando é ela. Eu não conheço nem outro povo que está sendo pago aqui.Cepema: Como assim pagos?

Adriana: Antes de a Nova Atlântida chegar, nós lutava juntos. Com a Nova Atlântida, começou esses empregos, en-tão, o nosso povo não se identifi cou mais como índio. Porque se eles se identifi ca-rem eles não vão ter mais os empregos da Nova Atlântida. Há esse confl ito en-tre se identifi car e não se identifi car. Se identifi car, é claro, que a Nova Atlântida não vai dar o emprego. O jeito é fi car caladinho.Cepema: Que empregos eles têm?Adriana: Como vocês viram, desmatan-do... Outros são vigias dentro das nossas terras.Cepema: Vigia? Então, existem obras da Nova Atlântida aqui?Adriana: Existe. Ela está como um cân-cer na nossa terra. Ela não está em um lugar só. Está se espalhando no corpo da nossa terra. Está focada no Buriti; tá lá na Barra do Mundaú e tem outro pertinho daqui, em um sítio. Ela está se espalhando não com os hotéis, mas tá fazendo tomada de parte das nossas terras.Cepema: Se o Ministério Público proibiu as obras, por que eles permanecem aqui?Adriana: Aí é uma pergunta que a gen-te mesmo se faz. Porque se o Ministério Público deu uma liminar pra impedir essas construções e a Nova Atlântida não respeita e continua com esses traba-lhos na nossa terra... Até agora nós não sabemos o porquê disso.Cepema: Nunca veio nenhuma ação para tirá-los daqui?Adriana: Até agora não houve. A única coisa que pode nos ajudar é o estudo da nossa terra, mas que ainda não foi feito. A gente vem cobrando da Funai que eles possam encaminhar o mais breve possí-vel esse grupo de trabalho pra fazer o estudo e o laudo. A gente tem cinco sí-tios arqueológicos dos nossos antepassa-dos. Esses sítios estão, exatamente, onde o empreendimento quer instalar o seu projeto de hotéis e de campo de golfe. É em cima desses sítios arqueológicos...Cepema: Foi pedido o grupo de trabalho?Adriana: A gente vem cobrando desde o início. Em 2006, numa reunião com

Nosso grito tá eco-ando no mundo

inteiro e nós conti-nuamos aqui pra

defender a nossa ter-ra e nossos direitos.

Ter uma casa de tijolo não vai tirar

o nosso direito.

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o Ministério Público, fi cou tudo certo que o grupo de trabalho viria. Mas, até hoje nada foi concretizado.Cepema: A Funai diz o porquê de eles não terem começado?Adriana: Nem a Funai daqui, nem a de Fortaleza. Só diz que está no sistema, mas não tem data de se realizar.Cepema: E em que pé está o confl ito com a Nova Atlântida?Adriana: Esse momento é tenso. A gente continua na espera do Ministério Públi-co, da Funai. Porque só eles podem nos ajudar a resolver essa situação. A gente está esperando que isso venha acontecer pra gente realmente ter paz.Cepema: O atual governador já se envol-veu nesse confl ito?Adriana: Bom, o governador está envol-vido. Quando o governador esteve aqui, exatamente como nós estamos aqui sen-tados... O governador esteve aqui com o interesse de defender a Nova Atlântida. Ele querendo que nós negociasse, dei-xasse esse empreendimento acontecer. Que é pra trazer riqueza, trabalho para a população. O governador disse pra nós que terra pra ele tem que ser pro-dutiva. Se não for, não vale nada. Ele estava dizendo aquilo pra nos intimidar e que nós não teria outra opção. Mas, nós mostramos que ele é que vá fazer esse empreendimento em outro canto porque nós não vamos sair daqui. Nós temos que fi car aqui nas nossas terras. Se tem que vir turismo. Se quer haver desenvolvimento, que seja um desen-volvimento legal, estável para todos nós. Não um desenvolvimento que vai acabar com a maioria da nossa terra e deixar muito do nosso povo sem con-tato com os nossos manguezais, nossas matas e rios. Cepema: O governador falou em ajudar vocês, trazer, por exemplo, saneamento básico?Adriana: Em nenhum momento. A gente até reivindicou energia elétrica, então, ele disse que do jeito que estava, em confl ito, ele não poderia fazer nada. Então, eu disse que ele poderia fazer muita coisa se ele tivesse mesmo inte-resse em nos ajudar. Que ele se aliasse ao governo federal e pudesse fazer o estu-

do que isso tudo se resolveria. Mas, em nenhum momento ele se disponibilizou em ajudar a gente com saneamento bá-sico ou energia elétrica.Cepema: Você é uma das lideranças da comunidade. Como é ter uma mulher à frente?Adriana: Pois é, as mulheres estão mes-mo na frente pra defender a nossa Mãe Terra. (risos) Nós temos também muitos homens que nos apóiam nessa luta. Mas a maioria é mesmo mulher que são ca-

pazes de liderar o nosso povo.Cepema: Por que as mulheres tomaram à frente?Adriana: É porque não dá pra esperar pelos homens. A gente tem coragem, a gente enfrenta logo e faz as coisas acon-tecerem. Ninguém vai esperar que eles tomem a iniciativa.Cepema: Como vocês se organizam?Adriana: No fi m de semana, a gente tá reunido pra discutir o que aconteceu na semana e pra dançar o torém. Cepema: Vocês dançam o torém? Adriana: Dançamos. Essa é a nossa for-ça maior. A resistência que nós temos. O resgate dos nossos antepassados. A dan-ça do torém é onde nós encontramos forças pra dar continuidade a essa luta. Naquele momento, a gente se encontra com o Criador, eleva nossos pensamen-tos a ele, aos nossos ancestrais. Pedimos ajuda, força e discernimento na nossa caminhada. Pra dar saúde, paz, alegria e nós resistir a tudo isso.Cepema: E você sabe dançar?Adriana: Eu sei (risos). O torém é um ritual que todos nós sabemos. Ninguém ensinou. A gente já nasce sabendo como é que faz. As crianças na escola já sabem

dançar o torém. Cada um sabe como pegar o seu maracazim, sabe fazer o ri-tual. É uma coisa que vem de cada um. A gente nasce com esse dom.Cepema: Além do torém, há outras coisas que vêm dos seus antepassados?Adriana: As raízes que são remédios que os nossos antepassados deixaram. A nossa mata é composta de medicina. Às vezes, a pessoa tem problema de colu-na, infl amação, então, a gente usa essas medicinas das nossas matas pra se curar. A gente ainda vive uma vida dos nossos antepassados porque a gente não deixou de usar as tradições. E a conservação da nossa terra, do meio ambiente. Que-rer continuar com tudo que é sagrado pra nós. A nossa Mãe Terra, a natureza. Tudo isso pra nós é sagrado. É o que os nossos antepassados passaram pra nós.Cepema: Mas, a entrada do homem branco acabou misturando muita coisa...Adriana: A gente não pode dizer que não tem essa mistura, ela tem desde a invasão do Brasil e está aí entre os povos indígenas. O Ceará está todo mistura-do com as raízes brancas. Mas, a raiz indígena é mais forte que a branca. E estamos comprovando que somos mais fortes do que o branco.Cepema: Você tem orgulho de ser índia?Adriana: Muito orgulho. Eu agradeço a Deus ter nos dado coragem de nos identifi car. Os nossos parentes que ain-da não se identifi cam com certeza vão se identifi car, porque é um sangue que corre nas veias de cada um de nós que moramos aqui na comunidade.Cepema: Então, deixa uma mensagem para aquele descendente de índio que tem vergonha de se assumir como tal.Adriana: A mensagem que eu quero dizer para esse povo que é nosso povo também, mas que não se identifi ca até hoje é que eles possam ter a mesma co-ragem que nós tivemos de lutar pelo objetivo maior que é a nossa Mãe Terra, porque sem a terra nós não somos nada. Nós somos fi lhos dessa terra, então, nós temos que defender a nossa mãe. Ainda é tempo de cada um, de cada uma, lu-tar pelos seus direitos e defender o que Deus nos deu de beleza que é a nossa terra.

Se tem que vir turis-mo. Se quer haver

desenvolvimento, que seja um desenvolvi-mento legal, estável

para todos nós.