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191 U S olos cariocas: subjetividade e políticas da cena olos cariocas: subjetividade e políticas da cena olos cariocas: subjetividade e políticas da cena olos cariocas: subjetividade e políticas da cena olos cariocas: subjetividade e políticas da cena J osé Da Costa José Da Costa é professor do Departamento de Teoria do Teatro e do Programa de Pós-Graduação em Teatro da Unirio. 1 Estarei discutindo aqui espetáculos solos produzidos e apresentados no Rio de Janeiro nos anos de 2006 e 2007. Alguns desses trabalhos, porém, são retomadas de criações exibidas vários anos antes, como é o caso de O autofalante de Pedro Cardoso, ou são mostrados ao longo de um tempo considerá- vel, como O pregoeiro de Marcio Libar, que começa a apresentar o seu solo em 2001. 2 O espetáculo tem direção de Amir Haddad e Pedro Cardoso, enquanto o texto dramatúrgico foi escri- to pelo ator. 3 Assisti o espetáculo na temporada do Teatro das Artes, Rio de Janeiro, julho de 2007. I m dos traços bastante comuns entre os es- petáculos teatrais solos que tenho em mente ao escrever esse texto é a atuação predominantemente frontal em relação ao público, ou seja, a remessa direta dos dis- cursos proferidos em cena aos espectadores. 1 Em O Autofalante, 2 Pedro Cardoso se dirige aos espectadores, no início do espetáculo, para uma espécie de prólogo, no qual ele afirma que de- morou muito para conseguir construir um des- fecho para a peça. Acrescenta que o desfecho a que chegou e que finalmente o deixou satisfei- to, guarda, entretanto, certa estranheza. É que, conforme o encerramento concebido pelo ar- tista para seu espetáculo, com o desaparecimen- to da personagem, irá desaparecer também o ator, que não voltará para os agradecimentos fi- nais. Em tom de leve gracejo, o artista, então, pede licença aos espectadores para “adiantar um serviço e agradecer logo agora”. Depois disso, o comediante faz o gesto de se curvar em agrade- cimento e o público aplaude antecipadamente com sorrisos de satisfação em relação ao primei- ro momento da noite teatral, momento que propiciou um contato percebido como direto (não mediado por um personagem ficcional) entre o comediante e os espectadores. Meus companheiros de platéia na noite em que fui ao teatro são, ao que tudo indica, pessoas de classe média alta e mediana, que pu- deram pagar o ingresso e assistir ao espetáculo de Pedro Cardoso, em um teatro localizado no interior de um Shoping Center, no bairro elegan- te da Gávea, zona sul do Rio de Janeiro. 3 Com a concessão de seus aplausos e sorrisos prévios, os espectadores demonstram que entenderam e milar papers at core.ac.uk provid

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SSSSS olos ca r i oca s : sub j e t i v i dade e po l í t i c a s da cenao lo s ca r i oca s : sub j e t i v i dade e po l í t i c a s da cenao lo s ca r i oca s : sub j e t i v i dade e po l í t i c a s da cenao lo s ca r i oca s : sub j e t i v i dade e po l í t i c a s da cenao lo s ca r i oca s : sub j e t i v i dade e po l í t i c a s da cena

JJJJJ osé Da Costa

José Da Costa é professor do Departamento de Teoria do Teatro e do Programa de Pós-Graduação emTeatro da Unirio.

1 Estarei discutindo aqui espetáculos solos produzidos e apresentados no Rio de Janeiro nos anos de2006 e 2007. Alguns desses trabalhos, porém, são retomadas de criações exibidas vários anos antes,como é o caso de O autofalante de Pedro Cardoso, ou são mostrados ao longo de um tempo considerá-vel, como O pregoeiro de Marcio Libar, que começa a apresentar o seu solo em 2001.

2 O espetáculo tem direção de Amir Haddad e Pedro Cardoso, enquanto o texto dramatúrgico foi escri-to pelo ator.

3 Assisti o espetáculo na temporada do Teatro das Artes, Rio de Janeiro, julho de 2007.

IIIII

m dos traços bastante comuns entre os es-petáculos teatrais solos que tenho emmente ao escrever esse texto é a atuaçãopredominantemente frontal em relação aopúblico, ou seja, a remessa direta dos dis-

cursos proferidos em cena aos espectadores.1

Em O Autofalante,2 Pedro Cardoso se dirige aosespectadores, no início do espetáculo, para umaespécie de prólogo, no qual ele afirma que de-morou muito para conseguir construir um des-fecho para a peça. Acrescenta que o desfecho aque chegou e que finalmente o deixou satisfei-to, guarda, entretanto, certa estranheza. É que,conforme o encerramento concebido pelo ar-tista para seu espetáculo, com o desaparecimen-to da personagem, irá desaparecer também oator, que não voltará para os agradecimentos fi-

nais. Em tom de leve gracejo, o artista, então,pede licença aos espectadores para “adiantar umserviço e agradecer logo agora”. Depois disso, ocomediante faz o gesto de se curvar em agrade-cimento e o público aplaude antecipadamentecom sorrisos de satisfação em relação ao primei-ro momento da noite teatral, momento quepropiciou um contato percebido como direto(não mediado por um personagem ficcional)entre o comediante e os espectadores.

Meus companheiros de platéia na noiteem que fui ao teatro são, ao que tudo indica,pessoas de classe média alta e mediana, que pu-deram pagar o ingresso e assistir ao espetáculode Pedro Cardoso, em um teatro localizado nointerior de um Shoping Center, no bairro elegan-te da Gávea, zona sul do Rio de Janeiro.3 Coma concessão de seus aplausos e sorrisos prévios,os espectadores demonstram que entenderam e

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aceitaram a proposta de relação pessoal e quaseíntima que o artista lhes apresenta em sua per-formance inicial, construída para expressar ab-soluta informalidade e desprendimento.

No momento inicial da peça, ratifica-se,a cada apresentação, o pacto de adesão ao cam-po do conhecido e do familiar. Esse é o territó-rio preferencial, se não único, das relações quese estabelecerão entre o ator e o público de clas-se média que, então, o assiste no teatro. Públi-co esse que parece querer ratificar o mesmo e ojá sabido, reencontrando ao vivo o artista de te-levisão, especialmente querido, sem dúvida, emdecorrência de sua sensibilidade de comedian-te, marcada por um registro de fragilidade e ti-midez. Assim, a estranheza do final que levaPedro Cardoso a falar diretamente ao públicono início do espetáculo é um gancho falso, umavez que aquilo que a menção ao estranhável in-troduz é, de certo modo, um pacto de exclusãodo estranho e do não familiar.

Ocorre, porém, que o próprio artista nãocumpre inteiramente o pacto proposto. Na es-trutura dramatúrgica, na organização visual doespetáculo (o palco vazio e as imagens esgarça-das do espaço urbano projetadas ao fundo)4 eno modo de tratar os temas abordados (a rup-tura da subjetividade, a dor, a solidão e o de-samparo), há certos fatores de tensionamentoem relação à expectativa habitual do receptor (aexemplo de uma temporalidade complexa e deum radical despojamento cênico). Mas de qual-quer modo, a facilidade e a rapidez com que oscontratantes-espectadores aderem ao pacto pro-posto inicialmente demonstram a sua predispo-sição na direção precisa do acordo de fidelidadeao esperado.

A atuação de Ana Kfouri, em O animaldo tempo, texto do dramaturgo francês contem-porâneo Valère Novarina, também é predomi-nantemente frontal.5 Há, entretanto, desde oinício do espetáculo indícios de uma disposiçãoreticente e reservada em relação à expectativa deproximidade e pessoalidade que o solo teatralprovoca no espectador. A peça originalmente seapresentou para um público pequeno, de apro-ximadamente 40 espectadores por sessão. A salaem que estreou o trabalho não tem palco. O es-pectador se encontra na mesma altura da atrizque, no início do espetáculo, está, porém, a umadistância significativa. Em uma das pontas doretângulo – que a organização cenográfico-es-pacial estabeleceu para nele conter a relação daatriz com os espectadores – encontra-se o localreservado para o pequeno público da peça.Na outra extremidade, ao fundo da sala, na pers-pectiva da platéia, a atriz toca acordeão en-quanto os espectadores entram e se dirigem asuas cadeiras. A sensação de profundidade e dis-tanciamento é intensificada pela iluminação epor certa faixa de obscuridade (que é mantida,em grande trecho do espetáculo), entre o localem que se encontra a atriz e aquele em que es-tão os espectadores.6

Após a acomodação do público nas cadei-ras a ele destinadas, Ana Kfouri, ainda toca seuacordeão. Só depois de transcorrido algum tem-po, começa a utilizar a voz, não com uma lin-guagem verbal articulada, mas cantarolandouma melodia que acompanha ao instrumento.A atriz ainda está no fundo da sala e não se diri-ge aos espectadores de modo direto e explícito.Não se delineia tampouco um universo ficcionalfechado, que necessite da convenção da quarta

4 Os vídeos são criados por Marcelo Tass.5 O espetáculo, com direção de Antônio Guedes, estreou na Sala Multi-uso do SESC-Copacabacana

(Rio de Janeiro, agosto/2007), tendo feito uma temporada posterior no Teatro do Jóquei (outubro2007).O texto de Valère Novarina foi traduzido por Ângela Leite Lopes. Assisti, ao espetáculo, inicialmente,no SESC-Copacabana. Agradeço à atriz a cessão do vídeo da peça.

6 A iluminação é de Wilson Reis.

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parede separando-o inteiramente do público.O discurso que a atriz enuncia é dirigido demodo ambíguo, em parte para os espectadorespresentes, em parte para qualquer ouvinte, parao mundo, para ninguém em particular. O fatode não se estabelecer um tom de conversa coti-diana entre camaradas ou amigos faz com que afrontalidade da fala ganhe um caráter distintodo que me parece que se verifica no início deO autofalante.

O sujeito que fala em O animal do tempoé um personagem solitário, aparentemente frágile marginal, que se encontra em um cemitério,lendo inscrições nas lápides tumulares e tecendocomentários e conjecturas aleatórias enquantoas lê. A personagem de Pedro Cardoso é tam-bém um sujeito solitário. Desempregado, semfamília e sem posses, é vítima de um surto esqui-zofrênico em que se defrontam entidades dis-tintas de seu eu fracionado e sofrido. O fato deas personagens apresentadas em cena serem fi-guras solitárias poderia levar, nos dois espetácu-los, a um relativo fechamento da atuação, comomodo de marcar a segregação da figura re-tratada. Entretanto, as orientações artísticas nosdois casos não caminham na mesma direção.

Pedro Cardoso, após o agradecimentoantecipado do início de seu espetáculo, afirmaque sairá de cena por uns minutos para “vestir”a personagem e que voltará logo a seguir. Aoretornar ao palco, o ator, já no trabalho prome-tido de representação da personagem, sorri e dápequenas gargalhadas em vários momentos, gar-galhadas essas de teor ambíguo. São, ao mesmotempo, da personagem e do ator e, além dessaambivalência constitutiva, servem como estra-tégia teatral de condução do espectador para adescontração e o riso. Provocam e instauram areação desejada: a gargalhada descontraída eamigável da audiência.

Prossegue, em grande parte, a relação decumplicidade proposta a princípio. A segre-gação subjetiva e social do personagem nãopromove uma retração particularmente acentu-ada do ator na relação com o público. Retraçãoessa que poderia ter um teor bastante inquie-

tante, especialmente no caso de um comedian-te como Pedro Cardoso. Algo dessa retração éque me parece que se configura desde o iníciodo espetáculo de Ana Kfouri. Em O animal dotempo, o tipo de frontalidade trabalhada no es-petáculo implica um tensionamento interno daatividade histriônica, assim como um estranha-mento infinitamente mais marcado frente aofamiliar e ao habitual do que aquilo que se vêem O autofalante.

O próprio texto do dramaturgo francêsValère Novarina fornece inúmeros elementos deproblematização da fala de tipo direto e frontal.Ao se deparar com os escritos das lápides tumu-lares, o falante em cena faz comentários comoos que se seguem:

Este aqui diz: “tudo o que escreve o homempelo homem é um falso, inclusive até essainscrição”. Mesma coisa seu vizinho que foiseu pai filho e vizinho. “Família Dumas”.Olha, cão na minha cabeça: eis o túmulo dacriança em frase curta: “Fugi da escola muitocedo. Agora recito todos os tempos aos meusossos”. “Aqui jaza, aqui jazerá e jazeria se esti-vesse ali, João das Pistas, ciclista profundo quedeu uma guinada”. “O mundo me oprimin-do, eu deixo você agora só no presente nessereduto de vingaria. Minha sombra aqui nãodá mais medo nos carros”. É o caído do Bou-levard Blanqui (Novarina, 2007, p. 8).

Trata-se de um discurso monológico, in-ternamente fraturado por vozes múltiplas eorientações temporais diversas (“agora recito to-dos os tempos”). Essas fissuras internas, impe-dem que a fala se constitua como relato de si-tuações totalizáveis e internamente coerentes.Não há sujeito unificado e idêntico a si mesmo.No João que fala, há vários falantes autono-meados diferentemente pelo enunciador (JoãoSem-Nome, João Maquinal, João Segunda-Fei-ra e Quarta-feira etc.). Também não se apresen-tam justificativas causais para a ruptura da uni-dade subjetiva, com base, por exemplo, emalgum distúrbio psíquico do indivíduo, como é

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7 O espetáculo de Clarice Niskier, concebido pela atriz, que contou com supervisão de Amir Hadad,estreou na sala Multi-uso do SESC Copacabana em 2006. O cenário é de Luis Martins; o figurino deKika Lopes; a direção de movimento, de Márcia Feijó. Assisti o trabalho na temporada do Teatro Leblon,em julho de 2007.

o caso da esquizofrenia da personagem de PedroCardoso. Em O autofalante, a patologia explicae reduz a estranheza da personagem e das situa-ções. Já em O animal do tempo, é na linguagemmesma, até ao nível vocabular mais ínfimo, quese dá a interceptação do conhecido e do codifi-cado por elementos alheios a cada unidade desentido: “crianças brurras e drominadas, vocêsdormirão quando deitados, entre o chuchu evegetu no lugar do espírito” (Novarina, 2007,p. 11).

I II II II II I

Além da marcada frontalidade da atuação, ou-tra característica muito presente, em vários dossolos teatrais cariocas apresentados entre 2006e 2007, é que o arcabouço ficcional de persona-gens e fábulas se atenua e o/a artista se apresentaem nome próprio ante os espectadores. Doisexemplos dessa tendência são os espetáculos deClarice Niskier (A alma imoral) e de MárcioLibar (O pregoeiro). Clarice chega ao palco, cru-zando a platéia desde as últimas fileiras até atin-gir o espaço cênico. A atriz vem descalça, pare-ce estar sem maquiagem e usa um vestido pretoe longo. Vemos, depois, que o que parece umvestido é apenas um tecido envolvendo o corpoe permitindo, a partir de gestos simples e movi-mentos elegantes, o desnudamento da atriz emvários momentos.7

Ao subir ao palco, Clarice se dirige aosespectadores, desejando-lhes boa noite e ex-plicando-lhes como surgiu a idéia do espetácu-lo teatral cuja apresentação se inicia. Mencionaum programa de televisão ao qual tinha ido paradar uma entrevista, com o objetivo de divulgaroutra peça em que estava atuando na ocasião.

Tratava-se de um programa de mesa redondae, ao lado da atriz, havia um rabino (NiltonBonder) que fora falar sobre seu último livro.O tema da religiosidade estava em foco no de-bate e a atriz, então, se disse judia, ligada aospreceitos religiosos judaicos, mas também sim-patizante do budismo.

Clarice Niskier conta ainda aos especta-dores que a produção do programa, enquantoeste ainda estava no ar, recebeu um telefonemade uma espectadora de nome Léa, que se mos-trava bastante irritada. A espectadora teria seapresentado como integrante da comunidadejudaica e protestado veementemente contra aimpostura que estaria contida na auto-apresen-tação de Clarice como judia e budista. Confor-me relembra a atriz, Dona Léa (como passa atratá-la a artista depois da menção inicial àtelespectadora) afirmava que ou “bem se é ju-deu ou bem se é budista”, mas que ser as duascoisas ao mesmo tempo é impossível.

A artista fala do fato ocorrido de modoleve e em tom de certa auto-ironia em relação àsua ambigüidade pessoal revelada na emissãotelevisiva, angariando, agora, os sorrisos ami-gáveis e cúmplices do espectador no teatro.Espectador esse com o qual ela estabelece, as-sim, uma relação que se quer direta e quase nãomediada por qualquer estrutura ficcional (per-sonagem, ação dramática etc.) ou aparato cêni-co (como cenários, diferentes figurinos e adere-ços). A apresentação marcadamente despojadae o fato de a artista falar em nome próprio sãoelementos que configuram uma imagem de ver-dade e sinceridade pessoal. Parcialmente esque-cido de que está diante de um artefato ouconstructo cênico, o espectador embala-se nadiscreta ternura e leveza da atriz, com quem es-tabelece uma relação fraterna de confiança e

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empatia. Não se trata de uma identificaçãoilusionística com algum personagem claramen-te ficcional, mas de uma identificação sentidacomo direta com a atriz.

O livro de Nilton Bonder claramente nãoconstitui um texto dramático e nem se trata deuma obra propriamente literária, seja de caráterlírico ou ficcional, mas, sim, de um discurso te-ológico-filosófico. Ainda assim, a atriz decidiuencená-lo em decorrência, como nos explica, daorientação fortemente libertária da obra e dofato de ela falar de coisas que a própria atriz gos-taria de ter dito à Dona Lea. Desse modo, oobjetivo do trabalho é apresentado como o demanifestação pessoal da artista frente a temasvariados (a ética, a alma, as relações humanas,etc.), conforme esses temas são tratados no li-vro de Bonder.

No espetáculo Não sou feliz, mas tenhomarido,8 Zezé Polessa, como sua colega ClariceNiskier, chega ao palco, cruzando a sala desde ofundo da platéia. Mas, Polessa, ao contrário deClarice, está caracterizada e não fala em seu pró-prio nome. A personagem que interpreta estáem uma noite festiva e é mostrada dando umaentrevista, que antecede a sessão de autógrafosdo lançamento de seu livro Não sou feliz, mastenho marido. A atriz usa um vestido rosa e umpequeno paletó de algodão igualmente rosa, corque é também a de seus sapatos, num estilo queo espectador não entende como sendo o da ar-tista, mas o da jornalista que ela representa.9

A personagem retratada foi, ao longo demuitos anos, uma mulher de classe média, umadona de casa dedicada ao marido e aos filhos.Renunciara à sua atividade profissional durantea vigência de seu casamento pequeno-burguês,casamento esse que terminou em divórcio de-pois que o marido já maduro contraiu nova re-

lação amorosa com uma jovem que tinha a ida-de de seus filhos já crescidos. Assim é que se cri-ara a situação pessoal que teria permitido à per-sonagem voltar à sua atividade profissionalabortada na juventude. Ela passa a se responsa-bilizar, então, pela coluna feminina de um jor-nal diário de grande circulação. A atriz, ao cru-zar a sala em direção ao palco, tem em mãosuma taça de vinho branco e ouve perguntas quesoam nas caixas de som e que simulam questõesdirigidas a ela pela audiência da entrevista que aescritora estaria concedendo naquele momento.

Os aspectos constitutivos da personagem(seu comportamento pessoal, suas reações, seusafazeres cotidianos) e as situações de que ela fala(os momentos em que ela e o marido estiveramadoentados, o processo de construção da casade praia etc.) configuram, no interior da narra-tiva, o contexto social de classe média ao qual anarradora pertence. Esse contexto de classe mé-dia se mantém depois que Viviana se torna aprofissional independente, que lança agora seulivro. Muda o horizonte pessoal, mas não a in-serção e a perspectiva de classe da jornalista, que,presumivelmente, tem um público constituído,em sua maioria, por leitoras que, provavelmen-te, pertencem ao mesmo estrato social e se iden-tificam com a história de vida da autora, nelaprojetando sua própria trajetória de libertaçãodo esquema doméstico ou seu desejo de vir aatingir essa libertação. Trata-se, muito possivel-mente, no que tange à apreensão dos textosjornalísticos da autora, de um esquema simplesde recepção baseado na identificação quasefolhetinesca do público com o discurso da jor-nalista responsável pela coluna feminina do pe-riódico em que escreve. A recepção dos especta-dores de Zezé Polessa não e muito diferente.Baseia-se em uma identificação fácil e imediata,

8 Assisti ao espetáculo na temporada do Teatro Clara Nunes, Rio de Janeiro 2007.9 A dramaturgia é baseada no livro autobiográfico homônimo ao espetáculo, escrito por Viviana Gómez

Thorpe e adaptado por Zezé Polessa, Victor Garcia Peralta e Maria da Luz. A direção da peça é deVictor Garcia Peralta.Os figurinos foram criados por Alexandre Herchcovitch..

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mesmo considerando a platéia masculina quetambém reconhece os elementos familiares dosepisódios revividos em cena.

Enquanto o palco em que se apresentaClarice Niskier está praticamente vazio (comoo de Pedro Cardoso), tendo apenas uma cadei-ra para uso da atriz, vemos, no espetáculo deZezé Polessa uma construção cênica constituídapor grandes pilhas de livros.10 São grandes vo-lumes distribuídos pelo palco e construídos demodo sintético como elementos estruturais quese repetem com variações de altura e de formato.Esses blocos ou volumes fazem menção, demodo puramente alusivo, a uma espécie de esto-que da obra publicada. Obra aquela que é ago-ra lançada e autografada em evento público.A atriz se move entre os blocos, de um metro emeio a dois metros e meio aproximadamente,mas ela utiliza também as superfícies superioresdos blocos.

Não há mimese cenográfica realista dosespaços domésticos rememorados e nem de umalivraria ou salão em que possa estar se dando aentrevista da autora e a noite de autógrafos deseu livro. Ao nível icônico efetivo, o que se con-figura, de modo minimalista, e não de formanaturalista minuciosa, é o estoque de livros,uma espécie, portanto, de local de armazena-mento. É de um armazém de exemplares daobra, de páginas do livro, de memórias do pas-sado, de respostas à entrevista que se trata napeça de Zezé Polessa.

Antes de o espetáculo ter início, o espec-tador vê, em uma grande tela de projeção aofundo do palco, imagens de livros abertos ousendo folheados. O vídeo não mostra ninguémem atividade de leitura. Mas imagens de livroscujas folhas vão passando, vão sendo viradaspouco a pouco, como se impulsionadas por leve

brisa ou por outro fator invisível.11 É, de certomodo, esse fator não visível, não espacializáveliconicamente, que a peça quer abordar. É a pas-sagem do tempo que a imagem tenta apreen-der. É do tempo, da vida passada de uma perso-nagem e de um livro que procura capturar essetempo que se fala. É a partir desse livro que seconstitui o passado da personagem Viviana, queé autora da obra autobiográfica homônima aoespetáculo, no qual se teatralizam os conteúdosrelatados pela jornalista Viviana Gómez Thorpe.

Aos espectadores a quem Zezé Polessa sedirige é atribuído o papel ficcional de membrosda audiência daquela espécie de entrevista cole-tiva que é dada pela escritora. Desse modo, ZezéPolessa e os demais criadores de seu espetáculoconstroem uma estrutura ficcional organizadateatralmente em pelo menos dois níveis narra-tivos. Um desses níveis é aquele em que Vivianaé entrevistada ao vivo na noite de lançamentode seu livro. O outro é o plano em que a vemosrevivendo as situações de seu passado familiarante os entrevistadores do presente.

É no interior desse arcabouço dramatúr-gico e narrativo razoavelmente cerrado, que seexpõe Zezé Polessa. Possivelmente a atriz tenhatido, ao contrário de Niskier, a necessidade deostentar a mediação cênica para marcar precisa-mente uma distância pessoal frente à autora dolivro dramatizado. É como se, no caso de ZezéPolessa, houvesse a necessidade de explicitar quehá dois discursos femininos distintos entre si, oda autora e o da atriz. Desse modo, sob a afeta-ção de Viviana, circula um segundo discursoigualmente feminino e feminista, porém, maisindireto, mais reservado e menos acessível. Dis-curso esse possivelmente menos suscetível de seresvaziado por processos de banalização própriosdas mídias hegemônicas.

10 A cenografia e Direção de Arte de Não sou feliz, mas tenho marido é de Gringo Cárdia, enquanto ManecoQuinderé assina a iluminação.

11 Os vídeos foram criados por Wallace Cardia e Rico Vilarouca, com coordenação de Gringa Cardia e daMesosfera Produções, conforme informação constante do programa da peça.

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A intérprete contorna o campo das dico-tomias simplistas, optando por uma solidarie-dade ambivalente com a personagem represen-tada, dentro da relativa distância que toma pormeio da atuação levemente desnaturalizada eteatralizada, com traços caricaturais discretosusados na composição da personagem. A atriznão poderia lançar mão da ficção de uma au-sência completa de entrecho e de fábula, ficçãoconstituída pelo mito de uma comunicação to-talmente direta e completamente não mediadacom o público. Ficção do não teatro e da nãoficcionalização, a que a construção da since-ridade precisou recorrer no espetáculo de Cla-rice Niskier.

Mas, vejamos o que se dá com outroespetáculo solo: O pregoeiro, de Márcio Libar.O ator, depois de recepcionar e saudar os es-pectadores, enuncia as seguintes palavras:

Quem aqui já viu o meu show? Pra quem jáviu, eu queria avisar que é aquilo mesmo.Pra quem não viu, fica tranqüilo que não éshow de Reggae não. Eu preciso de uma horada atenção de vocês, só uma hora. Pra contarpra vocês qual é o sentido da arte de ser pa-lhaço. Pra isso, eu vou começar apresentan-do... A mim mesmo.12

Márcio, em sua fala de abertura do espe-táculo, já se posiciona em diversos aspectos.

Classifica sua performance cênica como um“show” individual. Por meio dessa designaçãodo trabalho, aproxima-se duplamente do uni-verso pop da música de consumo e do universodas exibições individuais de artistas de rua maisou menos anônimos. O termo “show” pode serusado pelo artista popular das ruas, com algu-ma pompa, como uma tentativa ingênua deauto-inserção no campo das atividades artísti-cas da esfera legitimada pelo consumo em largaescala. Trata-se, nesse caso, de um gesto mimé-tico do oprimido em relação ao campo hege-mônico. Mas o recurso ao termo “show” podetambém ser usado como modo burlesco de pa-rodiar a cultura de massa, como ironia e decla-ração de independência.

A singeleza da palavra “show” na fala ini-cial de Márcio Libar é apenas aparente. Ela afas-ta qualquer idéia de neutralidade. Contém, aocontrário, a escolha clara de certas perspectivasartísticas em detrimento de outras. Politiza odiscurso, por meio do destaque a um termo, quepoderia indicializar um campo de experiênciaspercebido como pouco politizado, de cunho es-tritamente espetacular.13 O que se afirma coma atitude nada ingênua de Libar é a idéia de queo homem comum, o consumidor alienado – eoprimido em meio aos shows e simulacros quelhe são impostos pela sociedade de controlecontemporânea14 – encontra seus meios de re-sistência, suas táticas astuciosas, que os intelec-

12 O programa da peça se refere ao espetáculo como “uma criação coletiva de Márcio Libar” e acrescenta aessa indicação que “isto envolve: roteiro, direção, trilha sonora, figurino, cenário, seleção de elenco,dramaturgia e us’caraio”. As citações do texto de Libar feitas neste ensaio tiveram como fonte a transcri-ção realizada por Eduardo Katz e o vídeo da peça. Agradeço a Marcio Libar e a Eduardo Katz peloacesso ao texto e o vídeo. Assisti o espetáculo na Casa da Gávea, Rio de Janeiro, em julho de 2007.

13 Na teorização de Guy Debord sobre a noção de espetáculo, esse termo se refere a um conjunto de meiosde dominação e controle das populações (Debord, 1997). A reflexão de Jean Baudrillard sobre o simu-lacro pode também se associar à idéia de espetáculo para a reflexão sobre os mecanismos de poder e nassociedades contemporânea (Baudrillard, 1991).

14 A noção de sociedades de controle, ligadas ao poder capitalista na era digital e do marketing, é trabalhadapor Deleuze (1992, p. 219-26) como desdobramento da conceituação foucaultiana de sociedades disci-plinares, nas quais o poder produziu, conforme o autor, corpos dóceis e úteis por meio das várias for-mas de confinamento, verificáveis do final do século XVIII à primeira metade do XX (Foucault, 2005).

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tuais que abraçam estratégias e perspectivas re-volucionárias tradicionais, nem sempre chegama conceber como possíveis.15

No início de seu espetáculo O pregoeiro,ao utilizar a palavra “show” e não “peça” ou “dra-ma”, Márcio Libar indica, de cara, dentre ou-tros aspectos, que ele pretende fazer uma per-formance na qual se coloca em nome próprio.Libar dispensa a estrutura da fábula e do perso-nagem como meio para manifestar suas visõesde mundo. Dispensa esse tipo particular deconstructo representacional, como instrumen-to para tomar posições individuais e para agen-ciar modos alternativos de subjetivação e iden-tificação coletiva. Não é sob o esquema mais oumenos erudito e canônico do teatro dramático,da máscara de um personagem ficcional mos-trado no interior de um microcosmo fabularmais ou menos fechado (dramático) ou aberto(épico), que se manifestará o artista.

Mas a dispensa de estruturas eruditas ecanônicas não implica, no espetáculo de Libar,nem a adesão a qualquer anti-intelectualismoacrítico, nem a afirmação de qualquer verdadesubstancial supostamente contida nas relaçõesinter-pessoais que se presumam diretas e nãomediadas. Não se verifica tampouco o retornoà mesma noção de povo como ela se tornou sig-nificativa para a produção cultural no Brasil nosanos 1960. Momento no qual, por meio daidéia de povo, privilegiavam-se, como objeto da

representação artística, os setores oprimidos daspopulações, ainda que se dirimissem, no mes-mo movimento, as diferenças de tipos de opres-são (decorrentes de questões raciais, de sexo, deorientação sexual, de região em que se habita ede outras circunstâncias). Diferenças de tipos deopressão essas que poderiam, caso fossemenfocadas, evidenciar modos particulares dedominação e controle além da opressão tradici-onalmente priorizada pela perspectiva marxis-ta, que é a opressão de classe.16

É complexo e rico de tensões internas omodo como Márcio Libar fala em nome pró-prio sem constituir nenhuma figura de sujeitoforte e fixa (sem a configuração de verdadessubstanciais). A identidade se define de modooperativo, algo a que se chega e que “funciona”.É (ainda que não apenas) constructo superficialde linguagem ao nível vocabular e no plano dosmeros significantes.

Meu nome é Márcio Libar, eu sou artistapopular e como arte do palhaço, é arte daverdade, eu vou começar com a verdade so-bre o meu nome. Meu nome verdadeiro nãoé Márcio Libar. Ficaram chocados, né? Meunome verdadeiro é Márcio Lima Barbosa.Lima por parte de mãe, e Barbosa por causado amigo do meu pai. É bom dar essa idéia,porque pobre quando quer ficar famoso,já pensa logo no sobrenome. Não tem nome

15 Michel de Certeau, diferencia a noção de estratégias (totalizáveis, “gerencializáveis” pelo poder) e detáticas (dispersas, circunstanciais, astuciosas e não suscetíveis de totalizações e submissão a estatísticaspara uso institucional). O autor, faz menção, assim, aos modos de aproveitamento diferenciado e aosusos inauditos, que o consumidor, supostamente alienado, faz dos produtos e discursos que lhe sãoimpostos, escapando parcialmente ao controle exercido pelas instituições de poder e pela ordem capita-lista (Certeau, 1994). Ao me referir às perspectivas revolucionárias tradicionais, penso, por exemplo,no modo como Fredric Jameson faz restrições a certos discursos, como o da diferença, e a certas práti-cas políticas, como a dos grupos ou das chamadas minorias, em prol de conceitos priorizados peloautor, como o de totalidade, para análise social, e o da luta de classes, na ação coletiva (Jameson, 1996,p. 321-56).

16 Dentre tantos autores que se debruçaram sobre a relação entre arte e política no Brasil nos anos 1960e seguintes, poderia me referir aqui a trabalhos já antigos e bastante conhecidos de Heloisa Buarque deHolanda (Hollanda, 2004) e Renato Ortiz (Ortiz, 1994).

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bom, então se pergunta: Qual vai ser meunome, qual vai ser meu nome? Resolvi pegarmetade do nome da mãe, metade da outrabanda da família. Deu essa coisa mais oumenos meio árabe, Libar, que funciona.E qual não foi a minha surpresa, quando euvi que o meu nome era verbete de dicionário.

Mas a identidade que o “nome próprio”contém é também, no espetáculo de MárcioLibar, uma história de relações pessoais e deslo-camentos vividos. O ator menciona suas via-gens, pessoas encontradas, episódios esparsosflagrados em lugares e cidades distintas etc.A subjetividade é produto móvel desse trânsi-to ou de inserções circunstanciais em deter-minados contextos histórico-sociais. A identi-dade móvel e contingente inclui ainda a noçãode fracasso.

O circo é um espetáculo que desafia a lei dagravidade. No circo, as pessoas voam. No cir-co, as pessoas se equilibram por um fio (...).Mas o palhaço é aquele que cai. O palhaço éaquele que erra. O palhaço é aquele que perde.

O artista enumera os esforços, que ao lon-go do tempo empreendera, e as habilidades quetentou desenvolver (tocar pandeiro, fazer acro-bacias etc.), visando a obter a simpatia e a ade-são do público. Em meio à enumeração dos es-forços empreendidos para conquistar o amor deespectadores, ele mostra o ridículo e o fracassode cada uma dessas tentativas erráticas de seraceito, de ser querido, poderíamos dizer, tam-bém, de ser legitimado, de ter direito à fala.O ridículo no caso é não ter percebido logo quea legitimação depende de um aparato que não éneutro, mas parcial, comprometido sempre comcertas posições de poder e de classe. Essa idéianão é tematizada de modo direto ao nível ver-bal. Ela é apreendida do comportamento atualdo artista e de sua ironia constante, que expres-sam o contrário de qualquer subserviência a cri-térios e valores canônicos de julgamento do tra-balho artístico.

Em meio à sua narrativa cômica e auto-irônica de como se tornou artista, Libar aludeà sua origem social e mostra fotos de familiaresqueridos (seus pais, sua avó, sua filha). Há tam-bém a fotografia do palhaço Benjamin, ao qualo ator se refere como primeiro palhaço negrodo Brasil, em cuja família artística, por assimdizer, Libar opera uma espécie de auto-inser-ção. O tom não é nem de longe melodramáti-co ou nostálgico. Trata-se antes de um agencia-mento político preciso, da assunção de umaperspectiva histórica específica, de um modo desubjetivação coletivo do qual como sujeito deli-bera participar. Libar faz ainda menção a artis-tas aos quais tem como referências importantes(o diretor teatral Amir Haddad; seu mestre depalhaçaria, Nani Colombaioni). Em meio atudo isso é que o nome próprio e a identidadeindividual aparecem como construção e contin-gência, como interação e como produto da di-nâmica histório-social, da qual o performer semostra amplamente consciente e na qual semove sem ingenuidade.

Libar afirma, ao início de seu espetáculo,que os espectadores não precisam se preocupar,pois não se trata de um show de reggae. Isso éuma brincadeira com o fato de o ator ser umhomem negro, apresentando comportamentose trejeitos identificados como assumidamenteurbanos e mesmo cariocas, e de usar cabelosrastafari longos. Não será mesmo um show demúsica reggae o que se fará. Mas não deixade ser um show de reggae, se entendemos essequalificativo não apenas como gênero musical,mas como atitude subjetiva e política referida auma manifestação cultural específica, latino-americana, cujos traços de identidade se defi-nem como negros, urbanos e cosmopolitas.Traços esses que se distinguem das identifica-ções folcloristas ou tradicionalistas da culturaafro-descendente na América Latina. Então, oespetáculo solo de Libar não é, de fato, e nãodeixa de ser, de algum modo, um show dereggae. Não é à toa, que em certo momento desua performance, Libar faz o seguinte comentá-rio carregado de ironia e de auto-ironia:

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[...] um negócio que me deixa bolado, é serchamado de Bob Marley. É impressionante.Só andar na rua e neguinho começa. “QualéBob”, “e aí Bob”, do outro lado da calçada,“fala Bob”. Abre a janela do ônibus e fala:“Qualé Bob Marli”, e neguihno fala “BobMarliii!!!” Outro dia eu tava no Cameló-dromo da Uruguaina, um cara chegou e dis-se: “Aí neguinho, tu trabalha com essas porrade Bob Marley?” Fiquei olhando pro cara, semsaber o que dizer. E ele: “Tu trabalha comessas porra de Bob Marley ou não trabalha,maluco?” “Tu quer saber o quê cara, se euestampo camisa, se eu vendo bagulho,se eu toco reggae, o quê que tu quer saber?”Ele: “ãh, ãh, tu trabalha com essas porra deBob Marley e não quer me falar”. Os carasacham que Bob Marley é emprego, que BobMarley é ONG?

O espetáculo O pregoeiro é dividido emduas partes. Na primeira, Márcio Libar se apre-senta e fala de sua trajetória, de sua aproxima-ção do circo e, em especial da arte do palhaçoque ele diz que enfocará em sua peça. Na se-gunda parte do trabalho, vemos o Cuti-cuti,uma figura clássica de palhaço com seu narizvermelho e sua cartola. É um momento de ca-racterísticas líricas em que se alude à fragilida-de, ao equívoco, ao gesto fracassado, objeto deriso, mas também de empatia, pelo que tem deinfantil e simplório. É intensa a pletora verbaldo ator na primeira parte, enquanto, na segun-da, quase não há palavras e as poucas pronun-ciadas são meramente balbuciadas, aspecto queajuda na concretização de uma imagem de fra-gilidade da figura que vemos em cena. Há umefeito de encantamento provocado sobre a pla-téia. O espectador se deixa embalar pela doçurade Cuti-cuti e comove-se com a ingenuidade dopalhaço, com seus múltiplos erros e com suainocência pueril. Nessa parte, apresenta-se umaestrutura ficcional um pouco mais definida doque a da primeira metade do espetáculo, umavez que vemos o Cuti-cuti no interior de certassituações cômicas. Porém, mais do que como

propriamente ficcional, essa estrutura se confi-gura antes como lírica. É que não chega a sedesenrolar uma ação ou argumento, mas gestosmais ou menos isolados e repetidos, sem se dis-tribuírem em um desdobramento sintagmáticolinear. De fato, o elemento de ficção destacadonão é o andamento de uma fábula ou de umaação dramática no tempo. Há apenas um arca-bouço de personagem: marcado pela incomple-tude, pela minoridade e solidão. Repete-se umaação associada a módulos semelhantes de signi-ficação nos vários momentos (insucesso nos ges-tos e movimentos, comportamento equivocadoe infantil, sensação de que os objetos conjuramcontra o sujeito em sua tentativa fracassada demanipulá-los etc.).

A relação entre depoimento (que se evi-dencia mais na primeira parte de O pregoeiro) eficção (que se constitui, especialmente na segun-da parte do trabalho, como esboço lírico de qua-dros sintéticos do palhaço Cuti-cuti) é mais cor-rosiva no caso de Libar do que no trabalho dePolessa. A interferência recíproca de elementospertinentes a gêneros distintos entre si (depoi-mento pessoal e estrutura lírica dos esquetesclownescos) serve, no caso de Libar, a umadesestabilização de qualquer imagem segura einteiriça de sujeito disponibilizada ao reconhe-cimento ao receptor. A identificação do públi-co com a figura humana que está em cena, emcada uma das duas partes do espetáculo, impli-ca a aceitação de elementos de fragilidade e deincompletude como constitutivos da auto-ima-gem do receptor. Esse efeito é próprio do modocomo o ator se utiliza dos jogos do palhaço, tan-to no trecho em que se apresenta como MárcioLibar, quanto na segunda parte, em que vemoso Cuti-cuti.

I I II I II I II I II I I

Gostaria de mencionar ainda alguns espetácu-los não referidos até aqui. Pretendo chamar aatenção, mais do que o fiz até agora, para o temadas concepções de teatralidade e do trabalho de

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ator, no interior do jogo que estou tentando te-cer com os aspectos que tiveram mais destaqueaté aqui: a frontalidade da atuação e o carátermais ou menos ficcional e dramático ou de de-poimento auto-referente do discurso encenado.O objetivo continua sendo o de discernir as po-líticas e os modos de subjetivação agenciados nae pela cena teatral, por meio da abordagem des-ses espetáculos solos tão numerosos no circuitocarioca recente.

O ator Edwin Luisi, em Eu sou minhaprópria mulher,17 representa uma série de per-sonagens no interior de um monólogo dramá-tico, no qual se apresenta a história verídica deCharlotte Von Mahlsdorf, pseudônimo femini-no do alemão Lothar Berfeld, homem que setraveste de mulher desde a adolescência e quevive em Berlim tanto sob o governo nazista,quanto, posteriormente, sob o domínio comu-nista. A peça é produto de técnica dramatúrgi-ca apurada, por meio da qual o autor organizaobra de ficção teatral, selecionando momentosfortes da trajetória de vida da personagemCharlotte (a cena em que sua tia lésbica a fla-gra experimentando roupas femininas aindaquando adolescente, o enfrentamento com seupai e o assassinato deste último, os encontroscom o amigo que será preso e morto pelo go-verno autoritário, etc.), dispostos em episódiosconcentrados e sintéticos. O pano de fundo his-tórico é configurado para dar mais relevo àindividualidade particular e desviante de Char-lotte, que é mostrada exclusivamente dentro dassituações dramatizadas com técnicas, evidente-mente, modernas, correspondentes a uma con-cepção épico-narrativa do texto teatral e não a

uma visão ortodoxa da obra dramática. Vemos,no monólogo representado por Luisi, uma ga-leria de numerosos personagens com os quaisse defronta a figura destacada pelo dramaturgo,a de Charlotte.

O ator é levado a acompanhar o escritorno exercício de virtuosismo técnico. Como nãohá praticamente qualquer variação de adereços,figurinos e elementos materiais de caracteriza-ção das personagens,18 o intérprete deve recor-rer a pequenas variações vocais e de composi-ção dos gestos e das atitudes. A sinceridade ouverdade aqui é de tipo muito distinto daquelaque leva Clarice Niskier a entrar descalça pelaplatéia e a mostrar-se literalmente nua, enquan-to fala diretamente aos espectadores ao longodo espetáculo. Ao contrário do que se constituina peça de Niskier, a força do intérprete deCharlotte só se dá sob o seu desaparecimentoem prol da personagem, com a qual se veste oator e a qual ele destaca, em meio ao leque deoutras figuras, que também representa ao longoda peça. A verdade está ligada à singularidadeda personagem e de sua concretização cênicapelo ator, ou seja, aos conteúdos narrativos e àssituações representadas, das quais decorrem pos-síveis percepções mais amplas sobre a vida emsociedade e sobre a subjetividade humana.

No palco de Edwin Luisi, vemos duas es-crivaninhas nas partes laterais da cena. Elas es-tão à esquerda e à direita de um suporte, sob aforma de uma colunata clássica, em que repou-sa um grande gramofone dourado. A atmosfe-ra é de austeridade, decorrente dos objetos deantiquário do século XIX colecionados porCharlotte e dispostos na cena.19 Há poucos

17 Premiada peça de autoria do dramaturgo Dough Wright apresentada no circuito off-Broadway, emNova York, durante o ano de 2003 e, depois, exibida com sucesso, na Broadway, em 2004 e 2005,apresentada no Rio de Janeiro, no Teatro Leblon (Sala “Tônia Carreiro”) em 2007, sob a direção deHerson Capri e Susana Garcia.

18 O cenário e o figurino de Eu sou minha própria mulher foram criados por Marcelo Marques.19 Além da cenografia, a iluminação assinada por Paulo César Medeiros colabora também com a criação

do tom de severidade que caracteriza o espetáculo.

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elementos cenográficos, mas não se trata da os-tentação do palco vazio, da radical recusa à fi-guração icônica, que é o que testemunhamos noespetáculo de Clarice Niskier, que só conta comuma única cadeira, simples e despojada, coloca-da sobre o palco e voltada para os espectadores.O contexto da vida doméstica de Charlotte écuidadosamente constituído, ainda que pormeio de elementos sintéticos e indiciais e nãocom o recurso de uma composição minuciosa etotalizadora. A totalidade do ambiente é apon-tada de modo mentonímico por meio dos pou-cos elementos efetivamente disponibilizados aoolhar do espectador.

A elegância do travesti e da imagem aris-tocrática e séria que ele compõe para si, afas-tando qualquer atitude supostamente vulgar oumesmo jocosa, acaba por contaminar de forçaaurática20 o espetáculo de Luisi. Explico-me:não há qualquer quebra com uma atmosferaelevada e nem com a organicidade histórico-ficcional das situações retratadas. Nenhum para-lelismo com outras situações e vivências de tra-vesti é traçado, nenhum elemento dísparrompendo a coerência interna das circunstân-cias em cada episódio teatralizado, nenhum es-paço para uma fala-travesti de agora, uma fala-gay atual ou uma manifestação qualquer do atorem nome próprio hoje, nenhuma ingerência deum presente invasivo ou incontido perturbandoa delimitação narrativa e temporal das situaçõesrepresentadas. Vemos, assim, uma composiçãodramatúrgica razoavelmente fechada (apesar denão se tratar de um drama ortodoxo) e assisti-

mos a um ator dramático no domínio extremode técnicas consagradas da representação de per-sonagens, com justificativa interior estribadarigorosamente nas circunstâncias retratadas.

Há também no espetáculo uma concep-ção bem determinada do belo (como composi-ção internamente harmônica, que pressupõe, emseu delineamento, uma separação da vida práticae de seus interesses imediatos), uma concepçãomoderna de dramaturgia (épica e construída, nocaso, sob a perspectiva de um narrador que étambém personagem, isto é, o próprio autor quefigura em cena) e uma visão específica da arte,da teatralidade e do trabalho do ator. Essa visãoé que me parece limitar, na dramaturgia e na en-cenação, a força política que os temas do falso edo travestimento, bem como da subjetividadecomo livre produção poderiam ter em um espe-táculo que tematiza a vida de um travesti.21

No espetáculo Minha mãe é uma peça dojovem ator Paulo Gustavo,22 o travestimento dámargem a projeto oposto ao de Luisi, no senti-do da exclusão de qualquer traço de auratizaçãoda atividade artística e da representação teatral.Paulo Gustavo interpreta uma mulher de classemédia, divorciada, mãe de um casal de filhosque entra na idade adulta. O rapaz é gay e amoça se interessa por teatro. Esses pendores dosfilhos se juntam a outros fatores de inquietaçãoda mãe. Paulo Gustavo usa vestido florido, tembobs no cabelo, fala o tempo todo no espetácu-lo. Dirige-se aos filhos (ao telefone quando es-tão fora de casa, gritando-lhes desde a sala emdireção ao quarto, do beiral da janela quando

20 Utilizo o adjetivo aurático, lembrando de Walter Benjamin, que teorizou sobre a noção de aura demodos diferentes em textos distintos. Penso aqui especialmente na abordagem contida no ensaio sobrea reprodutibilidade técnica da arte (Benjamin, 1987, p. 165-96) e leio a idéia de aura em conjugaçãocom a promoção de atitudes de reverência, de caráter teológico e aristocrático, frente à criação artística.

21 Quando me refiro ao falso, penso nas potências do falso, como teorizadas por Gilles Deleuze para sereferir a certos modos de composição da narrativa e da imagem cinematográfica, modos esses que nãolevam a uma sensação de estabilidade, de totalidade e de fixidez do real, nem tampouco à distinçãoclara entre dimensões como vigília e sonho, realidade e imaginário (Deleuze, 2005, p. 155-67).

22 O espetáculo, dirigido por João Fonseca, tem texto de autoria do próprio ator e estreou em 2007 noCândido Mendes, Rio de Janeiro. Assisti ao espetáculo no Teatro dos Quatro.

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eles saem ou chegam no edifício, etc.). Conver-sa com vizinhas pelas janelas e com outros in-terlocutores que não vemos nunca, a não ser emnossa imaginação, estimulada pelas ações e rea-ções da personagem de Paulo Gustavo, perso-nagem que, quase todo o tempo, é flagrada nasala de estar do seu apartamento em meio àssuas atividades domésticas cotidianas.

Há, evidentemente, traços de caricaturana composição da personagem (de seus trejei-tos, de seus tiques nervosos, de sua voz esganiça-da), mas não se trata de um humor depreciativoda mulher representada. Ao contrário, é comempatia que o ator-dramaturgo constrói a ima-gem da mãe meio neurótica e da dona de casaobsessiva, aprisionada na repetição de gestos dosquais não consegue se libertar, como não podeenxergar também que seus filhos já cresceram ejá não precisam tanto dela. Desde a primeiraaparição de Paulo Gustavo, vemos nele a perso-nagem interpretada pelo ator. Não há prólogoem nome próprio, como no caso de Pedro Car-doso em O autofalante, nem discurso assumidocomo do próprio performer e dirigido diretamen-te à platéia como nos casos diferenciados dos tra-balhos de Clarice Niskier e de Márcio Libar.

No palco de Minha mãe é uma peça estãodispostos um sofá e uma mesa de centro. Aofundo, há uma janela. Os elementos cenográ-ficos são poucos e razoavelmente econômicos,mas suficientes para concretizar cenicamente oespaço da ação representada. Quanto às opçõescenográficas, a encenação se diferencia do espa-ço cênico minimalista e não figurativo da peçade Zezé Polessa e se aproxima, de certo modo,da iconização mimética e anedótica (ainda quemetonímica e não totalizadora) do palco deEdwin Luisi. O espaço cênico não se reduz, noespetáculo de Paulo Gustavo, a uma pura áreade atuação, como ocorre no trabalho de PedroCardoso. Em O autofalante, a personagem in-ternamente dividida em seu eu fracionado émostrada em lugares variados: na rua, dentro deum ônibus, em sua casa etc. Mas a concretizaçãoimaginária desses lugares na recepção se dá pormeio dos puros recursos atorais e dos dados nar-

rativos distribuídos no texto escrito e falado porCardoso. Ou seja, dispensa-se rigorosa e com-pletamente qualquer elemento cenográfico, sejaele de caráter icônico-figurativo ou de estruturafuncional, abstrata e sintética.

Mas, se em Minha mãe é uma peça nãovemos o palco radicalmente vazio, o espaço re-presentado é auto-reflexivamente desmontado.É reduzido, afinal, também ele, a puro espaçoda representação, como a cena de O autofalan-te, ainda que por outros procedimentos que nãoo da exclusão literal de elementos cenográfi-cos. O microcosmo fabular representado napeça de Gustavo perde parcialmente a impor-tância frente à intensidade do jogo do ator como espectador.

Essa desconstrução relativa da importân-cia do espaço fabular em prol do puro jogo per-formático é um traço da estrutura geral do espe-táculo, mas se tematiza auto-reflexivamente emum momento particular da peça. Trata-se dacena em que a personagem vai ao teatro no qualse dará um teste para atores. Nesse momento, oobjetivo da mãe representada por Paulo Gustavoé evitar, junto aos produtores da peça para a qualse escolhe elenco, que sua jovem filha seja esco-lhida para compor a equipe do trabalho teatral,equipe que se integralizará com os resultados doteste que ocorrerá no dia seguinte e para o quala filha já fizera sua inscrição.

Nessa cena, de alta fatura cômica, o in-térprete se dirige abertamente aos espectadores(aos quais é atribuído, assim, o papel ficcionalde técnicos e artistas que trabalham no teatro).O ator rompe, de forma intensamente burlesca,a quarta parede. A personagem totalmente es-tranha ao metier teatral, carregada de precon-ceitos e ignorante do universo em que se dá talmetier, interrompe o ensaio de uma peça, embusca de falar ao diretor do espetáculo que serealizará naquele teatro. A mãe pretende con-vencer o diretor de que sua filha não deve ser aescolhida para o elenco ainda incompleto.

Na cena da mãe aflita quanto ao futurode sua filha e carregada de preconceitos contrao mundo do teatro, a ruptura operada no espa-

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ço do enunciado ficcional (por conta de umacerta autonomização conquistada pelo jogo decena) ilustra que o procedimento representa-cional de Paulo Gustavo é totalmente diferentedaquele de Edwin Luisi e se aproxima, em vári-os aspectos, dos tipos de atuação de ClariceNiskier, de Márcio Libar e de Pedro Cardoso.Há também algo que se fala em nome própriona peça de Gustavo. O jogo do falso e do traves-timento funciona como um modo de descons-trução das identidades fixas. É difícil não ver notrabalho de Paulo Gustavo certa dimensãocitacional das performances de drag quens etransformistas do mundo gay. Não se trata exa-tamente da mesma coisa feita pelas drag queens,mas a atuação de Gustavo se conecta de modoparódico – dentre outros campos histriônicos,aos quais se associa, a exemplo da comédia po-pular televisiva – com os shows de certos trans-formistas que apelam para o exagero e o burles-co em suas auto-performances do feminino, aoinvés de desenharem gestos miméticos da supos-ta mulher real.

IVIVIVIVIV

Mas passemos a outro espetáculo: Homem bom-ba, de João Carlos Artigos, na tentativa de darconta das políticas agenciadas como produção desentido por solos cariocas recentes. O trabalhode Artigos tem uma estrutura ambivalente deficção e de memórias autobiográficas, havendono texto também uma série de comentáriosmais gerais sobre as relações de dominação en-tre os seres humanos, sobre valores éticos e so-

bre a arte do palhaço.23 Esses comentários sãodistribuídos ao longo do espetáculo e decorremda situação representada (uma animação de fes-ta de um menino rico feita pelo artista). No iní-cio do trabalho, vemos um vídeo, no qual umamulher que parece ser alguém de classe médiaalta ou da burguesia fala ao telefone com o Pa-lhaço Seu Flor, encomendando-lhe um serviçode animação para a festa de aniversário de seufilho Pedro.24 Ainda no vídeo, o espectadoracompanha o palhaço Seu Flor, carregando suabagagem cênica (composta de malas de tama-nhos variados e decoradas com decalques colo-ridos) e chegando ao edifício em que ocorrerá afesta do menino Pedro.

O espetáculo encena a comemoração,que, além do aniversariante, tem a presença deapenas mais três amiguinhos (dois meninos euma menina) e é guarnecida com “uma mesade comidas e refrigerantes” que, segundo o co-mentário do Seu Flor para a platéia ante a qualrememora o evento, “dava para alimentar váriascrianças de rua” durante longo tempo. Logo decara, o aniversariante diz que não gosta de pa-lhaços, mas ainda assim, o seu Flor tentará comvários números atrair a atenção e a simpatia dePedro e seus colegas (as quatro crianças sendorepresentadas por bonecos estáticos dispostos aofundo do espaço cênico). Há o número deIorick (um pequeno cachorro de pelúcia), quedará saltos mortais e acabará carbonizado pelaschamas do aro que o cão cruza em seu salto;o quadro de Igor, o exterminador de palhaços;a cena do Homem-suco etc. Todas as tentativasde agradar que são empreendidas pelo artista sãosistematicamente desdenhadas e rejeitadas por

23 O espetáculo solo de João Atigos, tem dramaturgia e concepção assinada em parceria pelo ator e porLeo Bassi. O programa indica o nome de Sidney Cruz como ensaiador, além de apresentar leo Bassicomo responsável pela direção geral. O espetáculo começou a ser exibido em 2006 (Rio de Janeiro:Espaço Cultural Sérgio Porto). Assisti o trabalho duas vezes, em 2007, no espaço do Teatro de Anôni-mo, grupo a que pertence João Artigos, e que é sediado na Fundição Progresso, na Lapa (Rio de Janei-ro). Agradeço ao ator a disponibilização do vídeo do espetáculo.

24 O programa da peça indica a direção de arte do vídeo como sendo de Asduas e a produção do vídeo daempresa Filmes do Serro.

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Pedro, que diz, dentre outras coisas, que viu pa-lhaço de verdade no Cirque du Soleil em via-gem feita com os pais a Miami, que Seu Flor éum vagabundo e um morto de fome, pois sefosse um artista de verdade estaria na televisãoou no próprio Cirque du Soleil.

Os procedimentos circenses usados pelopalhaço seu Flor incluem um leque variado deatrações: atos de malabarismo (praticados comfrutas), de equilibrismo (usando uma das malasda bagagem do palhaço, mala que ele equilibrapelo vértice em sua testa), de fantasia (como onúmero em que a mala vira um palquinho noqual é animado um pequeno corpo de bonecoantropomórfico – o personagem Igor, o exter-minador de Palhaços –, cujo rosto e cujas mãossão os do próprio ator animador). Os especta-dores – que assistem ao ator João Artigos, querememora a festa do menino Pedro animadapelo artista – também presenciam essas habili-dades circenses. Elas são expostas agora comoinstrumentos pueris da atividade do artista.A gratuidade dos recursos de que lança mão oPalhaço Seu Flor/João Artigos se mostra ao mes-mo tempo em que se evidencia que o único jogoteatral que interessaria ao menino Pedro – emsua auto-imagem de sujeito pertencente à clas-se dominante – seria aquele pelo qual se confir-masse a sua posição social.

Há um conflito entre duas posições desujeito. Em um dos lados do confronto, está opersonagem Seu Flor (João Artigos), identifica-do com o campo social periférico (o ator se dizproveniente da periferia do Rio de Janeiro e seidentifica com o palhaço Benjamin de Oliveira,que é apresentado como um ex-escravo que setornou o primeiro palhaço negro do Brasil, nafase inicial da vida republicana no país). Dooutro lado, encontra-se o menino Pedro comorepresentante das classes hegemônicas e das for-ças centrais. A peça não mostra situações em que

se defrontem de modo direto e literal patrões eempregados, em um ambiente cotidiano de tra-balho ou em um confronto sindicalista. Não seilustram pedagogicamente, como se fazia emcerta arte política do início dos anos 60 no Bra-sil, os procedimentos que supostamente o opri-mido deveria adotar rumo à sua organizaçãocoletiva e em prol de sua libertação relativamen-te aos elos de opressão social. O que se produzno espetáculo é a recusa de se fazer qualquer re-presentação do mundo contemporâneo comoum universo harmônico e pacificado, de se for-necer uma imagem de feliz reunião dos diferen-tes que a idéia de circo e a exibição mais oumenos lírica de um palhaço inocente para es-pectadores irmanados num mesmo sentimentode empatia poderia sugerir.

A condição periférica do Palhaço Seu Flornão diz respeito apenas à sua situação econômi-ca. Ela está associada também ao fato de seucomportamento se constituir como algo anacrô-nico e externo em relação aos ritmos, às menta-lidades e às atitudes habituais em uma sociedadee um contexto histórico marcados por engrena-gens fortemente competitivas, nas quais a figu-ra humana que vemos em cena parece não ternem papel e nem lugar. A estranheza causadapor seu Flor não diz respeito apenas a uma ten-são entre ele e a criança Pedro, mas remete, fun-damentalmente, a uma espécie de ruptura es-trutural. Como disse acima, a mera presença dealguém como Seu Flor instaura um hiato napossível imagem da sociedade capitalista con-temporânea como engrenagem essencialmentepositiva (apesar das eventuais falhas e dificulda-des), sociedade essa na qual todos teriam algu-ma função a desempenhar e da qual, igualmen-te, todos partilhariam algum usufruto, aindaque em medidas diferenciadas conforme, supos-tamente, o valor de suas contribuições e a eficá-cia de seus esforços.25

25 Jacques Rancière pensa a política como a experiência produtora de um hiato ou uma ruptura na confi-guração aceita e legitimada da sociedade. Por meio dessa ruptura ou desestabilização podem se redefinira ordem do sensível, as tramas de poder, as negociações entre os grupos que detêm parcelas da voz e da

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No solo de João Artigos, o litígio pontualnão só ressoa os confrontos mais cruciais da vidageopolítica planetária em nossos dias, mas ex-plicita as ramificações do estado de guerra nasrelações cotidianas. É a esse campo semânticomais amplo que o conflito localizado remete.Esse eixo temático está disposto, no espetáculo,na forma de uma dramaturgia narrativizada ecomplexa, que finge adotar um diálogo simplescom o receptor, mas recorre à perspectiva durado litígio para tratar do tema aparentementeameno do cotidiano de um palhaço. Mas é nafocalização de uma indecisão, isto é, na coloca-ção em questão do tema de quem é o territoristae quem é o bufão na sociedade contemporânea,tema contido já no título da peça (Homem-bom-ba), que se encontra o desafio intelectual e po-lítico proposto pela performance, que terminacom a projeção de uma seqüência de fotos deguerras civis africanas, de crianças negras arma-das para a luta, de campos de refugiados mise-ráveis ao lado de fotos que se referem aos Esta-dos Unidos e ao Governo Bush.

No espetáculo de Júlio Adrião, A des-coberta das Américas,26 dirigido por AlessadraVannucci, há também uma tematização intensado litígio na sociedade planetária. O conflitoagora diz respeito às guerras de conquista e co-lonização da América, guerras movidas pelo ho-mem europeu do Renascimento. O solo deAdrião nos mostra o personagem Johan, umeuropeu pobre que viajou para o novo mundoem uma frota de conquistadores, sendo ele umfugitivo da inquisição. Johan rememora e revive

situações que relata aos espectadores. Há umagrande liberdade no trato poético do tempo,permitindo que Johan, que teria vivido no sé-culo XVI, fale aos espectadores atuais. Mencio-nam-se, em gags de comicidade certeira, deter-minados aspectos da vida contemporânea,inserindo-os, inesperada e repentinamente, noepisódio que está sendo relatado e que se refereà chegada do homem europeu ao chamadonovo mundo. Em certo momento, por exem-plo, Adrião associa, em menção breve e veloz,as crianças indígenas e as atuais, referindo-se aohábito de assistir à televisão, como se os peque-nos indígenas partilhassem da mesma prática.

Por meio da pura atividade mimética so-litária de Adrião, com os meros recursos de umgestual expressivo e diversificado e de intensasvariações vocais dominadas pelo ator, visualiza-mos Johan ao lado dos personagens individuaise no interior dos grandes grupos humanos emque se encontra a cada instante. As situações re-latadas e revividas por Johan/Adrião são nume-rosas e bastante inusitadas, a exemplo daquelaem que acompanhamos a personagem suturan-do índios com feridas abertas por ataques de tri-bos inimigas, sem que Johan dispusesse nem detécnica, nem de instrumentos e materiais neces-sários à tarefa. Vemos também o narrador-pro-tagonista supostamente prever tempestades e,em decorrência de circunstâncias meramentecasuais como a dessas previsões, agora narradase revividas, vir a ser, na ocasião em que se de-ram tais ocorrências, premiado com a afeiçãodos silvícolas e não só escapar de ser devorado

visibilidade, supostamente comum aos sujeitos que integram essa sociedade. A política seria uma ativi-dade, momentaneamente, desidentificadora da imagem dos sujeitos e das instituições tidas por social-mente legítimas. Política e subjetivação se entrelaçam de modo complexo no pensamento desse autor,que é referência fundamental na abordagem de produtos artísticos que faço neste texto (Rancière, 1996,p. 35-71; 2005, p. 45-62).

26 O espetáculo tem texto de Dario Fo, traduzido e adaptado por Júlio Adrião e Alessandra Vannucci,que também assina a direção da peça. A iluminação é de Luiz André Alvim e o figurino de PriscilaDuarte. Assisti ao trabalho em espaços distintos no ano de 2007 (Rio de Janeiro: Centro Cultural daCaixa e Teatro do Leblon) e agradeço ao ator e à diretora a cessão do registro videográfico da peça.

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em ritual de canibalismo, mas, ainda por cima,tornar-se líder de tribos indígenas contra a in-vestida de grupos espanhóis.

Esses grupos que inicialmente o persona-gem desejava encontrar, para poder voltar à suaterra, serão por ele rechaçados. Cria-se, assim,uma situação na qual o europeu pobre e anôni-mo que é Johan será objeto de uma espécie decrise de identidade. A crise da auto-imagem eda pertinência cultural de Johan diz respeito àsituação, na qual os novos elos de identificaçãosão gerados. O que se produzirá é uma identi-dade fronteiriça e limítrofe. Não se trata maisda pertinência segura a qualquer campo identi-tário, nem àquele associado ao homem europeue a seu horizonte cultural, nem ao universo noqual se integra de modo tenso.

No espetáculo de Júlio Adrião, a associa-ção entre a situação encenada e as guerras im-perialistas atuais não é representada de mododireto por palavras ou imagens projetadas, quenão são, aliás, utilizadas em momento algum dapeça. Já no solo de João Artigos, fazem-se asso-ciações da situação encenada com conflitos po-líticos e sociais recentes de modo explícito.No trabalho de Artigos, recorre-se, de fato, tan-to a menções verbais, quanto à projeção iniciale final de imagens, para se fazer referência àstensões urbanas em uma cidade como o Rio deJaneiro, como também às guerras movidas peloGoverno americano no oriente e, ainda, aosconflitos africanos do presente. Mas mesmo quenão haja a tematização direta do contexto geo-político contemporâneo, a perspectiva da qualse recorre, no texto de Dario Fo e na perfor-mance de Júlio Adrião, às violentas guerras his-tóricas de conquista do período renascentista, éuma perspectiva associada (no horizonte cultu-ral dos criadores e dos receptores contemporâ-neos) ao atual quadro de guerra permanente.27

VVVVV

O espetáculo de Júlio Adrião revela certo pres-suposto de pureza, enfatizando e valorizandouma idéia de especificidade do teatro como meioexpressivo. O trabalho não conta com qualquerelemento cenográfico, exceto uma rede de al-godão em que o ator se deita ao final da sua exi-bição. O desenho de luz é também muito sim-ples. Não há utilização de cor, nem recortesespaciais por meio de planos muito marcadosde incidência da luz. A iluminação é predomi-nantemente aberta e recorre basicamente a mu-danças de intensidade. Há pontos de contatosignificativos entre os espetáculos de Adrião ede Márcio Libar em termos de despojamentode recursos cênicos, mas principalmente no quetange ao registro de ator, especialmente consi-derando a primeira parte de O pregoeiro, trechono qual Libar ainda não se apresenta como opalhaço Cuti-Cuti.

As performances dos dois atores (a deAdrião, por um lado, e a de Libar na primeirametade de seu espetáculo O pregoeiro, por ou-tro) lembram igualmente exibições de artistasanônimos e populares das ruas de grandes cida-des. Ambos os atores tiveram experiência comesse tipo de trabalho, puderam observar esseuniverso de palhaçaria de rua, que toca, emcertos aspectos, a performance dos vendedoresambulantes, e lida com uma graça instantâneadirecionada aos passantes cuja atenção não égarantida e se necessita atrair. A rapidez do jogo,o recurso ao cotidiano, a ironia direta, a malíciadas falas de duplo sentido, a agilidade verbal sãoalguns dos elementos provenientes desse tipo deexibição popular introduzidos nos trabalhosperformáticos de Libar e de Adrião. Trabalhosesses nos quais os dois artistas sintetizam dife-rentes aspectos da sua criação atoral: consciên-

27 Para Antônio Negri e Michael Hardt, as forças dominantes dependem de uma espécie de estado per-manente de guerra nos dias atuais, para a manutenção de suas posições de hegemonia global, conformea análise desses autores sobre o poder (biopoder) e os modos possíveis de resistência (bioprodução) nacontemporaneidade (Hardt & Negri, 2005).

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cia e domínio técnico apurados em treinamen-tos corporais específicos (o circo, o clown etc.),teatralidade popular não dramática associada amodos sofisticados de depuração e de organiza-ção do material empregado (relato de ocorrên-cias pontuais, sonoridades vocais e percursivasfeitas com o uso do próprio corpo, gags cômi-cas, habilidades corporais etc.).

Entre o espetáculo de Libar e o de JoãoArtigos também há muitos pontos de contato,decorrentes da experiência compartilhada aolongo de anos de trabalho comum no Teatro deAnônimo, grupo ao qual pertenceu Libar e doqual foi um dos fundadores ao lado de Artigos,tendo se afastado da trupe para se dedicar a umtrabalho individual há poucos anos. TantoLibar, quanto Artigos fazem brincadeira com ofato de que os efeitos cênicos de que se utilizam(confetes e serpentinas no caso de Libar, domesmo modo que o “cachorrinho acrobata” noespetáculo de Artigos) são comprados no co-mércio popular e barato do centro do Rio deJaneiro ou de São Paulo, conforme explicitamos dois artistas em suas exibições. Com esse tipode procedimento se opera o rebaixamento dequalquer concepção sacralizadora do teatro e dotrabalho do ator, ou de técnicas determinadasde que ele se utilize. No espetáculo de Artigos,o cachorrinho acrobata, chamado Iorick, é in-cendiado a cada espetáculo e, em momento pos-terior da peça, ele é segurado pelo personagemSeu Flor que, no auge da tensão com o meninoPedro, se dirige ao boneco (o cachorrinho depelúcia) carbonizado e fala para ele o famosomonólogo de Hamlet do ser ou não ser, expres-são do dilema entre agir ou não agir, tornar-seou não sujeito. Na peça de Artigos, a caveira deIorick – que é o cachorrinho de pelúcia baratocarbonizado – funciona também como elemen-to burlesco de rebaixamento das referências li-terárias canonizadas, como a do conhecido mo-nólogo do Hamlet.

No espetáculo de Artigos, os bonecos querepresentam o menino Pedro e seus colegas, avoz gravada que se atribui a eles em certos mo-mentos,28 o vídeo e a projeção de fotografias aosquais se recorre pressupõem uma concepção deteatralidade diferente daquela que se expressa notrabalho estritamente corporal e vocal com queJulio Adrião, concretiza seu leque de persona-gens. O espetáculo de Adrião poderia se asso-ciar a uma série de outros trabalhos teatrais re-centes nos quais se parece enfatizar um conceitoda natureza própria do teatro como pertinente,fundamentalmente, à relação do ator com osespectadores, no momento em que se dá seuencontro. Freqüentemente essa concepção tea-tral se associa à rejeição e à depreciação de ele-mentos não atorais (trilha gravada, tecnologiasde som e da imagem etc.), em decorrência deesses elementos serem entendidos, então, comomeros adornos ou aditivos associados a umaespetacularização supostamente falsa, ou direta-mente ligada à sociedade da mídia. O modo deArtigos criticar a sociedade contemporânea nãose produz como afirmação de uma pureza oulegitimidade teatral proveniente da exclusão deelementos ou de mídias externas ao domíniotradicionalmente atoral.

O espetáculo de João Artigos tem umaestrutura que se explicita como monólogo nar-rativo dramaturgicamente formalizado. Os pró-prios elementos cênicos mobilizados por Arti-gos (os bonecos rígidos e perfilados ao fundo, ofino tecido transparente que pende do teto e ossepara de uma área frontal de atuação, o trân-sito do ator entre as áreas de trás e da frente, aprojeção de imagens na parede de fundo, a uti-lização de voz gravada etc.) pressupõem um es-paço fechado. Do mesmo modo que a interaçãodo ator com as vozes gravadas (que representamas crianças e o menino Pedro) e o desenho dra-mático-narrativo de uma tensão crescente entreSeu Flor e seu antagonista são aspectos que pres-

28 O áudio das crianças, conforme o programa é feito por Flora Pereira, Matheus Viana, Miguel Adrião eWillian Souza.

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supõem mais uma organização dramatúrgicaprévia do que um desenvolvimento que se façano calor da hora. O prévio arranjo dramatúr-gico-composicional da performance é tambémpressuposto pela conjugação complexa de infor-mações veiculadas por fontes muito diversifica-das: as imagens projetadas, o som gravado, asfalas do ator, os vários elementos de figurinosutilizados, as três malas, o teatrinho de anima-ção que se faz na cena do “Igor – o extermina-dor” de palhaços, os liquidificadores acionadosem certo momento da peça, ligados a fios elé-tricos que tombam do alto da sala.

A atuação de Libar se explicita como exi-bição mais aberta e despojada em termos decomposição do que a de Adrião, cuja perfor-mance é mais detalhada e ritmicamente maiscontrolada pelo ator. Libar parece permitir es-paços de respiração nos quais as intervenções doacaso e do momento são mais absorvidas. Essasensação é decorrente em parte do fato de Libarse dirigir inúmeras vezes aos espectadores, desolicitar sua participação (dando-lhes, porexemplo, confetes e serpentinas a serem joga-dos sobre o ator em representação burlesca doendeusamento do artista), de transitar em meioao público tanto na primeira fase do trabalho(etapa da atitude mais reggae e urbana), quantono momento posterior (longo quadro lírico dodoce palhaço Cuti-cuti).

Essa relação tão direta e intensa de Libarcom os espectadores exige uma modulação rít-mica mais distendida, para que se viabilize operfeito aproveitamento das pulsações proveni-entes da sala, inteiramente iluminada, propici-ando-se também uma interação dos receptoresentre si. É claro que esse ritmo distendido epouco controlado depende também de umgrande domínio da duração por parte do artis-ta, que se mantém na condução dos instrumen-tos que ativam e, sub-repticiamente, orientamo curso dessa respiração aparentemente livre docoletivo na sala. Essa relação mais aberta com aplatéia estabelece um diferencial nítido com oespetáculo de Júlio Adrião. Em A descoberta dasAméricas, o ator se dirige ao público, estando

sempre ele no palco, e dominando um intensofluxo vocal (não só lingüístico-verbal, mas tam-bém sonoro, musical, onomaitopaico), acompa-nhado de uma atividade corporal e miméticaininterrupta, de grande criatividade e capacida-de de captação concentradora e direcionadorada atenção dos receptores. O improvisador derua a que se faz referência no espetáculo deAdrião é ansioso no preenchimento do tempoe se relaciona ficcionalmente com a figura dopersonagem Johan, que é mostrado como estan-do sempre em apuros e urgências inauditas (nafuga de perseguidores diversos na Europa e naAmérica, na iminência de ser devorado em ri-tual antropofágico etc.). No caso de Libar, o rit-mo mais ameno se associa com outras referên-cias: o reggae, o molejo de corpo do malandrocarioca, uma atitude não aderente às urgênciasda fuga ou da conquista, assemelháveis àquelasem que flagramos o europeu Johan.

No espetáculo de Márcio Libar, não seconfigura um conflito de classes, conforme oque se vê no trabalho de Artigos por meio darelação entre seu Flor e o menino Pedro repre-sentada pelo ator. A performance de Libar, pode-se dizer, distancia-se mais radicalmente, que ade Artigos, do modelo dramático de um confli-to intersubjetivo. Esse modelo é pressuposto emHomem-bomba, ainda que, o espetáculo não oinstaure sob uma forma ortodoxa. Trata-se, aocontrário, de um solo, da narrativa de um even-to passado, com grande parte do texto veicula-do diretamente para os espectadores e um dospólos do conflito intersubjetivo representadopor bonecos. Esses aspectos afastam, é claro, oespetáculo de João Artigos da forma pura e fe-chada do drama tradicional. Mas, no caso deLibar, ainda que não se utilize de qualquer men-ção ao modelo de conflito dramático intersub-jetivo (modelo esse que subjaz como referênciana performance narrativizada de Artigos), a pró-pria presença de Libar e o jogo irônico que oartista estabelece na sua relação com os especta-dores estão carregados de uma tensão interna,que re-introduz, de maneira problemática, umadramaticidade (em sentido amplo, como crise e

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divisão). Trata-se, na verdade, de uma jocosidadeambivalente e desestabilizadora de qualquerimagem harmônica da interação social.

Para artistas como Júlio Adrião, JoãoArtigos e Mácio Libar, o circo, o palhaço e arua são referências evidentes, mesmo nos solosem que se apresentam no circuito regular de te-atro, como no caso dos trabalhos aqui discuti-dos. A referência a uma teatralidade popular, edespojada em termos formais, é significativatambém, ainda que diferentemente, nos espe-táculos de Clarice Niskier e de Pedro Cardoso.Os prólogos dos dois trabalhos mostram os ar-tistas comentando os processos de criação dosespetáculos, instaurando uma relação suposta-mente dessacralizada e cotidiana com os espec-tadores, relação na qual são feitos comentáriossobre o teatro, sobre o que está acontecendo nodia da apresentação, sobre a entrada dos últi-mos espectadores antes do início do espetáculopropriamente dito, enquanto se dá aquela espé-cie de conversa prévia.

Nos prólogos dos solos de Niskier e Car-doso, a luz está inteiramente aberta, a sala ilu-minada e os atores desprovidos de qualquercomposição de personagem ou de qualquerformalização nítida dos gestos e movimentos.Os dois trabalhos tiveram participação de AmirHaddad nas concepções dos espetáculos e esseselementos de despojamento são visivelmenteassociados às pesquisas e interesses artísticospróprios de Amir. Certo aspecto de desconstru-ção da representação e do histrionismo, porexemplo, está presente há muitos anos nas in-vestigações teatrais de Amir e não só em suatrupe atual, o Grupo Ta na Rua, mas tambémem seus grupos anteriores e em trabalhos quedirige a convite de atores no circuito comercial,a exemplo das peças de Niskier e Cardoso.

Amir Haddad é homenageado em citaçãobreve que aparece em certo momento do espe-táculo de Libar. O artista, que foi um dos cria-dores do Teatro Oficina no final dos anos 50 aolado de Zé Celso Martinez Corrêa, é – em seuconhecido interesse pela teatralidade da rua,pela palhaçaria popular e pela atuação despoja-

da e desestabilizadora dos formatos institucio-nalizados de teatro – uma referência importan-te também para compreensão de trabalhoscomo os de Júlio Adrião e de João Artigos, den-tre outros, no contexto da produção cênica atu-al do Rio de Janeiro, em grande medida pelaamplitude da ação político-teatral do Grupo Tána Rua, liderado por Amir.

Em certo momento de O autofalante, apersonagem tensa levada à cena por Pedro Car-doso reclama que televisão só fala e não ouve,que televisão não tem orelha. Também se irritacom a “musiquinha” (como diz) que lhe é im-posta aos ouvidos enquanto espera longamentepelo tele-atendimento de uma central de tele-fonia celular. No espetáculo O homem bomba,testemunhamos também a extorsão da voz e dodiscurso do Seu Flor pelo menino Pedro, quepretende não apenas humilhá-lo, mas tambémcalar-lhe. Já a personagem que ouvimos emO animal do tempo fala em moto contínuo, masé para ninguém, uma vez que, em sua solidão,não se configuram interlocutores. Estão todosmortos no cemitério em que vagueia. Em mui-tos dos espetáculos solos recentemente exibidosno Rio de Janeiro, o que está em foco são, emgrande medida, as partilhas estabelecidas nosensível quanto a quem pode ter acesso à fala,quanto a quem merece ser ouvido, a quem seconcede essa possibilidade na sociedade con-temporânea. O poder é discutido por meio docotidiano e da reflexão sobre a identidade, en-tendida, em muitos dos trabalhos, de formamóvel, em conexão com as posições adotadaspelos sujeitos, e não por qualquer viés essencia-lista tradicional. A atitude política, nos traba-lhos solos recentes que atingem maior força eradicalidade, configura-se, fundamentalmente,como agenciamento de modos de subjetivaçãotransformadores em relação às formas hegemô-nicas de produção de identidade coletiva eindividual nas sociedades contemporâneas.Formas hegemônicas essas associadas em gran-de medida aos diversos modos de organizaçãodiscursiva e imagética próprios aos meios de co-municação de massa. Também se expressa, nos

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espetáculos, uma tendência predominantemen-te não formalista e não substancialista na visãodo teatro e do trabalho do ator. O projeto soloresponde freqüentemente a uma necessidade detomada de posição do ator frente à linguagem

teatral e às concepções de teatralidade vigentes.Mas, a fala frontal e direta dos solos teatraismostra-se como problematizadora, em níveisdiversos e intensidades variadas, da própria idéiade comunicação direta e frontal.

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