socratismo cristão

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Apresentação A expressão ‘socratismo cristão’ cunhada por Gilson 1 nos remete a pensar nos elementos da filosofia dita pagã (pensamento grego) que convergiu com e na experiência mística da interioridade cristã. No século XII o tema da experiência mística da interioridade é tratado por vários filósofos-teólogos, destacando-se a escola Vitorina e a Ordem Cisterciense. A esse mesmo século pertence Pedro Abelardo (1079-1142) que, por sua vez, também refletiu e escreveu sobre essa temática principalmente na sua obra Ethica 2 . Mestre Pedro utiliza o preceito délfico Scito te Ipsum (“Conhece-te a ti mesmo”) como subtítulo de sua obra Ethica, inserindo-a no contexto socrático do conhecimento da interioridade, ao mesmo tempo em que analisa em termos lógicos o conceito de pecado. O centro de interesse na Ética é a teoria da intenção e a definição de pecado 3 . Nosso objetivo nesse trabalho é fazer uma leitura, ainda que de modo sumário, do preceito délfico em Abelardo. Para tal, nosso ponto de partida será uma contextualização da obra Ethica seguida por uma análise da obra de Pierre Courcelle 4 que 1 GILSON, É. L’esprit de la philosophie médiévale. Paris: Vrin, 1932, cap. XI. 2 ABELARD, Peter. Peter Abelard’s Ethics, 1971. 3 LUSCOMBE, p. xxxii. 4 COURCELLE, Pierre. Connais-toi toi-même: de Socrate a Saint Bernard. Études Augustiniennes. Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1974. 1

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Page 1: Socratismo Cristão

Apresentação

A expressão ‘socratismo cristão’ cunhada por Gilson1 nos remete a pensar nos

elementos da filosofia dita pagã (pensamento grego) que convergiu com e na experiência

mística da interioridade cristã.

No século XII o tema da experiência mística da interioridade é tratado por vários

filósofos-teólogos, destacando-se a escola Vitorina e a Ordem Cisterciense. A esse mesmo

século pertence Pedro Abelardo (1079-1142) que, por sua vez, também refletiu e escreveu

sobre essa temática principalmente na sua obra Ethica2.

Mestre Pedro utiliza o preceito délfico Scito te Ipsum (“Conhece-te a ti mesmo”)

como subtítulo de sua obra Ethica, inserindo-a no contexto socrático do conhecimento da

interioridade, ao mesmo tempo em que analisa em termos lógicos o conceito de pecado. O

centro de interesse na Ética é a teoria da intenção e a definição de pecado3.

Nosso objetivo nesse trabalho é fazer uma leitura, ainda que de modo sumário, do

preceito délfico em Abelardo. Para tal, nosso ponto de partida será uma contextualização da

obra Ethica seguida por uma análise da obra de Pierre Courcelle4 que é referência no que

diz respeito à história do preceito délfico, bem como uma breve exposição da leitura da M-

D Chenu acerca do socratismo cristão em Abelardo.

Ainda à guisa de apresentação, nosso trabalho não objetiva fechar a discussão, haja

visto que há muito pouco escrito, daquilo que tivemos acesso, sobre o preceito délfico na

obra de Abelardo.

1 GILSON, É. L’esprit de la philosophie médiévale. Paris: Vrin, 1932, cap. XI.2 ABELARD, Peter. Peter Abelard’s Ethics, 1971.3 LUSCOMBE, p. xxxii.4 COURCELLE, Pierre. Connais-toi toi-même: de Socrate a Saint Bernard. Études Augustiniennes. Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1974.

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O contexto da obra Ethica de Pedro Abelardo5

O século doze era afligido por graves e comuns problemas morais práticos, tal como a

presença da violência e da corrupção no interior da sociedade (inserir alguma referência

para fundamentar de modo geral estas afirmações) e os problemas surgidos da punição

legal. Abelardo possuía uma doutrina social e era um crítico veemente de alguns dos males

de sua sociedade. Além disso, o século doze estava preocupado com a questão da formação

moral da pessoa, com a necessidade da pessoa conhecer seu ‘eu moral’, e com uma

linguagem moral formulada com a qual se pudesse estudar o próprio caráter e a conduta. A

contribuição de Abelardo para a reestruturação dos conceitos usados no pensamento moral

está principalmente contido na sua Ética.

O pensamento ético era promovido no século doze por professores de teologia, que

eram usualmente monges e pelos professores e estudantes das artes liberais. Pedro

Abelardo era um professor de teologia e um professor de lógica. Ele veio a ser também um

monge que consumiu muitos anos em vários mosteiros e um ‘homem de escola’ que

ensinou abertamente em diversos centros como Laon, Paris, na “Montanha” de Santa

Genoveva, Melun. Monge e ‘homem de escola’ – monasticismo e escolasticismo –; não

eram totalmente idênticos os interesses éticos e as perspectivas de uma e de outra.

Os professores de teologia não-monásticos abrem as escolas dizendo muito sobre o

pecado, virtude e graça assim como os monges. No começo do século doze as escolas de

teologia de Anselmo de Laon (1117) e de Guilherme de Champeaux (1121) viam os

homens como criaturas de ignorância, desordenados sensualmente, parados no pecado, e

necessitados da graça. Os problemas da responsabilidade humana eram enredados nos

problemas da queda do homem. Havia, contudo, um sentimento geral da importância da

consciência como provedora de uma norma de moralidade subjetiva e de intenção; como

fonte de moralidade, influenciaria o grau de mérito ou culpa concedido ao homem por

Deus.

A Ética não encontrou lugar entre as sete artes liberais como elas eram descritas nos

programas de Boécio, Cassiodoro e Isidoro (datas). No século doze foi feito um esforço

para encontrar um lugar para esta no sistema de ensino. Alguns escritos, como os de

Honório (datas) de Autun, Estevão de Tournai, e Godofredo de São Vitor, ajuntaram

5 LUSCOMBE, p. xv-xviii.

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livremente a ética no fim da lista das sete artes (dar alguma referência indicativa de onde

tirou estes dados). Hugo de São Vitor colocou entre essas, como uma parte da filosofia

prática, entre lógica (gramática, dialética, e retórica) e a filosofia teorética (teologia, física,

e matemática). Guilherme de Conches advertiu que depois de um estudante ter estudado

eloqüência (gramática, dialética, e retórica) e antes que se aproximasse da filosofia teorética

(o estudo das essências corpóreas matemáticas e físicas e das essências incorpóreas na

teologia) ele deveria ser instruído na filosofia prática, em ética, economia e política.

O pensamento ético de Abelardo reflete o interesse dele enquanto pensador e antecipa

os tempos. Abelardo necessita saber o que é que produz no homem boa ou má conduta e

como distinguir entre conduta meritória de louvor ou de censurada por Deus. Apesar de sua

perspectiva ser perpassada pelos ensinamentos do Velho e Novo Testamento, muito de seu

vocabulário moral vem dos antigos moralistas pagãos, especialmente de Cícero. Além

disso, o que é igualmente verdadeiro para muitos de seus contemporâneos, ele era

subjugado por um desejo de estudar comparativamente a moral cristã e a moral filosófica

do mundo dos antigos.

O termo ética muitas vezes significou no século doze a ética racional da eticidade, a

moralidade pagã. Sócrates, por exemplo, foi pensado como o inventor da ética e como o

autor de uma Ética de vinte quatro livros sobre justiça positiva. O γνωθι σεαυτόν (conhece-

te a ti mesmo) foi o princípio da interioridade socrática. Já o Scito te ipsum de Abelardo não

é um tratado sobre moralidade racional considerado na linha da doutrina pagã.

A leitura de Pierre Courcelle6 acerca do preceito délfico

Pierre Courcelle escreve esta obra com o objetivo de analisar a história do preceito

délfico desde Sócrates até São Bernardo. Especificamente no capítulo XI, que é o último da

obra, a análise parte dos séculos VII e VIII, culminando no século XII. João Scoto Erígena,

Avicena (datas), Anselmo da Cantuária, Bernardo de Claraval, entre outros, são abordados

nesse capítulo.

Courcelle menciona o mestre palatino apenas numa breve crítica quando da

apresentação dos sermões de Bernardo sobre o Cântico dos Cânticos:

6 COURCELLE, Pierre. Connais-toi toi-même: de Socrate a Saint Bernard. Études Augustiniennes. Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1974.

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“Ces vues ont été reprises et coordonnées dans la série de sermons consacrés au Cantique dês cantiques et écrits entre 1135 et 1153. Une première ébauche, de l’avis de dom Jean Leclercq, est constituée par la Breuis commentatio. Le verset ‘Si ignoras te, pulcra inter mulieres’, dit lá Bernard, signifie que ces femmes son Marthe et Marie et conseille d’unir la via active et la vie contemplative que ces deux femmes figurent. Surtout, l’Époux conseille à l’âme, si elle veut le connaître, de commencer par se connaître elle-même, ce qui s’accorde avec le précepte delphique: ‘Scito teipsum’, qu’ Abélard applique bien mal. Pour se connaître, il faut éviter l’excès de témérité et l’excès de timidité. Contre le premier excès, Bernard rappelle l’âme à l’humilité par la connaisssance de soi; contre le second excès, il l’appelle à passer de la timidité à la confiance, en raison des bienfaits qu’elle a reçus. Car il y a deux types d’igonrance de soi: s’estimer trop par présomption ou s’estimer trop peu par pusillanimité7” (grifo nosso)

A extensa citação transcrita tem por objetivo mostrar que Courcelle ignora por

completo, nessa obra, a influência do socratismo cristão no pensamento de Abelardo.

Critica-o (verificar se a crítica é de Courcelle ou Bernardo) dizendo que este aplicou mal o

preceito délfico e não justifica sua crítica. Mas por que Mestre Pedro teria aplicado mal tal

preceito? Isso é coisa que não sabemos uma vez que Courcelle além de não justificar sua

critica, não menciona Abelardo em nenhuma outra parte da obra.

Se por um lado não sabemos a causa da crítica de Courcelle a Abelardo no que diz

respeito ao uso do preceito délfico, talvez possamos conjecturar sobre o motivo pelo qual o

autor não aborda a obra de mestre Pedro, como faz com outros autores, e perceber alguns

pressupostos na leitura de Courcelle.

Depois de mencionar que os séculos VII e VIII são marcados por uma ruptura na

reflexão dos ocidentais acerca da interioridade8, como é o caso de Isidoro de Sevilha que

ignora o preceito délfico, Courcelle aborda o tema em João Scoto Erígena9 e Avicena10. Na

seqüência, o autor alerta para um eclipse no estudo de tal preceito no século X11: “Aprés

une éclipse au triste Xe siècle, on retrouve au siècle suivant le ‘Connais-toi toi même’ chez

Pierre Damien, moine à Fonte Avellana prés de Gubbio”12.

7 Ibidem, p. 263-4.8 COURCELLE, Pierre. Connais-toi toi-même, p. 231.9 Ibidem, pp. 231-234.10 Ibidem, pp. 235-237.11 O século X é uma época de recuo em tudo, por conta dos ataques dos Normandos (os homens do norte), isto é, tribos escandinavas.12 Ibidem, p. 237. Pedro Damião (1007-1072) está do século XI, quando Courcelle afirma um retorno no estudo do preceito délfico.

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Na aurora do século XII o autor aborda o tema, de maneira muito sumária, em

Anselmo da Cantuária13 enfatizando a influência que esse exerceu sobre os mestres de São

Vitor de Paris. Nesse ponto do texto acreditamos residir o motivo pelo qual Courcelle não

menciona Abelardo em toda a sua obra, exceto naquele fragmento transcrito acima: “Le

précepte delphique allait nourrir la reflexión des ‘spirituels’ tout au long du XIIe siècle. Je

procéderai en insistant successivament sur les deux principales familles d’esprits: Victorins

et Cisterciens”14.

A opção pelas duas famílias espirituais do século XII, se de um lado pode sugerir

apenas que o autor fez um recorte necessário a uma pesquisa de tal monta, de outro lado

parece nos revelar a compreensão de Courcelle quanto ao preceito délfico, da qual

resultaria a exclusão e a crítica a Abelardo. Ressalvamos que nossa observação não passa

de conjectura, pois embora o autor mencione ainda que de modo sumário, a razão de tal

recorte não justifica a crítica a Abelardo.

Na seqüência da obra, são mencionados os dois grandes mestres da Escola Vitorina:

Hugo e Ricardo15. À medida que Courcelle os apresenta para a análise, direciona a leitura

cristã do ‘Conhece-te a ti mesmo’ para uma vertente do século XII.

O recorte que privilegia os vitorinos e cistercienses parece revelar que Courcelle

analisa o preceito délfico estritamente sob a ótica da espiritualidade contemplativa muito

própria da tradição monástica16.

Segundo Luscombe17, no retiro do mosteiro no século XII, os problemas da vida

moral eram intensamente estudados com uma ênfase sobre as necessidades espirituais da

vida. Escritos monásticos expressavam a aversão ao pecado, a depreciação dos valores

grosseiros, a impossibilidade da iniciativa moral sem o auxílio divino, a obrigação da

obediência, a identificação com Deus na alegria da amizade espiritual, a satisfação de ser

conduzido pela graça e a superioridade da vida contemplativa sobre a ativa. Para Santo

Anselmo, o homem não era dotado de liberdade de poder de escolha entre o bem e o mal,

13 Ibidem, p. 237.14 Ibidem, p. 238.15 Ibidem, pp. 238-247.16 Remetemos o leitor a: CHENU, Marie-Dominique. L’éveil de la conscience dans la civilisation médiévale. Montreal, Inst. d’études médiévales; Paris, J. Vrin, 1969; especificamente no tópico “Cister e São Vítor – A interioridade do amor”, no qual o autor aponta para as diferenças entre a leitura das duas ordens contemplativas em relação a Abelardo.17 LUSCOMBE, p. xvi.

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mas somente dotado de poder de não agir em contrariedade a Deus. Para São Bernardo a

testemunha para nossa obrigação moral está em nós mesmos, isto é, a consciência do

remorso que habita a alma do pecador não permite a tranqüilidade. Deus está sempre

presente na boa consciência e todas as nossas ações são escolhidas ou omitidas na presença

do juízo divino. O pensamento de Bernardo era meditativo e afetivo no caráter, e era

extraído da Bíblia e das fontes patrísticas. Alguns moralistas monásticos estavam dispostos

a denunciar qualquer simpatia com a moral pagã.

Talvez possamos, dessas informações de Luscombe e da própria obra de Courcelle,

inferir a razão do recorte: a ‘leitura contemplativa’ que se opunha à leitura com certa

simpatia pagã, como parece ser o caso de Pedro Abelardo, ainda que sua obra tenha como

discussão central a teoria da intenção e a definição de pecado – temas de conotação cristã,

mas que na análise de Abelardo é transformado à medida em que o filósofo rompe com a

leitura dos teólogos anti-dialéticos18.

Courcelle parece, portanto, inserir estritamente a análise do preceito délfico na ótica

da espiritualidade contemplativa por oposição à leitura típica de Abelardo: “de um

problema exclusivamente filosófico discutido a fundo e resolvido por si mesmo, sem

nenhuma referência à teologia19”. Em decorrência dessa leitura, o verso de Juvenal citado

por Macróbio e mencionado na obra de Courcelle - ‘De caelo descendit ‘γνωθι σεαυτόν20’ –

parece corresponder à leitura privilegiada na obra e o motivo da crítica e da exclusão de

Abelardo.

A leitura de Marie-Dominique Chenu21 acerca do socratismo cristão no século

XII

Diferentemente da leitura de Courcelle, Chenu propõe uma leitura que contempla as

diferenças entre as duas vertentes do século XII:

“Passar de Abelardo a São Bernardo significa, sem dúvida, mudar de universo, tanto local como mental; da turbulência das escolas urbanas ao silêncio dos vales cistercienses. Mas sua violenta oposição não contradiz em

18 GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média, p. 281-288. Mencionar alguns teólogos anti-dialéticos e que há também os dialéticos.19 Ibidem, p. 351.20 COURCELLE, Pierre. Connais-toi toi-même, p. 248.21 CHENU, Marie-Dominique. O Despertar da Consciência na Civilização Medieval. Tradução de Juvenal Savian Filho. São Paulo: Loyola, 2006.

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nada nossa proposta de os considerar em conjunto, nesse extraordinário florescimento das doutrinas – e das experiências - do amor, que foi a maravilha dos anos 1120-1160... Que feliz paradoxo da história, que nos obriga a considerar em conjunto todas as dimensões do homem! 22”.

Claro está que Chenu não tem o mesmo objetivo de Courcelle – o de fazer uma

análise do preceito délfico - mas nem por isso deixa de contribuir para nosso propósito

nesse trabalho.

Se anteriormente afirmávamos que Courcelle inseria sua leitura do preceito délfico na

perspectiva contemplativa das duas grandes famílias cisterciense e vitorina e, por isso, sua

crítica a Abelardo, percebemos que Chenu, quando menciona que a revivescência no século

XII da fortuna do preceito délfico sustentou duas espiritualidades díspares, oferece-nos

suporte para tal afirmação que até então não passava de mera hipótese: “... enquanto em

Cister ela é introduzida para sublinhar a fraqueza que ela revela no homem, em Abelardo

ela vem confirmar a alta qualidade, em discernimentos e em vigor, do consentimento do

espírito ao bem, da dignidade do homem23”.

Na diferenciação que Chenu estabelece entre, de um lado, Abelardo e, do outro, os

vitorinos e cistercienses, evidencia-se a intenção do autor em mostrar que o mestre palatino

entende o preceito délfico na perspectiva do sujeito – aliás, segundo Chenu, é Abelardo o

primeiro moderno, porque trouxe para a Idade Média a irredutível originalidade de uma

filosofia da pessoa24.

Embora essa tese de Chenu seja motivo de muita controvérsia, o fato é que em

Abelardo há uma acentuada tendência de se considerar a individualidade de todo

existente25, o que justifica uma compreensão do preceito délfico a partir da noção do

consentimento do indivíduo. ‘Conhecer a si mesmo’, na perspectiva abelardiana, é conhecer

a intenção (intentio) do agente na ação (operatio).

Chenu26 faz questão de acentuar o ‘choque subversivo’ que essa ‘moral da intenção’

proposta por Abelardo causou na tradição penitencial e na própria compreensão moral do

22 Ibidem, p. 31.23 Ibidem, p. 38.24 Ibidem, p. 19-20.25 Tal é a postura de Abelardo em relação aos universais. Cf. NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro do. A Querela dos Universais Revisitada. Cadernos PUC – Filosofia, nº 13. EDUC; Cortez: São Paulo, 1983, p. 37-73.26 CHENU, Marie-Dominique. O Despertar da Consciência na Civilização Medieval, p. 19.

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pecado do século XII. À medida que é o consentimento interior que determina a moralidade

de um ato, o conhecimento de si passa necessariamente pelo conhecimento desse

consentimento. Há uma crítica a toda prática exterior que reduz a autonomia do sujeito -

como um certo obediencialismo monástico - e uma exigência decorrente dessa mudança na

compreensão do sujeito (dotado de consciência e consentimento) na forma de organização

da vida social, inclusive na hierarquia religiosa e monástica27.

Exagero ou não na leitura de Chenu, no que tanque à compreensão da autonomia do

sujeito já presente em Abelardo, o fato é que essa leitura possibilita uma compreensão do

preceito délfico em Abelardo, à medida que estaria tal compreensão intrinsecamente ligada

à noção de intenção (intentio) e consentimento (consensus) na obra do Mestre Palatino.

Se Chenu leu ‘corretamente’ Abelardo, é coisa que não temos competência para

julgar, mas de qualquer modo sua leitura abre para uma compreensão diferente da leitura de

Courcelle.

Considerações finais

Nosso trabalho esbarrou em sérios problemas à medida que a obra de referência

ignorava por completo a compreensão do preceito délfico em Abelardo. Ler na obra de

Courcelle os pressupostos desse autor, num exercício quase que de decifração criptográfica

não era nossa intenção.

Por outro lado, desconsiderar totalmente a postura desse autor não nos parecia

correto, uma vez que esta refletia algo mais do que mera opção. Mas aí está o maior

problema: esta afirmação não passa de conjectura.

Mesmo que Chenu pareça corroborar nossa interpretação da opção de Courcelle,

ainda não temos elementos e, diga-se também, competência para uma análise de tamanha

responsabilidade.

27 Ibidem, p. 26.

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O tema permanece aberto e instigante para uma análise mais aprofundada.

Ressaltamos que as obras às quais tivemos acesso não nos acrescentavam muito acerca do

nosso objeto. Buscamos nas traduções e prefácios de três edições da Ethica de Abelardo –

de Luscombe28; de Pedro R. Santidrián29 e de Maurice de Gandillac30 – mas nenhuma

apresenta uma pesquisa mais aprofundada e detalhada sobre a compreensão de Abelardo do

preceito délfico.

Não obstante toda a dificuldade de encontrar material de qualidade propusemo-nos a

dizer algo através da leitura do que não foi dito. Trabalho nada fácil e limitado por

natureza. Mas que – além de ter servido como bom exercício de leitura e reflexão sobre os

problemas de uma época - esperamos possa contribuir com a exposição do tema para

ulteriores pesquisas.

Referências Bibliográficas

ABELARD, Peter. Peter Abelard’s Ethics. Introdução, tradução e notas em inglês de D.

E. Luscombe. Oxford University Press, 1971.

ABELARD, Pierre. Conferénces (Dialogue d’un philosophe, avec un juif et um

chrétien), Connais-toi toi-même (Éthique). Introduction, traduction nouvelle et notes par

Maurice de Gandillac. Paris: Les Éditions du Cerf, 1993.

ABELARDO, Pedro. Conócete a ti mismo. Estúdio preliminar, traducción y notas de

Pedro R. Santidrián. Clássicos del Pensamento, nº 77. Madrid: Editorial Tecnos, 2002.

28 ABELARD, Peter. Peter Abelard’s Ethics. Introdução, tradução e notas em inglês de D. E. Luscombe. Oxford University Press, 1971.29 ABELARDO, Pedro. Conócete a ti mismo. Estúdio preliminar, traducción y notas de Pedro R. Santidrián. Clássicos del Pensamento, nº 77. Madrid: Editorial Tecnos, 2002.30 ABELDARD, Pierre. Conferénces (Dialogue d’un philosophe, avec un juif et um chrétien), Connais-toi toi-même (Éthique). Introduction, traduction nouvelle et notes par Maurice de Gandillac. Paris: Les Éditions du Cerf, 1993.

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CHENU, Marie-Dominique. O Despertar da Consciência na Civilização Medieval.

Tradução de Juvenal Savian Filho. São Paulo: Loyola, 2006.

COURCELLE, Pierre. Connais-toi toi-même: de Socrate a Saint Bernard. Études

Augustiniennes. Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1974.

GILSON, Etienne. L’Esprit de la Philosophie Médiévale. Paris: Vrin, 1969.

LUSCOMBE, David E. Peter Abelard and the Twelfth-Century Ethics. In: Peter

Aberlard’s Ethics. Oxford, Clarendon Press, 1971, p. xiii-lxi.

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