sociologia na sala de aula: reflexões e experiências docentes no estado do rio de janeiro
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Livro de formação docente na área de sociologia. Publicado em 2012.TRANSCRIPT
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SUMÁRIO Introdução .................................................................................................................................... 3 Capítulo 1 Perspectivas políticas e científicas acerca do ensino da sociologia ............................... 14 Capítulo 2 Ensino de Sociologia: insulamento e invisibilidade de uma disciplina .......................... 34 Capítulo 3 Sociologia e educação – ponderações a partir de uma ótica sistêmica .......................... 55 Capítulo 4 A sociologia e as tensões sociais, epistemológicas e culturais da escola ....................... 67 Capítulo 5 A trajetória de institucionalização da Sociologia na Educação Básica no Rio de Janeiro83 Capítulo 6 Perfil do Professor de Sociologia da Metropolitana VI da Rede Pública Estadual do Rio de Janeiro ................................................................................................................................... 96 Capítulo 7 O Currículo como Obra Aberta: notas sobre a construção do currículo mínimo de sociologia da rede pública estadual do Rio de Janeiro. ............................................................... 112 Capítulo 8 O desafio da institucionalização da sociologia no ensino técnico integrado: o caso do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro - IFRJ............................. 138 Capítulo 9 Sobre a Sociologia no Ensino Médio e uma experiência de licenciatura em Ciências Sociais ..................................................................................................................................... 150 Capítulo 10 Licenciatura em Ciências Sociais: da construção do Projeto Pedagógico de Curso (PPC) aos desafios da formação para o ensino de Sociologia ................................................................ 167 Capítulo 11 O Programa de Iniciação à Docência da UFF: experiências didático-pedagógicas no ensino de sociologia ................................................................................................................. 177 Capítulo 12 Juventude e tempo presente: a contribuição da Sociologia como disciplina escolar .. 188 Capítulo 13 O debate de gênero na escola: uma proposta para transformação. ............................ 194 Capítulo 14 O Ensino de Sociologia e a (re)significação das Redes Sociais On-line na escola básica. ................................................................................................................................................ 206 Capítulo 15 A Educação Ambiental Crítica na Sociologia ......................................................... 220 Capítulo 16 Violência simbólica e política educacional: etnografia dos conflitos escolares e ensino de sociologia no Rio de Janeiro ................................................................................................. 233 Capítulo 17 Estereótipo, discriminação e preconceito escovados a contrapelo: desafios cognitivos e possibilidades sociológicas ................................................................................ 258
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Prefácio
Para aqueles que duvidavam da importância e da diferença que o ensino da Sociologia
faria no currículo e na estrutura da escola média brasileira, trazemos aqui um exemplo de que
isso era mais que uma promessa. E, certamente, não constituía tampouco uma ameaça. Com o
vagar suficiente e com o rigor necessário, após a aprovação da obrigatoriedade do ensino da
disciplina, foram se desenvolvendo pesquisas, aprofundando experiências, acumulando
debates e reflexões, de modo que a comunidade de formadores de professores e professores de
Sociologia vem dando uma resposta positiva e consistente para a Sociedade. Embora aqui e
ali ainda permaneçam alguns sons advindos do período de campanha pela obrigatoriedade,
estes não se apresentam como dissonantes porque ainda há os que questionam o papel que a
disciplina venha a desempenhar na formação dos nossos jovens.
Vamos abandonando o discurso político institucionalizador, e em seu lugar vamos
assumindo, como ocorre com outras comunidades, uma perspectiva definitivamente científica,
em que pese não se poder separar absolutamente aquele discurso e aquela perspectiva – como
notamos há quase uma década1 -, um tom militante mesmo nas pesquisas: somos todos
sujeitos e objeto dessas pesquisas.
Estamos na fase de cumprir as nossas promessas e para isso tanto as pesquisas quanto
os relatos de experiências constituem testemunho, ou mais que testemunho, provas materiais
de que não se estava apenas visando a objetivos corporativos. A responsabilidade do trato
com a educação, e mais, com o trato da formação dos jovens não a descobrimos hoje, mas
desde o primeiro momento em que nos arriscamos na campanha pela defesa da presença da
Sociologia no currículo. Era necessário refletir sobre essa história, era necessário construir
alternativas de ensino em termos de conteúdos e práticas, era necessário romper com a rotina,
com a tradição má conselheira, mas também com um voluntarismo cego e uma militância
simplificadora.
Se em mais de cem anos pouco foi escrito, refletido e pesquisado sobre a Sociologia
na escola secundária brasileira – de que temos notícia os Pareceres de Rui Barbosa (1882); as
Reformas Educacionais de Benjamim Constant (1890), Rocha Vaz (1925), Francisco Campos
(1931); as duas referências acadêmicas: o Symposium promovido pela Escola Livre de
1 Trata-se de MORAES, A.C. Licenciatura em ciências sociais e ensino de sociologia: entre o balanço e o relato. Tempo Social, São Paulo, v. 15, n. 1, p. 5-20, 2003
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Sociologia e Política (1949) e a comunicação O Ensino de Sociologia na escola secundária
brasileira, apresentada por Florestan Fernandes no I Congresso Brasileiro de Sociologia
(1954) -, a partir de 1987, isto é, há um quarto de século, recomeçamos – que parece que tem
sido esta a nossa sina: recomeçar – um trabalho profícuo de pesquisas e experiências, de
intervenção e reconstrução constante de nossa legitimidade para além da luta pela legalização.
Temos ultrapassado os clichês – formação do cidadão crítico – que, ao mesmo tempo
em que favorecia nossa presença no currículo, obscurecia a especificidade do nosso ensino, de
tal modo que, numa penada (DCNEM, 1998), ficamos diluídos “no conjunto das disciplinas”
por uma concepção discutível, mas conveniente a certos interesses, acerca de uma tão
propalada interdisciplinarização dos conteúdos de Sociologia.
Temos ultrapassado certo voluntarismo a que muita vez professores sucumbem em
vista de tornar suas aulas mais palatáveis, mais participativas, mais próximas dos alunos; mas,
por isso mesmo, mais reiterativas, pouco fazendo diferença, não dizendo a que veio; pois após
os debates, as agitações, nada resta senão a pura e simples tolerância que não se leva para
casa, voltando tudo ao seu lugar “depois que a banda passou”. Parece que o ensino de
Sociologia não se trata de passatempo nem de programa de auditório e seu professor não é um
mero animador. Precisa fazer diferença. Senão para que tanta luta?
Ultrapassamos um tom meramente militante, em que pese alguns – senão todos –
conteúdos das Ciências Sociais, presentes nas aulas de Sociologia, serem muita vez
entendidos como manifestação contra o “estado das coisas” e expressão de propostas
alternativas. Avançamos para recuperar o sentido crítico que anima as Ciências Sociais que, a
par de questionamentos, traz informações sistematizadas, agrega modos de pensar para além
do rotineiro ou do imediatismo, do senso comum. Ou seja, a construção de sujeitos
autônomos só é possível quando se desenvolve e preserva a autonomia dos sujeitos, e por
mais a tautológico que isso pareça, é sempre bom lembrar a uma militância que põe a
conclusão antes das premissas.
Tivemos de construir rapidamente uma história que as outras disciplinas do currículo
levaram décadas, séculos e milênios. Presença recente e, no nosso caso, intermitente
(MORAES, 2003), a história do ensino de Sociologia tem sido caracterizada pelos binômios
presença/democracia, ausência/não-democracia. Nada mais simplificador e equivocado que,
se traz para a disciplina certo sabor de heroísmo, marca-a indelevelmente por certos
compromissos ideológicos que a fazem patinar sobre essa história. Por isso há ainda muito
que pesquisar, experimentar e propor. Talvez nos afastando no tempo – com isso ganhando
certo distanciamento característico dos historiadores, a que os cientistas sociais ainda não se
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acostumaram -, possamos olhar nossa história e reconstruí-la também criticamente,
desvencilhando-nos de tais compromissos.
Nesses últimos vinte e cinco anos, o que predominou foram as pesquisas que tinham
por objeto a institucionalização da Sociologia no ensino secundário - misto de investigação e
busca de legitimação. Aqui, nesta coletânea, essa questão reaparece, recortada pela
experiência do Rio de Janeiro, recontada a partir da ação de outros agentes sociais que não
somente aqueles oficiais. Vislumbramos que isso sendo reproduzido em outros estados,
poder-se-á no futuro tentar novas sínteses, como as que foram feitas até aqui, ainda muito
incompletas, ainda muito enviesadas.
Mas o escopo dessa coleção de artigos vai além, percorrendo um verdadeiro
“programa de pesquisa”, tal são a variedade de temas e a diversidade de abordagens. Há
textos que buscam discutir o sentido que se atribui ao ensino de Sociologia e suas relações
com os contextos mais amplos do campo das Ciências Sociais e da Educação, revelando
certas tensões que tiveram e têm influências profundas nas vicissitudes da história da
disciplina escolar. Aparecem temas amplos, como as relações entre a Sociologia e a educação
ou a escola, ou bastante específicos – estudos de caso -, como a institucionalização da
Sociologia numa escola do Rio de Janeiro (IFRJ), ou o “Programa de Iniciação à Docência na
UFF”. O tema da licenciatura é abordado em dois artigos. A discussão sobre currículo ora
aparece de modo mais amplo – o currículo como obra aberta -, ora a partir de temas definidos:
juventude, gênero, redes sociais, educação ambiental, violência e preconceito, de modo que se
possa ter uma ideia de como tal tema vem sendo trabalhado pela comunidade de professores
formadores e professores de Sociologia. Aliás, é necessário reforçar essa observação: não são
textos apenas de professores universitários que, no conforto de seus gabinetes (nem tão
confortáveis assim), e apenas para alimentar sua vaidade e seu Curriculum Lattes, atendendo à
determinação “publish or perish”, critério de nosso muno acadêmico, resolvem se debruçar
sobre um tema dos menos valorizados na comunidade das Ciências Sociais. São textos e
pesquisas de professores universitários e de professores da educação básica que nunca
perderam de vista a necessidade de refletir, de investigar, de agir em relação ao ensino de
Sociologia; que não se contentaram com a simples abertura desse mercado de trabalho para
“sociólogos desempregados”; que não se satisfizeram com os louros da vitória da campanha
de obrigatoriedade (glória fugidia, haja vista ser bastante relativa ainda); mas sobretudo
sabiam que a obrigatoriedade da disciplina impunha um compromisso profundo, que não
temos encontrado em outras disciplinas – que tradicionalmente ocupam um pedaço nada
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desprezível no currículo. As pesquisas, a reflexão e a ação eram não só uma obrigação auto-
imposta por esses professores, senão uma necessidade.
Por fim e como conclusão, devemos dizer que essa obra e esses autores dão uma
contribuição importante para a consolidação da Sociologia no ensino médio. Os exemplos de
pesquisas, de experiências, o empenho de dar a essa disciplina e ao seu ensino o rigor tão
reclamado quanto necessário devem servir para que os demais professores e formadores de
professores não se descuidem daquilo que chamamos “o dia seguinte” (Sessão especial da
ANPOCS, 2006), de que há ainda muito a fazer: a formação de professores ainda é precária e
se salva por efeito dessas iniciativas e investimento pessoal de tantos que militam nessa área;
a produção de material didático ainda é qualitativamente discutível, em que pese a profusão
de livros que chegam às mãos de professores e alunos; o lugar da disciplina no currículo ainda
padece ou de falta de legitimidade intra e extra comunidade de cientistas sociais, ou de
honestidade de quem trata uma questão tão séria como essa do currículo para a formação de
jovens, apenas fundamentados numa tradição equivocada ou na preparação para vestibulares.
Resta também pesquisar e experimentar, para além dos temas (conteúdos) especiais
(como aparecem aqui), metodologias e recursos didáticos não convencionais: a literatura, em
particular a brasileira, o cinema, em especial o brasileiro, o teatro, as artes plásticas, para
ficarmos num imenso repertório que muito poderia auxiliar os professores e contribuir para
que as aulas de Sociologia fossem espaço da criatividade, da expressão, da discussão sobre os
costumes e comportamentos, para além das preocupações científicas e imediatamente
políticas, tão características suas, de modo que ao dever fossem agregados o desejo e o prazer
de conhecer.
Prof. Dr. Amaury Cesar Moraes (USP)
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Introdução O livro ora proposto tem por objetivo problematizar e discutir, entre professores de
sociologia da Educação Básica, estudantes e professores dos cursos de Ciências Sociais e de
Pedagogia, temas afetos ao ensino da Sociologia na educação básica. As condições da carreira
docente, os parâmetros e orientações legais para o ensino de sociologia na educação básica, as
experiências pedagógicas e os contextos escolares, os currículos, as metodologias e os materiais
didáticos disponíveis são os temas que serão tratados neste livro. Particularmente, pretende-se
abordar as experiências e reflexões sediadas no Rio de Janeiro, onde o ensino de sociologia na
educação básica é obrigatório desde o ano de 1989. A obra constitui uma proposta conjunta de dois
departamentos que, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, contam com docentes
atuantes diretamente nesta temática, seja no campo da pesquisa, na extensão, na docência ou na
produção de artigos acadêmicos: o Departamento de Ciências Sociais e o Departamento de Teoria e
Planejamento de Ensino.
A proposta deste livro se justifica pelos impactos da recente obrigatoriedade do ensino de
sociologia, por força de lei federal (Lei nº 11.684-2008). Tal evento redimensionou o papel das
licenciaturas de Ciências Sociais nas Universidades brasileiras, não apenas na demanda objetiva de
formação de um quadro maior de licenciados, mas na possibilidade de emergência do ensino de
sociologia como objeto de reflexão sociológica, consubstanciada na forma de projetos de pesquisa
acadêmica e na produção de livros, artigos e seminários.
A despeito disto, as licenciaturas ainda ocupam um lugar periférico na forma como os
departamentos das áreas das ciências sociais pensam seus cursos de graduação. Assim, algumas
velhas dicotomias que informam o funcionamento de departamentos e cursos, como
pesquisa/ensino, professor/pesquisador, graduação/pós-graduação reproduzem uma relação
assimétrica entre os cursos de bacharelado e licenciatura em ciências sociais em boa parte das
Universidades brasileiras, para privilégio dos primeiros, ainda pensados como espaços de formação
de futuros mestrandos. Tal assimetria pode ter por conseqüência - e não raro isto ocorre - a total
ausência de envolvimento dos professores vinculados aos departamentos de Ciências Sociais na
construção das licenciaturas, que acabam vistas como meros apêndices pedagógicos da formação do
bacharel. Também por conseqüência disto, o debate sobre ensino de sociologia não encontra espaço
em boa parte dos cursos de mestrado e doutorado na área, entendidos como espaços de formação
dos professores-pesquisadores, não configurando o tema, até agora, um objeto de pesquisa
privilegiado no campo das ciências sociais.
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Este é um cenário que começa a mudar. A Sociedade Brasileira de Sociologia, entidade
científica de caráter nacional que agrega os pós-graduados na área, instituiu e vem consolidando um
Grupo de Trabalho sobre ensino de sociologia, e uma nova entidade está em processo de
construção, a Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais – ABECS. O propósito da
ABECS “é agregar professores da educação básica ao universitário que estejam interessados
ou preocupados com o ensino das ciências sociais/sociologia, em todos os níveis
educacionais. Além de criar canais de comunicação entre estes professores propõe-se realizar
uma ponte entre ensino básico e universidade”2. Este processo está em construção, e a maioria
dos autores presentes nesta obra estão empenhados no fortalecimento destes laços entre
universidade e professores da Educação básica. Alem disso, diversos encontros nacionais vêm
sendo realizados, grupos de pesquisa têm se estruturado nas Universidades, e já há produção de
dissertações e teses sobre o tema.
Na esteira deste processo, a licenciatura em Ciências Sociais da UFRRJ vem se
constituindo num espaço no qual o ensino de sociologia se torna objeto de reflexão de alunos e
professores, tanto no âmbito das atividades acadêmicas atreladas à grade do curso, como os Núcleos
de Ensino, Pesquisa e Extensão, como em pesquisas individuais ou de grupos, vinculadas a
programas de fomento especialmente voltados para a temática, como o Programa de Incentivo a
Bolsas de Iniciação à Docência, da Capes.
Os desafios para a prática do ensino de sociologia na educação básica, entretanto, não estão
apenas na formação dos profissionais nas Universidades. Em um modelo de ensino ainda baseado
na dicotomia "formação técnica"/"preparação para o vestibular", a dimensão do "exercício da
cidadania", asseverada pela LDB de 1996, parece desprivilegiada e, com ela, a própria sociologia
como disciplina obrigatória. Vivemos, em decorrência, um déficit de legitimidade da sociologia na
escola, tanto por parte de alunos, quanto por parte dos professores e das próprias direções,
consubstanciado na reduzida carga horária, ou na sua consideração como "matéria que não reprova".
Isto impacta também na disponibilidade de recursos pedagógicos para a disciplina.
Neste sentido, a proposta deste livro, que toma como objeto de discussão as experiências do
estado do Rio de Janeiro, justifica-se não apenas por tratar-se do contexto administrativo no qual a
Licenciatura em Ciências Sociais da UFRRJ está inserida, mas pelo caráter de vanguarda da
obrigatoriedade do ensino de sociologia no estado, desde 1989. Um balanço desta experiência, no
momento oportuno de reestruturação dos cursos de licenciatura em ciências sociais, pode ser de
grande valia não apenas para os sociólogos de nosso estado, mas de todo o país.
2 Trecho extraído do manifesto de fundação da ABECS.
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O livro está organizado em 16 capítulos, de autoria tanto de pesquisadores oriundos das
Universidades quanto de profissionais da educação básica e estudantes de licencturas.
O primeiro capítulo, intitulado Perspectivas políticas e científicas acerca do ensino da
sociologia, dos professores Adelia Miglievich Ribeiro (UFES) e Flávio Sarandy (UFF), parte da
constatação de que a Sociologia, agora obrigatória no ensino médio brasileiro, ainda não tem sua
permanência garantida nas matrizes curriculares do segmento. Os autores argumentam que mais
investimento em pesquisas acadêmicas em torno do ensino das ciências sociais na educação básica e
sua fundamentação na Teoria Social – e consequente valorização pela própria comunidade dos
cientistas sociais, serão cruciais para sua legitimação.
O segundo capítulo, intitulado Ensino de Sociologia: insulamento e invisibilidade de uma
disciplina, do professor Flávio Sarandy (UFF), discute a ideia de que, com a reinserção da
Sociologia como disciplina obrigatória no ensino médio brasileiro, tornou-se ainda mais evidente o
distanciamento entre a prática acadêmica e a escola, a despeito da maioria dos cursos de graduação
na área se estruturarem na forma de bacharelados e licenciaturas e da escola média constituir o
principal mercado de trabalho dos egressos desses cursos. O autor argumenta sobre as possíveis
razões que obstam o avanço das pesquisas acadêmicas em torno do ensino das ciências sociais na
educação básica e que tem relação direta com as propostas curriculares existentes. Tendo por
referências básicas os trabalhos de Ivor Goodson (2008), Edson Nunes (1999) e Manual Palacios da
Cunha e Melo (1999), apresenta como hipótese explicativa a noção de insulamento acadêmico, por
meio do qual o campo das ciências sociais teria se afastado das questões referentes ao ensino de sua
própria disciplina em favor de maior profissionalização científica, sobretudo nos programas de pós-
graduação.
O Capítulo três, intitulado Sociologia e educação – ponderações a partir de uma ótica
sistêmica do professor da UFF George Gomes Coutinho, dialoga com a nova teoria dos sistemas tal
como proposta por Niklas Luhmann, no que tal abordagem pode trazer de inovação acerca dos
subsistemas educacionais. Nestes termos são apresentadas, de forma não conclusiva, mas
provocativa, as possibilidades de conexão entre ensino, sociologia e o ensino de sociologia.
O Capítulo quatro, A sociologia e as tensões sociais, epistemológicas e culturais da
escola, do professor Luiz Fernandes de Oliveira (UFRRJ), traz discussões desafiadoras para a
reflexão teórica sobre o ensino de sociologia, que dizem respeito às tensões presentes nos contextos
escolares, do ponto de vista das relações sociais entre os diversos atores, da construção do
conhecimento, em especial o conhecimento sociológico, e das relações culturais. Tem como
objetivo contribuir no debate sobre a legitimação teórica e pedagógica da sociologia na educação
básica, a partir da problematização dos desafios e tensões dos contextos escolares.
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O Capítulo cinco, A trajetória de institucionalização da Sociologia na Educação Básica
no Rio de Janeiro de Aline Miranda e Souza, Anita Handfas e Thays Marcely França, todas da
UFRJ, tem como objetivo, ao narrar esta trajetória, situá-la no contexto nacional que vai desde a
década de 1890 até os dias atuais. Serão identificadas os principais grupos sociais que
protagonizaram esse processo, bem como suas formas de mobilização numa campanha que
culminou com a legislação de 1989, que tornou obrigatório o ensino de sociologia no Rio de
Janeiro.
No Capítulo seis temos o texto Perfil do Professor de Sociologia da Metropolitana VI da
Rede Pública Estadual do Rio de Janeiro, de Julia Polessa, Beatriz Gesteira e Gabriela Montez,
as três da UFRJ. Neste trabalho, apresenta-se um retrato dos professores de sociologia em atuação
nos colégios da Região Metropolitana VI da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro no
biênio 2010/2011. A metodologia utilizada consistiu na aplicação de questionários de perguntas
fechadas e entrevistas com roteiro aberto. Dentre os resultados da pesquisa destacam-se a percepção
da distribuição equânime de gênero; da maioria de professores pós-graduados; da intensa carga de
trabalho manifesta no excessivo número de turmas e alunos; e da composição da renda dos docentes
por mais de um vínculo empregatício.
No Capítulo sete, intitulado O Currículo como Obra Aberta: notas sobre a construção
do currículo mínimo de sociologia da rede pública estadual do Rio de Janeiro, André Videira
de Figueiredo (UFRRJ) e Marcia Menezes Thomaz Pereira (SEEDUC) apresentam uma descrição
do processo de produção do currículo de sociologia para o ensino médio regular no Estado,
apontando para os aspectos políticos e metodológicos que orientaram a sua confecção. Empreendem
sua análise tanto a partir da compreensão do papel do ensino de sociologia expresso pela equipe
responsável pela proposta, da qual os autores deste texto participaram, quanto das condições de sua
construção, no que empreendem uma breve reflexão sobre as políticas de educação nas quais a
proposta se insere.
No capítulo oito temos o texto O desafio da institucionalização da sociologia no ensino
técnico integrado: o caso do instituto federal de educação ciência e tecnologia do Rio de
Raneiro – IFRJ de Katia Correia da Silva e Julieta Romeiro, ambas do IFRJ. Este texto discute o
processo de implantação da disciplina Sociologia no ensino técnico integrado ao médio do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnológica do Rio de Janeiro – IFRJ -, por intermédio do relato de
experiências de duas professoras da instituição. O artigo relata as limitações encontradas para o
cumprimento da Lei 11.684/08, que torna obrigatório o ensino de Sociologia e Filosofia em todos os
anos do ensino médio, evidenciando os antagonismos entre o saber técnico e o saber propedêutico
no interior da instituição.
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O capítulo nove, intitulado, Sobre a sociologia no Ensino Médio e uma experiência de
licenciatura em ciências sociais, é de Marco Antonio Perruso e Nalayne Mendonça Pinto, ambos
da UFRRJ. Este texto empreende uma reflexão acerca da institucionalização do ensino da sociologia
no ensino médio e sobre a formação do professor em Ciências Sociais. Para tanto, esta dividido em
dois momentos. Inicialmente discute o projeto científico da sociologia na França do final do século
XIX e sua legitimidade como disciplina acadêmica; analisa, ainda, a trajetória histórica de inserção
da disciplina no ensino brasileiro e as justificativas para sua efetivação ao longo do século XX. Em
seguida, examina a expansão das licenciaturas em Ciências Sociais na última década no país e
apresenta a experiência da Licenciatura em Ciências Sociais da UFRRJ, demonstrando as propostas
pedagógicas do curso e os desafios de sua implementação.
O capítulo dez, intitulado Licenciatura em Ciências Sociais: da construção do Projeto
Pedagógico de Curso (PPC) aos desafios da formação para o ensino de Sociologia, da
professora Célia Regina Neves da Silva da Faculdades Integradas Campo-Grandenses –FIC, traz
a experiência na formação docente no Curso de Ciências Sociais de uma fundação privada na
periferia da cidade do Rio de Janeiro. Parte-se da apresentação da identidade do curso em
conformidade com as exigências do Parecer CNE/CP 9/2001 e da construção do seu Projeto
Pedagógico apresentando alguns desafios da formação do profissional docente no campo das
Ciências Sociais.
O capítulo onze, intitulado O Programa de Iniciação à Docência da UFF: experiências
didático-pedagógicas no ensino de sociologia, é de autoria da professora Rosana da Câmara
Teixeira, da UFF. O objetivo do texto é apresentar a concepção de formação docente que vem
orientando o trabalho que a autora desenvolve na disciplina Pesquisa e Prática de Ensino de
Ciências Sociais, assim como, as ações empreendidas nesta perspectiva, no âmbito do programa de
Iniciação à Docência da Universidade Federal Fluminense. As questões trazidas pretendem
contribuir com o debate em torno da formação inicial do professor de sociologia, sobretudo no
momento em que esta disciplina se torna componente curricular obrigatório em todas as escolas
brasileiras de nível médio.
A partir do capítulo doze, os textos estarão centrados em abordagens temáticas no âmbito da
sociologia e seu ensino. Neste capítulo, intitulado Juventude e tempo presente: a contribuição da
Sociologia como disciplina escolar, da professora Fatima Ivone de Oliveira Ferreira, do Colégio
Pedro II, busca-se ampliar a compreensão acerca da importância da Sociologia como disciplina
escolar nas estratégias de vida dos jovens. Para tanto, revisitam-se dados recolhidos em recente
pesquisa realizada com jovens estudantes de diferentes unidades do Colégio Pedro II. Nesta
pesquisa, a expectativa de que os conhecimentos sociológicos possam equipar os jovens de uma
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atitude reflexiva capaz de perceber a densidade do tempo presente e enfrentar os desafios do mundo
contemporâneo foi interpretada a partir da análise do discurso dos estudantes que chamaram a
Sociologia de “disciplina pensante”.
O Capítulo treze, O debate de gênero na escola: uma proposta para transformação, da
professora Simone Bastos da Fundação de Apoio às Escolas Técnicas do Rio de Janeiro –
FAETEC, apresenta uma experiência baseada na metodologia da utilização de um tema propulsor
para o debate, permitindo o espaço para que a teoria sociológica disponibilize instrumentos para
mudança efetiva na compreensão de mundo dos envolvidos na prática educativa. O tema escolhido
é Gênero por se tratar de um assunto considerado atraente para os estudantes, tanto por ser uma
problemática mundial, como por se tratar efetivamente de cada um de nós - o que possibilita
qualidade na esfera da prática educativa.
O Capítulo Catorze, intitulado, O Ensino de Sociologia e a (re)significação das Redes
Sociais On-line na escola básica, é de autoria de Fátima Ivone de Oliveira Ferreira e Rogerio
Mendes de Lima, ambos do Colégio Pedro II. O texto adota a perspectiva de que a inserção da
Sociologia como disciplina obrigatória no currículo da educação básica trouxe para aqueles que
exercem suas atividades enquanto professores ou pesquisadores do ensino de Sociologia uma nova e
desafiadora experiência: a do papel a ser exercido pela disciplina no âmbito da formação dos jovens
que hoje frequentam o ensino básico. Tendo como ponto de partida a avaliação de que as chamadas
“redes sociais” desempenham um papel importante na construção de novas sociabilidades e
identidades pessoais e coletivas no público juvenil, este texto, parte de uma pesquisa em andamento,
procura debater o papel da Sociologia, especialmente de suas estratégias pedagógicas, na construção
de uma apropriação crítica e com produção de conteúdos conectados com a realidade, por parte dos
jovens de duas escolas tradicionais do Rio de Janeiro.
O capítulo quinze, A Educação Ambiental Crítica na Sociologia, do professor Alexandre
Maia do Bomfim do IFRJ, é fruto de pesquisas e estudos realizados no interior do Grupo de
Pesquisa Trabalho-Educação e Educação Ambiental (GPTEEA) do IFRJ, que tem como propósito
discutir a Questão Ambiental sob os referenciais da Sociologia do Trabalho-Educação. Alcançaram-
se aqui algumas problematizações e alguns encaminhamentos para os educadores dentro da
temática.
No capítulo dezeseis, intitulado Violência simbólica e política educacional: etnografia
dos conflitos escolares e ensino de sociologia no Rio de Janeiro, de Andrey Cordeiro Ferreira
(UFRRJ) e Valena Ribeiro Garcia Ramos (SEEDUC), realiza-se uma breve reflexão
etnográfica sobre a política educacional e como ela expressa práticas de poder de Estado e
lutas simbólicas (travadas entre os trabalhadores da educação, agentes de Estado, etc.). A
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etnografia aqui proposta pretende, a partir do estudo de caso do ensino de sociologia na rede
de educação estadual do Rio de Janeiro, problematizar como as diferentes formas de violência
simbólica se manifestam no cotidiano e condicionam a dinâmica e o contexto escolar. O
contexto da inserção da sociologia como disciplina obrigatória do ensino médio, segundo os
autores, possibilita uma reflexão sobre a interação entre essas dimensões e a compreensão dos
diferentes projetos e visões da educação em conflito.
Enfim, no último capítulo, Estereótipo, discriminação e preconceito escovados a
contrapelo: desafios cognitivos e possibilidades sociológicas, de Tatiana Bukowitz,
professora do Colégio Pedro II, tenta expor possibilidades e alcances do ensino de Ciências
Sociais para alunos do 7º ano do ensino fundamental II do Colégio Pedro II (RJ). O artigo
apresenta uma metodologia pedagógica estruturada a luz das análises e teorias de Walter
Benjamin, Paulo Freire, Antonio Gramsci, e Jürgen Habermas, demonstrando como os temas
estereótipo, discriminação e preconceito foram pedagogicamente trabalhados.
Como vemos no conjunto da obra, pretende-se acumular reflexões e debates, na
perspectiva de conquista de espaços e legitimação pedagógica e científica sobre o ensino de
sociologia na educação básica. Esperamos que este novo espaço que estamos construindo
contribua para que professores e principalmente estudantes (nossos futuros docentes) possam
desfrutar dessas diversas experiências e reflexões teóricas.
André Videira de Figueiredo Nalayne Mendonça Pinto
Luiz Fernandes de Oliveira
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Capítulo 1 Perspectivas políticas e científicas acerca do ensino da sociologia
Adelia Miglievich-Ribeiro3
Flávio Sarandy4
Apresentação
O ano de 2008 foi marcado por comemorações de boa parte da comunidade dos cientistas
sociais. Afinal, a sociologia reavia seu status de disciplina obrigatória, por força de lei (Lei n°
11.683, de 2 de junho de 2008). Foi uma conquista há muito desejada. Mas haverá garantias de que
assim permaneça?
A nosso ver, entretanto, a permanência da disciplina no quadro das disciplinas acolhidas
tradicionalmente na matriz disciplinar para o ensino médio ainda demandará intervenções da
comunidade científica. A julgar pela história da disciplina, marcada por intermitências em sua
presença nos currículos escolares (Silva, 2004; Moraes, 2003) e freqüente suspeição, vivemos um
momento de cautela. Não há garantia de que a obrigatoriedade se mantenha. Uma possibilidade de
abordagem do problema é especularmos sobre as condições para a permanência da sociologia como
disciplina do ensino médio brasileiro. Disciplina legítima, e não somente obrigatória do ponto de
vista legal.
Como contribuição ao debate, sugerimos neste texto que a legitimidade da disciplina advirá
do sentido que lograrmos construir para ela. Neste empreendimento, a comunidade dos cientistas
sociais, ou sua parte interessada, com ênfase aos quadros universitários, tem um papel singular a
desempenhar, qual seja, a dedicação às investigações metodológicas que envolvem seu ensino, num
esforço de elaborar teoricamente suas potencialidades educacionais; o que, vale dizer, significará
construir a justificativa para sua presença no ensino médio, afirmar argumentativamente sua
relevância, estabelecer seus fins, seus desdobramentos, sua metodologia própria. Assim, o sentido
da sociologia na escola – ainda a ser construído discursivamente nas experiências de comunicação
entre professores de ensino médio e pesquisadores das ciências sociais - abrange a fundamentação
teórica da mesma e implica a densificação dos debates acerca de seu ensino que passam a ser
3 Doutora em sociologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ. Professora do Departamento de Ciências Sociais e do PGCS da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. Email: [email protected]. 4 Doutorando na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – USP. Professor de Sociologia da Educação e Metodologia de Ensino da UFF, Campos dos Goytacazes, RJ. Email: [email protected].
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protagonizados pelos seus profissionais, quer nas escolas, quer nas universidades e institutos de
pesquisa, nenhum deles unilateralmente.
O projeto político de construção da disciplina e de seu retorno aos currículos escolares não é
decorrente duma necessidade inerente ou essencial à escola ou à própria disciplina. A julgar pelas
justificativas dadas até o presente e pelas resistências advindas da inclusão da sociologia no quadro
das disciplinas oferecidas no ensino médio, não temos sido muito bem sucedidos em sua defesa – ao
menos, não no plano discursivo. Pois que afirmar ser a disciplina relevante para o desenvolvimento
do pensamento crítico e para a construção da cidadania é nadar na superfície e pouco contribui para
esclarecer em quê, exatamente, a disciplina se diferencia das demais e qual seu papel no sistema
educacional. Afinal, os dois objetivos citados, normalmente elencados quando se trata de justificar a
disciplina, podem – ou deveriam – ser alcançados por todas as disciplinas, objetivos inerentes à
própria atividade educacional que são.
Ora, não é por uma necessidade intrínseca à escola que podemos esperar a permanência da
disciplina na educação básica. Muito menos pelo “natural” interesse da comunidade acadêmica dos
cientistas sociais, como se pela presença das ciências sociais nos cursos universitários decorresse a
obrigação de sua transposição à escola. A legitimidade social da sociologia como disciplina
obrigatória do ensino médio brasileiro, única via para garantir sua permanência, é projeto político e
intelectual; uma construção que depende essencialmente de nossa capacidade de construí-lo, teórica
e politicamente.
Na esperança de colaborarmos com esta construção, retomamos algumas questões que vêm
sendo debatidas há cerca de alguns anos e que, felizmente, parece ocupar cada vez mais as reflexões
sobre o tema. Tais podem ser assim expressas: qual a natureza do conhecimento sociológico? O
ensino da sociologia na escola média deve ser o ensino de uma ciência, como um conjunto de
conhecimentos acumulados sobre determinados fenômenos sociais? Ou o ensino da sociologia se
define por promover a emancipação dos sujeitos? Quais os melhores caminhos para operacionalizar
o ensino da disciplina? Tais perguntas dizem respeito diretamente às questões de ensino e suas
respostas são capazes de indicar distintos direcionamentos para este. É evidente que tais perguntas
podem ser apresentadas de outras formas, tanto quanto outros aspectos, além dos explicitados,
poderiam ser postos em foco, o mais importante sendo o que orienta tais questões. Com a primeira
pergunta, tentamos nos aproximar de uma reflexão sobre a epistemologia das ciências sociais, suas
distintas racionalidades, o tipo de conhecimento que têm produzido e a perspectiva sobre o social
que vêm construindo, como fundamentação de seu ensino na escola média. A segunda e a terceira
perguntas remetem-nos diretamente ao problema da justificativa, isto é, do sentido do ensino da
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sociologia. A última pergunta tem por finalidade oferecer orientações metodológicas e
possibilidades práticas para a atuação do docente na escola.
Não é nossa intenção, neste texto, darmos respostas às questões apresentadas, muito menos
seremos arrogantes ao ponto de almejarmos as respostas definitivas. Todos nós sabemos que estas
se tratarão de deliberações, fruto de uma construção coletiva, com base em investigações que ainda
se iniciam e de sinceros e bem-intencionados embates e acordos entre os que valorizam a sociologia
também como saber escolar. Para fomentar os debates é que expomos aqui algumas de nossas
reflexões acumuladas em felizes encontros 5.
Nossa contribuição se limitará a analisar a importância e as justificativas para o ensino da
disciplina, com o intuito de refletirmos sobre as condições de possibilidade para a permanência da
sociologia como disciplina na educação básica e, para tanto, propomos caminhos para a construção
teórica e política deste projeto. Este texto tem início com a discussão do que é seu foco principal, o
problema a legitimidade, após o que tentará demonstrar possibilidades para o que é sugerido como
nossa tarefa mais urgente, na esperança de contribuir para a justificação da disciplina. Para isso,
recorreremos à Teoria Social e aos resultados de pesquisa realizada na cidade de Campos dos
Goytacazes e à produção mais recente sobre o tema. Encerramos com considerações sobre as
incertezas que pairam sobre a disciplina, notadamente no que diz respeito ao ENEN. Ao
avançarmos nas respostas às questões, com sorte, estaremos enfrentando o tema da construção de
um projeto para a disciplina e alargando o consenso em torno dela, como disciplina legítima na
educação básica.
1. A legitimidade da disciplina como projeto político e científico
Algumas disciplinas, a exemplo da história e da geografia, para citarmos as mais próximas,
provavelmente devido à longa tradição no meio escolar, estão comparativamente bem estabelecidas;
possuem, como disciplinas escolares, um discurso construído sobre a realidade, relativamente aceito
e amplamente disponível para todos os professores. A sociologia conta com este agravante, qual
seja, construir um saber organizado que torne viável sua introdução no nível médio de ensino.
Parece mesmo que o estudo sobre o ensino tem tido maior atenção em outras áreas do que nas
ciências sociais, nas quais ainda carece de seu lugar institucional bem definido.
5 Os autores se viram juntos em desafios comuns de falar sobre o tema da sociologia na Escola em distintos eventos regionais e nacionais, em escolas e universidades. O I Encontro Nacional sobre o Ensino de sociologia na Educação Básica sedimentou a decisão do texto a quatro mãos.
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Weber nos alertara, porém, em seu “A ciência como vocação” (2002) que, na defesa
científica, as várias esferas de valor no mundo estão em conflito inconciliável entre si. Noutros
termos, atribuir legitimidade aos saberes sociológicos, como a outros saberes, é uma escolha que,
como tal, podemos sugerir, é objeto de construção por um projeto político e intelectual. Também,
considerar legítimo o ensino de sociologia na educação básica, tanto quanto a investigação das
questões de ensino em âmbito acadêmico, é uma opção coletiva. Não poucos tomaram esta decisão,
que ganhou realidade com sua inclusão nos currículos. O que tentamos demonstrar, porém, é que
sua permanência e seu melhor proveito ainda dependem do empenho no alargamento do debate em
torno da identidade da disciplina no contraste com as demais.
Habermas (1989; 2004) inspira-nos em seu pressuposto de que as pretensões de validade
para um certo argumento só podem ser obtidas em situações de discussão que são sua garantia para
a universalização. Assim, a vontade de fazer presente a sociologia como disciplina nas matrizes
curriculares há de se pautar em interesses passíveis de serem compartilhados de modo
comunicacional. Tomar a situação de fala ideal como uma direção normativa dos debates é imputar
a estes, como sua condição, a aposta na veracidade, na responsabilidade, na correção e na verdade
dos interlocutores e de seus postulados, então, confrontados, visando, na competência auto-crítica,
ao chamado consenso mais estável, isto é, aquele capaz de assegurar aos argumentos sua dose de
objetividade e de verdade propriamente dita. Assim, a ação em torno da defesa da disciplina
sociologia se dá por sua (re)construção discursiva, e não somente no interior do campo das ciências
sociais, entre os pares acadêmicos.
Disciplinas possuem fronteiras dadas, antes de tudo, por divisões políticas internas e, em se
tratando de ensino médio, é preciso criar essas diferenças e afirmar uma identidade para a sociologia
se desejamos sua presença nesta dimensão de ensino. Não se faz isso legitimamente se não na
comunicação intersubjetiva pela capacidade de se expressar as distintas experiências e aproximar
pontos de vista acerca das questões e polêmicas postas, tendo por suposto demandas comuns, no
caso, a consistência mesma do enunciado acerca da relevância da sociologia como disciplina na
educação básica. Disso decorre que, ao tentarmos justificar a presença da disciplina, precisamos
demonstrar em que exatamente ela se distingue de outras disciplinas afins – e isso a história recente,
ao tempo dos PCN’s (Parâmetros Curriculares Nacionais), nos ensinou 6.
2. Contribuições para a fundamentação teórico-metodológica do ensino da sociologia
6 Em tempo, não entraremos, por razões de escopo, na questão da interdisciplinaridade, apenas observamos que transformar os saberes científicos em saberes escolares implica algum grau de diferenciação – e criação de identidades – entre as diversas disciplinas.
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Para compreendermos a importância da sociologia como disciplina da matriz curricular do
Ensino Médio, deveremos, antes de tudo, compreender os objetivos que por meio dela se pretende
atingir. Esses objetivos podem ser divididos em duas classes: os que são específicos para a
disciplina e os que não se restringem a ela, indo ao encontro dos que foram traçados para o Ensino
Médio a partir da Lei n.º. 9.394, de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional).
Como foi dito, muitas justificativas normalmente apresentadas para a inclusão da disciplina
não fazem mais que reproduzir, de forma vaga, o exposto na lei ou os efeitos que supostamente
podemos observar com o ensino da disciplina.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, determina que o objetivo do Ensino
Médio está expresso no vínculo dessa etapa da educação escolar com o mundo do trabalho, a prática
social, à construção da cidadania. Pretende-se que a disciplina esteja orientada para a “preparação
básica para o trabalho” e para o “exercício da cidadania”. De fato, a sociologia pode oferecer uma
contribuição no que tange à “compreensão das práticas sociais”, à “preparação básica para o
trabalho” e ao “exercício da cidadania”. Ocorre que tais objetivos são gerais para o conjunto das
disciplinas do ensino médio e não nos permitem uma base sólida, ou não são suficientes, para
justificarmos a inclusão da sociologia nesta etapa da educação básica. Vejamos o que diz a LDB,
alterada pela Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008, que estabelece a obrigatoriedade do ensino
de sociologia e de filosofia na educação básica:
Art. 36. O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo e as seguintes diretrizes:
I - destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania; II - adotará metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a iniciativa dos estudantes; III - será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das disponibilidades da instituição. IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio.
Verificamos, a partir da leitura do excerto do artigo reproduzido acima, que não há nenhuma
afirmação de princípio ou fundamento apresentado para se justificar a presença da disciplina. É nada
mais que uma determinação normativa e procedimental.
Que a sociologia pode contribuir para ambas as metas, quais sejam, desenvolver uma
consciência crítica e cidadã, não se deve ter dúvida. Mas a pergunta que se pode fazer aqui é se isso
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é suficiente para justificar a disciplina. Como dissemos, educar para uma consciência crítica e para a
cidadania é objetivo da escola, portanto, de todas as disciplinas. Voltamos ao ponto de partida.
Ao que parece, levando-se em conta tais argumentos, a disciplina teria um caráter político
incontestável. E, de fato, para uma parcela dos professores de sociologia no ensino médio, ensinar a
disciplina confunde-se com uma forma de militância com vistas à emancipação. Entretanto,
conforme nos indica Santos (2002), para outros professores do ensino médio, o ensino da sociologia
atenderia ao objetivo de uma formação científica, a ser somada a outras tantas que compõem o
preparo de nossos jovens para a vida adulta em suas várias dimensões na sociedade moderna.
Portanto, o ensino da disciplina é associado ao ensino de uma ciência, com seu objeto, seus
métodos, suas teorias, seu conhecimento acumulado, enfim.
A questão permanece: nossa disciplina é obrigatória, mas porque ela é relevante? Por agora,
retomemos nosso objetivo inicial, que é tão somente estimularmos a reflexão sobre a construção de
um projeto viável para a disciplina. Neste, consideramos essencial o recurso à própria Teoria Social.
2.1. A teoria social como ferramenta no ensino de sociologia e na construção de sua
metodologia: um breve exercício a partir dos clássicos
Qual o caráter do ensino de sociologia no ensino médio? O que significa dizer que o ensino
de sociologia, na escola média, contribuiria para a cidadania? Vejamos o que Pierre Bourdieu, em
Lições da Aula (1994) nos diz:
Sem dúvida, o sociólogo não é mais o árbitro imparcial ou o espectador divino, o único a dizer onde está a verdade – ou, para falar nos termos do senso comum, que tem razão –, e isso leva a identificar a objetividade a uma distribuição ostensivamente eqüitativa dos erros e das razões. Mas o sociólogo é aquele que se esforça por dizer a verdade das lutas que têm como objeto - entre outras coisas – a verdade.(...) Cabe-lhe construir um modelo verdadeiro das lutas pela imposição da representação verdadeira da realidade (...). (Bourdieu, 1994, p 13)
É para nós cara a percepção de Pierre Bourdieu de que uma aula de sociologia há de ser a
expressão da condição do sociólogo enquanto intelectual; condição definida necessariamente pelo
status de cientista cujo objeto é o campo social e a posição dos atores sociais no infindo processo,
cuja base é a interação social, de atualizar este campo – o que pode significar, ainda, sua
transformação, ao mesmo tempo em que, nele, é também formado. Tal concepção que vai ao
encontro de sua definição de habitus 7 parece-nos útil em nossa reflexão num duplo sentido.
7 Podemos definir habitus como “um conhecimento adquirido e também um haver , um capital (...), o habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural – mas sim o de um agente em ação (...). espécie de sentido do jogo que não tem necessidade de raciocinar para se orientar e se situar de maneira racional num espaço”. Cf. Bourdieu, O poder simbólico, p. 61-62.
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Primeiramente, a consideração acima autoriza-nos a dizer que uma aula de sociologia
deveria permitir – e mesmo estimular – uma reflexão sobre a própria aula de sociologia em sua
pretensão de eleger temas e conceitos – uns e não outros – para se trabalhar em sala de aula. Um
professor irremediavelmente faz escolhas, pelas quais há de ser responsável, no modo como
transmite um saber e produz outros (sim, produz!). Damos aulas e aderimos a valores e a
instituições num só tempo. Na impossibilidade de negarmos tal relação, um compromisso básico
assumido pelo docente e por sua comunidade é o de desconfiar de seu saber, com certa
regularidade, para que se possam diferenciar as aulas de sociologia das pregações dogmáticas. No
mínimo, a aula de sociologia é o lócus da dúvida e das buscas coletivas de novas respostas, na
proposição de desenvolver nos alunos a disposição para a prática do diálogo.
Trata-se, portanto, de levar ao centro da reflexão as lutas pelo enunciado do conhecimento
verdadeiro. A consideração de sua própria inserção social e dos que, não necessariamente em
posição de igualdade, participam do mesmo campo de relações. Trata-se mesmo de uma espécie de
tomada de consciência. Um projeto que somente se realiza nos parâmetros de uma racionalidade
científica, o que não implica a crença na universalidade do saber científico. E que se efetiva na
afirmação dos interlocutores, os alunos incluídos, da condição de sujeitos – o que implica na atenção
crítica à imposição dogmática.
A intersubjetividade é condição da ciência. Também, das democracias, em seu ideário.
Talvez, seja este um valor a orientar o próprio ensino da disciplina, qual seja, a disciplina não apenas
ofertaria conhecimentos sobre a convivência intersubjetiva nas distintas configurações sociais mas
também ensaiaria, de modo mais sistemático atitudes (a disciplina, pois) propícias à geração de
novas práticas de convívio social, menos violentas, do ponto de vista objetivo e simbólico. Difícil?
Sim.
Num segundo sentido, Bourdieu inspira-nos a fazer das aulas de sociologia um exercício
constante do que a filosofia e a antropologia chamaram de desnaturalização e estranhamento em
face das atitudes cotidianas e das instituições sociais8. Referimo-nos a um mundo que é dotado de
significados que somente permanecem porque nestes acreditamos, como comunidade de humanos.
Nossos clássicos, caso eleitos para sustentarem as aulas e permitirem a comunicação entre-pares,
onde quer que estes dêem aulas, oferecem ricas ferramentas conceituais para processos cognitivos
de desnaturalização do mundo.
Marx, em suas análises acerca da alienação do trabalhador, gerada num modo determinado
de organizar as relações sociais, de trabalho e de propriedade, caracterizado, de um lado, pela venda
8 Estas questões, no âmbito do ensino da sociologia na escola média, foram objeto de análise minuciosa nas Orientações Curriculares Nacionais (OCN), redigidas por Amaury Cesar Moraes, Elisabeth Guimarães e Nelson Dacio Tomazi.
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da força de trabalho em condições de concorrência as mais injustas no que concerne às negociações
entre assalariado e donos do investimento financeiro e das tecnologias e – de forma correlacionada -
pela insaciável sede de acumulação de capital, necessária à reprodução estrutural, que move as
sociedades burguesas, com ônus de todas as espécies, é um autor de vasto potencial analítico.
Podendo orientar os debates mais atuais sobre aspectos concernentes à pirâmide da desigualdade – e
dos valores desiguais das ocupações no mercado de trabalho – no país e no mundo, em face da
concentração de renda, Marx, também, autoriza a abordagem da questão ambiental e dos riscos mais
incidentes, não casualmente, sobre as populações mais pobres. A partir dele, no diálogo com a
história, pode-se propor ainda o enfoque nos movimentos sociais, do século 19 e de hoje, com
destaque às lutas sociais no Brasil contemporâneo. A percepção de nossa inserção em relações
desumanizadoras, de exploração e dominação, e as contingências de nossa condição de classe, pode
permitir uma compreensão importante do mundo social por parte do aluno. Tendemos, contudo, a
supor que haverá perdas para os alunos em seu direito de acesso a um clássico do pensamento
moderno se o professor optar por valorizar mais nas aulas a solução marxista na análise da
economia capitalista de seu tempo do que as principais perguntas postas por Marx no conjunto de
sua obra, até hoje a produzir novas respostas.
Durkheim também pode ser lembrado em sala de aula. O sociólogo francês expõe, dentre
outros, a problemática da solidariedade moral, das representações sociais e da anomia, entendida
como ausência de normas ou de efetiva regulamentação por parte das instituições sociais. Mais do
que discutir entre alunos da educação básica as contendas da sociologia funcionalista, há de se
atentar, por exemplo, para o fato de que os seres humanos necessitam de orientações morais em suas
condutas, quaisquer que sejam elas. Desta necessidade, nasce a sociedade e suas instituições.
Conflitos dão-se na contestação de tais ordens morais, porém, visando a criar novas ordens – quer
disto os humanos tenham plena consciência ou não - do contrário, é a própria sociedade – e não
apenas suas elites ou grupos dominantes (categorias menos importantes para Durkheim) – que
experimenta a sua dissolução. Noutros termos, conflitos convivem com a ordem e recriam
solidariedades morais – o que há de ser explicado ao aluno é que isto nada diz sobre ser uma ordem
moral boa ou má. Poderá ser péssima. Ou altamente criativa e geradora de relações sociais
libertadoras. Neste item, é sugestivo o debate da violência urbana e do assim denominado poder
paralelo. Também, do trabalho informal e da geração de renda. Pode-se retomar o tema da coerção
social e das pressões sociais sobre comportamentos individuais e o próprio processo de
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individualização. Por que não, então, permitir ao aluno e à aluna questionar os papéis sociais que
lhes são atribuídos? 9
Weber, por sua vez, como sociólogo dos valores com os quais as pessoas e grupos criam e
legitimam a vida em todas as suas dimensões, pode ser também pelo docente relido, permitindo que
se pergunte aos alunos o que é importante para eles e por quê. Também, que tipo de pessoa, aula,
professor, pais, filhos, escola, lazer, profissão, cidade, país, governo, político eles consideram
desejáveis. Quais tipos de relações sociais são para eles indesejáveis? Como eles vêem os governos
nas sociedades? Por que as pessoas votam num político e não noutro? O que pensariam ao votar? Se
não pensam exatamente sobre isto, ainda assim, o que as faz escolher um nome no meio de outros?
Elas votam naquele que mora em seu bairro? Naquele que os parentes votam? Mas, por quê? Elas
votam no que garantirá algo de que precisam material e urgentemente? Elas votam no candidato que
garantiu a ambulância, por exemplo, de que precisaram numa situação de desespero? Elas votam em
quem admiram em função de atributos tais como a aparência e o modo de falar? Votam porque
gostam do sujeito e não importa o motivo. Será que escolhem de um modo mais calculado: quem
não tirará meu filho do emprego que ele conseguiu na Prefeitura? Será que estudam o perfil do
candidato, analisam sua trajetória e plataforma política? Temos aqui, na análise de distintas
racionalidades, sugestões de aulas sobre a sociologia weberiana dos tipos de dominação legítimas.
Nestas, seria bastante pertinente o debate da difícil apartação entre o público e o privado no Estado
brasileiro, a partir do tipo ideal weberiano de patrimonialismo, por exemplo, um diálogo pertinente
que autores brasileiros renomados trilharam.
Os clássicos, ou os assim considerados, entre outros cientistas sociais importantes para a
constituição do campo, podem ser a fonte a partir da qual construiremos um discurso apropriado,
razoável, e convincente sobre a presença do saber sociológico nas escolas médias. Entretanto, não se
trata aqui de advogar pela leitura dos clássicos pelos alunos do ensino médio. Isso, por distintas
razões que não nos cabe refletir aqui, pode ter algum sentido em outras áreas, como a filosofia,
porém entendemos que o importante não é escolhermos entre um ensino com ou sem a presença dos
9 Em debates havidos no I Encontro Estadual de sociologia no Ensino Médio, promovido em 2008 pela Faculdade de Educação da UFRJ, uma das professoras participantes, Gabriela de Souza Honorato, narrava a demanda dos alunos por debates acerca da sexualidade e de como isto a espantou de início. Sabemos que o espanto há de ser minimizado dada a constatação da exposição permanente dos adolescentes à erotização da sociedade. Noutro aspecto, quando não se tematizava a sexualidade nada se garantia em termos de experiências de vida mais harmônicas, haja vista nossa sociedade marcada pela violência doméstica com o maior ônus sobre a mulher jovem. De fato, a sociologia não há de substituir a educação sexual, sobretudo, porque os conflitos entre humanos e/ou grupos não se restringem a esta dimensão nem podem ser explicados isoladamente. Exatamente por isso, os debates de gênero podem ser suscitados, com sensibilidade, aqui. A lembrança de Durkheim pode surgir na abordagem, por exemplo, das expectativas sociais sobre os papéis feminino e masculino em sociedade, sobre as resistências aos questionamentos de tais papéis e sobre os mecanismos de punição aos desviantes. Defendemos que a única maneira da sociologia fazer a boa diferença nestes embates é se o professor puder conduzir os debates seguro em estudos e conceitos que permitam escapar a um senso comum que tenderia a subestimar o potencial analítico acumulado pelas ciências sociais.
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clássicos, mas como eles ou outros serão utilizados; isto é, precisamos desenvolver a mediação
necessária entre o saber produzido pela academia e o universo escolar. Mediação pedagógica que
depende de esforço investigativo e produção criativa, bem como da compreensão que o rigor
teórico não se confunde com ensino teórico. Espécie de cláusula pétrea do estatuto científico, o que
normalmente se afirma como rigor teórico tem sido no mais das vezes disfarce para um ensino
quase totalmente conceitual, teórico, em geral, dogmático. É neste ponto que mais se fazem
necessárias as pesquisas metodológicas para o ensino da sociologia na educação básica.
No entanto, insistimos, o fim não é pura e simplesmente o conhecimento dos clássicos, de
seus conceitos e de suas teorias, no sentido de contato com o conteúdo de suas obras; ao contrário,
as obras do pensamento sociológico, elas próprias, tratadas como já mediações para o saber acerca
do mundo social. O fim, portanto, é o tipo de visão ou atitude congnitiva que desejamos que nossos
jovens alunos desenvolvam.
3. Por um acréscimo de imaginação sociológica acerca do ensino da sociologia.
Charles Wright Mills escreveu, em A Imaginação Sociológica (1972), que a principal tarefa
intelectual e política do cientista social era deixar claros os elementos da indiferença e da
inquietação reinantes. Para Mills, ameaças a valores estimados numa dada coletividade levariam à
experiência de uma crise, vivida em plano individual, entretanto, a ausência de consciência desses
valores comumente aceitos levaria à indiferença; mas, até a indiferença poderia ser produzida por
um grau de inquietação insuportável para aquele que não é capaz de sequer pensar sobre eles a fim
de fazer as escolhas possíveis. Nossa época, afirmou Mills, seria uma época de indiferença e
inquietação. E é contra a indiferença e a inquietação capaz de paralisar o pensamento e a ação, ante
a afirmação de ou as ameaças a valores, que atuaria a sociologia. Num exercício de reflexão que
permitiria a tomada de consciência sobre a nossa condição, ao mesmo tempo em que sobre a
condição dos homens e das mulheres de nosso tempo (um exercício constante, para Mills), a
sociologia nos permitiria uma maior compreensão de nossa própria existência relacionada à
sociedade da qual participamos.
Para Mills, a base do conhecimento sociológico é a crítica, esta entendida não como simples
negação, mas como imaginação, como a razão e a criatividade em ação. O exercício de
compreender relações e “identificar ligações entre uma grande variedade de ambientes de pequena
escala”, como ele mesmo define a imaginação sociológica. Desenvolvê-la em nossos alunos seria
desenvolver neles a capacidade por enxergar relações entre suas vidas particulares e as questões
públicas, a biografia e a história, o indivíduo e a sociedade. E como os horizontes de suas vidas, suas
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possibilidades objetivas de ação, na relação com a estrutura social, que nos constrange e nos liberta.
Trata-se de uma introdução à compreensão também de nossos limites e potencialidades, e, também,
dos limites e possibilidades dos outros.
A nosso ver, a crítica de que fala Mills se realizaria exatamente no momento em que as
adesões primárias, de que nos fala Pierre Bourdieu, em sua aula já referida, fossem percebidas
exatamente pelo que são: adesões a instituições e a valores, nunca naturais; nunca partes de uma
realidade sem sujeito, porém como condicionados pelas experiências históricas humanas que, ainda
que não sigam leis tal como num dia se acreditou, apontam regularidades, permanências e, em suas
reconfigurações também, apontam para descontinuidades e rupturas. Nas palavras de Bourdieu, se
os que tem algo a ver com a ordem estabelecida, seja lá o que for, não gostam nem um pouco da sociologia, é porque ela introduz uma liberdade em relação à adesão primária que faz com que a própria conformidade assuma um ar de heresia ou de ironia.
O professor de sociologia não seria, neste sentido, nem um árbitro imparcial da realidade
humana, nem alguém que fala senão a partir de uma posição que permite conhecer. Sua fala se dá a
partir da posição da ciência e é a partir dela que permite a crítica ao estabelecido como verdade
dada, como conhecimento construído, posição que, ao se revelar aos seus próprios alunos, permite-
lhes que assumam, eles próprios, a condição de sujeitos do conhecimento e sujeitos históricos.
Trata-se, portanto, de propiciar a aprendizagem da imaginação sociológica pela experiência de
imaginação sociológica. É aí que as condições da crítica se farão presentes. A imaginação
sociológica é exatamente o tipo de aprendizagem que pretendemos desenvolver em nossos alunos
com o ensino de sociologia.
O saber científico acumulado tem um importante papel a desempenhar neste ensino. Mas de
modo algum é um fim em si mesmo. O ensino da sociologia é relevante exatamente porque pode
revelar aos nossos alunos as intrincadas relações nas quais estão inseridos e como essa pertença
exerce um profundo efeito sobre sua identidade, suas expectativas de vida, sua visão de mundo, em
poucas palavras, sobre quem ele é e qual o lugar que ocupa na estrutura social. Logo, nada mais
equivocado do que negar a importância do conteúdo em si mesmo. Mas este conhecimento não será
aprendido por meio da mera transmissão de informação ao aluno – e de sua memorização –, mas, ao
contrário, só se realizará realmente se houver a aprendizagem de um tipo especial de raciocínio, uma
verdadeira mudança de atitude cognitiva por parte do aluno. Somente assim o conhecimento
científico acumulado passará a ter sentido para o aluno e ele poderá, de fato, pensar com o
conhecimento das ciências sociais.
Sobre a questão se é possível uma aprendizagem significativa da percepção sociológica por
um ensino somente expositivo de conceitos e teorias, sem que o professor tenha tido em sua
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formação mesma a experiência do modo sociológico de perceber o mundo, cremos já ter respondido
que não. E nos valemos do argumento de que a aprendizagem de formas de pensamento somente
são efetivas se os alunos têm contato direto com especialistas da área em questão. O papel do
especialista torna-se muito importante neste caso, a não ser que o objetivo do ensino restrinja-se à
transmissão pura e simples de conteúdos conceituais, o que aqui recusamos. A experiência tem
demonstrado que o trabalho com a sociologia no nível médio de ensino causa grande impacto na
mente dos alunos, o que faz com que a matéria precise de tempo para ser bem trabalhada e digerida.
Sabemos, entretanto, que ainda não são os formados em ciências sociais em nível superior a
totalidade, sequer a maioria, dos professores que respondem hoje pela sociologia em sala de aula.
Vemos isto, contudo, como algo a ser progressivamente conquistado sob pena de se comprometer a
qualidade da sociologia a ser ministrada, por mais auto-didatas que os professores brasileiros
tenham aprendido a ser 10.
A pesquisa de caráter extensionista realizada no município de Campos dos Goytavazes, ao
norte do Estado do Rio de Janeiro, intitulada “filosofia e sociologia nas escolas estaduais de ensino
médio da região norte-fluminense I: capacitação e atualização de docentes” 11, mostra-nos, na
codificação feita para as respostas livremente dadas sobre a importância das disciplinas de filosofia
e sociologia na Escola, o encaminhamento do raciocínio da maioria dos professores no sentido de
um afastamento do lugar comum – formação para a cidadania – em vistas à aproximação de uma
perspectiva que conceberia ambas as disciplinas como relevantes na compreensão da existência
humana e da vida social, respectivamente (50%) e, em segundo lugar, no desenvolvimento do
pensamento autônomo (25%).
I- Sobre a importância das disciplinas de filosofia e sociologia na Escola 12
10 Reconhecemos que o problema da formação docente é grave e de difícil solução. Temos consciência de distorções ainda mais graves, como no caso da docência em sociologia de profissionais formados em ciências naturais e exatas, sem qualquer qualificação em ciências sociais, de que nível for. No entanto, opor-se a que professores formados em outras áreas lecionem a disciplina pode ser ideologicamente relevante, porém de pouco efeito prático, à medida que esbarramos em questões complicadas relativas a direitos adquiridos e competências exclusivas dos entes federativos. Neste sentido pactuamos a opção de vários colegas, incluindo membros da Comissão de Ensino de SBS, quanto à necessidade de formação adequada dos professores que atualmente lecionam a disciplinas, ou que a lecionarão a partir de 2009, sem prejuízo da luta política para a alteração deste estado de coisas, a longo prazo. Trata-se, a nosso ver, de assumirmos a responsabilidade integral pelo processo de (re)inclusão da disciplina, e de sua legitimação. 11 A pesquisa-extensão (Proex-Uenf), iniciada no ano de 2007, congrega hoje os seguintes professores: Dr. Júlio César Ramos Esteves (Coord.); Dr. Dalton José Alves; Dra. Adelia Maria Miglievich Ribeiro; os sociólogos Renata de Lourdes Azevedo Saul e Virgílio de Lima Pereira; e os estudantes de Ciências Sociais, Dante Mendonça Duarte; Andreza Barreto Leitão e Andréia da Conceição Trindade da Silva. Há de se registrar o pioneirismo da iniciativa do projeto na região, a reunir as áreas de filosofia e de sociologia, contando, também, com o apoio da SEAF (Sociedade de Atividades Filosóficas) e da APSERJ (Associação profissional dos Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro), nas metas de traçar o diagnóstico do ensino das disciplinas nas escolas da região e promover cursos de atualização e seminários com os professores do ensino médio em Campos dos Goytacazes/RJ. Pesquisa que tem sido complementada, a partir de 2009, pelo excelente trabalho investigativo desenvolvido na UFF, dirigido pelo Dr. Eugênio Soares Carlos de Lemos. 12 A pergunta para o professor entrevistado era: Sobre a importância das disciplinas de filosofia e sociologia na Escola, o que você gostaria de ressaltar?
26
50% das respostas válidas para esta questão ressaltam a importância destas disciplinas relacionando-as à melhor compreensão da existência e da vida social que elas possuem a capacidade de proporcionar ao aluno; 8,3% das respostas válidas para esta questão ressaltam a importância destas disciplinas relacionando-as ao desenvolvimento do exercício pleno da cidadania por parte do aluno; 25% das respostas válidas para esta questão ressaltam a importância destas disciplinas relacionando-as ao desenvolvimento da capacidade de reflexão, senso crítico e pensamento independente por parte do aluno;
6,5% das respostas válidas para esta questão ressaltam ainda a necessidade de que estas disciplinas façam parte da grade curricular do Ensino Fundamental. 10,2% das respostas válidas para esta questão ressaltam ainda outras diferentes. Fonte: Esteves; Alves; Ribeiro Miglievich; Saul et. al. “filosofia e sociologia nas escolas estaduais de ensino médio da região norte-fluminense I: capacitação e atualização de docentes”. UENF.PROEX, 2009.
A discussão iniciada anteriormente e as respostas dos professores aqui retratadas que
remetem à justificativa, à importância e à especificidade da sociologia falam também de 10,2% de
respostas válidas que não puderam, contudo, ser desmembradas por sua diversidade. Talvez, isto
nos revele que a questão a respeito da legitimidade da disciplina seja mais cobrada dos docentes do
que fomos capazes de supor. Ao menos, é possível pensar que os alunos inquiram o professor sobre
isto. E que o professor mesmo se faça tal pergunta no cotidiano escolar.
A especificidade da disciplina pode ser encontrada em sua abordagem especial – que
nenhuma outra disciplina promoveria – e/ou em seus conteúdos – o quadro teórico-conceitual de
nossa ciência. Ambas as percepções atentam à séria necessidade da construção de um plano
curricular que dê sentido ao ensino de sociologia. Para além do ultrapassado debate acerca de planos
de curso que tendem a minimizar as competências do professor na condução do processo ensino-
aprendizagem em cada singular e dinâmico contexto da sala de aula, parece importante lembrar que
a tarefa de definir um programa curricular é imperativa e se não for feita pelos cientistas sociais
caberá aos pedagogos, psicopedagogos e a outros especialistas. Portanto, numa frase, é desejável
compreensão da
vida social
desenvolviment
o da cidadania
desenvolviment
o da capacidade
de reflexão
necessidade de
presença no E.F.
outras
27
que a comunidade das ciências sociais no diálogo com os professores em sala de aula tragam a si a
responsabilidade da construção de um projeto para a disciplina.
Retomando Bourdieu, o conhecimento científico dispõe do poder de libertar os dominados
dos dispositivos da dominação na medida em que novos conhecimentos produzidos contribuem
para a quebra do efetivo monopólio de um único grupo sobre a determinação das representações
sobre a realidade. Assim, o conhecimento sociológico em sua dimensão científica também comporta
uma dimensão política, pois que permite ao indivíduo a compreensão do sistema de dispositivos que
define uma tendência para a sua conduta, pela delimitação de seus próprios horizontes, valores e
representações acerca da vida social. Ao concordarmos com tal perspectiva, uma aula de sociologia,
portanto, que aspire a participar do esforço para a emancipação humana e social, tanto quanto isso
for possível, deve permitir revelar as posições e mecanismos sociais que perpassam e estruturam as
relações sociais, a começar pela própria escola e a sala de aula. Talvez isso pareça “óbvio” para um
cientista social, mas nos perguntamos, então, por que alguns professores consideram que a
consciência crítica de seus alunos é função do quanto conseguem reproduzir os conteúdos de
autores clássicos, por exemplo, ou de discursos críticos ao capitalismo? A reprodução em si, que é
diferente de reflexão crítica, afasta-se de todo intento de imaginação sociológica.
A aula de sociologia, numa proposta bourdieusiana, é um espaço de investigação, estudo e
reflexão sobre as condições de produção do próprio conhecimento e das práticas discursivas,
compreendidas como definidoras do real. Um espaço no qual o aluno seria tido por sujeito inserido,
tanto quanto o professor de sociologia, no que Bourdieu definiu como um campo, isto é, um
conjunto coerente de princípios estruturantes das posições sociais. A partir da reflexão das próprias
relações estabelecidas na situação de aprendizagem, que não se restringem a sala de aula, porém ela
mesma um lugar de um contexto social global, se construiria o conhecimento sociológico do social
e aí estariam sendo aperfeiçoadas as condições políticas da emancipação. Neste sentido, falar numa
ciência crítica seria redundância, como falar num ensino de sociologia crítica – o mesmo valendo
para distinguir um aspecto científico e outro político para seu ensino.
O retorno a importantes autores das ciências sociais são ferramentas para os docentes. Não
estamos sugerindo uma aula burocrática a partir de Bourdieu nem a abolição da autoridade do
professor, numa espécie de rogerianismo simplificador. O que está sendo sugerido aqui é que o
caráter político do ensino de sociologia está justamente em permitir que o aluno compreenda sua
inserção no meio social e, para tal, o conhecimento mais especializado é o das ciências sociais que
lhe permite desenvolver o pensar sociológico, pelo qual desvele a si próprio como ser social, sujeito
reprodutor e transformador de sua própria sociedade. Se pretendemos que o ensino da disciplina
contribua para a emancipação humana – esta pergunta precisará ser respondida – comecemos por
28
incluir o aluno como sujeito participante e crítico dos processos de produção da verdade científica, o
que significa que uma aula de sociologia não pode se permitir ser uma explanação de conceitos
acabados ou dogmas.
4. Dimensões do ensino de sociologia e suas relações com a finalidade de sua presença na educação básica
Diversos conteúdos da disciplina como, por exemplo, sobre a participação política e o
Estado, mesmo na dimensão da informação, também são importantes para a (possível) contribuição
da disciplina à formação de cidadãos. Além desses conteúdos mais diretamente relacionados à
formação para a cidadania, devemos lembrar que conteúdos que permitem refletir sobre a questão
de gênero, compreender a diversidade cultural e a questão do etnocentrismo e da alteridade, ou
analisar a desigualdade também têm relevância política. E ainda no nível da informação deveríamos
incluir conhecimentos sobre os direitos fundamentais, presentes em nossa Constituição, tanto quanto
sobre a efetividade desses direitos na sociedade brasileira. No entanto, mais uma vez lembremos
Bourdieu quando sugere que o sociólogo – também enquanto professor de sociologia – não pode
falar a não ser a partir da posição da ciência; não para afirmar verdades inquestionáveis, mas para
revelar posições, relações, interesses e dispositivos de dominação. Este é o caráter político da
disciplina, que se manifesta mais fortemente numa mudança de consciência e de atitude cognitiva
por parte do aluno do que na informação pura e simples. É por seu caráter científico particular que a
disciplina ganha relevância política.
O ensino da sociologia, como sugere as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio (2008, p. 119), participa da alfabetização científica dos jovens educandos do ensino médio, o
que está relacionado à sociologia em sua condição de ciência, pois afinal ela possui objeto, teorias e
métodos que permitem desvendar a realidade e ir além das aparências dos fenômenos. A recusa ao
caráter científico do saber sociológico perde sua força argumentativa assim como a acusação de um
suposto grau de complexidade muito elevado para nosso aluno na medida em que podemos fazer da
pesquisa, metodologicamente informada, também uma estratégia didática. Como bem afirma as
OCN’s, se aos alunos do ensino médio é garantido o direito de aprenderem sobre fenômenos
naturais invisíveis aos olhos, porque não teriam o direito a aprender sobre o que veem todos os dias?
E, como vimos, este caráter científico da disciplina está relacionado ao seu caráter político.
Mas que o caráter político da disciplina não faça sombra ao fato de que o conhecimento
oferecido pela disciplina em si é importante. Porque integra o saber produzido no processo
civilizador das sociedades modernas e deve estar acessível a todos os membros de nossa sociedade.
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Porque permite que o aluno compreenda fenômenos sociais, dos quais participa diretamente ou que
tem relevância para sua vida individual ou familiar, pois, em muitos casos, fenômenos de seu
próprio cotidiano. Este caráter educacional da sociologia é um dos elementos essenciais para se
conhecer a realidade em que vivemos, uma vez que a educação escolar serve para a adaptação ao
mundo e também para a mudança. Um processo civilizatório, repleto de tensões, humanizador.
Quiçá mais libertador?
A sociologia tem, portanto, um conjunto de conhecimentos e de práticas científicas que
devem fazer parte do cabedal de todos os indivíduos para que possam pensar a sua vida e a
sociedade que compõem. Educar é transmitir conhecimentos e valores necessários a existência de
uma sociedade, tanto quanto revelar as condições de produção dos mesmos e os processos de
dominação que perpetuam e que exigem mudança. Além do caráter político e científico, a disciplina
teria um caráter educacional que se expressaria, portanto, tal qual noutras disciplinas do ensino
médio, na socialização do aluno num conhecimento acumulado pelas ciências sociais – e pela
tradição das Humanidades – acerca da realidade social.
Compreender estes três aspectos ou dimensões (científica, política, educacional) do ensino
da sociologia, como demonstra as OCN’s, e a tensão interessante que existe entre elas é importante
para que a disciplina não seja transformada em algo quase puramente técnico ou num ensino
bacharelesco ou em aulas de politização, quase panfletárias. Em outro lugar já foi apresentado uma
sugestão interessante sobre o ensino de sociologia, oferecida por Dumont (Sarandy, 2004).
Ressaltamos, por acréscimo, que a percepção sociológica de que trata Dumont não é uma habilidade
inata, ao contrário, “não é fácil de ser comunicada a um livre cidadão do Estado moderno que não a
conhecesse” (1992, p.52) ainda mais considerando o predomínio do individualismo que marca o
projeto da Modernidade. Vejamos em suas próprias palavras:
“A idéia que fazemos da sociedade permanece sendo artificial enquanto, como a palavra convida a interpretar, a tomemos como uma espécie de associação em que o indivíduo totalmente constituído se empenhasse de forma voluntária num objetivo determinado, como que por uma espécie de contrato. Pensemos, sobretudo, na criança lentamente levada à humanidade pela educação familiar, pela apren-dizagem da linguagem e da moral, pelo ensino que a faz participar do patrimônio comum - compreendidos aí, entre nós, elementos que a humanidade inteira ignorava há menos de um século. Onde estaria a humanidade desse homem, onde sua inteligência, sem esse adestramento, uma criação, para falar mais propriamente, que toda sociedade compartilha de algum modo com seus membros, que seriam seus agentes concretos?”. (1997, p. 53) Como meio sistemático de superarmos os estreitos limites de visão que a existência social
produz em todos os seus membros, Dumont aponta o ensino da sociologia como fundamental.
Ainda, segundo ele,
“a apercepção sociológica do homem pode produzir-se espontaneamente na sociedade moderna em certas experiências: no exército, no partido político e em toda coletividade fortemente unida (...). No
30
plano do ensino essa apercepção deveria ser o bê-á-bá da sociologia, mas já aludi ao fato de que a sociologia, enquanto estudo apenas da sociedade moderna, freqüentemente faz dela uma questão de economia. Não se pode aqui deixar de sublinhar os méritos da etnologia como disciplina Sociológica. Não se concebe, em nossos dias, um trabalho e mesmo um ensino etnológico que não provoque a apercepção em questão. O encanto, eu diria quase a fascinação, que Marcel Mauss exercia sobre a maior parte de seus alunos e ouvintes devia-se antes de tudo a esse aspecto de seu ensino”. (1997, p. 55)
Nosso intuito é argumentarmos que a aprendizagem da percepção sociológica, o fim
almejado pelo que Mills denominou por imaginação sociológica, deve ser entendida exatamente
assim: trata-se de uma aprendizagem, necessária e legítima, pois que parte do patrimônio cultural
humano; aprendizagem que não é fruto tão somente do conhecimento cognitivo de teorias sociais,
pois se dá por meio do contato cognitivo do aluno com o pensar sociológico, por diferentes recursos
que permitam a mediação do conhecimento das ciências sociais e que desenvolvam em nossos
alunos sua imaginação sociológica, sua compreensão sobre as relações sociais nas quais estão
inseridos como sujeitos históricos. Trata-se de uma apropriação, por parte dos educandos, de um
modo de pensar distinto sobre a realidade humana, não pela memorização, pura e simples, de um ou
mais quadros teóricos advindos de uma escola de pensamento, mas pelo contato com diferentes
conceitos, e seus quadros teóricos, que servem como ferramentas da pesquisa sociológica, de seus
métodos e da construção de seus resultados.
Delegando a outra oportunidade a discussão sobre as questões de método, apenas
ressaltamos que seja qual for o conteúdo, ele será sempre um meio para se atingir o fim: o
desenvolvimento da perspectiva e da imaginação sociológicas, mas que diversos recursos didáticos
devem ser investigados, testados e experimentados pelo professor. Nesse sentido, o objetivo do
ensino de sociologia como, aliás, deveria ser o de qualquer ciência, é proporcionar a aprendizagem
do modo próprio de pensar de uma área do saber aliada à compreensão de sua historicidade e do
caráter provisório do conhecimento – expressões da dinâmica e complexidade da vida.
Considerações finais
À pergunta: já podemos nós, cientistas sociais, nos aquietarmos quanto à permanência da
sociologia como disciplina do ensino médio? Pensamos que a resposta a tal questão ainda é
negativa. Como contribuição à construção da disciplina, neste texto buscamos afirmar que
precisamente os três objetivos gerais para o ensino da sociologia – (1) contribuição para a
construção da cidadania por meio da formação dos cidadãos; (2) preparação básica para o trabalho
por meio do entendimento das novas formas de organização do trabalho e da produção em tempos
de globalização, pela capacitação dos indivíduos para a leitura do mundo social do qual fazem parte;
31
(3) promoção de uma compreensão sociológica da realidade na qual estamos inseridos
especialmente pelo desenvolvimento de seu modo específico de pensar, em que seja desenvolvida a
percepção sociológica –, constitui a preocupação fundamental a nortear o ensino da sociologia e a
justificar a sua inclusão na grade curricular do ensino médio.
Não esperamos ter resolvido os problemas apresentados até aqui, mas tão somente provocar
o debate, pois consideramos que somente se seguirmos na direção de elaborarmos teoricamente,
discursivamente, um projeto para a disciplina, teremos êxito na legitimação da disciplina nos
currículos da educação básica. A indiferença para com este esforço pode, ao contrário, trair uma
presunção pouco útil num momento de afirmação do olhar sociológico como necessário e relevante
na formação de nossa população jovem: pode espalhar a crença de que a sociologia, acima do bem e
do mal, é legítima em si mesma. Um argumento facilmente derrubado e, neste sentido, prejudicial
aos desdobramentos da conquista legal pela inclusão da disciplina no ensino médio.
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34
Capítulo 2 Ensino de Sociologia: insulamento e invisibilidade de uma disciplina13
Flávio Sarandy14
Novos sentidos para uma antiga disciplina
A sociologia, como disciplina curricular da educação básica, possui uma história peculiar
comparativamente às demais disciplinas que tradicionalmente ocupam um lugar em matrizes
curriculares na escola média brasileira. Vários tem sido os sentidos atribuídos à Sociologia, como
disciplina do ensino médio no Brasil, e diferentes atores, na já antiga e complexa história da
disciplina, participaram dos debates em torno de sua definição. Por um lado, tem sido objeto de
verdadeiro culto, por uns elevada a instrumento fundamental na estratégia de emancipação das
classes subalternas de nossa sociedade ou, ao menos, tida como meio garantido de construção da
cidadania; por outros, criticada como demagógica e instrumento de manipulação de setores da
esquerda política, quando não simplesmente algo sem nenhum sentido e nenhum papel a jogar na
política educacional.
Diante deste quadro – ainda simplificador, naturalmente –, torna-se relevante e oportuno
compreender sua história; ainda mais relevante, compreender as motivações com que diferentes
atores políticos tem se movimentado em torno da inserção ou retirada da sociologia do conjunto das
disciplinas da educação básica. Talvez nenhuma disciplina tenha recebido tantas significações,
participado de tão díspares discursos e sido o centro de tantos conflitos quanto a sociologia.
Fato é que no Brasil mais uma vez está em curso sua reinserção como obrigatória em todas
as redes de ensino (Lei n° 11.683, de 2 de junho de 2008), o que torna oportuno investigar os
sentidos com que operam diferentes atores em torno da disciplina. E observe-se: não porque essa
reinserção é algo digno de nota, tendo em vista a história de intermitência da sociologia no ensino
médio (Moraes, 2003), tantas vezes introduzida e tantas outras retirada de programas educacionais
governamentais – o que permite vislumbrar a completa ausência de garantias para o atual momento
da disciplina – porém, simplesmente porque compreendemos que a disciplina enfrenta ameaças
quanto a sua própria existência, uma disciplina que ainda está por legitimar-se nos sistemas de
ensino. Ademais, os atuais discursos justificadores da obrigatoriedade da disciplina demonstram ter
13 Este paper reúne resultados de pesquisa em andamento, com vistas à elaboração de minha tese de doutorado. 14 Professor Assistente de Sociologia da Educação e Metodologia de Ensino, Universidade Federal Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ; doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da USP. E-mail: [email protected]
35
em comum – e a despeito de suas distâncias – um completo desconhecimento dos debates acerca do
ensino de sociologia no antigo secundário e um forte viés ideológico. No presente texto, adiante,
serão discutidos estes dois pontos.
É importante ressaltar-se que nas décadas de 20 a 50 do séc. XX houve um intenso debate
sobre educação, realizado por intelectuais brasileiros de projeção, como, entre outros, Emílio
Willems, Fernando de Azevedo, Luiz de Aguiar Costa Pinto, Florestan Fernandes, Antônio Cândido
e Anísio Teixeira. A partir da década de 1980, intensa campanha e lutas inicialmente dispersas,
empreendidas principalmente pelas associações profissionais e sindicais de cientistas sociais, foram
travadas pela inserção da disciplina no ensino médio, inicialmente por uma estratégia que
privilegiava as lutas localizadas nos estados federativos e, num momento mais recente, por uma
campanha unificada que teve como alvo a União. Tais campanhas, lutas e movimentos – tanto
quanto as produções de pesquisas, produções didáticas e até mesmo manifestações panfletárias e
artigos de opinião publicados em jornais diários – constituem momentos distintos da história da
disciplina; separados no tempo, as lutas e produções das décadas que vai de 1920 a 1950, e as que
emergiram a partir de 1980 guardam muitas diferenças e algumas convergências que merecem
explanação e análise. No entanto, o que de imediato sobressai, dentre as diferenças entre os dois
momentos destacados, é o completo esquecimento dos debates anteriores, das justificações, das
investigações e das produções propositivas (como produções didáticas) realizadas nas décadas
precedentes. Sobressai, ainda, algo que está no centro deste texto: as lutas recentes em torno da
disciplina tem sido capitaneadas por entidades não vinculadas, senão indiretamente, à universidade
e, não raro, distantes das agendas acadêmicas. Sem dúvida, são momentos distintos da história
política do país, diferentes compromissos articulados entre intelectuais, estado e as camadas sociais
dominantes; no entanto, impossível explicar as movimentações em torno da inclusão da disciplina
sem a nítida compreensão das relações estabelecidas no interior do próprio campo das ciências
sociais e as representações em torno da ciência e de seu ensino.
Se na primeira metade do século XX o ensino de Sociologia ocupava lugar de destaque nos
debates educacionais e políticos, atualmente é relevado à periferia acadêmica, tratado com
indiferença pelos gestores públicos da educação e abandonado a um discurso em geral corporativista
dos sindicatos de sociólogos. Por sua vez, a academia tem revelado verdadeira indiferença com
relação à disciplina. Trata-se, portanto, de explicar estes dois eventos e suas correlações: por um
lado a invisibilidade do ensino da Sociologia na escola média – invisibilidade para o campo
acadêmico das ciências sociais; por outro, as apropriações simbólicas da disciplina empreendidas
pelas associações profissionais e sindicais de cientistas sociais. Quadro que se reflete nas
proposições curriculares e nas disputas em torno da definição da disciplina.
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Pesquisas apontam que a institucionalização das ciências sociais no Brasil não se deu
quando de seu ingresso na academia através dos primeiros cursos regulares de formação específica
em ciências sociais, mas pela sua presença no antigo curso normal e no curso secundário, ainda nas
primeiras décadas do século XX; e não somente pela sua inclusão no sistema de ensino. Ao
contrário, parte importante dessa história se desenrolou no esforço de alguns intelectuais para
publicar obras de sistematização do conhecimento sociológico ou traduzir importantes textos de
autores estrangeiros. Se considerarmos as (possivelmente mais de) três dezenas de livros publicados,
dentre os manuais do secundário somente, num período de profundas e rápidas transformações da
sociedade brasileira em direção à urbanização, industrialização e re-ordenamento de suas forças
políticas, com profundas implicações na configuração e dinâmica do Estado, concluiremos que elas
constituíram um esforço de ordenamento da própria realidade brasileira. Caberia perguntar por que
tantos intelectuais de projeção se dedicaram à produção dos manuais didáticos. Contribuir para o
desenvolvimento educacional no país? Nacionalizar conhecimentos ao invés de simplesmente
traduzir manuais estrangeiros – com os quais certamente estavam familiarizados? Participar dos
debates da época – admitindo-se que os manuais eram mais que manuais? A resposta,
provavelmente, estará em todas as assertivas por trás das perguntas levantadas, tanto quanto se deve
considerar que, à época, escrever um manual, de certo modo, é se apropriar do conhecimento de um
dado saber para a qual não se obteve formação acadêmica nos padrões de uma tradição disciplinar
universitária.
O projeto era a remodelação do Brasil e, para isso, se acreditava na promessa da ciência
como orientadora fiel e na educação como estratégia. Os conflitos envolviam grupos ligados à
Igreja, movimento operário, os integralistas, setores tradicionalistas ligados à oligarquia dominante,
militares, setores da burguesia industrial, profissionais liberais e assim por diante; em relação aos
autores dos manuais didáticos, esses conflitos se localizaram principalmente entre o grupo dos
intelectuais católicos e os que se alinhavam a uma concepção laica de educação; ou se distribuíam
em diversos embates entre os defensores de uma formação bacharelesca e cunhada nas
humanidades e letras e aqueles que viam na formação científica a adequação do homem às
transformações do tempo presente. Que grupos eram esses? Que interesses almejavam e quais os
jogos de poder desenharam em torno do controle sobre campo tão disputado como foi à educação?
Nesse ponto, abre-se interessante campo de pesquisas15.
15 Importante contribuição para esta discussão, ainda por ser acolhida na presente pesquisa, encontra-se nos trabalhos de Libânia Nacif Xavier, em especial, O Brasil como laboratório : educação e ciências sociais no Projeto do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE / 1950-1960), Rio de Janeiro, 1999. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
37
Mesmo com a expansão do ensino superior a partir dos anos 30, é somente após 1964 que o
Brasil vai conhecer um processo de “democratização do ensino superior” e de incentivo à pesquisa,
além de uma política voltada à criação de universidades e programas de pós-graduação, na linha da
modernização industrializante do regime militar. No entanto, a produção em ciências sociais já
existia desde antes e se a inexistência desses cursos universitários, por um lado, é a condição
objetiva que favoreceu o ensino da Sociologia enquanto disciplina do ensino secundário, por outro,
não é condição suficiente para explicar o fenômeno. Pois, se a inexistência de um sistema
universitário nos obriga a relativizar a importância atribuída à inserção da disciplina no secundário
como algo excepcional, não justifica, todavia, o desinteresse atual pelo que se fez na época, no
secundário.
Esse período de intensa produção intelectual anterior à década de 1930 e mesmo antes de
sua institucionalização em programas de pós-graduação, a partir da segunda metade do século XX,
dominou o campo da ciência social, cuja prática, se não estava associada a um sistema acadêmico,
era bastante próxima da política de Estado e participante do debate público. Disso decorre ser o
processo de institucionalização muito mais complexo que somente a inserção da ciência social na
academia; mais adequado, portanto, seria falarmos em processos plurais de institucionalização, ou,
ao menos, num processo de institucionalização muito mais complexo que somente a inserção da
ciência social na academia (Melo, 1999). No entanto, os estudos no campo privilegiaram o ingresso
das ciências sociais nas universidades e nos programas de pós-graduação, chegando mesmo a
qualificar o período anterior, justamente o das ciências sociais no secundário, de sua “fase pré-
científica” (Azevedo, 1969). Se as narrativas sobre a “fase pré-científica” das ciências sociais nos
revelam a importância do ensino da disciplina para aqueles sociólogos do início do século XX16, por
outro nos revelam também a intenção de elevar-se a Sociologia à condição de ciência com
reconhecimento social. Na verdade, não apenas se creditava à disciplina a condição de ciência
fundamental, na esteira do pensamento comtiano, capacitada para o conhecimento seguro da
realidade social e fornecedora de instrumentos de intervenção que contribuíssem para a harmonia e
o desenvolvimento da sociedade; mais que isso: a considerar as relações de parte desses intelectuais
com o pragmatismo de Dewey e a forte influência, nos anos 20 e 30, da Educação Nova no Brasil,
capitaneada por Anísio Teixeira, é compreensível que a Sociologia seja alçada à condição de “arte
16 É significativo o fato de Azevedo (1969) ressaltar e classificar como um período da história da Sociologia justamente o de sua inserção nos sistema de ensino secundário, a partir de 1928, por meio de um recorte da história da disciplina sociológica muito peculiar: privilegia os anos em que esta esteve presente no secundário como um período a ser destacado.
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de salvar rapidamente o Brasil”, nos dizeres de Mário de Andrade17. Há um forte componente
missionário na produção do período que de algum modo parece deitar raízes nos discursos atuais.
Segundo os trabalhos de Villas Bôas (1998), Giglio (1999), Bispo (2003) e Rêses (2004), a
disciplina Sociologia teria sido proposta ainda no Império. Em 1882, “Rui Barbosa, enquanto
deputado, apresentou projeto que versava sobre a reestruturação do ensino” (Rêses, 2005); em 1891,
nova proposta é lançada a partir de um projeto para a re-estruturação do ensino no Brasil, de
Benjamin Constant. A proposta foi descartada após a morte de Constant, retirada do currículo pela
Reforma Epitácio Pessoa, de 1901, “sem nunca ter sido ofertada” e efetivada (Rêses, 2004, p. 7),
outra vez proposta pela Reforma Rocha Vaz, em 1925, e ratificada com a Reforma Francisco
Campos, em 1931. Em 1942, no entanto, a Reforma Capanema retira a obrigatoriedade do ensino da
Sociologia da escola secundária e entre esse ano e 1960 a disciplina vai sendo alijada pouco a pouco
do ensino secundário, sobrevivendo apenas no curso superior e na escola normal18. Em nota de
rodapé, Meucci esclarece que tal retirada
causou um impacto, inicialmente negativo, sobre os cursos de ciências sociais oferecidos pelas universidades e faculdades. Até então dedicadas quase totalmente ao ensino, e com o desenvolvimento ainda débil da pesquisa científica, as ciências sociais brasileiras foram submetidas a uma redefinição dentro do sistema intelectual e da relação entre o desenvolvimento do ensino e da pesquisa científica. O impacto da retirada da Sociologia dos cursos secundários exigiu novo redirecionamento dos cursos acadêmicos antes voltados particularmente para a preparação de professores mais do que pesquisadores propriamente ditos. (2000, p. 74, nota 4)
A ausência da Sociologia nos currículos escolares em nível nacional persiste desde a
Reforma Capanema, que data de 1942, observação também presente nos trabalhos de Villas Bôas
(1998), Giglio (1999), Bispo (2003), Rêses (2004), Meucci (2000), Sarandy (2004), Takagi (2007) e
Pavei (2008), porém informação surpreendentemente desconhecida ou desprezada por parte dos
cientistas sociais, a despeito de sua relevância para investigações sobre o tema, como em
Desenvolvimento da Sociologia no Brasil – profissionalização e organização da categoria –
história e perspectivas, especialmente à página 18, onde lemos, a respeito da disciplina a partir do
ano de 1964: “Com o golpe militar de 1º de abril, a disciplina Sociologia, bem como as demais das
áreas de ciências humanas (filosofia em especial), são alijadas do ensino de segundo grau no Brasil,
passando a ênfase nas disciplinas de orientação tecnizantes” (Carvalho, 1998).
O efeito do regime autoritário instaurado em 64 sobre o ensino de Sociologia no ensino
médio (à época, “secundário”) se não foi o de retirada da disciplina do currículo, foi o de ter
17 Apud João Cruz Costa, Augusto Comte e as origens do positivismo, 1969, São Paulo: Editora Nacional, 2ª edição [1ª ed. De 1957], p. 139. Citado por Simone Meucci (2000), p. 44. 18 Como observou o professor Dr. Amaury César Moraes (USP), em conversas com o autor deste texto, há um aparente paradoxo a ser investigado: o ensino de Sociologia parece ter persistido em momentos predominantemente autoritários da vida política nacional, como sob o Estado Novo, e recebido forte rejeição em períodos ditos democráticos.
39
conseguido desarticular o debate acadêmico ocorrido nos anos 30 e 40 (Melo, 1999); trabalho com a
hipótese de que durante a ditadura militar o campo das ciências sociais experimentou um
insulamento acadêmico19, obviamente relacionado às ações do governo autoritário, mas também
devido ao redirecionamento dos interesses e reorganização interna ao próprio campo. Insulamento
que (possivelmente) provocou o desinteresse pela Sociologia como disciplina viável no ensino de
segundo grau e lançou ao esquecimento o debate das décadas anteriores, como será discutido
adiante. Portanto, a passagem da Sociologia dos cursos normal e secundário para a academia
constituiu um processo que em nossa sociedade se deu efetivamente nos dois períodos de regime
autoritário que a sociedade brasileira conheceu: primeiro, durante o Estado Novo e, depois, pelas
mãos do golpe militar de 64 – o que deixou marcas no modo como compreendemos as ciências
sociais e seu lugar no sistema de ensino, que os discursos produzidos sobre o ensino de Sociologia,
tanto quanto suas produções didáticas, expressam de modo singular.
Insulamento e invisibilidade
O Estado Novo provocou uma estagnação de cerca de oito anos no pensamento político-
social brasileiro (Santos, 2002) e afastou a Sociologia do secundário; o regime militar consolidou
seu insulamento acadêmico e a afastou dos debates públicos. Compreensível diante do grau de
importância a que as ciências sociais foram elevadas desde o início do século no imaginário social
do país e do grau de autonomia dos intelectuais. Colocar sob controle essa efervescência
reformadora deveria passar necessariamente pelo seu afastamento dos centros decisórios e dos
espaços de influência intelectual e formação da opinião pública.
Ainda que o início da institucionalização tenha se dado pela inserção da Sociologia no
secundário e pela produção dos seus primeiros manuais e textos de reflexão sobre ensino20, a partir
da década de 1930 o processo da institucionalização strictu sensu se deu via criação de
universidades e cursos de graduação. A partir de 1960, se consolidou via criação dos programas de
pós-graduação por meio dos quais se pode falar propriamente em linhagens e práticas de pesquisa.
Sem dúvida, “a expansão da pós-graduação constitui o melhor indicador da institucionalização das
ciências sociais no Brasil” (Melo, 1999, p. 174). É no mínimo curioso o fato da instituição dos
programas de pós-graduação, no Brasil, ter ocorrido após 1968, em sua maioria. Com exceção de
19 Sobre insulamento discutirei mais adiante. Porém, fique registrado desde já que com a expressão “insulamento acadêmico” pretendo traçar um paralelo ao conceito de “insulamento burocrático”, no sentido apresentado por Edson Nunes (1999), modelo que deverá ser construído e elaborado ao longo da investigação. Naturalmente, não pretendo aplicar diretamente o conceito de Nunes à compreensão da história da disciplina e às questões aqui tratadas. 20 Como vimos, em sua primeira fase, a Sociologia se institucionaliza no ensino secundário antes que na academia (Meucci, 2000; Giglio, 1999), até porque, a rigor, não existiam universidades (Melo, 1999; Meucci, 2000).
40
casos isolados, como a concessão dos títulos de mestre e doutor pela USP desde ao menos 1947, os
primeiros programas de pós-graduação foram instituídos entre fins da década de 1960 e início de
1970 (Melo, op., cit., p. 210), fato que demonstra um período de concentração na emergência dos
programas de pós-graduação. Desse modo, a institucionalização do campo se dirigiu à consolidação
das Sociologia enquanto prática científica com sua crescente inserção na universidade e constantes
rearranjos institucionais, além de rupturas e esquecimento. Portanto, “tem-se uma trama
institucional, cuja articulação é exercida indiscutivelmente pelos centros de pós-graduação” (Melo,
1999, p. 177), sendo estes o seu ápice de hierarquização. Dessa forma que se pode falar num ensino
e numa pesquisa, ou em professores e pesquisadores em ciências sociais, sendo esses os dois pólos
pelos quais se pode observar a institucionalização acentuada experimentada pelo campo.
Tais iniciativas seguiam o projeto de modernização econômica do regime autoritário e
deixou marcas profundas nas ciências sociais, produzindo “intelectuais comprometidos com a lógica
da carreira e da institucionalização da atividade intelectual [e um] sistema de orientação [que os]
manteve [...], por muito tempo, afastado das controvérsias políticas e da vida pública” (Melo, 1999,
p. 218). É que, “o regime autoritário inaugura uma descontinuidade na história da ciência social
brasileira, que alcança diversas dimensões. Por força da repressão política desencadeada contra seus
opositores, operou uma seleção implícita dos intelectuais” (Melo, op., cit., p. 211); pior que isso foi
“o fato de ter imposto aos cientistas sociais mais jovens – e por esta razão, menos expostos à ação
discricionária do regime autoritário – um padrão de formação e de institucionalização desprovido de
conexões efetivas com a sociedade e a vida pública, dado o contexto geral de restrições à liberdade”
(Melo, op., cit., p. 211).
Esse processo de institucionalização “criou, a partir do final dos anos 60, uma situação, por
qualquer critério, inusitada: uma ciência social impedida de estabelecer conexões efetivas com a
sociedade e, simultaneamente, isolada da vida universitária” (Melo, 1999, p. 212). Portanto, uma
nova condição para a prática científica já estava dada com a implantação da pós-graduação, de
padrões mais rígidos de pesquisa empírica, com a renovação dos quadros por novas gerações de
cientistas acadêmicos e pelo relativo distanciamento das ciências sociais em relação à vida pública.
O que se pode dizer a respeito desse período de institucionalização acadêmica das ciências sociais é
que sua profissionalização e especialização extremas lhe impuseram uma condição de elevado
insulamento, similar à noção de “insulamento burocrático”, conforme Edson Nunes (1999). Ora, a
lógica do insulamento pressupõe três coisas fundamentais: uma extrema especialização, com
acentuada divisão racional do trabalho intelectual; um relativo fechamento em “ilhas burocráticas”
de especialistas detentores de informação privilegiada, com um mínimo de influência externa e
fraco accountability; por fim, um caráter setorial, aplicado à gestão racional e eficiente de um setor
41
específico da vida pública, sem incursões generalizadas no debate dos grandes temas – há mesmo
uma indiferença pela agenda pública vista em sua totalidade. Ao que parece, a participação ativa por
parte de nossos intelectuais, de caráter até mesmo missionário, interessada na modernização da
sociedade brasileira, foi substituída pelo desempenho profissional, constituído por um ethos
científico para o qual questões relativas à ensino não fornecia apelo. Penso este processo como
similar ao proposto por Goodson (2008), sobre as relações entre a emergência de grupos
profissionais e a história das disciplinas escolares.
A despeito do duro golpe sofrido com o regime de 64, a ciência social acadêmica, pouco a
pouco, retornou à vida pública na linha de oposição ao regime e de afirmação das liberdades
democráticas, cada área de conhecimento (Sociologia, antropologia e ciência política) em seu
próprio ritmo e condições distintas (Melo, 1999). No entanto, a profissionalização impôs um
relativo insulamento de tipo burocrático à prática científica e mesmo a oposição democrática ao
regime, como esboçada por Melo (1999), se deu do interior da universidade e de modo “bem
controlado”. Não podemos esquecer que o investimento do regime militar nas humanidades e nas
ciências sociais foi muito menor em relação às áreas das ciências “duras” e mais intimamente
ligadas à inovação tecnológica. Esse processo de parcos investimentos e profissionalização
universitária, inclusive pelo sistema de gestão colegiada e departamental, criou uma competição por
recursos e o redirecionamento dos interesses da comunidade.
O insulamento universitário das ciências sociais, portanto, é resultado de um duplo processo:
a implementação de políticas profissionalizantes, conforme o projeto modernizante do regime
militar, que abrangeu uma reforma universitária em vista da industrialização do país, e o
redirecionamento de interesses da comunidade dos cientistas sociais para a academia, com seu início
já desde a década de 1940, após a Reforma Capanema (de 1942).
Invisibilidade e esquecimento
A invisibilidade da Sociologia no ensino médio atualmente é contrastante com a produção
sobre ensino de Sociologia no secundário entre as décadas de 1930 e 195021. É que nestas a prática
científica de nossos intelectuais estava “organicamente” ligada à escola e aos institutos de formação
de professores. Se não temos uma visão ampla e clara sobre a prática profissional dos sociólogos no
ensino médio isso se deve ao insulamento descrito anteriormente e não a uma suposta natureza da
21 A exemplo do que afirma Melo (1999: 179-180): “para completar esta rápida discussão sobre as relações entre a ciência social institucionalizada e o ensino, é necessária uma menção ao trabalho desenvolvido nas escolas de primeiro e segundo graus. Trata-se de uma área ainda invisível para os cientistas sociais, apesar de constituir o mercado de trabalho de uma parte dos graduados nos cursos de Sociologia”.
42
ciência. De qualquer modo, o que importa – especialmente para o presente paper – é considerar o
discurso, de ontem e de hoje, voltado ao ensino da Sociologia no secundário – ou ensino médio –,
bem como a sua presença – e quiçá obrigatoriedade – nas matrizes curriculares, discursos estes
consubstanciados em textos de reflexão sobre ensino de Sociologia. Em particular, interessa
compreender as apropriações simbólicas acerca da disciplina Sociologia: seu lugar social, sua
relevância, seu sentido, sua dimensão política e suas possibilidades no sistema educacional, do
ponto de vista dos atores que demandam em torno da disciplina.
Dos debates das primeiras décadas do século XX emergiu uma espécie de culto à ciência – e
o sentido de missão da ciência, e das ciências sociais em particular –, que desaguou em análises
sociais que justificavam o papel preponderante da Sociologia no quadro da produção intelectual
brasileira e de seu relevante papel no sistema educacional; como em Costa Pinto e Florestan
Fernandes, para os quais
o mundo em que se vivia estava perdido pela lógica da modernização e da secularização, extremamente racionalizado e burocratizado, no qual a ciência ocuparia progressivamente todas as ações dos indivíduos e, por isso, todos deveriam render-se inevitavelmente a ela – até mesmo como garantia ao êxito de suas ações. Portanto, caberia intervir em uma sociedade como a brasileira para, no momento de modernização e de instalação da nova ordem social, buscar meios de liberar o indivíduo do atraso e da antiga ordem que atravancaria o acesso deste à democracia e à estrutura social capitalista. (Giglio, 1999, p. 80)
A Sociologia participaria do jogo político como o “símbolo máximo da racionalidade”
crescente do mundo moderno e da ruptura da sociedade brasileira com o seu passado, e seu ensino,
inclusive nas escolas do secundário, o instrumento para “elevar o nível intelectual das grandes
massas”, segundo Florestan (1975), e como instrumento de mudança social num contexto de
democratização, pois produziria respostas aos problemas sociais vigentes, tanto quanto novas
técnicas de controle social. Para os sociólogos-educadores ou educadores-sociólogos do período a
disciplina representava a possibilidade de capacitarem-se os indivíduos perante as transformações
modernizantes do processo de industrialização e urbanização (Costa Pinto, 1947)22.
Ao que parece, articulou-se, no período, educação, ciência e democracia de modo singular;
visão que se aliava ao impulso modernista, que encontrava na formação enciclopédica das elites
uma das causas da crise da República Velha e que projetava no futuro os anseios de modernização
democrática da sociedade brasileira em intenso processo de industrialização. É com esse espírito
que Fernandes e Costa Pinto propõem o retorno da Sociologia para o currículo do antigo secundário,
22 São objetivos do ensino de Sociologia, segundo Costa Pinto: “1) dar conhecimentos positivos e estabelecer conceitos fundamentais sobre a vida social, suas bases, sua organização, seus processos e seus produtos; 2) tomar essas informações e conhecimentos científicos sobre a vida social como pontos de partida e como materiais para gerar e elaborar no educando atitudes, estados de espírito e formas de comportamento capazes de dar caráter ativo e consciente à sua participação e integração na sociedade e na cultura” (Costa Pinto, 1947, p. 15, grifos meus).
43
para os quais uma das tarefas da escola é dar aos jovens elementos intelectuais de uma “cidadania
consciente” (Costa Pinto, 1947, p. 5, citado por Giglio, p. 58). Isso porque “a ciência operava num
mundo que se transformava para o moderno e a Sociologia ensinaria ao indivíduo a ‘como pensar’
as situações sociais complexas que o rodeiam com um método rigorosamente científico’” (Costa
Pinto, 1947, pp. 62-63). Mas, para tanto, haveria uma opção pela sala de aula como o espaço do
“fazer ciência”, não pela “ciência feita”, segundo proposta de Fernando de Azevedo (Bispo, 2003, p.
108)23.
Porém, já naquele momento iniciava-se o insulamento das ciências sociais em âmbito
acadêmico e, contraditoriamente, seu distanciamento das questões de ensino. A reforma do sistema
universitário brasileiro a partir da década de 1930 foi realizada com base no sistema francês e em
prol da necessidade de renovação das elites (Giglio, 1999, p. 28), dificultando a realização do
projeto escolanovista de inspiração norte-americana, fato que possivelmente acabou contribuindo
para um insulamento ainda maior dos cientistas sociais mais jovens e de seu proposital
distanciamento do que vinha fazendo a geração anterior, a exemplo das palavras de Florestan
Fernandes:
Postos diante das expectativas conservadoras dos ‘donos do poder’, eu e meus companheiros de geração não procuramos nos incorporar às elites culturais do país; apegamo-nos a um radicalismo científico, que servisse, ao mesmo tempo, como um escudo protetor e um recurso de auto-afirmação (...) Procuramos legitimar uma área própria de autonomia intelectual e o fizemos em nome da ‘ciência’ e da ‘solução racional’ dos problemas sociais. (Florestan Fernandes, 1977. Apud Cunha & Totti, mimeo, p. 10).
Se o ideário renovador logrou conquistar a institucionalização da pesquisa e do
desenvolvimento científico, sua vitória foi apenas parcial, dada a articulação que faz entre ciência,
educação e democracia. Portanto, a perspectiva de Florestan Fernandes é denunciadora do gradual
afastamento que as gerações de cientistas sociais foram estabelecendo em relação às antecessoras,
com conseqüências diretas para as reflexões sobre o ensino de ciências sociais.
A explicação recorrente para a quase nenhuma tradição das ciências sociais no ensino médio
é dada, em geral, estabelecendo-se como “causa” a sua intermitência nas reformas educacionais, que
por sua vez teria como “causa” uma orientação política consciente, de recorte ideológico
conservador que atenderia aos interesses das elites capitalistas; explica-se tal situação lançando-se
mão, ainda que implicitamente, da noção de escola como aparelho ideológico do Estado e de
educação como recurso estratégico para a dominação política. Não que esta hipótese seja inválida,
23 A referência de Fernando de Azevedo é de Princípios de Sociologia: pequena introdução ao estudo de Sociologia geral. São Paulo, Duas Cidades, 1973. introdução, p. 7. A crítica ao ensino da “ciência feita”, por Fernando de Azevedo, pretendia atingir, principalmente, a educação “enciclopédica” e marcar uma diferença fundamental quanto à Sociologia no ensino secundário, que deveria privilegiar a aprendizagem, por parte dos alunos, dos métodos e modos de pensar da investigação científica. Essa crítica de Azevedo também foi recuperada por Meucci (2000).
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porém, proponho que o efeito, nesse caso, seja a causa. A falta de legitimidade social da disciplina, a
percepção de “irrelevância” desse conhecimento no ensino médio por parte dos gestores da
educação, pública ou privada, mas também por parte de parcela da própria comunidade dos
cientistas sociais, deve-se a razões que se apresentam na inserção e desenvolvimento das ciências
sociais no Brasil, como vem sendo proposto neste texto.
O resgate desse debate talvez – e sua interpretação à luz do contexto em que emergiu –
pudesse evitar o que o próprio Florestan Fernandes avaliou como uma perda ao se referir a uma
espécie de “geração perdida”, conforme escreve em artigo com esse título, relembrado por Giglio
(1999, p. 9):
no fim de umas três décadas, o que pretendíamos fazer já não possui sentido prático e vemos os ‘novos’ retomar os mesmos caminhos, para refazer o que já foi feito, sem aproveitar o esforço de um avanço que, pelo menos, deveria representar um novo ponto de partida e uma reflexão crítica mais madura e profunda quanto às relações entre talento e sociedade no Brasil.
Ao que parece, a história das ciências sociais no Brasil, especialmente no ensino médio, é
decantada no duplo sentido da palavra, separada de seus aspectos considerados residuais e celebrada
em hino de louvor à ciência. Entre os aspectos residuais estariam suas possibilidades de inserção no
ensino médio. Por outro lado, se pretendemos compreender a insistência na inclusão da disciplina,
mais que o fato dela nunca ter figurado de modo estável nos currículos escolares, cabe verificar as
justificativas que vêm sendo elaboradas acerca da disciplina e as motivações de diferentes atores em
torno da disciplina, como as instituições profissionais e sindicais de cientistas sociais a tem
justificado e, claro, a intrigante indiferença atual da academia.
O campo universitário das ciências sociais e o ensino da Sociologia no ensino médio
Como vimos, apesar da indiferença com que vem sendo tratado o ensino de Sociologia no
ensino médio pela comunidade dos cientistas sociais, refletir sobre a Sociologia enquanto disciplina
no secundário ou no ensino médio é refletir sobre as ciências – e as ciências sociais em particular –,
no Brasil. A história da Sociologia no ensino médio se confunde com a história da organização de
nosso sistema educacional e com a constituição do campo das ciências sociais (Meucci, 2000); a
disciplina fez-se presente no debate público desde o Império, foi alçada à condição estratégica de
modernização democrática da sociedade brasileira para, por fim, tornar-se questão presente naquilo
que Nietzsche chamou de “história de antiquário”, ou uma simples “nota de rodapé” (Giglio, 1999)
em papers acadêmicos; tanto como veio a constituir-se em ponto programático dos discursos
corporativistas dos sindicatos de sociólogos. Compreender sua história e as motivações com que
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diferentes atores justificam suas ações com relação à disciplina, por fim, compreender as
apropriações simbólicas da Sociologia enquanto disciplina na escola média é fundamental se
desejamos um lugar para a disciplina.
No entanto, uma história do currículo não pode ser compreendida como um produto
intelectual abstrato e neutro, como um
processo de seleção e organização do conhecimento escolar como um inocente processo epistemológico em que acadêmicos e professores (educadores) desisnteressados e imparciais determinam, por dedução lógica e a partir de pressupostos filosóficos, o que melhor convém ensinar [e como deve ser ensinado]. (Silva, 2008, p. 8)
Ao lado de fatores epistemológicos e teóricos convivem outros determinantes, como
interesses, conflitos e disputas simbólicas, mecanismos de legitimação, classificação e controle,
estratificação e status (Silva, 2008). Neste sentido, o currículo não deve ser compreendido como
prescrição, mas um jogo de poder, cuja historicidade deve ser explicitada para a boa compreensão
das lógicas que operam o jogo. Afirmar a historicidade do currículo é considerar que os documentos
textuais que materializam o currículo podem ser investigados como a manifestação de estruturas de
sentimentos24 (Raymond Williams, 1979;1988) em disputas, para os quais os elementos sociais,
como parte do texto, enformam o mesmo, não como simples contexto de produção, mas num tipo
de entrelaçamento que é, ao mesmo tempo, social e discursivo, estrutural e subjetivo (Cândido,
2000). É neste sentido que podemos sugerir, conforme Williams, que tais disputas expressam o
emergente no interior da luta por hegemonia, em que novos grupos e atores tentam elaborar sua
experiência do vivido em oposição à formas culturais dominantes, consignando novos sentidos à
experiência social.
Para Antônio Cândido (2000), ao analisar o que deveria constituir uma sociologia da
literatura, compreender um texto é levar em conta “princípios estruturais”, realizando as conexões
entre os elementos sociais e o texto, não somente como “fatores externos” a condicionarem a obra,
nem mesmo como dando substância ou conteúdo para o texto de ficção; para uma análise
sociológica de um romance ele sugere em seu brilhante ensaio que se compreenda, quando possível,
os elementos sociais como parte do texto, “enformando” a própria obra. Em suas próprias palavras:
quando fazemos uma análise desse tipo, podemos dizer que levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente mas como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo e não ilustrativo. (2000, p. 8)
24 Estrutura de sentimentos, para Williams, refere-se a uma espécie de “consciência prática” que se constitui por um processo de socialização específico, pela participação do indivíduo em grupos culturais e que permitem resistência à ideologia e à prática hegemônicas.
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Entretanto, se a estrutura textual está “enformada” pela própria dinâmica da vida social na
qual foi pensada e produzida, que não se veja aqui um reflexo da estrutura social no romance. A
transposição de que nos fala Cândido não é imediata ou direta; ao contrário, o próprio texto é a um
só tempo produto e produção da vida social, pois, como sugere Williams (1979; 1988), a vida
intelectual, como dimensão da vida social e experiência do vivido, expressa a cultura
particularizada, permitindo entrever na manifestação “individual” da obra elaborações e conflitos,
apropriações e controvérsias, que se dão em plano cultural e social. Assim podemos compreender,
também, propostas curriculares e saberes disciplinares como aspectos da vida intelectual a
expressarem suas próprias histórias.
Para Goodson,
“uma história do currículo não deveria estar centrada numa preocupação epistemológica com o conhecimento e sua verdade, nem tomar como eixo preocupações pedagógicas, assim como não deve ser nem celebratória nem evolucionista [...] Uma história do currículo tem que ser uma história social do currículo, centrada numa epistemologia social do conhecimento escolar e como e por quais mecanismos conhecimentos são considerados válidos e devem ser ensinados”. (Silva, 2008, p. 10)
Neste sentido, Goodson se utiliza da expressão “tradiação inventada” (tomada de
empréstimo a Hobsbawn) e sugere que a história das disciplinas escolares é um processo pelo qual
se inventa uma tradição e na qual muitos mitos são criados e recriados; história para a qual
prioridades políticas e dinâmicas sociais são predominantes.
Sua tese, em “História do currículo profissionalização e organização social do
conhecimento: paradigma para a história da educação” (Goodson, 2008, cap. 7, pp 115-132), é que a
história das disciplinas escolares permite explicar o papel que as profissões desempenham na
constituição social do conhecimento. Na relação com os grupos profissionais, portanto, que se
explicaria a história das disciplinas socialmente legitimadas, e neste sentido que ele propõe a
questão de “como as profissões se tornam parte das organizações burocráticas que formam a vida
social, política, econômica e cultural na era moderna e pós-moderna” (2008, p. 119). Ou, nos dizeres
de Goodson,
quanto mais grupos ocupacionais e suas associações representativas procuraram os incentivos materiais oferecidos pelo Estado, tanto mais o conhecimento profissional se tornou abstrato e descontextualizado. (2008, p. 119)
Goodson está interessado nas tradições e legados que os sistemas burocráticos escolares e
universitários criaram – portanto, na relação entre universidade e escola. Para isso, Goodson analisa
a história do conhecimento médico e psiquiátrico e da disciplina de ciências na escola básica,
respectivamente na França e Grã-Bretanha do Séc. XIX. Assim, analisa as relações complexas entre
escola e sociedade, porque mostra como escolas tanto refletem como refratam definições da
47
sociedade sobre conhecimento culturalmente válido em formas que desafiam os modelos simplistas
da teoria da reprodução. Além disso, seu trabalho permite a explicação do papel que as profissões –
como a educação – desempenham na construção social do conhecimento. A psiquiatria e o ensino
na escola secundária nos permitem entender como as profissões se tornam parte das organizações
burocráticas que formam a vida social, política, econômica e cultural na era moderna e pós
moderna. Os estudos históricos das matérias secundárias no currículo escolar britânico revelam uma
mudança constante, partindo da marginalidade de status inferior no currículo, passando por um
estágio utilitário e, finalmente, alcançando uma definição da matéria como disciplina, com um
conjunto exato e rigoroso de conhecimentos. À medida que a Biologia se tornou, nas universidades,
uma ciência de laboratório, foi também sendo preparada uma nova geração de diplomados em
Biologia, ficando então assegurada a incorporação da matéria como disciplina escolar de status. De
conhecimento com objetivos pedagógicos e utilitários passou-se à conhecimento como “disciplina
acadêmica” ligada aos estudiosos das universidades. Isso se deu pela busca por status, recursos e
território (social), pelo elo existente, conforme indicam as pesquisas empíricas, entre status
acadêmico e social, e alocação de recursos e carreira. O processo que legitima o conhecimento a ser
considerado socialmente válido se dá exatamente pela “criação, desenvolvimento e manutenção de
uma retórica legitimadora que ofereça apoio automático para a atividade corretamente rotulada”.
(2008, p. 125)
Para Goodson, devemos esperar que o currículo se comprometa com as missões, paixões e
propósitos que as pessoas articulam em suas vidas. Isto seria verdadeiramente um currículo de
empoderamento, que poderia transformar as nossas instituições educacionais e fazê-las cumprir sua
antiga promessa de ajudar a mudar o futuro social de seus alunos.
A conclusão de Goodson não poderia ser outra, senão que “as matérias [escolares] não
constituem entidades monolíticas, mas amálgamas mutáveis de subgrupos e tradições que mediante
controvérsias e compromissos influenciam a direção de mudança”. (2008, p. 120)
Há, portanto, uma jurisdição cujo ápice hierárquico é a universidade e o tipo de
conhecimento escolar encontrado é principalmente importante pelo seu valor social para os
professores dispostos a buscar recompensas profissionais. Organizações burocráticas mantém elos
institucionais com professores – são elas que possuem hegemonia na definição de conhecimento
socialmente válido e autoridade para legitmar práticas e discursos. Neste sentido é que a escola
permanece um instrumento de cultura da classe dominante, que através de seus sistemas
burocráticos, impede homens e mulheres de criar sua própria história, pois
48
a negociação contínua da realidade, tanto da parte dos indivíduos como da parte de grupos, revela as antecedentes estruturais de poder na educação e sugere a forma como grupos dominantes continuam a influenciar a escolarização, a despeito de conflitos e contestação” (2008, p. 132)
Acompanhando a perspectiva de Goodson, proponho, como hipótese25 do processo de
constituição da história disciplinar da Sociologia no ensino médio, no Brasil que: (1) a
institucionalização das ciências sociais na pós-graduação, e seu insulamento, está
indissociavelmente relacionada à invisibilidade das questões de ensino para o campo acadêmico das
ciências sociais. Como dimensões dessa hipótese temos, a explicar o distanciamento e esquecimento
atual relativo à primeira metade do século XX: a partir do investimento das ciências sociais na pós-
graduação, (i) foram articuladas novas concepções acerca do papel das ciências sociais em geral, e
das ciências sociais em particular, resultantes de re-acomodações e transformações internas ao
campo das ciências sociais; (ii) houve um novo redirecionamento das energias dos cientistas sociais,
que voltaram seus interesses à disputas interdepartamentais e intradepartamentais, no âmbito da
universidade; (iii) emergiu uma nova estratégia de legitimação do campo, desencaixada das
questões de seu ensino e da educação em geral, porém associada à profissionalização científica
experimentada pela institucionalização na pós-graduação. A idéia central aqui, como proposição a
ser confirmada em pesquisa, é que uma dimensão importante – a contribuir para explicar a história
parcialmente narrada anteriormente neste texto – da singularidade da disciplina Sociologia está
menos nas ações políticas deliberadas e contextos políticos particulares, porém nas alterações no
próprio no campo científico, que permitem compreender a relação dos diferentes atores.
O vazio deixado pelo distanciamento do campo acadêmico das ciências sociais tem sido
ocupado por associações profissionais e sindicais de cientistas sociais por meio da articulação de
novas representações das próprias ciências sociais que pouco dialogam com o debate empreendido
em décadas anteriores, para os quais a disciplina ocupava lugar de destaque dentre as ciências e no
rol das disciplinas escolares. Num tal contexto, podemos especular – pois que ainda não temos
pesquisas empíricas suficientes para tal afirmação – que diferentes atores tem se apropriado da
disciplina Sociologia, atribuindo à mesma significados por vezes conflitantes, ao mesmo tempo em
que permanece invisível ao campo acadêmico das ciências sociais.
Talvez, a dificuldade em se perceber a necessidade de justificarmos a disciplina da parte de
alguns decorra de equívocos alimentados pelas narrativas sobre a história da disciplina, bem como
da percepção de sua intermitência, em sua inclusão ou exclusão dos currículos escolares. No Brasil,
tem-se afirmado que o retorno da disciplina aos quadros de conteúdos próprios do ensino médio é
um resgate histórico em face do período ditatorial militar recente da história de nosso país, que a
25 As hipóteses explicativas propostas neste paper constituem objeto de investigação em minha pesquisa de doutorado.
49
havia excluído. Nossa percepção é a de que tal narrativa serve a uma visão de tipo missionária e se,
por um lado, instiga os ânimos em sua defesa, por outro, distorce em algum grau sua história e obsta
o aprofundamento de sua necessária investigação.
A partir de alguns estudos que abrangeram a história da disciplina (Machado, 1987; Giglio,
1999; Santos, 2002; Moraes, 2003; Rêses, 2004 e 2005; Sarandy, 2004-a e 2004-b; Silva, 2004,
dentre outros) – e mesmo de outros que não a tinham por foco (Meucci, 2000) – sabemos que o
ensino da Sociologia deixou de ser obrigatório de 1942, com a Reforma Capanema, até 2008, com a
alteração da Lei de Diretrizes e Bases de 1996. Portanto, desde antes do golpe de 1964 e mesmo
após a redemocratização 26. E mais, mesmo durante o regime ditatorial militar, a disciplina
sobreviveu nos cursos secundários para o magistério, como Sociologia da educação, e a maior
perda, no plano legal, no período, somente veio com a Lei 5692, de 1971, por meio da qual se
aprofundou o caráter tecnicizante do ensino, como é sabido.
Conforme os trabalhos referidos, de fato, houve intermitência no plano das políticas
governamentais, ou seja, em diferentes reformas educacionais, ora a disciplina encontrou acolhida,
ora foi excluída – e nem sempre sob a nomenclatura de “Sociologia”. Relembremos: em 1882 a
disciplina foi proposta num projeto de reforma, por Rui Barbosa; em 1891, ela foi apresentada no
projeto de Benjamin Constant, tendo sido criada a cátedra “Sociologia e Moral”, no ensino
secundário; na Reforma Epitácio Pessoa, de 1901, deixou de ser obrigatória no currículo da escola
média, mas até este momento não chegou a ser efetivamente oferecida em todo o sistema; em 1925,
com a reforma do ministro Rocha Vaz, ela retornou ao ensino secundário e foi ratificada pela
Reforma Francisco Campos, de 1931; em 1942, com a Reforma Capanema, ela deixo de ser
obrigatória novamente e deste período até a Lei 11.684, de 2 de junho de 2008, que a tornou
obrigatória, parece ter ocorrido algum movimento em torno dela nas décadas de 1940 e 1950 e,
principalmente, com os movimentos pela (re) inclusão da disciplina, a partir de 1982, notadamente
em São Paulo e no Rio de Janeiro. Vemos, portanto, que no plano legal a disciplina de fato foi
intermitente, apesar de sempre ter existido timidamente e de modo acentuadamente dispersivo nos
sistemas de ensino, seja como disciplina da formação em nível médio para o magistério, seja no
ensino superior, notadamente nos bacharelados em direito.
Mas um olhar mais discreto sobre a história da disciplina – algo que ainda está por ser feito
– poderia revelar que em diferentes contextos sua presença ou ausência teve a ver com uma
multiplicidade de fatores do que somente decisões governamentais ou regimes políticos. Apenas a
26 Devemos ao Dr. Amaury Cesar Moraes (USP) a observação sobre o aparente paradoxo da presença da disciplina Sociologia, na escola média brasileira, durante parte de um período ditatorial, como no caso do Estado Novo, e a enorme resistência governamental durante um período formalmente democrático, como no caso dos governos de Fernando Henrique Cardoso.
50
título de exemplo, pois que este não é o objeto deste texto, observamos que, em fins do século 19,
ainda no Império, quando pela primeira vez a disciplina foi proposta, um fator relevante que ainda
está por ser mais bem discernido, foi a disputa em torno da própria natureza e viabilidade da
Sociologia. Tal disputa pode ser exemplificada pelos debates entre os que viam na Sociologia uma
ciência legítima, como Sílvio Romero, e os que a consideravam uma falácia, como Tobias Barreto;
o primeiro, em seu “Ensaios de filosofia do direito” (2001), anotações de seus cursos na Faculdade
de Direito, de 1895, e o segundo como autor de “Variações antisociológicas”, de 1884. O que se
esboça nestes textos é um acirrado debate sobre a possibilidade mesma do conhecimento
sociológico, num momento em que a Sociologia estava apenas nascendo na Europa e nos EUA.
Ora, não é de estranhar que o debate sobre o ensino da disciplina tenha ganho adeptos e críticos nos
anos que se seguiram, nem que a reforma proposta por Constant, um positivista, a tenha incluído.
Certamente, e para não nos alongarmos neste ponto, em períodos distintos e contextos
particularmente diferentes, outros podem ter sido os fatores a pesarem sobre as decisões quanto à
disciplina, mais que a simplificadora referência imediata à regimes políticos.
As novas e necessárias investigações a se realizar podem vir a esclarecer, também, as
influências que diferentes atores e movimentos desempenharam quanto à presença ou ausência da
disciplina, ou que ainda desempenham sobre sua, talvez, fragilidade. Para mais um exemplo,
pensemos sobre a distância que o campo acadêmico das ciências sociais tomou do ensino da
Sociologia, a partir das décadas que se seguiram à Reforma Capanema, antes um objeto central,
como durante o período de sua institucionalização nos cursos secundários e do Manifesto dos
Educadores Novos. Há a possibilidade de que a institucionalização das ciências sociais, em nível
universitário, sobretudo com a consolidação dos programas de pós-graduação, tenha sido um fator
importante para este distanciamento, por um aparente efeito de insulamento acadêmico e
conseqüente invisibilidade da disciplina. As novas agendas de pesquisa parecem ter se afastado da
aposta na Educação na constituição da modernidade.
Entender as motivações da perda de centralidade da educação e do ensino de Sociologia nas
sociedades científicas e em seus debates acadêmicos é condição de se projetar uma disciplina com
maiores chances de legitimidade na escola. Carecemos de resultados de pesquisas que possam
direcionar com mais efetividade a prática docente É neste ponto que a rejeição existente no interior
do campo acadêmico das ciências sociais, no que tange à pesquisa sobre questões de ensino da
Sociologia, é fator relevante para a pouca legitimidade da disciplina, especialmente porque a
universidade é o lugar institucional que pode dar origem aos discursos legitimadores da disciplina
como, também, o vazio deixado pela ausência de debates e pesquisas sobre a questão permitiu a
emergência de discursos ideológicos que em nada contribuíram com a necessária legitimação que se
51
discute aqui. O que parece claro, de todo modo, é que a visão de uma história linear, ordenada por
uma exclusiva lógica a justificar o sentimento de resgate histórico não é verdadeira e o
deslocamento da explicação da não-obrigatoriedade da disciplina por uma ação partidária
deliberada, desconsiderando-se o papel que a universidade desempenha neste jogo não contribui
para a compreensão da indiferença com que vem sendo tratada a disciplina pelo próprio campo
científico das ciências sociais no Brasil.
Há indícios, de fato, para podermos falar num processo de insulamento acadêmico das
ciências sociais no Brasil e tal processo contribuíu de modo relevante para o distanciamento da
escola que as ciências sociais tomou. A invisibilidade das questões de ensino de nossa disciplina na
educação básica talvez esteja relacionada à necessária, segundo Goodson, construção de uma
retórica profissional-científica que legitime as ciências sociais, com status de ciência, antes que
possa ser admitida como disciplina escolar. As afirmações reiteradas do caráter científico da
Sociologia talvez ilustrem exatamente este ponto. Compreender este processo e as razões das
controvérsias em torno da disciplina é fundamental para qualquer intervenção que vise justificar ou
legitimar a Sociologia no ensino médio.
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55
Capítulo 3 Sociologia e educação – ponderações a partir de uma ótica sistêmica
George Gomes Coutinho27
A questão do ensino de sociologia é, há muito, um elemento de considerável atenção a partir
do conjunto de disciplinas que formam as ciências sociais28. Todavia, evidentemente, tanto pela
multiplicidade de tradições quanto por sermos uma ciência inegavelmente “jovem”29 não há um
consenso formado acerca desta inserção particular do cientista social no espaço profissional. Não
pretendo elucidar os elementos políticos e nem propriamente éticos ou normativos stricto sensu
deste debate. É minha intenção apresentar um conjunto de impressões a partir de uma ótica que,
creio eu, ainda não foi suficientemente explorada nesta seara. Utilizarei o ponto de vista inspirado
no neosistemismo enquanto via de análise de elementos ocultos desta discussão em uma leitura
contra-intuitiva acerca de dificuldades que ainda persistem. Ora, compreendo que sem uma
sociologia da sociologia, portanto sem o olhar crítico acerca da relação da sociologia com ela
mesma e, conseqüentemente, de sua relação com a sociedade, a opacidade torna-se um rochedo
persistente e incômodo.
Irei dividir minha exposição em dois momentos. No primeiro deles irei apresentar em linhas
gerais e de forma não definitiva, mais voltada para o leitor não familiarizado com os jargões do
neosistemismo, uma apresentação desta tradição, particularmente me vinculando ao trabalho do
sociólogo alemão Niklas Luhmann30. Nesta seção irei apresentar propriamente o “lugar da
sociologia” nesta interpretação.
27 Doutorando em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e Professor assistente de Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Pólo Universitário de Campos dos Goytacazes (PUCG). É vice-coordenador do Laboratório de Pesquisa e Ensino em Ciências Sociais – LAPECS na UFF/PUCG. Contato: [email protected]. 28 Me recordo de dois esforços temporalmente longínquos que ilustram esta preocupação. Primeiramente os encontrados em Karl Mannheim (1982) ainda nas primeiras décadas do século XX, onde se discute a articulação entre produção do conhecimento, sociologia e educação. Em solo nacional a produção derivada do “Symposium sobre o ensino de sociologia e etnologia” onde intelectuais como Antonio Cândido, Luiz de Aguiar Costa Pinto e Donald Pierson problematizaram a inserção da sociologia no espaço escolar. Os artigos em questão foram publicados em setembro de 1949 na revista “Sociologia” vinculada à Escola de Sociologia e Política de São Paulo. 29 Refiro-me aqui ao dilema da “eterna juventude” proposto por Weber (2006). As ciências sociais são jovens em um sentido cronológico e, também, ante a transitoriedade de suas formulações pela particularidade seu objeto de análise: a sociedade em sua inelutável dinâmica desconcertante. 30 Nascido em Lünemburgo, Alemanha, em 08 de dezembro de 1927, sendo prisioneiro de guerra das Forças Americanas durante a Segunda Grande Guerra. Formado em direito na universidade de Freiburg, foi funcionário público entre 1949 e 1959 na cidade de Hanover. Somente em 1962 retomou a vida acadêmica em Harvard, tendo trabalhado com Talcott Parsons por um ano. Em 1968 assumiu a cadeira de sociologia em Bielefeld, onde trabalhou até a sua aposentadoria. Bechmann e Stehr, 2001, relembram da relativa perplexidade causada por Luhmann, entre seus pares, em seu processo seletivo em Bielefeld. Teriam lhe questionado qual seria seu programa de pesquisas e este respondeu “A teoria da sociedade moderna. Duração: 30 anos; sem custos.” (Luhmann apud Bechmann & Stehr, 2001: 186). Luhmann, após publicar mais de 14 mil páginas sob este intento, faleceu em dezembro de 1998.
56
Na segunda e última seção, ambiciono introduzir uma leitura sociológica do subsistema
educacional e o potencial do acréscimo de complexidade conferida pela sociologia enquanto
observadora dos processos educacionais e fornecedora de conteúdo disciplinar formal para o ensino
básico. Neste ponto podemos arriscar uma questão para discussão: o núcleo do dissenso encontra-se
não tão somente na sociedade e tampouco no subsistema educacional per se. Este centra-se na
própria sociologia, em particular a brasileira, no que tange a elaboração de suas finalidades,
proposições e construção de sentido que baliza sua autojustificação. Ou seja, o problema do “lugar
da sociologia” na sociedade é uma questão também interna na própria composição da semântica
atinente ao “fazer e pensar sociológicos” na medida em que, sustento, se a grande função
justificadora do subsistema educacional seria a formação de indivíduos e grupos em um sentido
civilizatório, tendo por enfoque inclusive o autocultivo, certamente a sociologia enquanto disciplina
preenche, no limite, estes requisitos.
I
A abordagem intitulada “neosistêmica” encontra na obra do alemão Niklas Luhmann o seu
formato mais acabado na teoria sociológica contemporânea. Münch (1999) compreende esta
interpretação como parte dos movimentos de releitura da obra do sociólogo norte-americano Talcott
Parsons empreendidos durante e após a década de 1970. Esta renovação do legado parsoniano
ocorre ironicamente no momento em que há sua crise de hegemonia e decorre na conseqüente
explosão da diversidade paradigmática que caracteriza a produção teórica social desde então.
Embora seja inegável a influência da obra de Talcott Parsons sobre Luhmann acredito que isto seja
insuficiente para analisarmos as especificidades teóricas do neosistemismo luhmanniano. A
abordagem do autor, que envolve uma das aplicações mais sistemáticas e exaustivas da teoria dos
sistemas como corpus teórico explicativo sobre a sociedade, não decorre sem inúmeras
particularidades teóricas e conceituais.
Jeffrey Alexander, Richard Münch, Jürgen Habermas, Wolfgang Schluchter, Anthony
Giddens, contribuem também com a releitura parsoniana pós-197031 (Münch, Op. Cit.) realizando
sínteses teóricas deste aparato conceitual com o estruturalismo, teoria kantiana, hermenêutica,
sociologia compreensiva, acionalismo teórico, etc.. Interpreto que estas abordagens são
complementares no desenvolvimento geral da teoria dos sistemas, pois o desenho da teoria permite
a incorporação de diferentes nuances teóricas. Luhmann renova este legado em uma direção
31 Cabe frisar que Imannuel Wallerstein e Giovanni Arrighi, além de István Mészáros, também se utilizam de uma abordagem que se auto-intitula “sistêmica”. Todavia estamos aqui interpretando o neosistemismo e suas subderivações enquanto conectadas diretamente ao legado parsoniano, seja em formato de crítica ou complexificação desta obra em particular.
57
inusitada ao propor o diálogo desta teoria tanto com as ciências naturais no construtivismo radical
dos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela32 quanto em atenção às propostas da
psicologia funcional de Egon Brunswik e da teoria cognitiva construtivista do aprendizado de
Jerome Bruner. Deste ponto teremos conseqüências epistemológicas profundas na maneira como a
teoria dos sistemas pode ser aplicada na análise da sociedade, onde há a re-significação e/ou a
entrada de outros elementos conceituais até então ainda não testados (Luhmann, 1997a; Bechmann
& Stehr, 2001; Neves e Neves, 2006). Ingressam no léxico do neosistemismo luhmanniano a
autopoiese, acoplamentos estruturais, observações de segunda ordem, máquinas complexas,
contingência, redução de complexidade, além dos já presentes, desde Parsons, termos como
mediuns (meios de comunicação intra e suprasistêmica), a divisão da sociedade em subsistemas, a
idéia de diferenciação funcional e uma compreensão neoevolucionista da sociedade.
Luhmann analisa sua mudança de rumo dentro da teoria dos sistemas, em direção ao diálogo
com Maturana e Varela, como um acréscimo de complexidade analítica (Luhmann, 1997a). Para o
autor, Parsons estava apenas parcialmente correto na sua análise da sociedade enquanto sistema a
partir de uma compreensão da atuação deste inspirado na mecânica. As análises parsonianas se
valem da montagem de modelos de funcionamento dos subsistemas a partir da conexão entre
diferentes inputs (entrada de dados) e outputs (respostas geradas pelo sistema) que geram uma
situação de equilíbrio, ou desequilíbrio, na interação com elementos externos a estes (deflagradores
dos inputs e outputs). Neste tipo de concepção de funcionamento elaborada por Parsons os
subsistemas, sempre fechados operacionalmente, mas em conexão com todos os outros, operam
como o que Luhmann chamaria de “máquinas triviais”33. Se a sociedade busca equilíbrio e
adaptação em um sentido evolutivo às suas intempéries e demandas (Parsons, 1969), algo que
Luhmann concorda, esta operaria de uma forma simples, mecânica, de onde os outputs seriam
processados sempre de uma mesma maneira. Ou seja, o funcionamento dos diferentes subsistemas
seria sempre idêntico, variando apenas a qualidade das respostas (outputs) em decorrência do tipo de
entrada (input) em relação aos chamados “valores meta” dos diferentes subsistemas (Parsons, 1970).
A interpretação do funcionamento dos subsistemas como máquinas triviais gera diferentes
tipos de problemas heurísticos. Primeiramente, no neoevolucionismo simples parsoniano, se todos
os subsistemas operam de uma mesma maneira, isto implica que temos um telos obrigatório, um
fim específico para as sociedades humanas, onde a diferença é de maior ou menor complexidade
entre estas. Isto gera o problema de um destino civilizatório único que não consegue explicar as
persistentes diferenças societárias encontradas no mundo contemporâneo. Diante destas
32 Uma boa introdução à biologia cognitiva dos dois cientistas naturais pode ser obtida em Maturana e Varela, 2001. 33 Termo cunhado por Heinz von Foester, vide Luhmann, 1997a, p.51.
58
dificuldades, Luhmann irá discutir o sistema social e seus subsistemas como complexos auto-
referenciais (ou autopoiéticos), em oposição à interpretação de máquinas triviais. Disto derivam
modificações substantivas sobre a teoria dos sistemas como veremos e é determinante na
caracterização do que a literatura posteriormente irá chamar de neosistemismo.
Como foi dito, Luhmann irá dialogar diretamente com a idéia de auto-referencialidade dos
sistemas e subsistemas vivos proposta por Humberto Maturana e Francisco Varela. Resumidamente
esta teoria traz inovações conceituais de grandes conseqüências para o desenvolvimento da teoria
dos sistemas. Primeiramente os sistemas são fechados operacionalmente (auto-referentes
processualmente), mas, cognitivamente abertos e sua conexão com o seu entorno, o ambiente, é
derivada de um “acoplamento estrutural” por onde são realizadas as trocas de informações entre os
diferentes complexos sistêmicos sem descaracterizá-lo em seu esforço autocentrado. Isto implica
que a análise dos diferentes subsistemas se dá, nesta perspectiva, a partir da busca das
determinações (operações) de funcionamento que cada subsistema particular irá desenvolver para si
em sua especialização funcional adaptativa. Contudo, Luhmann reforça que a maneira como cada
subsistema irá realizar seus processos de auto-compreensão se dá de forma contingente, o que
implica uma ruptura radical com o neoevolucionismo simples de Parsons. Não há um telos único e
necessário para nenhum sistema ou subsistema específico. O sistema, na sua constante interação
com o seu entorno, se constrói e é construído processualmente e constantemente em relação com o
ambiente, muitas vezes em uma situação conflituosa, pouco harmônica e relativamente tensa. Eis o
construtivismo radical apropriado por Luhmann e presente na leitura de Maturana e Varela, de onde
podemos derivar o caráter permanente de aprendizado de cada estrutura dinâmica viva.
O entorno (ambiente) é sempre mais complexo do que as operações sistêmicas em virtude
de sua fluidez e imprevisibilidade na apresentação de demandas que se apresentam para serem
processadas. Então, os diferentes subsistemas buscam elaborar respostas de redução de
complexidade em seus próprios termos (Neves e Neves, 2006) na sua interação constante com o
mesmo. Este ponto, o da busca incessante por redução de complexidade, Luhmann deve
diretamente à psicologia funcionalista de Brunswik e, também, à psicologia social construtivista de
Bruner. A consciência individual empírica concreta, ou o que Luhmann irá chamar de “sistema
psíquico” (Luhmann, 2006; 2009), realiza em sua relação com o ambiente um processo de
elaboração de sentido34 que, em última instância, visa lidar com as improbabilidades, frustrações,
contingências, em suma, produzir uma autocompreensão sobre si e sobre a realidade circundante.
34 Aqui temos também uma inflexão fenomenológica. Luhmann se apresenta enquanto leitor da filosofia de Edmund Husserl no tocante à centralidade da busca de sentido (ou significado) pelo sujeito, transpondo aqui o problema para a construção de sentido para todo complexo autopoiético.
59
Esta construção de sentido só pode advir a partir dos próprios termos elaborados pela psique, com
elementos recursivos disponibilizados pela linguagem (as narrativas pessoais e suas significações
sobre o mundo) que se apresentam enquanto ferramentas e procedimentos que visam apreender,
mediante operações cognitivas de aprendizado, a sua própria trajetória individual e suas relações.
Selecionando sentimentos, avaliações e valores, nem sempre de forma explicitamente intencional,
constrói-se um self em constante mutação. De forma análoga, neste particular, Luhmann concebe o
sistema social e seus subsistemas condizentes.
Para Luhmann (1997b), é na falência da sociedade tradicional, com a deterioração de uma
visão totalizadora de mundo proporcionada pela cosmogonia religiosa, que os diferentes
subsistemas sociais irão se construir35. Portanto, a modernidade é deflagradora de uma profunda
complexidade social, o que exigirá esta especialização e diferenciação funcional das diferentes
esferas da vida para dar conta desta mesma complexidade. Estamos falando de eventos
historicamente determinados e de relações necessárias tão conseqüentes quanto contingentes.
Decerto Luhmann amplifica o argumento da necessidade da divisão social e sua complexificação
encontrada no argumento dos clássicos da sociologia, Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber.
Também há elementos de compreensão da complexificação societária com a constituição da
modernidade na concepção de Georg Simmel de onde os processos de individuação são construídos
na trajetória dos indivíduos freqüentando os diferentes círculos sociais. Estamos falando, portanto,
de um tipo de raciocínio de origem sociológica sobre a modernidade. O ineditismo está na maneira
como Luhmann irá conduzir este debate sobre a complexidade da modernidade.
Prosseguindo, auto-referencialidade ou autopoiésis, refere-se às operações de produção de
sentido realizadas pelos subsistemas de maneira que estes se constituem como socialmente
diferenciados de seu entorno. No neosistemismo de Luhmann “(...) os sistemas são considerados
fechados sobre sua própria base operativa” (Neves e Neves, 20006, p. 189). Portanto a dinâmica
interna é fundamental para que se construa uma noção que apresente a distinção daquele sistema
particular e gere a especificação funcional correspondente. É desta forma que vemos a divisão da
sociedade em diferentes subsistemas sociais agindo de maneira especializada, com seus próprios
critérios de operação e de seletividade com relação ao entorno. No processo de diferenciação, em
resposta à complexidade externa do entorno, o sistema, em prol de sua própria sobrevivência, realiza
uma amplificação de sua capacidade elaborando uma complexificação interna.
Um exemplo elucidativo é a objetivação do subsistema direito e a sua interpretação da
realidade (o seu entorno) a partir do critério binário de seletividade lícito/ilícito (Neves, 2006). No
35 “Functional differentiantion is a specific historical arregement that has developed since the Middle Ages and was recognized as disruptive only in the second half of the 18th century.” (Luhmann, 1997b).
60
caso particular do subsistema direito, o código basal lícito/ilícito, é uma via de redução de
complexidade ante um entorno sempre mais complexo. Uma solução contingente para lidar com
inúmeras possibilidades de interação com os outros subsistemas. Todavia, isto não implica que não
existam similitudes formais entre os diferentes subsistemas sociais. Sendo todos provenientes da
própria sociedade, há a persistência de um conjunto de operações similares no funcionamento de
todos estes, o que permite a elaboração de uma teoria geral do grande complexo social e de seus
elementos. As diferenças estão na produção de sentido e no estabelecimento de valores enquanto
estratégias de redução de complexidade, mas, os subsistemas se encontram sob uma mesma grande
base operativa (a sociedade) e todos desenvolvem mecanismos de redução de complexidade,
especialização funcional, seletividade ante o ambiente, a elaboração de um meio simbolicamente
generalizado que permite a comunicação e uma semântica específica, etc..
Nestes termos, o direito, o sistema educacional, a religião, a economia, e até mesmo o
amor36, não estão impassíveis ante a realidade circundante. Esta é apenas uma formulação abstrata
de redução de complexidade, uma simplificação teórica ambicionando elaborar uma narrativa que
explique minimamente o funcionamento dos subsistemas e sua lógica. Luhmann não apostaria em
qualquer ancoragem ontológica, dado o caráter policêntrico da modernidade, e tampouco confunde
seus conceitos e a apropriação destes com a realidade em si. Isto implica dizer que há um elemento
intrinsecamente metateórico no neosistemismo luhmanniano. Tanto a sua própria teoria é uma
redução de complexidade artificial sobre a realidade quando ela também é uma “teoria das teorias”
ao ambicionar explicar os mecanismos internos que permitem a observação dos subsistemas sociais.
Toda teoria, portanto, dentro do subsistema ciência ou mesmo no âmbito filosófico, é uma tentativa
de apreender o que seria inapreensível por outros meios. Incluso o esforço do neosistemismo que se
apresenta como uma semântica de compreensão vinculada ao subsistema ciência, particularmente à
sociologia.
Ao elaborar uma teoria de grandes pretensões, um sistema teórico geral sobre a sociedade,
Luhmann o faz não sem tecer um conjunto de críticas bastante severas ao corpus teórico da
sociologia contemporânea. Este considera que as premissas de elaboração de boa parte da produção
sociológica são desenvolvidas de forma precária ante as ambições que elas mesmas declaram. Em
verdade, em suas reflexões, há o diagnóstico do abandono de uma explicação teórica substantiva por
parte do discurso sociológico das últimas décadas, com abordagens pouco inovadoras se
compararmos com as primeiras e profícuas formulações teóricas clássicas da passagem do século
36 Luhmann produziu monografias em seus trinta anos de carreira em Bielefeld visando aplicar a teoria dos sistemas aos diferentes subsistemas sociais. Dentre estes, além dos subsistemas já citados, Luhmann apresentou linhas gerais de funcionamento do subsistema de comunicação de massa, a religião, o direito, o conflito, a política, a ciência, a arte, dentre outros.
61
XIX para o século XX (Luhmann, 2006). Esta lacuna se apresenta hoje na prática pelo reforço de
análises demasiadamente normativas, onde a realidade social é pensada mais sobre o que ela
“deveria ser” do que nos potenciais e limites do que é, ou mesmo na aplicação técnica de
instrumentos metodológicos sem uma concepção correlata de sociedade que dê sentido para as suas
múltiplas configurações. Como aponta Javier Nafarrate, na apresentação da edição mexicana de “A
sociedade da sociedade” (Luhmann, Idem), temos usualmente uma ciência da sociedade na
contemporaneidade sem uma teoria da sociedade correspondente. Há, no máximo, a persistência de
formulação de teorias ad hoc. Algo que é francamente recusado pelo neosistemismo luhmanniano.
Portanto, na crítica de uma sociologia sem um conjunto de conceitos e formulações
formalmente interligadas, e diante da observação da utilização do arcabouço da sociologia clássica
sem a devida contextualização e atualização do mesmo, Luhmann provoca a sociologia a pensar
sobre si mesma. Desnaturalizando a formação da sociedade, e de suas construções de sentido,
podemos vislumbrar que a sociologia, enquanto parte do subsistema ciência e operando como tal,
desenvolve seus critérios de produção de “verdade”, sua seletividade sobre quais as práticas e
avaliações que lhe soariam legítimas, seus valores, quais as interações possíveis, os tipos de
comunicação que são aceitas ou recusadas, etc.. Cada sistema observa os outros a partir de seus
critérios específicos. Discutir quais são esses critérios de observação e entendimento na produção
sociológica implica descortinar o olhar e tentar clarear o ponto-cego costumeiro de qualquer
observação: o olhar sobre si mesmo e suas determinações. Por privilegiar a interação por
comunicações, mesmo que lidando no limite com operações de redução de complexidade binárias,
temos aí uma possibilidade interessante. O recurso comunicativo que permite a autocompreensão do
sistema, além da construção de um horizonte de sentido, detém um caráter reflexivo o que
possibilita a autocrítica e o potencial de correção de rotas e opções de seleção, embora não seja esta
uma retificação simples.
Ao eleger a sociedade enquanto unidade de análise, e a descrição teórica das operações de
observação realizadas pelos subsistemas, Luhmann aposta realizar a tarefa primordial da sociologia:
buscar um discurso de compreensão da sociedade tendo por enfoque ela mesma, com um objeto que
lhe seja específico em uma abordagem não trivial. Não como aglomerado de indivíduos, dada a
inviabilidade de pensarmos as macrodeterminações a partir meramente dos sistemas psíquicos
concretos, mas, como um arranjo contingente, delicado e absolutamente improvável sem
mecanismos de redução de complexidade e formatos de codificação que permitam a comunicação
entre as múltiplas esferas (subsistemas).
II
62
Dentre as vias de redução de complexidade, pensando a especialização atinente dos
diferentes subsistemas sociais, o subsistema educacional ocupa uma posição evidentemente
particular no contexto do neosistemismo. Sendo um subsistema como os outros, onde há a
similitude formal com as outras esferas, Luhmann irá frisar o que esta mantém de diferenciado em
relação à sociedade, o seu entorno, o que determina sua justificativa de existência e sua
especialização funcional.
Qvortrup (2005) elabora um balanço da produção luhmanniana sobre a questão educacional
e detecta uma atenção não desprezível a esta temática nas preocupações desta nova abordagem da
teoria dos sistemas. O próprio Luhmann atuou em sua trajetória profissional como funcionário
público no Ministério da Educação alemão (Luhmann, 2009) e enquanto pesquisador elaborou
artigos e livros solo ou em parceria em sua estadia em Bielefeld37.
Portanto, aplicando o arcabouço da teoria dos sistemas ao subsistema educacional,
Luhmann irá descrever o meio simbolicamente generalizado, o ensino, espaço em que se processam
as interações deste com o seu entorno, onde reside a busca por eficiência operativa e, evidentemente,
os riscos inerentes de todo e qualquer esforço de redução de complexidade. Ao detectar o caráter
arbitrário das operações de redução de complexidade, em seus esforços de seleção, o sistema
educacional da sociedade elabora seus critérios não igualitários de funcionamento. Isto implica uma
reprodução pautada em um critério de reprodução estrutural da desigualdade onde esta esfera
realiza a discriminação dentre os recursos, os indivíduos concretos, “educáveis” ou “não
educáveis”38 visando a sua própria auto-reprodução39 (Qvortrup, Op. Cit.). Longe do discurso
autocentrado do subsistema educacional sobre ele mesmo, onde ainda permanecem traços de um
humanismo relativamente ingênuo sobre as suas finalidades últimas, Luhmann detecta este traço
37 Em parceria com Karl-Eberhard Schor: Zwischen Technologie und Selbstreferenz (1982) – “Entre tecnologia e auto-referência”; Zwischen Instransparenz und Verstehen (1986) – “Entre intransparência e compreensão”; Zwischen Anfang und Ende (1990) – “Entre início e final”; Zwischen Absicht und Person (1992) – “Entre proposições e pessoas”; Zwischen System und Unwelt (1996) – “Entre sistema e ambiente”. Com Dieter Lenzen em 1997 Bildung Und Weiterbildung im Ezriehungssystem – “Educação e educação continuada no sistema educacional”. A publicação póstuma de Luhmann acerca do sistema educacional intitula-se Das Erziehungssystem der Gesellschaft , “O sistema educacional da sociedade”, apresentada ao público na primavera do hemisfério norte no ano de 2002. Cabe notar que parte das últimas produções de Luhmann detinham essa opção desde o título, a vinculação do subsistema específico ao sistema social: a religião da sociedade, a política da sociedade, a sociedade da sociedade. Portanto, é coerente a opção pelo sistema educacional da sociedade. 38 Vide, por exemplo, o relatório de 2011 do Unicef (Fundo das Nações Unidas para Infância) onde se apresenta o dado alarmante sobre a relação entre público adolescente brasileiro e a permanência destes no sistema educacional formal. Nada menos que 14,8% dos indivíduos na faixa etária compreendida entre 15 e 17 anos estão fora da escola. Maiores detalhes podem ser encontrados no sítio do Unicef: http://www.unicef.org/brazil/pt/br_sabrep11.pdf (acesso em 02 de dezembro de 2011). 39 Cada subsistema elabora seu meio simbolicamente generalizável, o que permite a comunicação interna sem a necessidade prioritária do emprego de palavras em seu funcionamento ordinário. Por exemplo: o subsistema econômico utiliza o dinheiro enquanto meio simbolicamente generalizável e o código binário pagamento/não pagamento para realizar suas operações. No âmbito da política apresenta-se o meio simbolicamente generalizável poder e o código poder/não poder (situação/oposição) em seu funcionamento.
63
peculiar do subsistema onde, em última instância, operam critérios intrínsecos de inclusão e
exclusão tanto de indivíduos quanto de conteúdos a serem ministrados.
O funcionamento operacionalmente fechado deste subsistema, o que proporciona o
estabelecimento de seus critérios de funcionamento, faz com que invariavelmente se ignore a
dinâmica particular e os critérios de eficiência/risco dos outros subsistemas. A observação de um
sistema sobre outro se dá a partir dos critérios estabelecidos por ele mesmo trazendo problemas na
composição de algo que poderíamos chamar de alteridade. A posição de choque e conflito
semântico é persistente na consecução cotidiana de suas atividades que visam a sua auto-reprodução
enquanto atividade maior de sua existência. O reconhecimento da escassez dos recursos disponíveis,
materiais e simbólicos, convive com a interdependência forçada no mais amplo sistema social sendo
expressão de uma interação dramática onde se vivencia o conflito de interesses.
Na busca por sua reprodução, em conexão seletiva também com as necessidades da
sociedade, o sistema educacional visa promover o cultivo dos indivíduos, sendo parcialmente
responsável pela transformação destes em pessoas, e confere critérios de aprendizado formal em
níveis e exigências condizentes com um quadro meritocrático de inserção e promoção profissional.
Luhmann parte do princípio que a socialização primária seja insuficiente para fornecer os elementos
comunicativos que permitam o trânsito dos indivíduos em uma realidade policêntrica. Ou seja, o
subsistema educacional refina, em critérios formalizados, o movimento estrutural do “processo
civilizador” (Elias 1990;1993) que define, dentre outros elementos, como a interação social
moderna deve ser pautada: a polidez, o autocontrole pulsional e, para além disso, adiciona o
domínio de códigos e conteúdos que tornam a interação moderna civilizada. Podemos afirmar que
na elaboração do indivíduo enquanto pessoa é preparada a interação ego e alter enquanto fim. No
mesmo movimento, fornece a força de trabalho educada desigualmente em virtude da estratificação
atinente à divisão social e econômica do trabalho.
Na sua interação com o entorno o subsistema educativo se relaciona criticamente mais
diretamente com três potenciais fornecedores de recursos: o subsistema político, subsistema
econômico e lida, internamente, com os alunos (sistemas psíquicos). Tanto necessita elaborar
critérios de seleção dos alunos em curso quanto articula formatos de recrutamento de futuros alunos.
Por razões auto-evidentes há a interferência direta destes fatores em seu funcionamento, o que
redunda na classificação destas comunicações entre informação, algo processado pela lógica
operativa do subsistema, ou irritação, fonte de incrementos desestabilizadores com o entorno.
No tocante à relação entre sistema educacional, sua semântica, e o educando, vivencia-se
um dilema lógico insuperável. Supondo que cada sistema psíquico, as consciências empíricas
concretas e individuais, seja operacionalmente fechado, o que permite uma relativa autonomia
64
operacional da consciência humana em seus processos de significação, o sistema educacional lida
constantemente com a opacidade de avaliação de sua real eficiência40. A aposta no seu conteúdo
transformador sobre os indivíduos, onde iria compor o aumento de complexidade do sistema
psíquico com incrementos formais de aprendizado e conteúdos, só pode ser analisado mediante
provas e avaliações usualmente sazonais. Mas, dificilmente poderia ser apreendido no momento em
si da comunicação do ensino e na tentativa de elaboração de algum tipo de intersubjetividade entre
conteúdos disciplinares e os alunos. Da mesma maneira para o educando o processo de elaboração
didática do conhecimento, a tradução dos conteúdos disciplinares no formato de linguagem é
intransparente pois esta codificação é realizada pela mediação do professor, o especialista dentro
daquele subsistema, e pelos cânones disciplinares. Esta é uma das improbabilidades que o
subsistema, limitado em suas buscas por eficiência operativa, precisa lidar recorrentemente em sua
prática ordinária. A dupla intransparência é condição de sua realização. Ou, a cultivação,
configurando meta última do subsistema educacional, na prática se apresenta no máximo como
Deus Ex Machina dado que o real espaço de aprendizagem é o sistema psíquico.
É patente que este desafio incomensurável não é ignorado pelo subsistema educacional. O
meio reflexivo do subsistema, a pedagogia, objetiva buscar tanto elementos de autocompreensão,
visando conferir organização para as práticas educativas e fornecer conteúdos normativos e
valorativos (Luhmann & Schorr, 1999), quanto estratégias para lidar com esta fórmula de
contingência: gerar cultivo e mudança ante um alter que lhe é opaco (o sistema psíquico) e, ao
mesmo tempo, seu objeto de legitimação/justificação último.
Nestes termos que compreendo o acréscimo de complexidade interna no subsistema
educacional brasileiro com a entrada da disciplina sociologia no ensino básico. A sociologia,
enquanto ciência particular e dotada de um objeto específico, a sociedade em seus arranjos, dilemas
e interações, funciona como um potencial aumento de reflexividade ante o conjunto de tarefas acima
descritas. A sociologia figura neste contexto em uma dupla condição: primeiramente a educação é
objeto de análise de vasta produção sociológica, na medida em que as práticas e instituições
educacionais figuram enquanto parte primordial do sistema social, de onde derivam conteúdos
simbólicos, normativos e expressam, em muito, os paradoxos e potenciais da própria sociedade. Em
outro ponto, ofertando neste momento conteúdos enquanto disciplina específica do aprendizado
formal, auxilia diretamente no intento de adicionar elementos aos processos de cultivação ocorridos
na interface ensino/sistemas psíquicos. Portanto, em tese e ciente dos limites de toda interação
40 “If we are to comprehend individual people as conglomerates of autopoietic, self-dynamic, non-trivial systems, this doesn´t prove any motive for the opinion that they can be brought up/cultivated.” (Luhmann apud Qvortrup, 2005: 10).
65
sistêmica, podemos vislumbrar conseqüências alvissareiras da conexão sociologia e subsistema
educacional da sociedade.
Retomando a questão para discussão presente na introdução deste ensaio, não
desconsiderando os esforços de análises que consideram como o subsistema político processa a
demanda pela inclusão da disciplina de sociologia no ensino básico e tampouco as derivações
normativas codificadas juridicamente que a regulamentam, creio que a análise interna deva ser
realizada. Cabe pensarmos a resistência das ciências sociais acerca da entrada desta disciplina que
implica, na rotina acadêmica, um relativo desprestígio da habilitação “licenciatura” no âmbito do
curso universitário. É notável a base aristocrática de formação das ciências sociais no Brasil, com
raras e conhecidas exceções dentre os nomes de maior projeção. Isto implicou uma concepção da
atividade intelectual relativamente desconectada tanto com necessidades sociais objetivas de
inserção de seus formandos quanto na estruturação dos cursos, dotados de uma produção de sentido
amplamente sedimentada por uma busca de entrada nos espaços dotados de capital simbólico
hieraquizadas pela própria disciplina!
Ora, como apresentei em toda a minha argumentação, os critérios de seletividade não são
naturais, de modo que privilegiar um conjunto de espaços de ocupação profissional, em detrimento
de outros, não seja uma organização imutável. Os processos de comunicação e legitimação das
ciências sociais, justamente pelo seu caráter recursivo e reflexivo, devem ser mobilizados para o
aproveitamento produtivo e eficiente das potencialidades existentes nesta nova constelação: o
adensamento da meta primordial que a sociologia pode oferecer no processo de ensino e de aumento
de complexidade deste meio simbólico na intricada tarefa de produção de cultivo dos sistemas
psíquicos.
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67
Capítulo 4 A sociologia e as tensões sociais, epistemológicas e culturais da escola
Luiz Fernandes de Oliveira41 Houve um tempo em que falar de educação escolar era afirmar uma perspectiva de futuro
para as novas gerações de crianças e jovens. Os docentes tinham seus papéis, os estudantes tinham
suas obrigações, os métodos tinham suas funções e as instituições de ensino tinham suas regras e
normas.
A escola básica surge por volta dos séculos XVII e XVIII, junto com a chamada
modernidade na Europa. Era na escola que se depositavam todas as esperanças redentoras de uma
sociedade mais justa, igualitária, fraterna e livre.
A pesquisa histórica revela que uma política educacional, em seu sentido específico, tem
início no século XIX e decorre de três visões de mundo dominante no ocidente: a crença no poder
da razão e da ciência, o projeto liberal de igualdade de oportunidades e a luta pela consolidação dos
Estados Nacionais.
A partir dessas visões, a educação escolar recebe uma missão: a ilustração do povo, a
instrução pública universal e a alfabetização básica. Essa missão não significou necessariamente que
os sistemas nacionais de ensino – na Europa e na América do Norte – tenham assumido proporções
significativas de imediato. Pelo contrário, do final do século XVIII até meados do século seguinte, a
presença da escola é muito mais intenção de um grupo de intelectuais da burguesia do que a
realidade.
Só a partir do século XX houve um desenvolvimento significativo do processo de
escolarização nas sociedades ocidentais, atingindo basicamente todas as classes sociais. Neste
sentido, o que de fato estamos afirmando é que a escola moderna – tal como hoje a conhecemos – é
uma invenção histórica, ou seja, surge com a ascensão do mundo industrial e de uma nova classe
social, a burguesia.
Após a Idade Média, aparece uma instituição educativa especializada que separa o aprender
do fazer, ou como afirma Canário (2005: 61), “a criação de uma relação social inédita, a relação
41 Doutor em Educação Brasileira pela PUC – Rio, Mestre em Ciências Sociais pela UERJ, Graduado em Sociologia pela Universidade “La Sapienza” de Roma e Especialista em História da África e do Negro no Brasil pela UCAM. Professor Adjunto em Ensino de Ciências Sociais do Departamento de Teoria e Planejamento Educacional do Instituto de Educação e do Programa de Pós-Graduação em “Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares" - PPGEduc da UFRRJ.
68
pedagógica no quadro da classe, superando a relação dual entre o mestre e o aluno; uma nova
forma de socialização (escolar) que progressivamente viria a tornar-se hegemônica”.
Neste sentido, vale a pena lembrar que ainda não se completou mil anos a idéia de que a
educação é um produto da escola, com um conjunto de pessoas especializadas na transmissão de
saberes e conhecimentos. Além disso, essa nova instituição, surgida na Europa, constituiu-se como
uma grande novidade a partir de três elementos: a escola é uma forma, uma organização e uma
instituição.
A escola é uma forma porque representou uma nova maneira de imaginar a aprendizagem,
baseada agora na acumulação de conhecimentos e por uma autonomia própria.
A escola é uma organização porque transformou o ensino individualizado em ensino
simultâneo para muitos indivíduos. Antes da escola moderna existia um mestre para cada aprendiz,
com o surgimento da escola esse mesmo mestre deveria dar conta da aprendizagem de vários
aprendizes. Por ser uma organização traz a idéia de classe de estudantes, o tempo de aula e o espaço
da sala de aula.
E a escola é também uma nova instituição porque passou a funcionar como uma “fábrica de
cidadãos”, possuindo um conjunto de valores estáveis e próprios, portanto, esses foram os
elementos que contribuíram para uma longa estabilidade da escola. Ou seja, criaram-se regras, um
tempo de aprendizagem dividida em etapas, uma organização burocrática, etc. em outras palavras, o
jeito de ser dessa instituição deu a escola um papel fundamental de inclusão social e de formação
cultural e política.
De início a escola servia somente para os nobres. A partir dos séculos XVIII e XIX a
burguesia passa a dominar estes espaços de aprendizagem. O “resto”, pobres, operários e
camponeses, estavam relegados as aprendizagens do dia a dia. Essa invenção histórica, por sua vez,
promove uma revolução dos modos de socialização e uma invenção da infância.
Por exemplo, na idade média, as crianças não eram consideradas pessoas que não sabiam
quase nada, mas eram considerados pequenos seres humanos, apenas um pouco diferentes dos
adultos. Não havia a preocupação de uma educação sistematizada pelos adultos, como se esses seres
humanos fossem uma caixa vazia na qual era necessário ensinar os fazeres da vida e os
conhecimentos.
Um estudioso português da história da escola, Rui Canário, afirma que do período da
Revolução Francesa (1789) ao fim da Primeira Guerra Mundial (1914), a escola viveu uma certa
“idade de ouro” ou período das certezas.
O autor quer dizer com isso que a escola estava em harmonia com os objetivos traçados pela
grande burguesia industrial, ou seja, transformar idéias, valores e princípios em ações de um
69
trabalho profissional e organizado. Em outras palavras, a escola cumpria suas funções de ensinar o
básico para que os trabalhadores dessem conta de seus afazeres nas fábricas, ou seja, saber ler
minimamente, saber escrever e saber contar.
Mas para Rui Canário, essa escola criou novos atores sociais que não existiam antigamente:
o aluno, o professor, o especialista em educação e uma nova ciência, a pedagogia.
O final do século XIX vai presenciar a luta dos operários e a luta democrática pela expansão
de direitos civis e sociais, dentre eles o direito à escolarização para todos. Assim, o tempo de
escolarização aumenta nos países europeus, a gratuidade do ensino ganha progressivamente mais
espaços e após a Segunda Guerra Mundial, até meados dos anos de 1970, a escola entra num
período de promessas.
É o período de crescimento espetacular da oferta educativa escolar. É a passagem de uma
escola elitista para uma escola de massa. Ou seja, se antes as escolas davam conta das tarefas
educativas dos filhos da burguesia e dos filhos dos trabalhadores das fábricas, agora a escola deveria
atender a todos. Essa promessa significa que a escola passa da simples tarefa de alfabetizar e ensinar
a contar, para a tarefa de promover o desenvolvimento social e cultural, a mobilidade social. Assim,
a escola deveria fazer com que todos tivessem a possibilidade de subir na vida. A escola deveria
ainda cumprir o ideal de igualdade, ou seja, cumprir a promessa de que uma educação igual para
todos pudesse contribuir para que qualquer um tivesse uma vida melhor.
Contudo, este processo não ocorre por acaso, pois é o período de crescimento econômico
mundial, de aumento do volume de comércio internacional e de crescimento das empresas
multinacionais. Nesta época, as nações européias e principalmente os Estados Unidos investem mais
recursos na escola e alimentam essa promessa, ou seja, reforçam a ideia de que a escola pode
resolver a situação econômica e propiciar uma vida melhor para os indivíduos.
Portanto, é um período de otimismo, de uma visão de futuro inesgotável e da predominância
da idéia que a educação traz necessariamente um desenvolvimento para todos. Como afirma Rui
Canário, “o horizonte normal de cada cidadão é o de esperar uma melhoria regular e constante das
suas condições de vida”.
Mas, ao final dos anos de 1960 e principalmente em meados dos anos 1970, a escola entra
num período de incertezas. Aparecem as críticas de que a escola reproduz as desigualdades sociais,
que mantém as ideologias dominantes de exclusão e de injustiça social. Mais tarde, nos anos de
1980, vão surgir novas críticas na perspectiva de que a escola e seus mecanismos internos reforçam
o racismo, a discriminação da mulher e a discriminação cultural.
Assim, no período após a Segunda Guerra Mundial, a escola promete muita coisa, até a
possibilidade de um indivíduo mudar de classe social e melhorar sua vida. Mas, isso nem sempre
70
acontecia. Foram necessários alguns estudos sobre a escola para descobrirmos que a esta, no seu
cotidiano, reproduzia algumas discriminações e excluía alguns sujeitos, além de admitir somente
algumas ideias em detrimento de outras.
Um exemplo clássico disso é a denúncia, por parte de alguns estudiosos, de que em muitas
matérias de ensino, os professores informam somente um modo de aprender. Por exemplo, diziam
eles que os professores ensinavam que a cultura é tudo aquilo representado por obra de artes,
museus, cinema e leituras de muitos livros. Sendo assim, aqueles estudantes que não freqüentavam
museus, galerias ou não tinham acesso a muitos livros, sentiam-se inferiorizados na sala de aula e
logo se desmotivavam em aprender mais coisas.
Esses autores baseavam seus estudos em estatísticas que comprovavam que os filhos da
classe operária e de trabalhadores rurais sofriam essa desmotivação dentro da escola. Isto se
expressava no alto índice de evasões e repetências dessa camada social na escola.
Enfim, a escola passa a ser questionada na sua raiz. A questão passa a ser: a escola será
mesmo um espaço que pode cumprir as promessas de desenvolvimento e igualdade de fato?
Percebemos então que a escola é um espaço em constante transformação ao longo da história,
que mesmo mantendo alguns de seus pressupostos de origem, deve dar respostas a novas demandas
sociais e novas reivindicações. Aqui cabe perguntar: até que ponto esta instituição, neste período de
incertezas, pode responder aos novos desafios e novas exigências sociais?
A resposta não é fácil, mas se entendemos que a escola é uma construção histórica,
podemos ser capazes de encontrar ferramentas de análise e de transformações. Vejamos, então, três
reflexões teóricas importantes e que dizem respeito às discussões no campo do ensino de sociologia.
A produção do conhecimento escolar.
Numa conferência proferida em 2003, em Montreal, Canadá, Bernard Charlot relatava uma
experiência de orientação de tese de doutorado sobre a relação com o saber de professores da rede
publica de São Paulo. Neste relato, o autor se perguntava por que os discursos e comportamentos
dos professores de São Paulo se pareciam muito com os professores franceses. Depois de algum
tempo, levantou a hipótese de que há “universais da situação de ensino”. Ele entende e qualifica
situação de ensino como aquele que se percebe frequentemente, ou seja, o professor trabalha em
uma instituição, recebe um salário, tem colegas, deve respeitar um programa (ou um currículo) e
leciona para vários alunos, que são crianças ou jovens.
Outras situações de ensino são citadas por ele como: todo indivíduo é educado; essa
educação pressupõe uma relação com um outro, o indivíduo apropria-se apenas de uma parte do
71
patrimônio humano, pois está inserido em uma época, uma classe e uma cultura específica e;
finalmente, em nossa época o ensino é gerenciado, ou seja, encontra-se numa instituição sob o
controle e o olhar de autoridades hierárquicas, contando inclusive com limitações de espaço, tempo
e recursos.
Não é nossa pretensão defender aqui esse denominado “universais da situação de ensino”,
mas somente citar um importante estudioso do campo da educação para situar que as condições da
profissão docente podem ser marcadas por tensões, contradições e relações sociais e culturais, além
daquelas encontradas no espaço escolar. Neste sentido, pensar a profissão docente atualmente e,
mais especificamente, a ação do professor de sociologia na educação básica requer uma análise
complexa sobre a própria identidade docente.
Charlot (2005) indica algumas pistas. Em primeiro lugar, quando se constata que o
indivíduo se humaniza numa relação entre o seu mundo exterior e interior, ele afirma que ninguém
pode aprender sem uma atividade intelectual, sem uma mobilização pessoal42. Assim, esta idéia
remete a outra: só se pode ensinar a alguém que aceita aprender, ou seja, que aceita investir-se
intelectualmente, daí, o professor não produz o saber no aluno, ele realiza alguma coisa (uma aula, a
aplicação de um dispositivo de aprendizagem, etc.) para que o próprio aluno faça o que é essencial,
o trabalho intelectual.
Em segundo lugar, a partir da constatação de que um indivíduo apropria-se apenas de uma
parte do patrimônio humano, Charlot nos indica, por isso, o fato do professor e a instituição que
representa, estar sempre colocado em questionamento: por que ensinar mais isso do que aquilo?
Para que serve isso? Ou de forma mais radical: Para que serve a escola, já que a “vida real” é lá
fora? Ou seja, para Charlot, a legitimidade do professor está sempre em jogo.
E, por fim, quando se postula que o ensino é gerenciado, que se encontra numa instituição
sob o controle e o olhar de autoridades hierárquicas, identifica-se uma contradição, na medida em
que gerir é prever, racionalizar ou da perfeita transparência e total domínio. Entretanto, o ensino
implica em outra lógica, pois o professor não pode gerir racionalmente um ato cujo sucesso depende
da mobilização pessoal do aluno, mobilização cujas forças são sempre um tanto obscuras.
A partir daí, Charlot (2005) conclui que essas tensões e contradições fazem parte da grande
maioria das situações de ensino escolar, mas que tomam formas específicas conforme as épocas e as
sociedades. Portanto, a partir dessas reflexões iniciais, o que representa isso atualmente em uma
sociedade como a nossa, onde a mutação sócio cultural é uma constante e o ensino é considerado
42 Na verdade este é um postulado que já encontramos nas obras de Paulo Freire.
72
uma profissão? O que pode representar, mais especificamente, a profissão de professor de
sociologia para jovens no Ensino Médio?
As respostas a estas questões não devem ser encontradas apenas no campo de atuação dos
professores de sociologia. Já de algum tempo, a identidade profissional do professor tem sido
tratada sob diferentes enfoques.
Numa perspectiva mais geral pode-se afirmar que a sociologia no Brasil se limitou, em
termos de profissionalização, no âmbito acadêmico e distante da tarefa de pensar sua inserção no
ensino básico. Este quadro deve ser considerado, na medida em que a trajetória do ensino de
sociologia se constituiu em períodos marcados ora pela sua presença, ora pela sua ausência nas
escolas do Ensino Médio. Atualmente, vivemos um novo período: a recente aprovação da Lei
11.684, de 2 de Junho de 2008 que alterou o art. 36 da LDBEN e passou a incluir a Filosofia e a
Sociologia como disciplinas obrigatórias no Ensino Médio.
Em raros momentos na história da sociologia no Brasil, se elaborou propostas pedagógicas e
curriculares para inserção desta disciplina no ensino básico e, quando esta conquista um estatuto
legal, faz-se necessário todo um debate em torno de métodos, perfis profissionais dos docentes,
conteúdos curriculares, etc. Constitui-se então uma gama de propostas e metodologias que são
permeadas por muitas polêmicas e infinitos debates.
A sociologia como disciplina escolar é ainda incipiente, não está totalmente construída,
consolidada e com lugar definido nos currículos das escolas. Há certo consenso entre aqueles que
discutem está temática de que não temos a tradição das disciplinas canônicas como biologia,
educação física e química; não temos o glamour de determinadas áreas, como espanhol e
informática educativa; não “caímos” no vestibular; não temos material didático de qualidade e ainda
contamos com a ausência de conhecimento de alunos e também de professores sobre a “misteriosa”
disciplina de sociologia. Daí resultam perguntas em forma de questionamentos críticos: Para que
serve isso? O que se aprende em sociologia? O que eu ganho estudando esta disciplina? Por que a
escola ao invés de ensinar essas coisas, não prepara para o mercado de trabalho?
São questionamentos normais, e até semelhantes àquelas citadas por Charlot (2005), para
um campo de conhecimento que sofreu de uma intermitência nos currículos da educação básica em
todo o século XX. Essa intermitência deve ser levada em consideração quando pensamos em vários
aspectos da produção acadêmica sobre a identidade profissional dos docentes.
Apesar de nos últimos anos registrar-se o início da produção de livros, de dissertações e de
teses sobre o assunto, são poucas as pesquisas que até então trataram de aspectos da
institucionalização da sociologia, dos livros didáticos e também das representações e identidades de
73
professores do Ensino Médio sobre a sociologia (Meucci, 2000, Carvalho, 2004; Sarandy, 2004;
Silva, 2005; Eras, 2006; Takagi, 2007; Sene, 2007; Handfas, 2007; Ferreira, 2011; entre outros).
Nos últimos anos o debate teórico sobre as questões da prática de ensino, da formação
docente e do conhecimento escolar vêm ganhado destaque na literatura educacional, muito em
função da crise dos paradigmas que sustentaram, por longos anos, as relações entre o fazer
pedagógico em sala de aula e a formação inicial docente. Na verdade as tensões desta relação se
expressam nas contradições entre teoria e prática, formuladas por uma concepção tecnicista de
formação de professores.
Charlot (2005), afirma que o conhecimento é o centro da experiência da escola. Esta,
portanto, é um lugar onde o professor está tentando ensinar coisas para estudantes que estão
tentando aprendê-las. Segundo Charlot, quem teoriza a escola e esquece esse fato deixa o mais
importante fora do pensamento. Em diversas obras ele vai trabalhar com a categoria “saber” como
sinônimo de conhecimento.
Atualmente, a questão do saber, como conhecimento científico, é o termo que tem se
mostrado mais evidente nos debates e pesquisas educacionais, relacionados tanto a formação e
profissionalização docente, quanto ao currículo e a didática, bem como aqueles relacionados a
compreensão do fracasso escolar.
A preocupação com o saber ressurge em nova perspectiva que rompe com o modelo da
racionalidade técnica em relação ao professor e sua formação docente, ao currículo e a didática. Em
relação ao professor, este modelo o concebia como um técnico cuja atividade profissional consistia
na mera aplicação de teorias e técnicas científicas. Assim, o saber era hierarquizado, pois, por cima
estavam os conhecimentos científicos produzidos por especialistas, os mais valorizados, e por baixo,
a técnica de operacionalização desses conhecimentos efetuado pelos professores, subordinado e
inferior. Em relação ao currículo, este modelo de racionalidade técnica informou a elaboração de
propostas sobre o que deveria ser ensinado para os estudantes. Com base na crença de conteúdos
universais, inquestionáveis, oriundos da ciência, as questões que se apresentavam referiam-se a
problemas de organização dos conteúdos a serem ensinados. A questão do currículo como resultante
de um processo de seleção cultural, envolvendo também questões de poder, não era posta. Por fim,
em relação à didática, predominaram as preocupações com o “como ensinar”, de forma
cientificamente embasada, que buscava identificar apenas os procedimentos e recursos didáticos
com eficiência máxima para o controle da aprendizagem dos estudantes.
Neste sentido, situações de fracasso escolar, e mais recentemente, as dificuldades de
aprendizagem dos novos estudantes de diversas origens que ascendem massivamente às escolas,
começaram a demonstrar que o paradigma da racionalidade técnica não oferecia instrumentos
74
teóricos necessários para responder as questões emergentes. Buscando investigar as origens desses
problemas, alguns pesquisadores foram levados a dirigir suas atenções para os saberes, centrais na
escola conforme afirma Charlot (2005).
No campo educacional, duas linhas de pesquisa são atualmente predominantes: as
investigações no campo das atividades docentes e aquelas relacionadas a questão do currículo.
Na primeira linha de pesquisa, busca-se investigar os saberes envolvidos nas atividades
docentes e que, se melhor conhecidos, podem contribuir para a qualificação através da formação e
fortalecimento da identidade profissional docente. No bojo desses estudos foi criada a categoria de
saber docente, que procura dar conta da complexidade e especificidade do saber construído no (e
para) o exercício da profissão. Assim, surgem investigações e teorizações (Nóvoa, 1999; Tardif,
2000 e 2004; Schön, 1995 e Perrenoud, 2001) que colocam em destaque a crise de confiança na
docência e uma culpabilização do caos escolar e da deficiente aprendizagem dos alunos. Nestas
pesquisas sobre a formação de professores, busca-se compreender como se dá a aquisição dos
saberes que os profissionais carregam e constroem.
A segunda Linha de pesquisa vai focar a questão do currículo. Tributários das elaborações
das teorias críticas, alguns autores como Chevallard (1991); Forquim (1993); Moreira (1997, 1999);
Lopes (1999 e 2007); Goodson (1998) dentre outros, cunham a categoria conhecimento escolar,
referindo-se a um conhecimento com configuração própria, recontextualizado a partir de
necessidades e injunções da ação educativa. Neste sentido, opera-se a utilização de conceitos como
cultura escolar e conhecimento escolar que possibilita considerar a didática em suas articulações
com o contexto sociocultural e com os saberes de referência, o que implica considerar aspectos de
ordem epistemológica. Assim, o que poderia significar o reconhecimento dessas teorizações no que
toca as relações entre conhecimento escolar e conhecimento científico?
Por exemplo: quando se questiona quais seriam os objetivos da sociologia no Ensino Médio,
quando se espera dela uma intervenção mais promissora na educação básica ou quando se propõe
novas metodologias e recursos didáticos, mesmo em contextos adversos ao seu ensino, podemos
pensar sobre a suposta contradição entre conhecimento cientifico e conhecimento escolar.
Focalizamos o conhecimento escolar enquanto mediação didática dos conhecimentos
selecionados pela escola, processo esse eminentemente produtor de configurações cognitivas
próprias. O conhecimento escolar é um conhecimento imerso na contradição de ter por objetivo a
socialização do conhecimento científico e/ou erudito, ao mesmo tempo em que constrói o
conhecimento hegemônico. (Lopes, 2007)
O conteúdo da educação está sujeito a grandes variações históricas e expressa, consciente ou
inconscientemente, certos elementos básicos da cultura: é uma seleção determinada, um conjunto
75
particular de ênfases e omissões. Neste sentido há necessariamente um processo de mediação
didática. Tal processo se constitui numa reconstrução dos saberes, notadamente saberes eruditos e
científicos, que permitem que afirmemos haver a constituição de uma epistemologia eminentemente
escolar, com uma forte influência dos professores.
Assim, podemos constatar que o esforço de professores de sociologia em elaborar
explicações para seus alunos acaba por constituir novas formas de abordagem de conceitos
científicos, novas configurações cognitivas, não necessariamente equivocadas. Novas formas que
facilitam a compreensão de conceitos, inclusive pela comunidade científica. Entretanto, este
processo só é possível, sem dúvida, se os professores tiverem facilidades em suas condições de
formação e trabalho, além da legitimação epistemológica na produção de seus saberes.
A especificidade da experiência educativa escolar têm trabalhado com a categoria
"conhecimento escolar", referida como aquela que designa um conhecimento com configuração
cognitiva própria, relacionado mas diferente do saber científico de referência, e que é criado a partir
das necessidades e injunções do processo educativo, envolvendo questões relativas à mediação
didática, ao conhecimento de referência e ao cotidiano, bem como à dimensão histórica e
sociocultural. Neste sentido, pensar a prática dos professores de sociologia e na sua formação é
constatar que esta prática e formação pedagógica resultam da articulação de diferentes saberes.
O conhecimento da sociologia produzido nas universidades passa necessariamente por um
processo de mediação didática, numa dinâmica social onde intervêm os sujeitos presentes na escola,
assim como os diversos aspectos da prática pedagógica, de modo a traduzir esses conhecimentos em
conteúdos ensináveis nas escolas de Ensino Médio. Essa reflexão mobiliza uma discussão sobre a
diferenciação da sociologia como conhecimento de referência e da sociologia como conhecimento
escolar.
Os debates sociológicos e culturais e a Escola Básica
Como afirmamos anteriormente, do período de promessas que a escola vivenciava,
passamos ao período das incertezas.
Essas incertezas é oriunda em grande parte dos movimentos sociais dos anos 60 a nível
internacional e nos anos 80 no Brasil, de onde surgiram as teorizações que colocavam em xeque o
pensamento e a estrutura educacional tradicionais. Os movimentos de renovação da teoria
educacional que abalou as teorias tradicionais, tendo influência não apenas teórica, inspiraram
verdadeiras revoluções nas próprias experiências educacionais e explodiu em vários locais.
Surgindo então, as chamadas teorias críticas, que criticam o status quo, responsabilizando-o pelas
76
desigualdades e fracassos escolares. No âmbito do currículo e das práticas pedagógicas, por
exemplo, para a teoria crítica o importante não é desenvolver técnicas de como fazer o currículo ou
as práticas, mas desenvolver conceitos que nos permitam compreender o que o currículo e as
práticas fazem.
As teorias críticas evidenciaram as determinações de classe dos processos pedagógicos e
curriculares, porém, nas grandes transformações econômicas, culturais e políticas dos anos 90, vem
a tona a crítica cultural e as teorias multiculturais, mostrando outras dinâmicas de produção de
desigualdades como gênero, raça e sexualidade, que não podem ser reduzidas à dinâmica de classe.
O enfoque multicultural nasce nas sociedades cujas histórias foram marcadas pela presença
e confronto de povos culturalmente diferentes. O debate acerca do caráter multicultural das
sociedades surge, como um problema, em sociedades forjadas pelo colonialismo europeu, no
contexto europeu em função das recentes imigrações e no Brasil, em função dos novos movimentos
sociais emergentes a partir da década de 80. E nas tensões políticas e sociais do mundo, nos anos 90,
ganha força o multiculturalismo, “movimento teórico e político que busca resposta para os desafios
da pluralidade cultural nos campos do saber, incluindo não só a educação, como também em outras
áreas” (CANEN, 2002, p. 175).
O multiculturalismo estuda o conhecimento transmitido nas diversas instâncias produtoras e
transmissoras de cultura, revelando etnocentrismos, estereótipos e buscando, por um lado, espaços
para a incorporação de uma pluralidade de vozes, de diversas formas de se construir e interpretar a
realidade, e por outro, reconstruindo histórias que produzem identidades plurais procurando
desconstruir discursos hegemônicos e narrativas que se pretendem universais.
A identidade é definida como construída, por meio dos discursos culturais, elaborados e
desenvolvidos em espaços diversificados (HALL, 1997). Dito de outra forma, a cultura constitui
nossas identidades. É uma virada cultural que traz, então, para o terreno das discussões, a
necessidade de compreender os mecanismos de regulação e de poder que permitem certos discursos
e silenciam outros, que favorecem o crescimento de certas identidades em detrimento de outras.
Aqui, cabe ressaltar, que a cultura constitui espaços de conflitos, constitui campos em que se
desenvolvem relações de poder em torno de práticas de significação e de representação. Na esteira
dessas análises, surgem os Estudos Culturais, que servem como ferramenta de análise em diversas
áreas. Tratando-se também de um campo interdisciplinar e integrador de currículos.
A diversidade de culturas, as identidades plurais, em movimento e em relações assimétricas
de poder, ocasiona a necessidade de se desconstruírem discursos e práticas que silenciam
determinadas identidades culturais. A partir dessa perspectiva, identifica-se que é na matriz da
virada cultural e dos Estudos Culturais, que “se evidencia a centralidade da categoria cultura em
77
movimentos de afirmação e de resistência, que buscam responder a processos de exclusão e de
aniquilamento de identidades culturais” (CANEN e MOREIRA, 2000, p. 25).
Segundo MOREIRA (1999), nos últimos 20 anos tem-se intensificado no campo
educacional o foco de análise na formação docente, nos currículos e sua materialização nas práticas
pedagógicas. Por dentro das questões curriculares, vem se destacando uma ênfase no
multiculturalismo. Assim, o surgimento desta discussão se evidencia a partir do entendimento de
que a pluralidade cultural e as várias manifestações identitárias, vêm sendo reconhecidas em
diversos campos da atualidade. Na educação, indica pensar formas de valorizar e incorporar as
identidades plurais em políticas e práticas curriculares (CANEN e MOREIRA, 2000).
Neste sentido, o novo século se caracteriza também por tensões referentes à afirmação de
identidades plurais em sociedades cada vez mais multiculturais e desiguais, levando com si, a
necessidade de pensar os currículos e praticas de ensino, não mais monoculturais, raciais e
culturalmente míopes, constituídos sobre uma noção de universalidade, a partir de valores e
narrativas raciais e culturais dominantes. Consolidando, para MOREIRA que, os educadores do
próximo século não poderão ignorar as duras questões que as escolas terão de enfrentar, referentes
ao multiculturalismo, raça, poder, identidade, significado, ética e trabalho (1999).
Numa análise que considero complementar para se pensar as implicações sociais e culturais
da escola, temos as perspectiva de análise de François Dubet, um importante sociólogo francês e a
noção de cultura escolar.
Dubet (2003 e 2004), analisa as dinâmicas da desigualdade e da exclusão em relação ao
fenômeno da escolarização. Segundo o autor, por muito tempo as análises da sociologia da
educação reiteraram a visão de que as desigualdades sociais eram responsáveis pelas desigualdades
escolares e que as escolas as reproduziam em seus espaços.
Entretanto, em estudos posteriores, foi demonstrado que as interações propriamente
escolares produziam efeitos não igualitários: efeito classe, efeito estabelecimento de ensino, efeito
professor. Dessa forma, comprovou-se que a escola acrescenta às desigualdades sociais suas
próprias desigualdades. Neste sentido, afirma Dubet, “Hoje percebemos que não só ela não é
realmente igual, mas que sua própria igualdade pode também produzir efeitos não igualitários
somados aos efeitos que ela deseja reduzir.” (2001:13).
Ele nos informa ainda que antes da escola democrática de massa, o espaço da escola era
estruturalmente não igualitário, referindo-se ao acesso diferenciado às diferentes carreiras, no caso
francês, diretamente determinado desde o berço, ou seja, a cada categoria social um tipo de escola e,
consequentemente, um tipo de chance de sucesso. Afirma:
78
(...) Como, desde o nascimento, os indivíduos não eram considerados iguais perante a educação, os insucessos escolares podiam ser facilmente explicados por causas sociais, pela injustiça do sistema e, às vezes, pelas injustiças “naturais”, sendo as crianças do povo consideradas menos “dotadas” e menos “ambiciosas” que as da burguesia. A “vantagem” de tal sistema era a de não questionar a auto-estima dos alunos sem acesso às carreiras mais valorizadas que, aliás, não eram feitas para eles. Cada um podia explicar seus insucessos como conseqüência de causas sociais, de causas exteriores a ele e a seu próprio valor. Um adolescente que se tornasse operário e uma jovem que se tornasse mãe e dona-de-casa, ao final da escolarização, podiam culpar as injustiças sociais quando tal destino lhes parecesse injusto, sem se verem, pessoalmente, como a causa de tal percurso de vida. (Dubet, 2001:15).
Mudanças ocorrem com a escolarização em massa. Os alunos não são selecionados mais no
acesso, mas durante o processo de aprendizagem em função dos seus desempenhos.
Aqui se estabelece uma contradição entre intenções escolares pela igualdade e os
mecanismos internos das escolas que somados aos mecanismos externos da competição fazem com
que muitos alunos descubram que apesar dos seus desempenhos, não são iguais aos demais. Nestes
casos, afirma Dubet, o caminho é a auto-responsabilização, o sentimento de inferioridade, deixando
a opção de se retirar do jogo em que estão perdendo ou a violência, ou seja, a tentativa de destruição
do jogo. Assim, ele vai discutir a questão da meritocracia (Dubet, 2004), posta como um dos
mecanismos que contribui para que a vítima da desigualdade escolar atribua a responsabilidade pelo
seu fracasso a si própria.
Essa é uma questão central para Dubet, pois a igualdade de oportunidades meritocrática
exige igualdade de acesso. Ou seja, pressupõe para ser justa, uma oferta perfeitamente igual e
objetiva, ignorando as desigualdades sociais pré-existentes. Mas, a competição não é perfeitamente
justa. Também é importante sublinhar a crueldade do modelo meritocrático, pois quando se adota o
ideal da competição ela não é perfeitamente justa e formalmente pura, os "vencidos", os alunos que
fracassam, não são mais vistos como "vitimas" de uma injustiça social e sim como responsáveis
pelo seu fracasso, pois a escola lhe deu a priori todas as chances para ter sucesso como aos outros.
Neste sentido, o mérito como princípio de justiça tem seus limites, pois a suposta
objetividade do mérito não elimina as desigualdades, as diferenças valorizadas como desiguais,
enfim, as desigualdades sociais pesam muito nas desigualdades escolares.
Para o autor, o ideal meritocrático consiste em dar a mesma coisa a todos, mas sabe-se que a
escola está longe disto. Neste sentido, para se obter uma real justiça escolar, seria necessário que a
escola levasse em conta as desigualdades reais e procurasse compensá-las.
Dubet (2004) vai afirmar que uma escola justa precisa também se propor ir além da
meritocracia e dos efeitos das desigualdades sociais sobre as desigualdades escolares. Ele nos indica
que, a escola deve se propor o problema inverso, ou seja, os efeitos das desigualdades engendradas
pela escola sobre as desigualdades sociais. É nesta perspectiva que entramos, por exemplo, num
79
instigante debate nas escolas brasileiras: as relações étnico-raciais e os mecanismos escolares de
exclusão de não brancos.
A reflexão sobre os mecanismos escolares de exclusão, seja esta racial ou em outro âmbito
das relações sociais, requer a explicitação de uma outra noção com bastante afinidade em relação às
questões de desigualdade e exclusão, trata-se da cultura e da cultura escolar.
Chartier (2005), afirma que é necessário tirar as conseqüências da nova relação com os
saberes instaurada pela escolarização de massa.
Com a noção de que toda cultura e seus objetos, tornam-se signos através dos quais uma
sociedade se constitui em representações e se exibe simbolicamente de modo discreto ou
espetacular, desvelando seus ideais proclamados e seus requalques, a escola vem, ao longo de anos,
instituindo uma prática cultural instrumental, onde os saberes valem o que vale pela posição que
eles permitem atingir. Para a autora, tal prática está fora da cultura, pois só há cultura se uma prática
social tem sentido para quem a efetua. Chartier, enfaticamente, acentua que “a escola leva os alunos
a serem somente realistas ou mesmo cínicos, levando-os, por exemplo, a calcular seu investimento
escolar em função do que pode lhes dar uma disciplina na corrida para as provas” (2005:21). Em
outros termos, ela expressa a crítica de que há uma separação entre cultura e saberes instrumentais
validados num determinado contexto histórico.
Esta constatação a leva à consideração de que a escola está morta, ou seja, não pensa, ou
talvez nunca tenha pensado, na cultura como gestos e ações (ler e falar das leituras com os outros) e
como portadora de sentido na perspectiva dos atores. Citando Michel de Certeau, que apresenta, por
um lado, as estratégias institucionais como o domínio do espaço para a ação, a utilização da força
nas relações sociais, a capitalização de resultados, a definição de projetos, a imposição de programas
e, por outro, as táticas improvisadas dos atores, no campo da cultura, para fazer, compreender e
viver, a autora localiza a cultura escolar no campo das estratégias institucionais, ignorando as
diversidades que se apresentam no espaço escolar.
Numa perspectiva semelhante trabalha Juarez Dayrell (2001). Caracterizando a escola como
espaço sócio-cultural, o autor nos diz que:
(...) a instituição escolar seria o resultado de um confronto de interesses: de um lado uma organização oficial do sistema escolar, que define conteúdos da tarefa central, atribui funções, organiza, separa e hierarquiza o espaço, a fim de diferenciar trabalhos, definindo idealmente, assim, as relações sociais; de outro, os sujeitos – alunos, professores, funcionários, que criam uma trama própria de inter-relações, fazendo da escola um processo permanente de construção social. (p.137).
Neste sentido, a escola como construção social implica na compreensão do seu cotidiano,
onde os sujeitos não são meramente passivos, constituindo conflitos e negociações em função de
determinadas circunstâncias. Esses atores são portadores de inúmeras diversidades, seja ela cultural,
80
religiosa, étnica, de gênero ou social. Aqui se estabelece os conflitos, as dinâmicas e os processos
históricos de construção dos espaços escolares.
Enfim, pensar em termos de tensôes epistemológicas, sociais e culturais da escola, significa
pensar a complexidade que apontamos acima, na medida em que a escola deve ser entendida como
uma instituição historicamente situada, que produz certo conhecimento escolar, e que, ao mesmo
tempo reflete relações sociais estabelecidas, produz novas relações e papeis sociais a partir de uma
lógica própria.
A sociologia vive um momento especial, pois com a recente aprovação da Lei 11.684, de 2
de Junho de 2008 que passa a incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias no
Ensino Médio, temos a oportunidade de inserção de profissionais na matriz curricular, não somente
enquanto profissionais do ensino, mas ao mesmo tempo, como educadores e investigadores da
realidade social em uma instituição social particular. Está é uma grande novidade no espaço escolar,
ou seja, atores sociais que tenham como um dos seus fundamentos profissionais a pesquisa sobre a
própria realidade em que vive, aprofundando ainda mais às reflexões teóricas, as diversas dimensões
e funções da Escola Básica. Eis, aqui , uma tarefa complexa e instigante para nós, professores de
sociologia, estudantes de licenciaturas e formadores de professores.
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81
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83
Capítulo 5 A trajetória de institucionalização da Sociologia na Educação Básica no Rio de Janeiro43
Aline Miranda e Souza44
Anita Handfas45 Thays Marcely França46
Introdução
Quando em junho de 2008 a Presidência da República promulgou a lei 11.684 que
modificou o artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e incluiu a sociologia como
disciplina obrigatória em todas as séries do ensino médio47, um sentimento de vitória e conquista
tomou conta de amplos setores que há muito haviam participado do processo de luta pela
implantação da disciplina nos currículos escolares. Encerrava-se assim um longo tempo de
intermitência, marcado por períodos de inserção, ausência e reinserção gradativa da sociologia na
escola e vislumbrava-se aí a possibilidade de uma virada na educação escolar, favorecida pelo
reforço dado às ciências humanas no currículo e, como decorrência, pela possibilidade dos
estudantes aguçarem sua percepção crítica do mundo e da sociedade em que vivem, por meio dos
conteúdos sociológicos praticados na escola.
Nesse processo, marcadamente político, inúmeros setores articularam-se e debateram-se
entre si, numa disputa de interesses em torno da defesa, ora favorável, ora contrária à presença da
sociologia na educação básica. Tal disputa, mais ou menos acirrada, a depender do contexto político
e do nível de articulação e de intervenção desses setores é um capítulo à parte e como tal merece ser
estudado sociologicamente, o que implica uma análise objetiva desse processo, de modo a
identificar os grupos sociais presentes, seus interesses, suas formas de articulação e intervenção,
suas motivações e sentidos. De certo, um estudo como esse deverá trazer novos elementos que nos
possibilitem entender inclusive a própria dinâmica de institucionalização da sociologia como
disciplina escolar.
Neste artigo nos propomos a fazer uma análise específica desse processo no Rio de Janeiro,
estado que tal como os demais apresenta inúmeras particularidades com relação ao quadro nacional.
43 Este artigo é resultado da pesquisa O Mapa da Sociologia na Educação Básica no Rio de Janeiro que vimos realizando na Faculdade de Educação da UFRJ, no âmbito do Laboratório de Ensino de Sociologia Florestan Fernandes – LabES (WWW.labes.fe.ufrj.br). O objetivo da pesquisa é conhecer o processo histórico de institucionalização da sociologia no Rio de Janeiro, assim como as condições de sua implementação na escola. 44 Graduanda em Bacharelado em Ciências Sociais, na UFRJ e em Bacharelado e Licenciatura em História na UFF. É aluna de Iniciação Científica da equipe de pesquisa O Mapa da Sociologia na Educação Básica no Rio de Janeiro. 45 Professora adjunta da UFRJ. Coordena a pesquisa O Mapa da Sociologia na Educação Básica no Rio de Janeiro. 46 Graduanda em Licenciatura em Pedagogia na UFRJ. É bolsista de Iniciação Científica (FAPERJ) da pesquisa O Mapa da Sociologia na Educação Básica no Rio de Janeiro. 47 A Lei 11.684/08 incluiu não só a sociologia, como também a filosofia no ensino médio.
84
A investigação ainda em curso que estamos procedendo tem nos obrigado a levantar e analisar um
conjunto de fontes, orais e escritas, e nos levado a identificar os grupos sociais envolvidos no
processo de luta pela reintrodução da sociologia no ensino médio, seus principais protagonistas,
assim como as formas de mobilização que culminou com a aprovação do projeto de lei nº 876/89
que dispunha sobre a obrigatoriedade do ensino de sociologia nas escolas do 2º grau.
Sendo assim, o objetivo deste artigo é analisar o processo de institucionalização da
sociologia na educação básica no Rio de Janeiro, tendo em vista a intervenção de diversos grupos
sociais, bem como suas formas de atuação e de articulação. Nessa análise, vamos identificar os
principais grupos sociais que atuaram no processo de reintrodução da sociologia no ensino médio,
apontar as razões que motivaram essa participação e apresentar os principais embates ocorridos no
processo.
Na primeira parte, vamos traçar uma linha do tempo, apresentando os principais eventos
históricos e sociais que marcaram a trajetória da sociologia no ensino secundário, com foco no Rio
de Janeiro. Em seguida, vamos avançar um pouco mais na compreensão do processo de
institucionalização da sociologia na escola, a partir da análise de fontes históricas escritas e orais, de
modo a apreender os sentidos conferidos pelos atores à luta pela reintrodução da sociologia no
ensino médio. Nas conclusões vamos trazer alguns elementos que possam contribuir para a
compreensão da maneira pela qual a sociologia vem sendo institucionalizada no espaço escolar.
Aspectos políticos e sociais da trajetória do ensino de Sociologia: o Rio de Janeiro no contexto
nacional
Comecemos pela periodização. Estudos que tratam da trajetória histórica da Sociologia no
ensino secundário, tem-se valido da periodização proposta por Machado (1987) que relacionou as
reformas educacionais à presença ou ausência da Sociologia no ensino secundário48. Nessa direção,
o autor propõe a seguinte periodização: um período de institucionalização (1891-1941); em seguida,
um período de ausência (1941-1981); e o terceiro período, que se inicia em 1982. Seguindo o
modelo proposto por Machado, podemos acrescentar agora uma quarta fase que se inicia em 2008,
com a promulgação da lei 11.684, prevalecendo até os dias atuais.
Observa-se que essa periodização é marcada por mais de um século de intermitência.
Entretanto, seria um procedimento metodológico equivocado de nossa parte limitar a análise da
48 Como se sabe, são três as denominações dadas a esse nível de ensino que variaram ao longo do tempo: ensino secundário, ensino de 2º grau e atualmente ensino médio. Vamos utilizar cada uma dessas denominações em função do período histórico mencionado.
85
trajetória da sociologia no ensino secundário aos momentos em que ela esteve presente ou ausente
do contexto escolar. Uma direção mais pertinente é a de identificar as forças políticas hegemônicas
que atuaram nesse processo, de modo a confrontar as diferentes motivações e sentidos dados à
sociologia no contexto escolar. Advertimos, no entanto, que não é nosso objetivo aqui proceder a
essa análise. Para efeito deste artigo, vamos olhar para o contexto nacional, buscando compreender a
maneira pela qual o Rio de Janeiro se insere nele. Especificamente, vamos identificar as categorias
sociais envolvidas na luta pela inserção da sociologia no ensino médio, assim como as percepções e
os interesses desses atores nesse processo.
O período de institucionalização da sociologia no ensino secundário foi marcado por uma
clivagem de concepções. Inicialmente temos um momento em que sob a égide do positivismo, a
disciplina leva o nome de Sociologia e Moral, sendo implementada pelo então ministro da Instrução
Pública Benjamin Constant, que em sua Reforma Educacional incluiu a disciplina no ensino
secundário e nas escolas normais. Segundo AZEVEDO (1958), esse direcionamento não foi posto
em prática e alguns anos mais tarde, a sociologia é retirada do currículo pela reforma Epitácio
Pessoa. Somente em 1925 a reforma educacional de João Luiz Alves49, mais conhecida como
reforma Rocha Vaz50 insere a Sociologia no ensino secundário.
A reforma educacional de 1925 exerce um efeito importante no Rio de Janeiro. A inserção
da Sociologia neste mesmo ano no Ginásio Nacional, atual Colégio Pedro II e nas escolas normais
em 1928 aponta para a intervenção de importantes intelectuais em instituições de ensino secundário,
cujas iniciativas foram decisivas para a inclusão da sociologia no currículo, como foi o caso de
Delgado de Carvalho, no Colégio Pedro II. Sua atuação, assim como de tantos outros intelectuais na
esfera educacional, se insere num contexto marcado por impulsos de modernização da educação, o
que pode indicar o papel e o sentido conferido à sociologia no ensino secundário.51
No início da Era Vargas, em 1931, já com o nomeado ministro da educação Francisco
Campos, uma nova Reforma dará maior visibilidade ao ensino de Sociologia no ensino secundário.
A partir da Reforma Francisco Campos, não apenas o Rio de Janeiro, mas outros estados
redirecionaram o ensino pautado numa formação mais humanista.
Cabe destacar que na década de 1930 a educação passa a assumir uma importância decisiva
e nesse sentido era forte a ideia de que a reforma da sociedade se daria pela reforma educacional
“assim como pelo espírito de “criação” e de reprodução/modernização das ‘elites’, herdados da
49 Ministro da Justiça e Negócios Interiores no governo Artur Bernardes e nomeado em 1924, Ministro do Supremo Tribunal Federal. 50 Na época, Presidente do Conselho Nacional de Ensino. 51 Nesse mesmo contexto, em 1924, temos a criação da Associação Brasileira de Educação (ABE), que foi presidida em sua primeira gestão por Delgado de Carvalho. De acordo com Schwartzman (1979: 163), a ABE “iniciou um grande movimento pela modernização do sistema educacional brasileiro em todos os níveis”.
86
década anterior” (Fávero, 2010: p.43). Santos (2004) mostra que para vários intelectuais
responsáveis pela sistematização da sociologia no Brasil, a ignorância das massas, assim como o
despreparo das futuras elites dirigentes do país foram as principais causas apontadas para o fracasso
da República. Era preciso então reformar as bases educacionais, o que passaria necessariamente por
promover um ensino conectado à realidade brasileira.
Tal ideário, que relacionava a educação ao desenvolvimento da nação, teve na Escola Nova
um movimento que resultou na divulgação do Manifesto dos Pioneiros da Educação. Entre seus
principais signatários, constavam intelectuais como Fernando de Azevedo, Gilberto Freyre,
Carneiro Leão e Delgado de Carvalho, que apregoavam a educação como um problema social. A
presença da sociologia no currículo exerceria aí a função de despertar nos jovens o espírito
investigativo e o interesse pelos problemas sociais que afetavam o país naquele momento.
A partir da década de 1940 inicia-se um longo período de ausência da sociologia no ensino
secundário que vai desde a Reforma Capanema que em 1942 promove uma reestruturação do
ensino secundário, retirando o caráter obrigatório da sociologia no currículo, até o período em que
perdurou o regime militar no Brasil, de 1964 até o início da década de 1980.
Antes de darmos prosseguimento à linha do tempo até aqui apresentada, convém fazermos
uma breve digressão a respeito deste longo período de intermitência da sociologia no ensino
secundário. Isto porque, é importante observar que a dinâmica, assim como os sentidos da
sociologia como disciplina escolar em cada um desses períodos só pode ser compreendida se
relacionados à própria história de institucionalização das ciências sociais no Brasil. A esse respeito,
Oliveira (1991) destaca três contextos. O primeiro, que indica que enquanto a sociologia ia se
institucionalizando no ensino secundário, as ciências sociais ainda não eram praticadas por
especialistas, o que pode explicar seu caráter generalista e muito próximo a uma “filosofia social”
que predominou entre 1890 e as primeiras décadas de 1900.52 Em seguida, ainda de acordo com a
autora, um contexto que vai da década de 1930 a 1940, considerado como o período de fundação
das ciências sociais, com o estabelecimento de suas fronteiras em relação às demais disciplinas. Por
fim, a partir da década de 1950, um contexto de profissionalização das ciências sociais impulsionada
pela criação de diversos centros universitários e de agências de fomento à pesquisa e à pós-
graduação. Temos aqui então uma pista interessante a ser seguida que permitiria situar a presença ou
ausência da sociologia no ensino secundário com relação ao próprio contexto de institucionalização
das ciências sócias no Brasil.
52 Cabe lembrar que a criação em 1933 da Escola de Sociologia e Política e em 1934 das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, dão-se sob a colaboração de professores estrangeiros tais como Jacques Lambert e Radcliff-Brown que ministraram cursos de Sociologia e contribuíram para que “o ensino de Sociologia tomasse o caráter científico e se elevasse a um alto nível” (Azevedo, 1958).
87
Considerando a conexão entre a trajetória da sociologia no ensino secundário e os diferentes
contextos elencados acima, seria preciso ainda captar a dinâmica social e política de cada um desses
períodos, de modo a identificar as forças políticas hegemônicas, bem como as motivações que
resultaram na inserção ou na exclusão da sociologia na escola. Além de evitar o anacronismo, uma
vez que não relaciona a condição de presença ou ausência da disciplina a períodos mais ou menos
democráticos do país, esse procedimento permitiria agregar novos elementos à análise dessa
trajetória, possibilitando ir além da periodização até aqui adotada que tem na inclusão ou na inserção
da sociologia no ensino secundário sua principal referência.53
Feita essa digressão, vamos avançar na linha do tempo apresentando o período mais recente,
a partir da década de 1980, marcado pela reinserção gradativa da sociologia no currículo escolar.
Destacamos este como sendo um período de redemocratização, quando as políticas educacionais
que vinham sendo implantadas pelo regime militar passaram a ser fortemente questionadas por
setores democráticos interessados na luta em defesa da escola pública e pela democratização do
ensino.
O regime militar ditatorial havia promovido uma ampla reforma educacional e no âmbito do
currículo a lei 5.692/7154 instituiu entre outros a inclusão da disciplina Moral e Cívica. Em pesquisa
realizada sobre a relação entre o campo militar e o campo educacional no Brasil, Sepúlveda (2010)
chama a atenção para o caráter ideológico e demonstra como o ensino de Moral e Cívica era
estratégico para os militares que preconizavam uma educação eficiente para a nação.
Este fato é particularmente importante para o entendimento do movimento pela reintrodução
da sociologia no ensino de 2º grau, uma vez que a luta pela democratização do ensino passaria
também pela constituição de um currículo, cujos conteúdos e disciplinas favorecessem a formação
de um estudante mais crítico e reflexivo. Nesse sentido, a luta pela reinserção da sociologia no
currículo vinha atender esses objetivos.
Veremos no próximo item como esse processo se deu no caso específico do Rio de Janeiro
que teve o ensino de sociologia instituído na constituição do estado, em 1989.55 No quadro nacional,
importa destacar que o período de reinserção da sociologia no ensino médio deu-se de forma
gradativa e repleta de contradições. No tocante à intervenção de setores interessados no retorno da
sociologia nos currículos escolares, temos a partir da década de 1980 uma mobilização intensa de
entidades representativas e estudantis promovendo inúmeras iniciativas. Essa mobilização teve
53 Esta pode ser uma pista interessante de ser seguida e deverá ser objeto de investigação de nossa pesquisa. 54 Lei 5.692 de 11 de agosto de 1971, Art. 7 estabeleceu que “Será obrigatória a inclusão de Educação Moral e Cívica (...) nos currículos plenos dos estabelecimentos de 1º e 2º graus, observado quanto à primeira o disposto no Decreto-Lei nº 869 de 12/09/1969.” 55 Art. 317, § 4º: será introduzida, como disciplina obrigatória, nos currículos de 2º grau, da rede pública e privada, em todo o território do Estado do Rio de Janeiro, a Sociologia.
88
diferentes impactos nos estados, alguns deles, tal como o Rio de Janeiro, lançaram mão do mesmo
instrumento legal para instituir a sociologia no currículo, ressaltando, no entanto que essas medidas
nem sempre foram acompanhadas de seu cumprimento.
Ainda assim, as iniciativas vindas daqueles setores que se mobilizaram em defesa do retorno
da sociologia no 2º grau tiveram um impacto importante nas diretrizes educacionais. Foi assim que a
Lei de Diretrizes e Bases de 1996 instituiu a filosofia e a sociologia entre os conteúdos a serem
oferecidos no ensino médio.56 Como se sabe, o texto do artigo que se referia ao ensino da sociologia
deu margem a diferentes interpretações e a que acabou por prevalecer foi a da transversalidade. Na
prática o entendimento era o de que os conteúdos da sociologia percorriam outras disciplinas das
humanas, tais como a história e a geografia. Não demorou muito, quando em 1997, mais uma
tentativa no legislativo propôs alterar o artigo 36 da LDB57, enfatizando o caráter disciplinar da
sociologia, assim como da filosofia e embota tenha encontrado amplo apoio parlamentar, dá-se um
novo impasse com o veto do então presidente Fernando Henrique Cardoso, sob o pretexto de mais
gastos públicos e falta de professores.
Esse revés não foi suficiente para paralisar a mobilização em torno da luta pela reinserção da
sociologia no 2º grau, nem tampouco exerceu o mesmo impacto sobre os estados. Ao contrário,
estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Brasília, Pará, Pernambuco e Rio Grande do
Sul já contavam com a sociologia nos currículos escolares desde finais da década de 1980. É claro
que como já foi dito isso não se deu de forma homogênea entre os estados e mesmo no caso da
inserção da sociologia, ainda restava aos setores mobilizados em torno dessa bandeira, a luta pela
própria institucionalização da disciplina escolar sociologia, o que se revertia em garantia de tempos
de aulas, qualificação de professores, etc.
Como se sabe esse processo teve seu desfecho definitivo com a aprovação da lei 11.684/08
que modificou a LDB58, tornando o ensino de sociologia e da filosofia obrigatórios nas três séries do
ensino médio. Mais recentemente, é importante destacar um evento importante, trata-se da inclusão
inédita da sociologia no Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2012. Não nos determos
aqui na análise desse processo, mas é certo que essa política deverá trazer impactos importantes para
a institucionalização da sociologia no contexto escolar.
56 Art. 36, § 1º: Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao final do ensino médio o educando demonstre... III: domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania. 57 Trata-se do projeto de lei 9/00, de autoria do deputado Padre Roque (PT-Paraná). O texto proposto dizia o seguinte: “fica obrigatório o ensino de Sociologia e Filosofia em todas as escolas de Ensino Médio do país”. 58 Art. 1º: O art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com as seguintes alterações:“Art. 36, IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio.
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Não obstante esses avanços, no momento, o que se verifica é que ainda se está longe de ter a
legislação posta em prática nas escolas de ensino médio, as disputas vão desde a sua garantia na
grade curricular, até o cumprimento da carga horária. Além disso, viu-se acirrada a luta pela garantia
de contar com professores formados em ciências sociais ministrarem as aulas de sociologia.
Essa falta de consonância entre a legislação e a própria dinâmica do processo em cada
estado varia em função do nível de mobilização dos setores sociais envolvidas na luta, a composição
política e a correlação de força nos legislativos estaduais, as gestões mais ou menos favoráveis à
implantação da sociologia no currículo nas secretarias de educação dos estados e finalmente as
próprias escolas que também tem enfrentado disputas internas por espaços de diferentes disciplinas
no currículo.
No próximo item vamos apresentar os principais eventos que caracterizam o processo de
luta pela reinserção da sociologia no ensino médio no Rio de Janeiro.
A luta pela institucionalização do ensino da sociologia no Rio de Janeiro: indo às fontes
Como afirmamos no item anterior, a luta pela reinserção da sociologia no ensino médio não
se deu de forma uniforme entre os estados e dependeu em cada caso da dinâmica de forças que
intervieram nesse processo. No Rio de Janeiro, uma das forças que exerceu papel importante foi
representada pelas categorias sociais que se mobilizaram em torno da bandeira da sociologia no
ensino médio. Na esteira de ampla mobilização de setores que lutavam pela redemocratização do
país, a partir da década de 1980, essas categorias se mobilizaram na luta pela reinserção da
sociologia no 2º grau, luta que culminou com sua inclusão na constituição do estado do Rio de
Janeiro.
Uma vez que estamos nos valendo de fontes documentais para proceder a nossa análise,
convém fazermos uma breve consideração a respeito.
Ao analisar as fontes59, é necessário tomar certas precauções metodológicas de crítica
documental. Os documentos não revelam diretamente a realidade, mas esta aparece mediada por um
59 Nossa pesquisa, de cunho histórico social, tem nos levado a realizar um levantamento de fontes históricas. Com relação às fontes escritas, temos nos valido de levantamento feito na Secretaria Estadual de Educação, no Conselho Estadual de Educação e na Assembleia Legislativa. Além disso, temos contado também com acervo documental doado por alguns atores que tiveram participação no processo de luta pela reinserção da sociologia no ensino médio no Rio de Janeiro. Da documentação levantada até agora destacamos legislação, diários oficiais, atas, propostas curriculares, jornais sindicais, panfletos, cartazes de divulgação da luta, materiais sobre encontros da área de Sociologia, entre outros. Com relação às fontes orais, estamos levantando os principais protagonistas dessa luta e até o momento realizamos seis entrevistas com professores do ensino médio e de universidades: Professor Antonio de Ponte Jardim; Professor José Geraldo; Professora Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros; Professora Moema Toscano; Professora Ofelia Pereira Ferraz; Professor Otair Fernandes de Oliveira. As fontes orais têm sido fundamentais para nossa compreensão do processo específico do Rio de Janeiro. Agradecemos os entrevistados pelos depoimentos concedidos e àqueles que muito gentilmente nos forneceram documentação que compõe nosso acervo de pesquisa.
90
discurso. Cada um é produzido com um objetivo, direcionando uma mensagem a alguém. Nesse
sentido, entendemos os documentos como portadores de discursos, que devem estes sim, ser
analisados, não buscando ingenuamente uma realidade transparente. Da mesma forma, ao
trabalharmos com entrevistas devemos ter em mente peculiaridades da produção da memória. Esta é
produzida no presente, a partir de seleções de aspectos de uma experiência passada. E a história é
sempre fruto de um diálogo entre o presente e o passado. (LE GOFF, 1994)
A julgar pela documentação que tivemos acesso, a luta dessas categorias sociais foi bastante
intensa, chegando a mobilizar um conjunto significativo de atores sociais nesse processo.
Uma categoria social que merece destaque é a Associação Profissional de Sociólogos do
Rio de Janeiro – APSERJ60 que protagonizou uma série de iniciativas, buscando apoio e adesão de
estudantes, professores universitários e do legislativo.
Fundada em 198161, a APSERJ foi criada em torno de três bandeiras de luta: (1) a
reorganização dos cientistas sociais em torno de uma entidade representativa; (2) a ampliação do
mercado de trabalho dos cientistas sociais; (3) o retorno da sociologia no 2º grau. A luta travada pela
APSERJ atingiu seu clímax em 1988, quando a entidade protagonizou uma ampla mobilização para
a proposição de uma emenda popular em favor da inserção da sociologia no 2º grau. Para isso, fez
sua luta ultrapassar os muros das escolas e das universidades62, ganhando as ruas e buscando na
população o apoio necessário para angariar cerca de 4.000 assinaturas que permitiram o
encaminhamento de emenda popular à Assembleia Legislativa.
Podemos constatar a força desse movimento pelo depoimento abaixo:
“[Colocamos mesinha] na Praça Saens Peña, na UERJ... todas as reuniões da Ad’UERJ eu ia lá e pedia apoio... e todo mundo votava (queria) que as assembleias das Ad’UERJ eu movimentava pra assinar... lá o Otair correndo banca... a Paula ... correndo banca... aí já é ... oitenta e oito ou oitenta e nove... a gente lutou pela Constituição Federal e lutou pela Constituição Estadual... a gente conseguiu acho que quatro mil assinaturas... aí a emenda popular entrou na Constituição Estadual do Rio...”63
É interessante observar a capacidade de articulação política entre diferentes setores sociais
nessa luta. Favorecida pelo contexto de mobilização social pela redemocratização do país, a
APSERJ conseguir reunir um arco de forças sociais fundamentais para o êxito do processo. Assim é
que foram realizadas iniciativas que contaram com o apoio efetivo de estudantes, professores da
educação básica, professores universitários e o próprio legislativo, representado por alguns
60 A APSERJ originou-se da Associação dos Cientistas Sociais do Estado do Rio de Janeiro (ACISERJ), fundada em 1971. 61 De acordo com a ata de fundação da APSERJ foram registradas as assinaturas de 17 membros fundadores. 62 No âmbito acadêmico, cumpre destacar a realização do I Encontro de Licenciados do Rio de Janeiro, em 1988, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, promovido pela APSERJ, que reuniu um grande número de estudantes e professores. 63 Depoimento da Professora Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros.
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deputados estaduais e da própria secretaria de educação que também pautou esse debate no interior
do Conselho Estadual de Educação.
Para os estudantes interessava a inclusão da sociologia como disciplina escolar na medida
em que isso garantiria sua inserção profissional após terem concluída sua formação em licenciatura
em ciências sociais. Vale lembrar que naquele momento em que a sociologia ainda se fazia presente
de forma bastante irregular na escola, é fácil dimensionar a pressão sofrida pelos estudantes que ao
mesmo tempo em que investiam em sua formação na licenciatura, suas perspectivas eram mínimas
com relação à atuação no magistério da escola básica.
Para os recém-graduados em ciências sociais, o interesse na luta era evidente, uma vez que a
única via de inserção no magistério do 2º grau até então seria ministrando as disciplinas de História,
Geografia, OSPB e Moral e Cívica. Esses professores tiveram participação ativa nesse processo e
chegaram a conquistar importantes espaços na escola, mesmo depois de ter a disciplina aprovada na
constituição estadual.
No âmbito das universidades o apoio à luta não foi o mesmo. Muito mais que um
envolvimento institucional, o processo se deu pela adesão isolada de professores que abraçaram a
causa e por sua filiação à APSERJ. Ainda assim a intervenção desses atores foi fundamental não só
para a mobilização, mas, sobretudo pela intervenção decisiva de alguns desses atores para o
desfecho favorável do processo.64
Como mencionamos anteriormente, toda a mobilização da APSERJ culminou na
apresentação de uma emenda popular, resultado de ampla campanha desenvolvida pela entidade.
Foi preciso então buscar o apoio do legislativo que teve no então deputado estadual Acácio
Caldeira, do PDT, um importante aliado. Por meio de uma emenda, a constituição do estado
aprovou a inclusão da sociologia como disciplina obrigatória, em 1989. Em sua justificativa, o
parlamentar argumentou que,
“... a introdução da Sociologia justifica-se pela necessidade de melhor atender aos objetivos gerais da Educação Brasileira, explicitados no art. 290 de nosso projeto constitucional que enfatiza a formação do cidadão e o aprimoramento da democracia. Ora, nenhum cidadão exerce uma cidadania consciente quando é incapaz de analisar adequadamente a estrutura social na qual está inserido. (...) a ordem política anterior priorizou o ensino das ciências exatas em detrimento da discussão do social. E pior, para a análise da estrutura politica e social, introduziu as disciplinas Moral e Cívica e OSPB, ideologicamente orientadas. Desta maneira, é vital introduzirmos o ensino da Sociologia como elemento capaz de possibilitar ao indivíduo o exercício de uma cidadania critica e consciente, capaz de alterar as desigualdades e injustiças sociais presentes em nosso país.”65
64 Dentre esses atores, citamos o Professor Santo Conterato, da UFF e ex-presidente da APSERJ; a Professora Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, da UFRJ, na década de 1980 e atualmente da UERJ e a Professora Moema Toscano, da UFRJ. 65 Emenda Aditiva nº 1768, de 1989. Capítulo I – da Educação, de autoria do Deputado Estadual Accacio Caldeira.
92
Esse sentido dado à sociologia expresso na justificativa acima está em consonância com o
contexto político daquele período, como demonstra a fala de um de nossos entrevistados:
“é... esse momento é um momento importante... porque é um momento... de um lado... você tem a democratização do país... e de outro lado... você tem no âmbito da sociologia... a aglutinação... a organização dos sociólogos... primeiro enquanto sociedade civil... e depois... sociedade pré-sindical... e a orientação pra se tornar sindicato... pensando ali na federação... então em varias partes do país... Minas... São Paulo... Natal...”66
Mesmo depois de sua inclusão como disciplina obrigatória, a mobilização teve
prosseguimento, uma vez que na prática as escolas nem sempre cumpriam o disposto na legislação.
Documentos que registram as ações do movimento em defesa do ensino de sociologia no 2º grau
apontam entre as principais irregularidades: (1) o não cumprimento da obrigatoriedade que previa a
implantação da sociologia em todas as escolas da rede pública; (2) a disposição da disciplina na
grade curricular que não oferecia condições de planejamento do conteúdo programático; (3) o
descumprimento da carga horária de dois tempos semanais.
Nesse processo de mobilização, foi formada uma comissão de professores de sociologia que
centralizaram uma campanha em defesa da sociologia no 2º grau, realizando reuniões sistemáticas
que tinham como pauta a avaliação e a discussão da campanha pela inclusão da sociologia no 2º
grau da rede pública e privada do Estado do Rio de Janeiro.
Foram realizados também uma série de eventos. Assim é que em 1990, ocorre a Semana das
Ciências Sociais, cuja programação contou com uma mesa redonda intitulada “Sociologia no 2º
grau – conquista e prática”. No mesmo ano, o Conselho Estadual de Educação realizou dois
Encontros Estaduais sobre a Introdução da Sociologia como disciplina no Ensino Médio. Esses
eventos tinham como objetivo a discussão em torno de questões como a formação adequada dos
professores de sociologia, os conteúdos curriculares a serem ensinados e a importância da sociologia
no nível médio de ensino. Em 1995 a UFF promoveu um curso de atualização em sociologia para
professores do 2º grau, com duração de seis semanas, apresentando um programa que reunia um
conjunto de temáticas das ciências sociais. Em 1997 foi realizado o Seminário em Defesa do Ensino
de Sociologia no 2º grau, realizado na Assembleia Legislativa,67 e promovido pelos centros
acadêmicos da UERJ, da UFF e da FEUC68. O evento teve como tema central “A importância do
ensino de sociologia no 2º grau” e contou com a presença de professores universitários, de
professores do 2º grau e de estudantes.
66 Depoimento dos Professores Otair Fernandes de Oliveira e Antonio de Ponte Jardim. 67 O evento teve apoio do então Deputado Estadual Neirobis Nagae, do PT. 68 Faculdade Educacional Unificada Campo-grandense.
93
Em meio à articulação desses atores sociais, ocorre em 1990 o primeiro concurso público
com 313 vagas para professor de sociologia. Certamente isso foi impulsionado pela campanha pelo
retorno da sociologia no ensino de 2º grau e também pela luta pelo cumprimento do dispositivo
legal. Essa mobilização resultou na conquista de espaços importantes na escola. A esse respeito é
emblemático o caso do CIEP José Lins do Rego, em São João de Meriti, escola onde os professores
de filosofia e sociologia conseguiram alterar a carga horária das duas disciplinas, colocando-as nas
três séries do ensino médio. Essa conquista estimulou a criação do Pólo Pedagógico de Sociologia e
Filosofia na escola, aglutinando um conjunto de professores que se reuniam sistematicamente para
discutir questões relativas ao ensino das duas disciplinas.
A partir de meados da década de 1990 a presença da sociologia na grade curricular do
estado foi-se implementando com maior regularidade e diversos concursos públicos foram
realizados, corrigindo assim uma distorção corrente da existência de professores formados em
outras áreas disciplinares ministrando aulas de sociologia. No tocante aos conteúdos a serem
ministrados, propostas curriculares foram formuladas e ainda que não se tenham consensos em
torno dos conteúdos a serem ensinados, a prática pedagógica do professor em sala de aula tem
balizado experiências didáticas, metodologias e recursos didáticos para o ensino de sociologia.
Passado esse longo processo marcado pela reinserção da sociologia na escola, podemos
afirmar que o Rio de Janeiro entra numa fase de consolidação da sociologia como disciplina escolar,
tendo em vista o próprio quadro nacional de obrigatoriedade e como decorrência a realização de um
conjunto de ações institucionais que tem permitido dar um salto qualitativo nas discussões sobre o
ensino de sociologia na educação básica.69
Conclusões
O objetivo desse artigo foi apresentar a trajetória de institucionalização da sociologia na
educação básica, tendo em vista sua inserção no contexto nacional. Ainda são escassos na área
temática sobre o ensino de sociologia estudos que nesse longo e intermitente processo de presença e
ausência da disciplina no currículo escolar, identifiquem os atores envolvidos, assim como suas
formas de mobilização e articulação em torno da bandeira de inclusão da sociologia na educação
básica.
Como buscamos apontar, sob essa perspectiva, a análise dessa trajetória pode nos trazer
elementos importantes para compreender não somente os interesses que moveram os atores sociais,
69 Referimo-nos aos inúmeros eventos locais, estaduais e nacional que tem ocorrido principalmente a partir dos anos 2000.
94
mas os próprios sentidos conferidos à sociologia como disciplina escolar. Nesse sentido, esses
elementos podem fornecer pistas importantes para entendermos a maneira como a sociologia vem
se institucionalizando como no contexto escolar – seu espaço no currículo, as disputas em torno de
sua legitimidade e suas formas de difusão na escola.
Com relação ao quadro nacional, o Rio de Janeiro ocupa uma posição avançada. Isso se
justifica, entre outros, porque aqui a sociologia teve sua presença no ensino secundário desde 1925,
no Colégio Pedro II. Também em tempos mais recentes essa posição é confirmada, na medida em
que se tornou obrigatória no 2º grau por meio de dispositivo legal, em 1989, enquanto a maioria dos
estados ainda enfrentava fortes resistências para sua implementação.
Como procuramos apontar, essa posição avançada do Rio de Janeiro também se justifica
pela ampla mobilização das categorias sociais envolvidas nesse processo. Como vimos, essa
mobilização ocorre entre as décadas de 1980 e 1990, convergindo com o período de efervescência
política e pela mobilização da sociedade civil em prol restabelecimento de uma sociedade
democrática.
No tocante ao processo de mobilização pelo retorno da sociologia no ensino de 2º grau,
vimos que a APSERJ foi a entidade que conseguiu convergir em torno de si um amplo arco de
alianças que se mobilizaram na luta pela reinserção da sociologia no 2º grau. Vimos também que foi
preciso dar prosseguimento à mobilização mesmo depois de 1989, quando a sociologia se torna
disciplina obrigatória, uma vez que na prática as escolas não vinham cumprindo o dispositivo legal.
A adesão à luta empreendida pela APSERJ se deu na medida dos interesses dos diferentes
setores envolvidos. Nesse sentido, nossas conclusões apontam para a necessidade de prosseguir
nossa investigação de modo a apreender a dinâmica desse processo, o que implica levar em
consideração não somente os setores sociais favoráveis ao retorno da sociologia no 2º grau, como
também identificar os setores que apresentaram resistências ao pleito.
Nessa direção o retorno às fontes documentais é fundamental para compreender com
profundidade as disputas políticas travadas em torno do retorno da sociologia na educação básica no
Rio de Janeiro.
Referências bibliográficas
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Pioneira, 1974.
95
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de Janeiro: 2. Ed. UFRJ, 2010.
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MACHADO, Celso de Souza. O Ensino da Sociologia na escola secundária brasileira:
levantamento preliminar. In: Revista da Faculdade de Educação. Vol. 13, n.º 1, p.115-142, 1987.
OLIVEIRA, Lucia Lippi. “A institucionalização do ensino de Ciências Sociais”. In: BOMENY,
Helena; BIRMAN, Patrícia (Org.). As assim chamadas Ciências Sociais: formação do cientista
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Médio no Rio de Janeiro: uma luta que merece ser pautada! Perspectiva Sociológica – Revista
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SANTOS, Mario Bispo dos. A Sociologia no contexto das Reformas do Ensino Médio. In:
MATOGROSSO DE CARVALHO, Lejeune (org.). Sociologia e ensino em debate. Ijuí: Ed.
Unijuí, 2004.
SCHWARTZMAN. Simon (org.) Estado novo: Um auto-relato (Arquivo Gustavo Capanema).
Brasília: Editora UnB; Rio de Janeiro: CPDoc/FGV,1983.
SEPULVEDA, José Antonio Miranda. O Papel da Escola Superior de Guerra na projeção do campo
militar sobre o campo educacional. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Educação.
UFRJ, 2010.
96
Capítulo 6 Perfil do Professor de Sociologia da Metropolitana VI da Rede Pública Estadual do Rio de Janeiro70
Julia Polessa71 Beatriz Gesteira72 Gabriela Montez73
Introdução
A pesquisa “O Mapa da Sociologia na Educação Básica no Estado do Rio de Janeiro” é uma
das atividades desenvolvidas no Laboratório de Ensino de Sociologia Florestan Fernandes (LABES)
da Faculdade de Educação da UFRJ. O objetivo geral da pesquisa é conhecer o processo histórico
de institucionalização da sociologia no Rio de Janeiro, assim como as características de sua
implementação na escola e as condições de trabalho dos professores de sociologia.
Na recente agenda de pesquisas da área das Ciências Sociais, nota-se um gradativo
crescimento das investigações a respeito do ensino de sociologia na educação básica brasileira
sobressaindo-se os seguintes temas: história da disciplina escolar, os primeiros manuais didáticos e
os livros didáticos atuais; currículo (práticas pedagógicas, metodologias de ensino); percepções
docentes e discentes; condições de trabalho do professor de sociologia; e, dentre outros, as disputas
pela implementação da sociologia no nível médio (HANDFAS, 2011).
Nossa pesquisa de perfil tem caráter pioneiro, pois até o momento não existiam estudos
sobre o docente de sociologia do território fluminense. Ao contrário de outros estados que possuem
investigações sobre os professores desta disciplina e suas condições de trabalho, como nos casos do
Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Brasília e Rio Grande do Norte, os dados que ora
divulgamos são os primeiros sobre o Rio de Janeiro (cf. SANTOS, 2002; LENNERT, 2009;
RAMALHO, 2009; GOMES, 2011; PEREIRA, 2009 e 2011).
Este artigo apresenta os resultados da pesquisa desenvolvida entre agosto de 2010 e maio de
2011, que compreendeu visitas sistemáticas a 63 colégios da Metropolitana VI, área delimitada pela
Secretaria Estadual de Educação, doravante SEEDUC-RJ, que abrange centro, zona sul e parte da
70 Este artigo é resultado da pesquisa O Mapa da Sociologia na Educação Básica no Estado do Rio de Janeiro realizada na Faculdade de Educação da UFRJ, no âmbito do Laboratório de Ensino de Sociologia Florestan Fernandes (LABES), com financiamento da FAPERJ. 71 Professora Assistente da UFRJ. Coordena o LABES junto com a Profª Anita Handfas. 72 Graduanda em Licenciatura em Ciências Sociais, na UFRJ. É aluna de Iniciação Científica da equipe de pesquisa O Mapa da Sociologia na Educação Básica no Rio de Janeiro com bolsa PIBIC-CNPq. 73 Graduanda em Licenciatura em Ciências Sociais na UFRJ. É bolsista de Iniciação Científica (FAPERJ) da pesquisa O Mapa da Sociologia na Educação Básica no Rio de Janeiro.
97
zona oeste da cidade do Rio de Janeiro74. O trabalho de campo foi realizado por uma equipe de seis
pesquisadoras, alunas de graduação em Ciências Sociais na UFRJ75, que após várias visitas aos
colégios da região delimitada, reuniu um total de 94 questionários e 26 entrevistas gravadas.
Em fevereiro de 2011, através do Decreto 42.838, a SEEDUC-RJ modificou sua estrutura
de regionais administrativas e pedagógicas passando de 31 para 14 coordenadorias. Muitas
coordenadorias mesclaram-se, mas a composição da Metropolitana X manteve-se a mesma, apenas
mudando a numeração para Metropolitana VI76. Apesar da antiga nomenclatura vigorar no período
principal da pesquisa (a grande maioria das entrevistas/questionários foi obtida durante o 2º
semestre de 2010), passamos, neste artigo, a chamar a área pesquisada de Metropolitana VI, pois
esta é a referência em vigor para os dados sobre o quantitativo de unidades escolares da rede
estadual.
A dinâmica da pesquisa compreendeu uma agenda de trabalho e a divisão pelos membros da
equipe do quantitativo de colégios estaduais que ofereciam a disciplina sociologia na sua matriz
curricular. Muitas vezes não era possível o contato imediato com todos os professores de sociologia
de determinado colégio e o campo configurou-se repleto de desafios. O debate sobre as situações
vividas durantes a realização das entrevistas e aplicação dos questionários, bem como a análise dos
dados, aconteciam nas reuniões semanais do grupo de pesquisa onde, além da discussão destas
questões, também realizávamos estudos voltados para a temática.
Em alguns casos, a entrada em campo enfrentava problemas como a falta de compreensão
do trabalho pela direção e coordenação pedagógica dos colégios. Não obstante, após terem sido
feitas as devidas explicações sobre o objetivo da pesquisa, as pesquisadoras eram bem recebidas
pelos professores contando com a colaboração de todos que foram abordados e convidados a
responderem nossas perguntas.
Iniciamos a pesquisa pela Metropolitana VI, por ser esta uma das coordenadorias mais
representativas em número de estabelecimentos de ensino. Como podemos verificar na tabela 1, as
coordenadorias com maior número de unidades escolares são, em primeiro lugar, a Metropolitana
74 A coordenadoria Metropolitana VI (antiga Metropolitana X) engloba colégios situados nos seguintes bairros: Anil - Jacarépagua, Barra da Tijuca, Benfica, Botafogo, Caju, Camorim, Catete, Catumbi, Centro, Cidade de Deus, Jacarepaguá, Copacabana, Curicica - Jacarepaguá, Engenho Novo, Estácio, Freguesia - Jacarepaguá, Gardênia Azul, Gávea, Glória, Grajaú, Humaitá, Ilha de Paquetá, Ipanema, Itanhangá, Jacaré, Taquara, Tanque, Jardim Botânico, Lagoa, Laranjeiras, Leblon, Manguinhos, Maracanã, Pechincha, Praça da Bandeira, Praça Mauá, Praça Seca, Rio Comprido, Rocha, Santa Teresa, Santo Cristo, São Conrado, São Cristovão, São Francisco Xavier, Taquara, Tijuca, Urca, Usina, Vargem Grande, Vidigal e Vila Isabel. Fonte: http://www.educacao.rj.gov.br/arquivos/Regionais_Administrativas_Pedagogicas.pdf, acesso em 30 de novembro de 2011. 75 A equipe de pesquisadoras foi composta pelas alunas da licenciatura: Joseline Oliveira da Silva, Katia Regina Gomes da Silva, Gabriela Montez e Beatriz Gesteira e das alunas do bacharelado: Hellen Caroline Alves de Carvalho e Luciana Pereira da Silva sob a supervisão e coordenação das professoras Julia Polessa e Anita Handfas. 76 Fonte: www.educacao.rj.gov.br/index5.aspx?tipo=categ&idcategoria=350&idsecao=10&spid=1 , acesso em 30 de novembro de 2011.
98
III – zona norte do Rio de Janeiro (149), seguida da Metropolitana IV– zona oeste do Rio de Janeiro
(134) e, em terceiro lugar, a Metropolitana VI totalizando 121 unidades escolares. Como a diferença
numérica entre as coordenadorias não é muito expressiva, optamos por iniciar a pesquisa pelos
bairros mais centrais da cidade que, ademais, situam-se em distintas zonas (centro, zona sul, parte da
zona norte e da zona oeste) podendo congregar assim, maior diversidade de realidades escolares.
Avaliamos que esta pesquisa merece ser estendida para as outras coordenadorias, mas devido a
limitações objetivas, tais como o tamanho da equipe e o financiamento para deslocamento, tivemos
que optar por uma área geográfica como recorte metodológico.
Com o intuito de explicitar o campo de nossa pesquisa, vale ressaltar que não há ensino de
sociologia nos colégios de nível fundamental, portanto, nossa equipe entrevistou professores nos
colégios estaduais (CE), nos CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública) e nos Centros de
Educação de Jovens e Adultos (CEJA) que ofereciam aulas do ensino médio. O universo de escolas
da rede estadual está representado na tabela 1 como Unidades Escolares, e foram criadas duas
colunas diferenciando os colégios que oferecem o Ensino Médio (CE, CIEP e CEJA) daqueles que
oferecem apenas o Ensino Fundamental (EE e EEES).
Nosso estudo constatou que, das 121 unidades escolares da Metropolitana VI, 42 não
possuíam aulas de sociologia, sendo 79 o número de colégios que nos interessavam ser procurados,
por possuírem aulas e professores de sociologia. Deste universo, nossa pesquisa entrou em 80%,
entrevistando praticamente a totalidade dos professores concursados para sociologia desta
coordenadoria77.
Com a promulgação do Decreto 42.838, a SEEDUC-RJ passou a se dividir nas seguintes
Regionais Administrativas e Pedagógicas e suas respectivas sedes: Médio Paraíba (Volta Redonda),
Centro Sul (Vassouras), Serrana I e II (Petrópolis e Nova Friburgo), Baixadas Litorâneas (Niterói),
Norte Fluminense (Campos dos Goytacazes), Noroeste Fluminense (Itaperuna), DIESP- Unidades
Escolares Prisionais e Socioeducativas (sede na cidade do Rio de Janeiro) e nas Metropolitanas I a
VII. A tabela abaixo mostra os dados apenas das coordenarias localizadas na região metropolitana
da cidade do Rio de Janeiro.
Tabela 1 - Número de Colégios Estaduais, distribuídos por Coordenadoria Regional Metropolitana,
SEEDUC-RJ, 2011
77 Ao contrário de outras secretarias estaduais de educação, a SEEDUC-RJ não possui precisão no seu banco de dados funcionais. Durante o período da pesquisa o cadastro de professores passou por três reformulações, desde o momento em que o banco de dados era gerenciado por uma empresa terceirizada até a implantação de um banco informatizado (o Conexão Educação) que, infelizmente, ainda não está completo nem disponível para pesquisadores externos.
99
Coordenadoria Regional Unidades Escolares EE e EEES78 CE, CIEP e CEJA79
METROPOLITANA I (Nova Iguaçu)
82 7 75
METROPOLITANA II (São Gonçalo)
95 27 68
METROPOLITANA III (Rio de Janeiro Zona Norte)
149 40 109
METROPOLITANA IV (Rio de Janeiro Zona Oeste)
134 31 103
METROPOLITANA V (Duque de Caxias)
85 7 78
METROPOLITANA VI (antiga Metropolitana X)
121 42 79
METROPOLITANA VII (Belford Roxo)
44 2 42
FONTE: Quadro elaborado pelas autoras, a partir de dados da SEEDUC-RJ, disponíveis na página institucional na internet: http://www.educacao.rj.gov.br/, acessada no dia 18 de novembro de 2011.
Um dos instrumentos de pesquisa foi o questionário com perguntas fechadas, dividido nos
seguintes eixos: perfil socioeconômico, formação acadêmica e profissional, práticas pedagógicas e
práticas sociopolíticas e institucionais. Os resultados dos questionários foram tabulados no
programa SPSS, que nos possibilita a análise de frequências e a elaboração de cruzamentos de
dados. Outro instrumento utilizado foram as entrevistas gravadas com professores que possuíam
duas matrículas na rede pública estadual.
O roteiro de entrevista era composto por três blocos de perguntas: 1. Aspectos institucionais
da sociologia na escola, 2. Aspectos didático-pedagógicos da prática docente e 3. Formação
acadêmica e profissional (aprofundamento do questionário). Devido aos limites deste artigo, a
divulgação da análise dos dados das entrevistas será feita em outra publicação.
A sociologia como disciplina escolar no Rio de Janeiro
Para entendermos o perfil do professor de sociologia torna-se necessário que conheçamos a
conjuntura de sua institucionalização enquanto disciplina no Ensino Básico brasileiro e, mais
especificamente, no estado do Rio de Janeiro. É antiga a trajetória dessa disciplina nas escolas
secundárias (atual nível médio) no Brasil, começando no fim do século XIX, muito embora sua
presença no currículo não tenha sido constante.
78 A maioria das Escolas Estaduais de Ensino Supletivo (EEES) e Escolas Estaduais (EE) oferece apenas o nível de Ensino Fundamental, portanto não contam com professores de sociologia em seu corpo docente. Este dado foi verificado e confirmado nas unidades escolares da Metropolitana VI seja pessoalmente ou por contato telefônico. 79 Colégios Estaduais (CE), Centros Integrados de Educação Pública (CIEP) e Centro de Educação de Jovens e Adultos (CEJA) na maioria das unidades existentes no estado oferecem o nível médio de ensino, contando, portanto, com a oferta de aulas de sociologia.
100
A história da intermitência da sociologia pode ser dividida em quatro períodos: i- de 1891 a
1941, período de institucionalização da sociologia no Brasil via educação secundária precedendo,
inclusive, a criação dos cursos de graduação de nível superior; ii- de 1942 a 1981, quando não
consta mais como disciplina obrigatória; iii- 1982 a 2001, reinserção gradativa no ensino médio
através de iniciativas estaduais80; e por fim, iv- em 2006, o parecer CNE/CEB Nº 38/200681 do
Conselho Nacional de Educação favorável à inclusão obrigatória das disciplinas de filosofia e
sociologia no currículo do ensino médio, e logo em seguida, a aprovação da lei nº 11.684, de 02 de
junho de 2008, que altera a LDB de 1996 e estabelece que os conhecimentos de sociologia e
filosofia devem ser lecionados aos jovens do ensino médio sob a forma de disciplina escolar, nas
três séries do ensino médio de todas as escolas brasileiras, das redes públicas e privadas, a ser
implementada até 2011 (HANDFAS e POLESSA, 2010; MACHADO, 1987; SANTOS, 2004).
A mobilização pela (re)introdução da sociologia no Ensino Médio surge com força no
contexto político e social da década de 1980, período de abertura política do Brasil pós-ditadura,
caracterizado pelas lutas em prol da redemocratização e pela ampliação dos espaços de exercício da
cidadania. Em 1989, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, introduz a sociologia como
disciplina obrigatória nos currículos de segundo grau das redes pública e privada do estado,
conforme expresso na citação a seguir:
“Será introduzida, como disciplina obrigatória, nos currículos de 2º grau, da rede pública e privada em todo o território do Estado do Rio de Janeiro, a Sociologia” (Constituição do Estado do Rio de Janeiro, 1989, art. 317, parágrafo 4º)
O artigo 317 foi incluído na constituição do estado do Rio de Janeiro com o apoio do
deputado estadual Accácio Caldeira (PDT), que acolheu a causa apresentada na emenda popular
aditiva, composta por 3.090 assinaturas em abaixo-assinado liderado pela APSERJ, a Associação
Profissional dos Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro. Tal emenda foi fruto de forte mobilização
social travada pelas associações profissionais de sociologia, entidades sindicais, cursos de graduação
de Ciências Sociais, estudantes e professores de ensino médio (OLIVEIRA e JARDIM, 2008)82.
Assim sendo, a sociologia é disciplina obrigatória em nosso estado desde 1989, em pelo
menos uma série do Ensino Médio (apesar de vários documentos indicarem que a inclusão da
80 Neste período é promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, lei nº 9394/96 (LDB de 1996) que estabelece em seu artigo 36, parágrafo 1º, inciso III que: "ao final do ensino médio o educando demonstre: domínio de conhecimentos de filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania", porém não estabelece a criação de uma disciplina escolar para tais fins. 81 A este parecer de 07 de julho de 2006 seguiu-se a Resolução nº 04, de 16 de agosto de 2006, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação que altera o artigo 10 das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e inclui a sociologia e a filosofia como disciplinas obrigatórias. 82 Além da APSERJ e das instituições de ensino, também patrocinaram a proposta de emenda popular de inclusão da sociologia no 2º. Grau as seguintes entidades: Federação de Órgãos para Assistência Social e educacional (FASE), Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) e Centro de Estudos e Pesquisas da Baixada Fluminense (CEPEBA). Essas informações podem ser encontradas no artigo de Otair Fernandes de Oliveira e de Antônio Pontes Jardim, bem como nos documentos históricos da APSERJ aos quais tivemos acesso para fins de desenvolvimento da nossa pesquisa.
101
sociologia deveria ocorrer em, pelo menos, duas séries consecutivas do ensino médio). Com a Lei
11.684/2008 a disciplina torna-se obrigatória em caráter nacional nos três anos deste nível
educacional.
Nas seções a seguir, apresentaremos os gráficos correspondentes aos eixos temáticos do
nosso questionário, elaborados com o intuito de facilitar a análise das informações coletadas.
Perfil Socioeconômico
No gráfico 1 podemos perceber a paridade entre homens e mulheres lecionando sociologia
na Metropolitana VI da rede estadual do Rio de Janeiro no período estudado. Esse dado contradiz
uma tendência do magistério brasileiro, qual seja, a da predominância de mulheres atuando nesta
profissão. A feminilização docente no Brasil é comprovada pelos Censos Escolares realizados pelo
INEP, porém, no caso do corpo docente na área pesquisada, constatamos que havia uma maioria de
professores do sexo masculino (51%) lecionando esta disciplina. No gráfico 2, trazemos os dados
sobre a cor do professor utilizando a autodeclaração. Constatamos que a grande maioria (61%) se
declarou branca, em segundo lugar aparece a cor parda (20%) e unindo os dados sobre pretos e
pardos, 35% dos professores.
Gráfico 1: Professores por sexo, Metropolitana VI SEEDUC-RJ, 2010-2011
51%
49%
Gráfico 2: Professores por cor, Metropolitana VI SEEDUC-RJ, 2010-2011
102
58
14 19
1
BRANCA NEGRA PARDA AMARELA
Os dados sobre a idade do professor podem ser observados no gráfico 3. A grande maioria
dos professores entrevistados encontrava-se na faixa etária entre 30 e 60 anos, sendo que 45% destes
correspondiam à faixa de 30 a 45 anos.
Gráfico 3: Professores por idade, Metropolitana VI SEEDUC-RJ, 2010-2011
16%
45%
33%
6%
18 a 29 anos
Outro dado relevante é a renda individual do professor entrevistado. 75% do total de
professores possuíam uma renda individual entre 2 e 8 salários mínimos, havendo uma
concentração de 39% entre 2 e 5 salários mínimos, o que configura, podemos dizer, uma renda
relativamente baixa. Para refletirmos sobre este dado, precisamos nos voltar para a questão do
segundo emprego. Vejamos os gráficos 4 e 5 a seguir:
Gráfico 4: Renda individual por professor, Metropolitana VI SEEDUC-RJ, 2010-2011
103
4%
39% 36%
8%
Gráfico 5: Professores por segundo emprego, Metropolitana VI SEEDUC-RJ, 2010-2011
60%
40%
A análise do gráfico 5 aliada à análise da renda expressa no gráfico 4 permite-nos
compreender a composição da renda individual deste professor. 60% do total de professores
responderam ter um segundo emprego.
A seguir, trazemos os dados sobre a renda individual do professor cruzando-as com a
informação sobre o segundo emprego e notamos que há uma relação que merece ser investigada. Os
professores com as maiores rendas individuais eram aqueles que possuíam outro vínculo
empregatício além da matrícula na rede pública estadual. No gráfico 6, as colunas SIM (azul) e
NÃO (vermelho) referem-se à existência ou não de um segundo emprego para o professor da rede
estadual.
Gráfico 6: Renda Individual do professor por segundo emprego, Metropolitana VI SEEDUC-RJ,
2010-2011
104
1
2022
6 7
3
17
13
2 1
Até 2 Salários Mínimos
De 2 a 5 Salários Mínimos
De 5 a 8 Salários Mínimos
De 8 a 10 Salários Mínimos
Acima de 10 Salários Mínimos
SIMNÃO
A partir destes dados, consideramos relevante analisar também a renda familiar, e notamos
uma maior concentração de renda, com 33% na faixa acima de 10 salários mínimos, seguida de
32% na faixa de 5 a 8 salários mínimos.
Gráfico 7: Renda familiar por professor, Metropolitana VI SEEDUC-RJ, 2010-2011
1%
17%
32%
12,50%
A partir desta informação, podemos nos questionar sobre a origem social deste professor,
porém não dispomos, neste momento, de dados suficientes para fazer conclusões sobre esta
hipótese.
Perfil Acadêmico-Profissional
Com relação à formação acadêmica, as pesquisas dos demais estados do país apontam que,
comumente, o professor que leciona sociologia na Educação Básica seria formado em outras
105
graduações, que não a das Ciências Sociais. Surpreendeu-nos positivamente, nesta etapa da
pesquisa, a constatação de que, majoritariamente, o professor de sociologia da Metropolitana VI
possuía graduação em Ciências Sociais, diferentemente do quadro nacional apresentado. Como
podemos ver no gráfico 8, apenas 11 professores eram formados em outras graduações (história,
geografia, filosofia e pedagogia), ou seja, 89% dos docentes de sociologia da coordenadoria
estudada possuíam licenciatura em Ciências Sociais, conseqüentemente, estavam devidamente
habilitados a lecionar sociologia na Educação Básica.
Gráfico 8: Professor por curso de graduação, Metropolitana VI SEEDUC-RJ, 2010-2011
83
4 4 2
Sobre a qualificação desses professores, podemos constatar que 65% possuem pós-
graduação, sendo que a maioria tinha, na época da pesquisa, diploma de mestrado stricto sensu (37
professores), seguido de diplomas de curso de especialização lato sensu (21 professores) e três
professores possuíam doutorado. Levamos em conta o mais alto título de formação (ou seja, se o
professor tinha especialização, mestrado e doutorado, ele aparece aqui como doutor) e não foram
considerados os casos em que a pós-graduação estava em curso. Conforme podemos ver no gráfico
9 e na tabela 2:
Gráfico 9: Professor por curso de Pós-Graduação, Metropolitana VI SEEDUC-RJ, 2010-2011
106
65%
35%
Tabela 2: Professor por tipo de curso de Pós-Graduação, Metropolitana VI SEEDUC-RJ, 2010-
2011
Tipo de Pós-
Graduação
Nº Absoluto Percentual dentre os pós-
graduados
Percentual com
relação ao universo
pesquisado (94
profs.)
Especialização 21 34% 22,4%
Mestrado 37 61% 39,4%
Doutorado 3 5% 3,2%
61 100% 65%
Condições de Trabalho
A grande maioria dos professores entrevistados possuía em média entre 300 e 500 alunos.
Esse número chama atenção, justamente, para as condições de trabalho desse professor que, além de
ter, na maioria das vezes, um segundo emprego, possui uma carga de trabalho no magistério
bastante alta. Os gráficos 10 e 11 nos ajudam a visualizar, respectivamente, o número de alunos e a
quantidade de tempos de aula lecionados por cada professor.
Importante ressaltar que 63% dos professores tinham elevada carga horária semanal
expressa na declaração de 38 professores que assumiam entre 12 e 30 tempos semanais e 22
professores que tinham entre 30 e 40 tempos semanais ou mais.
Gráfico 10: Professor por quantitativo de aluno, Metropolitana VI SEEDUC-RJ, 2010-2011
107
15De 100 a 200
De 201 a 300 alunos
De 301 a 500 alunos
Mais de 500 alunos
Gráfico 11: Professor por quantitativo de tempo de aula, Metropolitana VI SEEDUC-RJ, 2010-2011
13
9
De 12 a 30 tempos
semanais
De 30 a 40 tempos
semanais
Mais de 40 tempos
semanais
Os professores que possuíam número elevado de tempos semanais em sala de aula
geralmente fazem GLP ou lecionam outras disciplinas, como história, filosofia e geografia. Outro
agravante desta condição diz respeito ao fato da sociologia possuir apenas 1 tempo semanal nas
turmas da 1ª série do Ensino Médio e apenas 2 tempos semanais na 2ª e 3ª séries. Com isto o
número de turmas, diários de classe, conselhos de classe, por professor é muito superior aos dos
professores de disciplinas que possuem mais tempos semanais de aula na mesma turma, como, por
exemplo, língua portuguesa e matemática.
Práticas pedagógicas
Interessou-nos saber se o professor utilizava livro didático apesar da sociologia só ter sido
incluída no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2012, cuja seleção do MEC só foi
apresentada em 2011 aos professores das escolas públicas, para procederem à escolha do livro.
108
Esse professor, mesmo não adotando o livro em sala de aula, poderia utilizá-lo para o seu
uso próprio. Em outras palavras, interessou-nos saber se o professor de sociologia preparava sua
aula também, ou tão-somente, a partir da utilização, ou não, de livros didáticos. Como podemos
observar no gráfico 12, 62% dos professores responderam utilizar algum livro didático.
Gráfico 12: Professor por uso de livro-didático, Metropolitana VI SEEDUC-RJ, 2010-
2011
62%
38%
SIM
Uma pesquisa interessante de ser desenvolvida consiste em avaliar a recepção destes livros
didáticos e sua utilização em sala de aula. Podemos comparar os dados antes e depois da inclusão da
sociologia no PNLD, com o intuito de apreender se esse professor passará a usar mais (ou não) o
livro em sala de aula a partir do momento em que o mesmo estará disponível gratuitamente para os
alunos.
Perfil político e institucional
Levantamos em nossa pesquisa o índice de professores participantes em sindicatos, o que
nos possibilitou perceber que do total de professores que responderam o questionário, apenas 28%
participam deste tipo de entidade. Cabe ressaltar que este número refere-se apenas, ao número de
participantes ativos, não estando incluso, portanto, os que apenas têm algum tipo de filiação.
Gráfico 13: Professor por participação em sindicato, Metropolitana X SEEDUC-RJ, 2010-2011
109
28%
72%
Considerações finais
Nossa pesquisa fez um retrato dos professores de sociologia em atuação nos colégios da
Metropolitana VI da SEEDUC-RJ no biênio 2010/2011, isto quer dizer que, dada a dinamicidade da
realidade social, especialmente com a alta rotatividade de profissionais pelos colégios de diferentes
coordenadorias e o alto índice de exonerações no estado, nossos dados referem-se estritamente ao
período estudado.
O perfil do corpo docente de sociologia da Metropolitana VI no biênio 2010/2011 pode ser
resumido da seguinte maneira: homens e mulheres brancos na faixa etária entre 30 e 45 anos,
formados em Ciências Sociais e pós-graduados. Elevada carga de trabalho, pois a maioria dos
professores (56%) tem em média 400 alunos por ano e parte considerável (40%) tem entre 12 e 30
tempos de aula semanais, sendo que 23% declarou lecionar de 30 a 40 tempos de aula por semana.
A renda individual é composta pela adoção de um segundo emprego, além do vínculo com a rede
pública estadual. A maioria usa livro didático (62%), mesmo que a adoção pelos alunos não fosse
oficial nem obrigatória; e a grande maioria (72%) não participa do sindicato.
Dentre os resultados da pesquisa destacamos a importância das seguintes constatações:
• Distribuição de gênero equânime: a metropolitana VI, no período estudado, possuía
praticamente o mesmo número de homens (48) e mulheres (46) lecionando
sociologia;
• Professores-cientistas sociais: ao contrário dos dados nacionais que vem sendo
divulgados por colegas de outros estados, nossa pesquisa não encontrou um número
expressivo de professores sem formação em Ciências Sociais, apenas 11 detinham
graduação em outra área (história, filosofia, geografia ou pedagogia), o equivalente a
11% do universo de 94 entrevistados;
110
• Professores pós-graduados: do universo pesquisado, encontramos 65% dos
professores com pós-graduação, sendo a maioria, quase 40%, possuidores do título
de mestre;
• A intensa carga de trabalho expressa pelo excessivo número de turmas e alunos: este
dado corrobora as análises a respeito da precarização das condições de trabalho nas
redes públicas de ensino;
• Necessidade da composição da renda por mais de um vínculo empregatício: dar aula
apenas na rede estadual de ensino não propicia as condições materiais necessárias
para o professor de sociologia.
Para trabalhos futuros indicamos a importância de se dar prosseguimento às análises de
perfil socioeconômico, acadêmico, profissional, da atuação política e sindical, bem como das
práticas pedagógicas dos professores de sociologia de nossa cidade e estado. Contudo, avaliamos ser
de extrema importância aprofundar as dimensões qualitativas de pesquisa, através de observação do
espaço escolar, de entrevistas aprofundadas e do acompanhamento das aulas de sociologia.
Referências Bibliográficas:
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Ensino e Docência. Rio de Janeiro: Quartet/FAPERJ, 2009.
HANDFAS, Anita; POLESSA, Julia. Projeto de pesquisa: O Mapa da Sociologia na Educação
Básica no Estado do Rio de Janeiro submetido à FAPERJ na modalidade APQ1. Mimeo. 2009.
HANDFAS, Anita. O estado da arte do ensino de sociologia na Educação Básica: um levantamento
preliminar da produção acadêmica. Rio Grande do Norte: Revista Inter-Legere, nº 9, jul/dez 2011,
p.386-400.
GOMES, Ana Laudelina et al. A Situação da Sociologia Escolar na Rede Pública Estadual no Rio
Grande do Norte/RN. XV Congresso Brasileiro de Sociologia; GT 9: Ensino de Sociologia. 2011
LENNERT, Ana Lucia. Professores de sociologia: relações e condições de trabalho. Dissertação de
Mestrado, UNICAMP, Campinas-SP, 2009.
MACHADO, Celso de Souza. O Ensino da Sociologia na escola secundária brasileira:
levantamento preliminar. In: Revista da Faculdade de Educação. Vol. 13, n.º 1, p.115-142, 1987.
OLIVEIRA, Otair Fernandes; JARDIM, Antonio de Ponte. O retorno da Sociologia no ensino
médio no Rio de Janeiro: uma luta que merece ser pautada! Perspectiva
Sociológica, Rio de Janeiro, nov./2008, abr./2009, Ano 1, n°2, [pp 1-15].
111
PEREIRA, Luiza Helena. Por uma sociologia da sociologia no ensino médio. XIV Congresso
Brasileiro de Sociologia; GT 9-Ensino de Sociologia. Rio de Janeiro-RJ. 2009.
___. A sociologia no ensino médio: retratos do cotidiano, a escola, o professor e o aluno. XV
Congresso Brasileiro de Sociologia; GT 9-Ensino de Sociologia. Curitiba-PR. 2011.
RAMALHO, Atila. Os Professores de Sociologia da Educação Básica no Paraná e as Definições do
Ensino nas Escolas. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais, UEL, Londrina-PR, 2009.
SANTOS, Mario Bispo dos. A Sociologia no Ensino Médio: o que pensam os professores da Rede
Pública do Distrito Federal. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais, UNB, Brasília-DF, 2002.
___. A sociologia no contexto das reformas do Ensino Médio. In: CARVALHO, Lejeune Mato
Grosso (org.). Sociologia e Ensino em Debate – Experiências e discussão de sociologia no Ensino
Médio. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2004.
112
Capítulo 7 O Currículo como Obra Aberta: notas sobre a construção do currículo mínimo de sociologia da rede pública estadual do Rio de Janeiro.
André Videira de Figueiredo83
Marcia Menezes Thomaz Pereira84
A fim de normatizar e equiparar os programas curriculares de todas as escolas da rede
pública, a Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, no final do ano de 2010, articulou
equipes de professores para a construção de currículos mínimos, cuja vigência deveria se dar no ano
letivo de 2011. A iniciativa propunha-se a produzir peças de referência acerca das competências e
habilidades a serem desenvolvidas em sala de aula por cada disciplina, de acordo com a legislação e
os parâmetros curriculares nacionais vigentes, apontando ainda para o conjunto de conteúdos
mínimos cujo acesso deveria ser garantido a todos os alunos da rede.
O projeto em tela pressupunha, entretanto, a possibilidade de que outros conteúdos
pudessem ser agregados ao programa curricular anual de cada professor, de acordo com as
especificidades escolares e locais. Assim, a organização dos currículos, cuja proposta inicial da
SEEDUC era que se orientasse pela pedagogia das habilidades e competências, apresentava-se
como estratégia para preservar a autonomia dos professores, responsáveis pela elaboração de seus
programas. O pressuposto fundamental para a possibilidade deste nivelamento, presente na proposta
apresentada às equipes no final de 2010, era de que os currículos seriam formulados a partir das
experiências dos próprios professores da rede, o que, naquele momento, era garantido não apenas
pela composição das equipes formuladoras, mas na realização de consultas on line aos docentes e de
uma audiência pública ao final do processo.
Este capítulo apresenta uma rápida descrição do processo de produção do currículo mínimo
de sociologia, do qual participaram os autores deste texto85, empreendendo sua análise, tanto a partir
da compreensão do papel do ensino de sociologia expresso por seus autores, quanto das condições
83 Sociólogo e Antropólogo, professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFRRJ, Coordenador do Núcleo de Análises de Práticas Políticas e Políticas Públicas (NAPP-UFRRJ), atuou como coordenador da equipe para formulação do currículo mínimo de sociologia da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro para o ano de 2011. 84 Professora de sociologia da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, mestranda em ciências sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ, atuou na equipe para formulação do currículo mínimo de sociologia da SEEDUC para o ano de 2011. 85 Participaram da equipe de formulação da proposta curricular, além do autor e da autora deste artigo, Andréa Paiva, Giselli Avíncula, Renato Pereira, Sérgio Rocha e Terezinha Lauermann, todas(os) professores(as) da rede pública estadual do Rio de Janeiro. Agradecemos a Andréa Paiva pela leitura crítica do texto.
113
de sua construção, sobretudo no que diz respeito às possibilidades de ampliação da participação dos
professores da rede pública estadual, no bojo das políticas de educação do Governo do Estado e de
sua lógica. Dada a natureza do envolvimento dos autores deste capítulo com o processo em análise,
este texto não apresenta as características tradicionais de um texto acadêmico, tampouco sua forma
consagrada. Trata-se mais propriamente de um “relato de viagem”, de uma primeira tentativa de
auto-reflexão sobre uma experiência recente. Várias questões candentes podem ser depreendidas
para futuras análises, oscilando entre dois eixos temáticos cada vez mais importantes para a
sociologia: as políticas de educação e o ensino de sociologia nos níveis fundamentais e médio. Este
texto, entretanto, opta por “arranhar” cada uma delas, em nome de um formato mais narrativo da
experiência de construção curricular.
O contexto de construção do currículo mínimo: a sociologia no ensino médio
Avaliar o processo de construção do currículo mínimo de sociologia exige, antes de
qualquer coisa, que tratemos das especificidades do ensino desta disciplina na educação básica,
particularmente no contexto do estado do Rio de Janeiro. Nos parágrafos que se seguem, faremos
isto, ainda que de forma sumária.
Apesar da inclusão de seu ensino constar na própria Constituição do Estado do Rio de
Janeiro desde o final da década de 1980, a sociologia ainda é uma disciplina que está conquistando
seu espaço e sua identidade na educação básica do estado. Até o ano de 2009, ela estava restrita, na
matriz curricular da modalidade regular do ensino estadual, ao terceiro ano do nível médio, ou seja,
apenas ao último ano de ensino na educação básica. Não era raro, naquele contexto, nos depararmos
com a surpresa dos alunos com a “nova” disciplina, ao iniciar o ano letivo. Além disso, a
recorrência com que professores de outras áreas assumiam as aulas de sociologia em muitas escolas,
contribuíam para a sua marginalidade neste nível de ensino.
Na verdade, mesmo com as mudanças recentes, estamos longe de superar este quadro, ainda
tão familiar. A despeito do que preconiza a LDB quanto aos eixos norteadores do ensino médio –
isto é, a "preparação básica para o trabalho" e para o "exercício da cidadania" –, a vigência efetiva
de um modelo de ensino voltado para o vestibular produziu um déficit de legitimidade da sociologia
na escola, não apenas por parte dos estudantes, mas também pelos próprios professores e mesmo
por algumas equipes de direção, manifesto em compreensões como, por exemplo, aquela que divide
a escola em disciplinas que "cobram" e disciplinas que "não cobram".
Por outro lado, os cursos superiores de ciências sociais perpetuam velhas dicotomias que
informam sua operacionalização, superpondo as relações assimétricas entre pesquisa e ensino a
114
outras, como aquelas entre graduação e pós-graduação e entre bacharelado e licenciatura. Resultado
disto, uma concepção do bacharelado como "celeiro" de pós-graduandos, alimentada pela disputa
por recursos limitados como bolsas de pesquisa e vagas em cursos de pós-graduação, acaba por
relegar às licenciaturas o caráter - ainda que informal - de cursos de segunda linha, voltados para a
formação de massa de professores de nível básico.
Por conseqüência, não é incomum, entre nós, o baixo grau de envolvimento dos
departamentos de ciências sociais86 na formação da licenciatura, vivida como um apêndice
pedagógico ao bacharelado, bem como a tímida presença de qualquer debate sobre formação de
professores nos cursos de pós-graduação da área. Do mesmo modo, é ainda baixo o interesse das
corporações científicas na discussão em torno do ensino de sociologia no nível médio. O ensino de
sociologia na educação básica não constitui um objeto privilegiado de pesquisa no campo das
ciências sociais, e a dissociação entre as formações de professor e de pesquisador acaba por trazer,
implícita, uma concepção proletarizada do professor de nível médio como mero reprodutor de
conteúdos, em contraposição ao professor-pesquisador universitário. De fato, até recentemente,
eram poucos os estudantes de ciências sociais que entravam na universidade objetivando trabalhar
na sala de aula do ensino médio, e, talvez, menos ainda eram os que saíam com esse objetivo. As
próprias condições materiais da carreira – baixos salários e precárias condições de trabalho – tornam
o magistério no ensino básico uma alternativa profissional pouco atraente.
Este é um quadro em progressiva – embora lenta – alteração, e a inclusão obrigatória da
sociologia87 na matriz curricular dos três anos do ensino médio, tanto das redes públicas quanto das
redes privadas de ensino, aparece como um importante elemento a conferir destaque ao ensino de
sociologia na educação básica, gradualmente repensado nos espaços institucionais do campo das
ciências sociais. Vale notar o aumento do número de grupos de pesquisa que têm discutido a
sociologia no ensino médio, a exemplo, no caso do estado do Rio de Janeiro, do Laboratório de
Ensino de Sociologia Florestan Fernandes (LabES), da Universidade Federal do Rio de Janeiro88
(UFRJ), ou do Grupo de Trabalho em Defesa do Ensino de Sociologia, da Universidade Federal
Fluminense (UFF).
Associações científicas e de classe tem criado grupos de trabalho para discutir a questão,
como é o caso da Sociedade Brasileira de Sociologia, que articulou, há alguns anos, uma Comissão
86 Incluídos aqui os de Ciência Política, Sociologia e Antropologia. 87 Lei Federal n° 11.684/2008, que altera o art. 36 da LDB e inclui as disciplinas Sociologia e Filosofia como obrigatórias nos currículos de todas as modalidades de ensino médio em todo o país. 88 Cabe a observação de que o LabES, está institucionalmente vinculado ao departamento de Educação da UFRJ.
115
de Ensino89, ou da Associação Profissional dos Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro (APSERJ),
extremamente atuante na luta pela inclusão da sociologia no ensino básico do estado. Encontros
acadêmicos têm sido realizados em torno do debate, como o recente Encontro Estadual de Ensino
de Sociologia, na Faculdade de Educação da UFRJ, ou ainda o Encontro Nacional sobre Ensino de
Sociologia na Educação Básica (ENESEB), no plano nacional. Programas do Governo Federal,
como o Programa de Incentivo a Bolsas de Iniciação a Docência (PIBID-CAPES), têm estimulado a
pesquisa e a extensão vinculadas aos cursos de licenciatura de Ciências Sociais. No momento
mesmo em que fechamos este texto, se está articulando a fundação da Associação Brasileira de
Ensino de Ciências Sociais (ABECS), voltada para a discussão e a intervenção especificamente no
tema do ensino das ciências sociais na educação básica, com participação paritária de investigadores
acadêmicos e professores do “chão da escola”.
Apesar de tais iniciativas, a incipiência do debate em torno da sociologia na educação básica
ainda redunda na tímida produção de material didático, bem como na ausência de referentes que
produzam um consenso mínimo tanto em torno do conteúdo programático a ser ministrado quanto
do repertório de atividades pedagógicas, constitutivos do processo de ensino e aprendizagem.
Muitas vezes, a ausência desses recursos didáticos é suprida por transposições diretas de materiais
de leitura e discussões correntes nas faculdades de ciências sociais. Tais dificuldades tornam ainda
mais precária a relação dos alunos com a disciplina. A ausência de uma tradição curricular
consolidada, também decorrente da intermitente presença e obrigatoriedade da disciplina na
educação básica, cria obstáculos para a construção dos programas e conteúdos. Diferentes livros
didáticos sugerem temas e abordagens diversificados, e a própria formação acadêmica e a história
de vida dos professores acabam influenciando a orientação deste ensino.
Este é o contexto no qual, em novembro de 2010, a SEEDUC organizou uma equipe
formada por professores regentes da rede pública estadual para formulação do currículo mínimo de
sociologia para os três anos do ensino médio regular. No momento em que a equipe era formada,
nos parecia que este contexto deveria ser levado em consideração, posto que tornava
particularmente desafiante a proposta de um currículo mínimo de sociologia a ser imposto a toda a
rede pública estadual de ensino, exigindo cuidados particulares em sua construção. Foram os
desdobramentos políticos deste contexto, do qual falaremos em seguida, que pautaram a posição da
equipe, entendida ao mesmo tempo como técnica e política, e que determinaram os
encaminhamentos coletivamente deliberados desde seu primeiro momento.
89 É curioso notar, entretanto, que as associações científicas representativas da antropologia e da ciência política (respectivamente, a ABA e a ABCP) não se inseriram no debates, por mero nominalismo, já que é consenso que o conteúdo de sociologia no ensino médio abarca as três subdisciplinas das ciências sociais.
116
A disputa pelos calendários como disputa política
A iniciativa sistemática de elaboração dos currículos mínimos para os anos finais do ensino
fundamental e para o ensino médio regular, por parte da SEEDUC, ocorreu entre os meses de
novembro de 2010 e janeiro de 2011, atingindo seis disciplinas: matemática, língua
portuguesa/literatura, geografia, história, sociologia e filosofia. Tal proposta, apresentada como
prioritária, se fazia acompanhar do reconhecimento, por parte da Secretaria, da necessidade da
construção de currículos mínimos tanto para as demais disciplinas do ensino médio regular e dos
anos finais do ensino fundamental, quanto para as modalidades de Educação de Jovens e Adultos
(EJA) e Formação de Professores, bem como para os anos iniciais do ensino fundamental, que ainda
se encontram sob a responsabilidade do governo do estado em algumas localidades90.
Todas as equipes eram formadas por professores da própria rede estadual, e coordenadas por
profissionais de diferentes instituições de ensino superior do Rio de Janeiro. A proposta contava,
assim, com um duplo elemento de legitimação: por um lado, o conhecimento e a experiência dos
professores da rede – elemento que era constantemente ressaltado pelos agentes da Secretaria, ao
apontar para o fato de que o currículo seria produzido por quem conhecia o “chão da escola” -; por
outro lado, a legitimidade conferida pela discussão acadêmica, na presença de coordenadores de
equipe oriundos de Universidades.
A confecção dos currículos ficou sob total responsabilidade das equipes montadas pela
SEEDUC, desde a escolha e seleção de conteúdo até sua organização e distribuição em anos e
bimestres, garantindo-se a autonomia de seu trabalho. A única orientação substantiva feita pela
Secretaria era de que os currículos seguissem a estratégia pedagógica de organização na forma de
habilidades e competências
Tanto os membros das equipes quanto suas coordenações foram convidados pela secretaria
para a execução deste trabalho a partir de uma rede de indicações. A equipe de Sociologia foi
composta por seis professores de diferentes localidades e regiões do estado, com perfis e
experiências variadas. Vale ressaltar que, ao contrário dos currículos de sociologia apresentados pela
SEEDUC em 2006 e 2010, para o currículo de 2011 compôs-se uma equipe formada por
professores com formação em ciências sociais e licenciatura plena em sociologia.
90 A despeito do reconhecimento, desde o início, da necessidade deste "segundo momento", o final do ano de 2011 foi marcado, como veremos adiante, por uma nova chamada para a reconstrução dos mesmos currículos elaborados em 2010, sem que se estendesse a iniciativa para as outras disciplinas e modalidades de ensino.
117
O projeto previa um cronograma, a princípio, bastante limitado para execução e entrega do
currículo: uma versão preliminar deveria ser elaborada até o dia 20 de dezembro de 2010 (a reunião
de apresentação das equipes acontecera no dia 25 de novembro), data a partir da qual se iniciaria o
período de “consulta pública”, que consistia na disponibilização do documento no sítio eletrônico da
SEEDUC, com uma chamada para que os professores da rede colaborassem com opiniões e críticas
via email. A partir desta “consulta pública”, que se estenderia até o dia 06 de fevereiro, e
consolidada uma versão final até o dia 11 do mesmo mês, uma “audiência pública” seria realizada
com os professores da rede, redundando na entrega da versão final do currículo mínimo em 25 de
fevereiro de 2011.
Desde aquele primeiro momento, foi sugestão da coordenação da equipe de sociologia que a
proposta de consulta fosse feita não apenas aos professores da rede, mas ao conjunto de atores
envolvidos nos debates em torno do ensino médio: coordenadores de cursos de licenciatura,
associações profissionais e grupos de pesquisadores. Além disso, sugerimos que a consulta
presencial não se resumisse a uma audiência pública por disciplina, mas a alguns encontros com os
professores da rede. Esta compreensão se consolidou nos primeiros encontros da equipe de
sociologia, dos quais tiramos uma nova proposta de calendário feita à SEEDUC, que, na
compreensão da equipe, era mais exeqüível, considerando a importância do trabalho. Este novo
calendário foi encaminhado à Subsecretaria de Ensino na forma de uma carta, na qual
explicitávamos nossas razões.
Considerávamos, naquela primeira carta, datada de 20 de dezembro de 2010, o quanto o
currículo de sociologia da rede pública estadual encontrava-se especialmente sob debate. O
currículo mínimo vigente em 2010 havia sido alvo, alguns meses antes, de duras críticas, em uma
polêmica que envolvera intelectuais de renome, veículos da grande imprensa e a própria Sociedade
Brasileira de Sociologia. Considerávamos que tais reações deviam-se tanto aos contornos político-
ideológicos dos debates que marcam a disciplina, quanto à grande visibilidade da sociologia pela
sua recente obrigatoriedade no ensino básico nacional. Identificávamos, naqueles debates, vozes
contrárias ao ensino de sociologia na educação básica, mas também a emergência de coletivos com
distintas formas de atuação no campo do ensino de sociologia, como grupos de pesquisa acadêmica,
associações científicas e entidades de classes.
Reiterávamos a proposta, então aceita pela secretaria, de extensão da consulta pública para
“especialistas da área, coletivos de pesquisa, associações e colegiados de licenciatura em ciências
sociais”. Tal proposta assumia, para nós, uma inegável dimensão política, a considerar os impactos
do currículo mínimo naquele mesmo ano, mas, para além disto, apontava para a “possibilidade de
118
incorporação de toda a reflexão acumulada no campo, resultante tanto da experiência escolar e de
sala de aula quanto da pesquisa e do debate acadêmico”.
Diante disto, parecia à equipe que o calendário proposto originalmente pela SEEDUC era
inexeqüível, se quiséssemos garantir tanto qualidade quanto participação. Antes de qualquer coisa,
porque a maior parte do período da chamada “consulta pública” se daria no mês de janeiro, período
de férias docentes, redundando em déficit participativo para o processo. Argumentávamos que,
embora fosse previsível que alguns professores estivessem disponíveis no período para colaborar
com a proposta curricular e colaborar com ela, tratava-se, “a rigor, do período de férias escolares,
além de férias trabalhistas para muitos professores, que poderão estar engajados em outras
atividades, indisponíveis, portanto, para refletir sobre suas possíveis colaborações”.
Compreendendo a consulta pública para além da mera disponibilização do documento
produzido em um sítio eletrônico, sugeríamos que a proposta fosse pauta dos encontros de
planejamento escolar, previstos em todas as escolas da rede pública estadual para os dias 01 a 04 de
fevereiro, prevendo-se a semana seguinte como destinada ao encaminhamento de propostas dos
coletivos de professores à comissão. A consulta a especialistas, associações e colegiados de cursos
de licenciatura, por sua vez, deveriam ocorrer nas primeiras semanas de fevereiro, considerando o
início do período letivo nas universidades.
Propúnhamos, então, uma extensão do período de consulta pública em doze dias (entre 20
de dezembro e 18 de fevereiro, e não 06 de fevereiro, como proposto pela SEEDUC), o que
redundaria na publicação final no dia 11 de março, e não no dia 25 de fevereiro, como previsto
inicialmente. A extensão do prazo, que era objetivamente de uma semana letiva, a considerar o
período carnavalesco, foi entendida pela equipe como um preço pequeno a ser pago, em troca da
garantia da participação ampliada no processo constitutivo do currículo, sobretudo considerando-se
que o calendário inicialmente proposto já previa a divulgação dos currículos com o ano letivo
iniciado.
Encerrávamos aquela carta apontando para a compreensão de que “tais medidas, se não
serão suficientes para evitar as eventuais criticas a proposta, sempre salutares em um ambiente de
construção democrática, produzirá nesta comissão e, cremos, na Secretaria, a certeza de que
realmente ouvimos as vozes que, hoje, legitimamente devem participar deste debate”, garantindo
um processo que “terá primado tanto pelas qualidades técnicas da proposta quanto pelo caráter
democrático de sua construção”.
No dia seguinte, 21 de dezembro, coordenadores das equipes de todas as disciplinas foram
convidados pela SEEDUC para um “encontro de avaliação”. Nesta reunião, que contou com a
participação do Subsercretário de Ensino, a SEEDUC apresentava uma nova proposta de calendário,
119
que antecipava aquele inicialmente proposto, com previsão da “consulta pública” até o dia 12 de
janeiro e consolidação da proposta até o dia 17 de janeiro, tendo em vista a entrega da versão
impressa às unidades escolares até o dia 27 daquele mês. Em contrapartida a esta redução drástica
do cronograma, a proposta acenava para a possibilidade de um trabalho prolongado das equipes até
o mês de maio, com acompanhamento da aplicação e revisão do currículo mínimo, para preparação
de uma “segunda edição”, proposta que se revelou, mais tarde, um verdadeiro “canto de sereia”.
Naquela ocasião, o coordenador da equipe de sociologia apresentou sua posição pessoal,
que foi avalizada posteriormente por toda a equipe: a compreensão de que o novo calendário
eliminava a consulta pública do processo de construção curricular, ao resumir-se a disponibilizar o
documento na internet nas duas primeiras semanas de janeiro. Mais que isto, ao fazê-lo, Secretaria e
equipes tornar-se-iam passíveis de serem acusadas de travestir o débil mecanismo consultivo como
“consulta pública”. Parecia-nos claro, ainda, que tal proposta respondia aos imperativos do mundo
da política, neste caso à necessidade de apresentar um produto no início do semestre letivo, sem o
necessário cuidado com a qualidade daquilo que se produzia.
A permanência da equipe na atividade de construção do currículo dependeu de certos pontos
acordados com a SEEDUC, a partir daquele diagnóstico. Em primeiro lugar, que o documento
divulgado ao final de janeiro fosse explicitamente caracterizado como uma “versão preliminar”, ou
ainda como “primeira versão”, como contraproposto pela SEEDUC. Em segundo lugar, que o
período de consulta fosse estabelecido como iniciando-se em dezembro de 2010 e estendendo-se até
abril de 2011, nomeando-se o período até doze de janeiro de 2011 de "disponibilização da proposta
no Conexão Professor", e não de "consulta pública". Finalmente, como proposto por coordenador de
outra equipe docente, que o texto introdutório da versão de janeiro explicitasse o caráter provisório
daquele documento, bem como o compromisso da Secretaria com o trabalho continuado de consulta
até maio. A SEEDUC assim expressou este compromisso no referido texto introdutório: “nos meses
de fevereiro a maio de 2011, serão desenvolvidos fóruns e encontros para debater a primeira versão
e possíveis atualizações, permitindo o aperfeiçoamento e a construção democrática das próximas
edições”.
O currículo mínimo como artesanato intelectual e construção coletiva
A primeira proposta de currículo foi produto da construção coletiva da equipe de professores
de sociologia, resultado da reflexão acerca dos programas e currículos produzidos e vividos em suas
experiências particulares de sala de aula, além da contribuição de outros vinte e um professores da
120
rede, bem como de professores e pesquisadores de outras instituições, através da participação pela
disponibilização da proposta no sítio eletrônico da SEEDUC.
Tal compreensão do caráter coletivo do trabalho pautou os procedimentos da equipe desde o
início. Assim, o primeiro procedimento tomado foi a reunião e comparação dos programas anuais
de sociologia aplicados em sala de aula. Tais programas foram comparados destacando-se suas
interseções e diferenças. Observados os conteúdos, a equipe passou ao levantamento de temas do
campo mais amplo das ciências sociais considerados relevantes para o ensino de sociologia na
educação básica. O resultado desse primeiro exercício foi a organização dos conteúdos em grandes
eixos temáticos - O conhecimento sociológico; Espaço, território e sociedade; Cultura e identidade;
O mundo do trabalho; Diferenças e desigualdades; Política, estado e poder e Direitos e cidadania -
conforme pode ser observado abaixo:
O conhecimento sociológico Espaço, território e sociedade
História da Sociologia/Sociologia e modernidade; ciência e senso comum; a relação indivíduo-sociedade; o objeto da sociologia; o processo de socialização; metodologia das ciências sociais.
O rural e o urbano; culturas e identidades urbanas e rurais; movimentos sociais urbanos e rurais; planejamento urbano –direito à cidade e segregação espacial; violência urbana; criminalização da pobreza e dos movimentos sociais; territorialidades, territorialização, desterritorialização; novas ruralidades – ruralidade e etnicidade–populações tradicionais; sustentabilidade e desenvolvimento.
Cultura e identidade O mundo do trabalho Conceito de cultura/ natureza e cultura; etnocentrismo e relativismo; construção da alteridade; grupos sociais e construção de identidades; cultura e diversidade; multiculturalismo e interculturalidade; cultura e patrimônio; culturas indígenas, africanas e afro-brasileiras; ideologias e visões de mundo; cultura popular e cultura erudita; cultura de massas e indústria cultural –novas tecnologias; contracultura.
Os diferentes modos de produção – o trabalho nas diferentes sociedades; o trabalho nas sociedades tribais; modos de produção, meios de produção e relações produtivas; classes sociais, luta de classes e sociedades sem classe; o modo de produção capitalista; estratificação de classes no capitalismo; fordismo, taylorismo, reestruturação produtiva; as diversas formas de trabalho no Brasil – trabalho formal e informal; trabalho escravo e trabalho análogo à escravidão; trabalho e marcadores de diferença no Brasil –gênero, raça/etnia, geração (ênfase em trabalho infantil); a regulação do mundo do trabalho –os direitos trabalhistas no Brasil.
Diferenças e desigualdades Política, estado e poder
Teorias da estratificação; mobilidade social; desigualdades sociais e diversidades humanas; marcadores sociais da diferença: gênero, sexualidade, raça/etnia, geração; discriminação e preconceito –racismo, sexismo, homofobia, xenofobia, etc; estereótipos e estigmatização; políticas de reconhecimento e multiculturalismo.
•Poder, autoridade e dominação; sociedades com estado e sociedades sem estado; guerras e conflitos em diferentes sociedades; formas de governo (monarquia, república, democracia, aristocracia, tirania, etc.); formas de Estado (confederação, federação, estado unitário); divisão dos poderes; sistema de Governo (presidencialismo e parlamentarismo); sistema eleitoral e sistema partidário; poliarquia; democracia representativa e democracia participativa: arenas deliberativas; controle social e sociedade disciplinar; estado social e estado penal; neoliberalismo e globalização; estado e sociedade civil –esferas privada e pública; políticas públicas e garantia de direitos;
121
políticas de redistribuição versus políticas de reconhecimento.
Direitos e cidadania
Direitos civis e políticos; direitos econômicos, sociais e culturais; direitos individuais e direitos coletivos; direitos humanos; ética e cidadania; Constituição e direitos; movimentos sociais tradicionais e novos movimentos sociais; redes de movimentos sociais; organizações da sociedade civil; formas de associativismo.
Definidos os eixos temáticos, a equipe os dividiu, a seguir, em unidades bimestrais,
avaliando e selecionando os conteúdos mais adequados ao desenvolvimento do processo de ensino e
aprendizagem para cada ano do ensino médio91. No decorrer do processo, definiu-se como
estratégia adotar um modelo de currículo mínimo mais "robusto" em seus conteúdos, tendo em vista
o compromisso firmado pela Secretaria em proceder à avaliação de sua aplicabilidade no decorrer
do ano de 2011. Neste sentido, uma versão mais enxuta do currículo mínimo, deveria ser resultado
de cortes realizados a partir da experiência posterior de todos os professores da rede.
Além disso, já naquele momento, a equipe decidiu pela distinta opção de montar o currículo
a partir da transversalização dos conteúdos, isto é, garantir que campos temáticos como cultura,
política e trabalho, fundamentais para as ciências sociais, estivessem presentes nas três séries do
ensino médio. Pretendia-se, com essa estratégia, garantir que o estudante transitasse por esses
campos, aprofundando, com o passar das séries, a compreensão sobre cada um deles. Tal
"transversalização" do conteúdo possibilitaria que, por exemplo, tendo sido ministrados, no primeiro
ano, os fundamentos do trabalho como atividade humana e dos diferentes modos e relações de
produção, se pudesse desenvolver, no ano seguinte, o debate acerca do modo de produção
capitalista, retornando-se ao conceito, na terceira série, para a análise das relações de trabalho no
Brasil especificamente.
Neste arranjo, o primeiro ano do ensino médio funcionaria como uma introdução e uma
apresentação ao conhecimento sociológico, disponibilizando ao estudante os conceitos
fundamentais que deveriam ser retomados ao longo dos dois outros anos de ensino de forma mais
profunda e criativa. Além disso, tal opção estava informada pela percepção de que o novo currículo
incidiria, no ano vindouro, sobre as três séries, o que significa que atingiria estudantes que já haviam
entrado em contato com a disciplina nos anos anteriores, sem que houvesse qualquer controle dos
conteúdos que já lhes tivessem sido ministrados ou não.
91 Tal distribuição considerou também a carga horária reduzida da primeira série que, de acordo com a matriz curricular vigente em 2011, apresentava, em sociologia, apenas um tempo semanal, em contraposição aos dois tempos semanais do segundo e terceiro ano do ensino médio.
122
O quadro abaixo apresenta, de forma resumida, a proposta preliminar de organização
curricular produzida a partir destas orientações, ainda antes de ter sido alvo da apreciação pública.
Nela, os eixos temáticos aparecem já distribuídos de forma transversal.
Bimestre Série
1° Bimestre 2° Bimestre 3° Bimestre 4° Bimestre
1° série O conhecimento sociológico
Cultura e diversidade
Trabalho e sociedade
Diferenças e desigualdade
2° série Metodologia das Ciências Sociais
Cultura e identidade Política, Estado e poder
Trabalho e capitalismo
3° série Cultura, poder e consumo
Relações de trabalho no Brasil
Cidadania e formas de participação democrática
Espaço, território e sociedade
Assim, o terceiro passo foi articular, para cada um desses grandes eixos temáticos
bimestrais, temas norteadores específicos, conceitos-chave que pudessem garantir o rigor na
abordagem sociológica e, finalmente, as habilidades e competências esperadas de cada um deles no
processo de ensino e aprendizagem.
A articulação dos temas norteadores tinha por objetivo indicar as possibilidades dos
conteúdos a serem abordados em cada bimestre; um repertório temático que pudesse ser
distintamente apropriado, adaptado e recriado pelas equipes de professores de acordo com as suas
especificidades, bem como articulado, com mais autonomia, às escolhas teóricas que melhor lhes
aprouvesse. Não se pretendia, com isso, afirmar a neutralidade como horizonte desejável para a
construção da proposta curricular, ou ignorar os referenciais teóricos subjacentes aos enunciados
temáticos. Porém, ainda que consideremos que toda organização temática e de conteúdo oculta - ou
ainda, revela - escolhas teóricas, o trabalho de construção curricular pautou-se pelo esforço de não
vincular os temas propostos a chaves teóricas específicas, na compreensão de que tais escolhas
pudessem e devessem ser feitas pelos professores em diálogo com seus colegas em suas unidades
escolares, contribuindo para seu desenvolvimento ao longo do processo de formulação do Currículo
Mínimo, posto que a versão em debate não seria a definitiva.
A elaboração de conceitos-chave para cada bimestre tinha por objetivo precípuo oferecer
um “repertório conceitual” para o trabalho particular de cada professor, repertório este que,
juntamente com bibliografia de referência que se pretendia oferecer, os orientasse em suas pesquisas
pessoais e contribuísse para atender às demandas por atualização nos debates das ciências sociais.
Esperava-se, sobretudo, garantir a presença, na educação básica, do corpo conceitual constitutivo do
campo das ciências sociais, sobretudo em um contexto como o da rede pública de ensino do Rio de
123
Janeiro, no qual, não raro, encontramos, nas unidades escolares, professores de outras disciplinas
ministrando as aulas de sociologia.
Finalmente, foram propostas as habilidades e competências que deveriam ser desenvolvidas
ao longo de todo o processo de ensino e aprendizagem. Nessa proposta, as habilidades e
competências foram resultado de um diálogo estreito com as chaves conceituais presentes no
currículo, além de seguirem as orientações que pautam as matrizes referenciais de avaliação de larga
escala e os parâmetros e orientações curriculares nacionais.
Embora o pedido da SEEDUC tenha sido de construir um currículo em termos apenas de
habilidades e competências, foi unânime a posição da equipe em manter a formulação do currículo a
partir de temas e conceitos, de modo a garantir o compromisso com o debate e a contribuição
específica das ciências sociais na educação básica. Tal modelo foi aceito pela Secretaria e, mais
tarde, adotado por outras equipes.
No que dizia respeito à seleção dos conteúdos, buscou-se enfatizar o debate dos temas no
que eles eram pertinentes à realidade brasileira. Desse modo, tópicos como relações raciais,
participação política, preconceito e discriminação, economia, trabalho e espaço foram pensados não
apenas em seus aspectos teóricos e analíticos mais amplos, mas em seus contornos particulares no
contexto nacional, com ênfase na contribuição da produção sociológica brasileira. Embora não se
tenha procurado delimitar um espaço específico para o pensamento social brasileiro, justamente na
expectativa que este pudesse atravessar diferentes momentos do recorte temático, dedicou-se
especial atenção à organização do conteúdo do terceiro ano para atender a esta demanda colocada
pela equipe.
A primeira proposta curricular formulada trazia uma unidade dedicada exclusivamente ao
debate metodológico nas ciências sociais. A reflexão sobre os instrumentos e técnicas de pesquisa
na educação básica não objetivavam preparar teórica e metodologicamente o estudante para se
tornar um “mini pesquisador”, mas contribuir para a compreensão sobre o processo de construção
do conhecimento nas ciências humanas, visando fomentar o exercício do estranhamento e da
desnaturalização do olhar para a vida social. Além disso, objetivava-se demonstrar os
desdobramentos políticos e sociais da pesquisa sociológica, através de exemplos de pesquisas e de
ferramentas de coleta de dados disponíveis em leituras e interpretações de gráficos, tabelas e
pesquisas presentes nos meios de comunicação de massa, documentos oficiais, textos acadêmicos e
outros tipos de publicação.
Atenção especial foi dedicada ao tema das relações etnicorraciais, em especial no que se
refere às discussões sobre o processo de construção de identidades coletivas e as diferentes formas
de preconceito e discriminação. Sem desprivilegiar a reflexão sobre outras formas de pertença, tal
124
ênfase justificou-se pelo necessário atendimento às leis 10.639/03 e 11.645/08, que estabelecem a
obrigatoriedade da presença de conteúdos relativos às historias e culturas africanas, afro-brasileiras e
indígenas nos currículos da educação básica. Partia-se do entendimento de que, a despeito da
referência imediata dos dispositivos legais às áreas de educação artística, literatura e história, as
ciências sociais possuem considerável reflexão acumulada no campo das relações etnicorraciais,
podendo contribuir de forma rica e fecunda com as demais disciplinas na formação dos alunos da
rede pública estadual.
Assim, sob essas orientações e estratégias a versão preliminar do currículo mínimo de
sociologia foi elaborada e disponibilizada no sítio eletrônico da SEEDUC entre final de dezembro
de 2010 e início de janeiro de 2011. Como era de se esperar, poucas contribuições substantivas
foram encaminhadas pelo email disponibilizado. Dentre estas, entretanto, destacamos importantes
contribuições, sobretudo a respeito da estratégia de organização transversal do currículo, da
quantidade de conteúdo distribuída entre os bimestres e anos de ensino (particularmente no que
dizia respeito ao primeiro ano, dada a reduzida carga horária), quanto à necessidade de maior ênfase
ao pensamento social brasileiro e à escolha de dedicação de um bimestre específico para o trabalho
com a metodologia das ciências sociais.
A partir de tais sugestões, foi elaborada a reformulação que se consolidou como a primeira
versão oficial do currículo mínimo de sociologia da rede pública estadual de educação do Estado do
Rio de Janeiro (em anexo). Além de rearrumar a distribuição dos conteúdos em termos de anos e
bimestres, foi eliminado o conteúdo do bimestre dedicado à Metodologia das ciências sociais, muito
embora se insistisse na importância e necessidade da prática e reflexão sobre a pesquisa e produção
de conhecimento nas ciências sociais, sugerindo que este tema pudesse estar presente como uma
habilidade transversal, a transpassar todo o currículo. Em substituição, se propôs um bimestre
dedicado especialmente ao tema Preconceito e Discriminação, como resultado de uma rearticulação
dos tópicos Cultura e Identidade e Diferença e Desigualdade, doravante nomeado Estratificação e
Desigualdade. Abaixo, pode-se ver o novo rearranjo dos temas por bimestre (em destaque, os
bimestres alterados).
Bimestre
Série
1° Bimestre 2° Bimestre 3° Bimestre 4° Bimestre
1° série O conhecimento
sociológico
Cultura e
diversidade
Estratificação e
Desigualdade
Trabalho e
sociedade
2° série Cultura e
Identidade
Preconceito e
discriminação
Política, Estado e
poder
Trabalho e
capitalismo
125
3° série Cultura, poder e
consumo
Relações de trabalho
no Brasil
Cidadania e formas
de participação
democrática
Espaço,
território e
sociedade
De modo geral, a principal orientação da equipe foi criar um currículo que pudesse não
apenas apoiar o trabalho de sala de aula, mas, sobretudo, inspirar o trabalho docente, de forma
comprometida com as ciências sociais e o ensino de sociologia na educação básica, a partir de um
conjunto “mínimo” de conteúdos considerados relevantes à disciplina neste nível de ensino. Cientes
dos limites que a experiência de seis professores pudesse representar frente a uma rede de ensino
que tem a diversidade como elemento constitutivo, dada as diferentes realidades sócio-espaciais das
mais de 1.400 escolas espalhadas por todo estado, o currículo nos parece possível apenas como uma
obra aberta e em permanente construção que se recriasse em sua realização em sala de aula, no
contato com nossos alunos, com nossos colegas e nas relações com a comunidade escolar e o espaço
como um todo. Assim, o lançamento da primeira versão do Currículo Mínimo de sociologia
representava apenas mais um passo no debate e no processo da consolidação do ensino de
sociologia na educação básica no estado do Rio de Janeiro.
A participação no bojo do projeto político da SEEDUC
Conforme previsto no calendário da SEEDUC, os currículos das seis disciplinas que
compunham o projeto para 2011 foram apresentados em "audiências públicas" em auditórios da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), no dia 1° de fevereiro de 2011, primeiro dia
letivo do calendário escolar92. Cerca de 150 professores de sociologia da rede pública estadual
estiveram presentes nesta audiência, em resposta ao convite publicado no sítio eletrônico da
Secretaria e transmitido através das direções escolares. O evento, para além de constituir uma
apresentação formal do Currículo Mínimo, seria a primeira oportunidade de debate público da
proposta. Esperava-se, com ele, dar início a uma jornada de fóruns e reuniões que resultariam em
uma segunda versão em maio de 2011, conforme a proposta de calendário da própria SEEDUC.
Os comentários à proposta pedagógica do Currículo Mínimo de Sociologia passaram por
temas como a necessidade de maior participação em sua formulação, considerando-se que a equipe
estava restrita a apenas seis professores, ao volume de conteúdo por bimestre, sobretudo diante do
grave quadro de déficit de aprendizado com o qual alunos chegam ao ensino médio, e a
92 A partir desta fase do processo, a professora Terezinha Lauermann deixou a equipe de sociologia, para assumir a direção de uma unidade escolar.
126
transversalidade dos conteúdos. Além disso, questionamentos foram feitos em torno da
aplicabilidade da proposta tanto para modalidades específicas de ensino, como Educação para
Jovens e Adultos e Formação de Professores, quanto para situações específicas do Ensino Médio
regular, como a carga horária reduzida no ensino noturno. Boa parte das reações dos professores
participantes do fórum, entretanto, fazia referência à proposta política mais ampla na qual esse e
outros projetos da SEEDUC estavam inseridos, e que impactavam sobre as próprias condições de
trabalho docente, ao mesmo tempo as condições de ensino e aprendizagem de alunos da rede
pública do estado Rio de Janeiro. Desse modo, o debate curricular em si mesmo ficou em segundo
plano, dando lugar a uma intensa discussão, fomentada pela chegada, ao fórum, do Subsecretário de
Gestão e Ensino.
Até então, apesar dos constantes contatos com a SEEDUC, nem a equipe de sociologia, nem
sua coordenação, foram informadas do projeto político que se implementava, e que papel o
currículo mínimo cumpria neste contexto. A equipe recebeu os professores, naquele fórum, na mais
absoluta ignorância da promulgação recente dos "Programas para o Aprimoramento e Valorização
dos Servidores Públicos da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro" (decreto nº42793,
de 06 de janeiro de 2011). Naquele momento, ficou flagrante para os membros da equipe de
sociologia em que contexto o projeto do currículo mínimo – e, portanto, o nosso trabalho – estava
inserido. Do mesmo modo percebemos, nos desdobramentos deste debate, que o papel a ser
assumido pelas equipes e pelos próprios currículos, a partir daquele momento, deveriam estar
necessariamente sob disputa.
O projeto Currículo Mínimo fazia parte das estratégias de “aprimoramento e valorização do
servidor e do ensino” proposto pela gestão do economista Wilson Risolia, no governo de Sérgio
Cabral. Este secretário assumiu a pasta de educação do estado em outubro de 2010, em substituição
à então secretária Tereza Porto, após a divulgação, pelo Ministério da Educação, do baixíssimo
desempenho da rede pública do estado do Rio de Janeiro: as escolas de ensino médio da rede
estadual obtiveram o segundo pior resultado no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
(IDEB).
Com o argumento de implementar ações que pudessem reverter este quadro e elevar o
ensino do Estado do Rio de janeiro para o 5° lugar no IDEB em apenas quatro anos, a Secretaria
lançou, em janeiro de 2011 (vale notar, período de férias coletivas da categoria), um “plano de
metas”, no qual previa uma articulação entre avaliação de desempenho e sistema de bonificação
para professores e servidores lotados nas unidades escolares. De acordo com essa estratégia, as
escolas seriam avaliadas por professores da própria rede estadual, selecionados e treinados para
atuarem como gestores escolares, com o objetivo de empreender um levantamento de cada unidade
127
seguindo critérios referentes ao rendimento dos alunos nos exames de âmbito nacional e estadual, ao
indicador de fluxo escolar, à infra-estrutura das escolas, entre outros. A partir dessa avaliação, as
escolas seriam classificadas em diferentes níveis (péssimo, ruim, regular, bom e ótimo) e a meta de
cada unidade seria calculada de acordo com as necessidades específicas para se adequarem.
É neste contexto que os currículos mínimos foram apresentados em sua primeira versão aos
professores da rede pública estadual. Seu papel, mais do que equiparar e normatizar os programas
curriculares trabalhados em toda a rede, vinculava-se diretamente ao programa de bonificação, uma
vez que esta só seria garantida para os servidores efetivos do quadro da SEEDUC lotados em
unidades escolares que cumprissem um conjunto de metas, dentre elas a aplicação integral dos
currículos mínimos.
Justifica-se, neste sentido, a resistência dos professores presentes no fórum em discutir um
projeto de currículo em uma situação de profunda precarização do trabalho, agravada pelas
mudanças recém anunciadas. A crítica ao sistema de bonificação por “mérito”, entendida como um
paleativo para a ausência de uma consistente política salarial, e o questionamento acerca da
exigibilidade do cumprimento do currículo mínimo, ainda naquele ano, como meio de avaliação
para o pagamento de gratificações, deram o tom do debate, não apenas no sentido de se questionar a
lógica de bonificação em si, mas também a pretensa construção democrática de tal ferramenta
pedagógica.
Somente após este encontro a equipe de sociologia tomou conhecimento do pano de fundo
no qual o projeto Currículo Mínimo se inseria, dimensionando, então, o espaço de disputa e diálogo
que poderia ter até seu esgotamento. Ao fim da audiência pública, a equipe se reuniu para uma
avaliação conjunta, decidindo por se posicionar frente à Secretaria de Educação, através de uma
segunda carta endereçada ao Subsecretário de Gestão e Ensino. Nesta carta, a equipe argumentava
que sua concordância em produzir a primeira versão em tempo exíguo estava vinculada ao
compromisso da SEEDUC com a realização de "uma consulta pública consistente, a público amplo
e diversificado", do que redundaria a segunda versão. A primeira versão, recém apresentada, trazia
consigo o caráter de peça experimental, na medida em que pretendia "suscitar uma discussão
informada pela experiência de sua aplicação, sem a qual não se poderia atestar sua aplicabilidade".
Neste sentido, a vinculação do currículo mínimo a um sistema de avaliação e bonificação inverteria
radicalmente todo o processo, fazendo dele um instrumento de coerção aos professores, imposto "de
cima para baixo". Esta "contramão" da lógica na qual o currículo de sociologia foi pensado desde o
início punha em risco ainda a eficácia dos princípios e orientações que organizaram sua formulação,
como, por exemplo, a estratégia de produzir um currículo mais robusto, a proposta da
transversalidade, e, principalmente, sua feitura voltada exclusivamente para o ensino médio regular,
128
na medida em que, naquele momento, não estava claro se tais avaliações incidiriam sobre as
modalidades especiais de educação.
Deste modo, solicitou-se à Subsecretaria um encontro para esclarecimento e um pedido,
ancorado nas razões expostas, de que a disciplina, no ano de 2011, fosse excluída tanto da
elaboração de avaliações externas, quanto da aferição da integralidade de sua aplicação pelas
unidades escolares, condicionando à pronta resposta a continuidade e normalidade do trabalho da
equipe. Na compreensão da equipe, tratava-se de avaliar não a aplicação integral do currículo
mínimo, mas antes sua aplicabilidade.
Em 18 de fevereiro, as equipes disciplinares foram convocadas pela SEEDUC para uma
reunião de avaliação da audiência pública e divulgação dos novos encaminhamentos. Nesta ocasião,
a equipe de sociologia reforçou os argumentos e a posição expressos na carta, insistindo na
necessidade de uma avaliação do currículo por parte dos professores, tendo em vista a necessidade
de diagnosticar as condições de sua aplicabilidade. A posição da equipe de sociologia foi apoiada
pelas demais equipes, o que redundou na adesão da própria SEEDUC às propostas. Entretanto,
salientavam os representantes da Secretaria, o cumprimento dos termos estabelecidos naquela
reunião dependiam da regulamentação do decreto que instituía o sistema de avaliação e bonificação,
o que, efetivamente, não se concretizou.
Foi definida, naquela reunião, que os trabalhos das equipes, doravante, se dariam em duas
frentes: na organização de referências bibliográficas que orientassem professores na aplicação dos
currículos e na realização de "encontros pedagógicos regionais", fóruns de discussão com os
professores, cujo início estava previsto para o mês de abril. Previa-se, para sociologia, três encontros
no município do Rio de Janeiro, um abrangendo a região Norte, um para a região do Médio Paraíba,
um para a região Serrana e Litorânea e dois fóruns específicos com pesquisadores da área,
totalizando, assim, oito encontros. A partir deles, poderíamos desenvolver a “segunda versão” do
currículo, resultado de uma consulta consistente.
Porém, em 13 de abril, enquanto todas as equipes disciplinares trabalhavam no
levantamento de referências bibliográficas que pudessem dar suporte aos currículos, aguardando o
início dos encontros pedagógicos com os professores, a SEEDUC, através de sua Diretora de
Pesquisa e Organização Curricular, comunicou a paralisação “temporária” dos trabalhos, devido às
dificuldades relativas ao pagamento das equipes, à morosidade na regulação do decreto que instituía
a bonificação por desempenho - e, portanto, a exigibilidade do cumprimento do Currículo Mínimo -
e aos entraves para a operacionalização dos encontros pedagógicos regionais com os professores da
rede estadual. A proposta da SEEDUC era de que as equipes, tendo paralisado seus trabalhos
“temporariamente" até que tais dificuldades fossem vencidas, retomassem suas atividades em
129
alguns meses, quando as mesmas se conjugariam a um projeto mais amplo de elaboração dos
currículos mínimos das demais disciplinas e modalidades de ensino, como expresso desde o início
do ano.
Entretanto, para surpresa da equipe de sociologia, no mês de outubro do mesmo ano, a
página eletrônica Conexão Professor, de responsabilidade da SEEDUC, anunciava a seleção de
equipes para elaboração dos currículos mínimos das mesmas disciplinas cujas equipes haviam sido
formadas no final de 2010, agora sob responsabilidade da Fundação Centro de Ciências e Educação
Superior à Distância do Estado do Rio de Janeiro (CECIERJ). Os membros da equipe dissolvida em
abril foram convidados a participar do novo processo, mas se negaram a participar. Efetivamente, a
abertura de uma nova seleção para um novo projeto de elaboração do currículo mínimo, seis meses
após a abrupta interrupção do trabalho da equipe anterior, constituía mais um rompimento do
compromisso estabelecido pela SEEDUC com a equipe de sociologia, e com o sentido atribuído por
esta ao trabalho realizado. Tratava-se apenas, em nossa compreensão, de concretizar a efetiva
"consulta pública" sobre o currículo construído, pela realização dos fóruns regionais, nos quais os
professores da rede poderiam discutir o currículo já elaborado, adicionada à composição de uma
bibliografia de apoio. A composição de uma nova equipe para a formulação de um novo currículo
adensava um diagnóstico que já vínhamos produzindo acerca da política de educação do governo do
Estado do Rio de Janeiro, bem como do lugar possível do currículo mínimo em seu bojo.
Conclusão
A inclusão da Sociologia na educação básica no estado do Rio de Janeiro, apesar de não ser
recente, ainda está em processo de consolidação de seu espaço, e de conquista de legitimidade e
identidade. A obrigatoriedade do seu ensino, garantida pela lei federal 11.684/08, em todas as séries
do ensino médio, não regulou o modo da sua implementação, cujas condições são bastante variadas
– e variáveis – tanto nas redes públicas como nas redes privadas de todo o país. No entanto, avanços
e retrocessos vêm se combinando com a ampliação desse debate, tanto nas escolas quanto nos meios
acadêmicos.
Embora em construção, o Currículo Mínimo apresentado é uma proposta concreta para a
prática pedagógica da sociologia na educação básica. Pensado e confeccionado por e para
professores da rede pública do estado do Rio de Janeiro, procura articular temas e conceitos que
possam contribuir para o desenvolvimento da "imaginação sociológica", despertando no estudante a
capacidade de olhar e perceber a vida a sua volta como um produto de relações sociais. A
possibilidade de desnaturalização da vida social através do uso das ferramentas teóricas e
130
metodológicas da sociologia, da antropologia e da ciência política, transversalizando as
contribuições de cada uma dessas áreas consagradas das ciências sociais, é o que norteia a
concepção da sociologia neste currículo. Embora não seja uma exclusividade da disciplina o
desenvolvimento de uma forma crítica de pensar o mundo e o olhar atento sobre os temas que
pautam os debates de interesse público, entende-se que essa pode ser uma contribuição especial da
sociologia no quadro da educação básica, dado o corpo conceitual, teórico e temático específico que
essa disciplina pode oferecer.
As dificuldades em torno da continuidade e efetivação desta proposta de construção de
currículo mínimo para a rede estadual e, conseqüentemente, para a consolidação da sociologia na
educação básica, muito mais que uma questão técnica e de consenso pedagógico, estão relacionadas
à atual política de educação do Governo do Estado. A constante reformulação dos currículos
programáticos, a produzir a descontinuidade desta construção coletiva, soma-se à ausência do
esforço consistente para a produção de material de referência e para a qualificação do quadro
docente. A recente redução da carga horária das aulas de sociologia na matriz curricular de 2012 do
ensino médio regular e da Educação de jovens e adultos93 da rede pública estadual também é um
exemplo da inconstância e da marginalidade que marcam a disciplina na educação básica.
Estamos diante de uma concepção de política de educação essencialmente meritocrática,
como revela o sistema de avaliações periódicas e de fixação de metas especificas para cada unidade
escolar, articulado a uma política de bonificação por desempenho dos servidores públicos efetivos e
em exercício, mediante o alcance de tais metas (Decreto n° 42. 793, de 06/01/ 2011). Dentro desta
perspectiva, a escola passa a ser quantificada em gráficos de desempenho de acordo com critérios
criados pela SEEDUC, assumindo a lógica da produtividade e otimização dos investimentos
públicos, que considera, como expresso em falas do atual secretário, a “educação como um
negócio” a gerar "bons produtos". Assim, professores e alunos são coisificados a pretexto de um
projeto de “aprimoramento e valorização” da educação pública que rotiniza o trabalho criativo da
sala de aula e adensa a precarização salarial. Discursos (e constrangimentos) sobre eficiência passam
a ser comuns nas salas de professores e reforçados por direções nos conselhos de classe e em
reuniões pedagógicas. Dissolução de turmas e a conseqüente superlotação de alunos por sala de
aula, atribuição de tarefas administrativas aos docentes e a responsabilização do professor pelo
desempenho escolar dos alunos e do próprio bom funcionamento da escola são exemplos de como
esta política vem se realizando no cotidiano escolar.
93 Diário Oficial do Rio de Janeiro, de 1° de dezembro de 2011.
131
A disputa em torno da sociologia na educação básica no estado do Rio de Janeiro,
particularmente em sua rede pública, é apenas um aspecto da luta maior pela modelo de política de
educação a ser encampado pelo Governo. O processo de construção do currículo mínimo, ainda em
andamento, hoje envolvendo novos atores, constitui um pequeno capítulo destas lutas. Mas que
teatraliza muitos dos dramas que estudantes, professores, pesquisadores e todos aqueles que militam
por uma educação de qualidade vivem diariamente. Nosso desejo, ao narrar este processo, é
contribuir para a reflexão sobre tais dramas, sobre os modelos em disputa e de que forma tais
disputas se constroem.
ANEXO
Currículo Mínimo de Sociologia 2011 Governo do Estado do Rio de Janeiro/ Secretaria de Estado de Educação
Equipe de Elaboração:
André Videira de Figueiredo (coordenador) Andrea Lúcia da Silva de Paiva
Giselli Avíncula Campos Márcia Menezes Thomaz Pereira
Renato Gonçalves Pereira Sérgio Luiz Alves da Rocha
Terezinha Lauermann
SOCIOLOGIA – 1º Ano / ENSINO MÉDIO
1º Bimestre
Tema - O CONHECIMENTO SOCIOLÓGICO
Habilidades &
Competências
- Compreender a importância da Sociologia como uma ciência das relações sociais. - Compreender e analisar a historicidade do pensamento sociológico: a Sociologia como ciência da modernidade. - Refletir sobre as diferentes construções teórico-metodológicas acerca do objeto da sociologia. - Diferenciar os pensamentos científico e de senso comum. - Compreender a concepção de indivíduo como historicamente construída e a subjetividade individual como resultado do processo de socialização. - Conhecer o processo de institucionalização da sociologia no Brasil e de sua inserção no sistema de ensino brasileiro.
Conceitos-chave
Modernidade; ciência; ciência social; Sociologia; objetividade; subjetividade; senso comum; fato social e ação social; relação social; sociabilidade; interação social; sociedade; socialização; agentes de socialização; instituições sociais.
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Temas Norteadores
• O surgimento da Sociologia • Conhecimento Científico e Conhecimento do Senso Comum; • O objeto da sociologia; • A relação indivíduo-sociedade; • O processo de socialização; • A sociologia no Brasil.
2º Bimestre
Tema - CULTURA E DIVERSIDADE
Habilidades &
Competências
- Identificar o ser humano como ser histórico e cultural. - Perceber os processos sociais de distinção entre natureza e cultura. - Desnaturalizar as visões de mundo através da observação de diferentes culturas e formas de construção da identidade coletiva. - Compreender a diversidade cultural e identificar comportamentos e idéias relativistas ou etnocêntricas sobre as culturas.
Conceitos-chave
Cultura; natureza; diversidade; relativismo cultural; etnocentrismo; alteridade.
Temas Norteadores
• Conceito de cultura/ natureza e cultura; • Cultura e diversidade; • Etnocentrismo e relativismo; • Construção da alteridade.
3º Bimestre
Tema - ESTRATIFICAÇÃO E DESIGUALDADE
Habilidades &
Competências
- Entender as diversas formas pelas quais as sociedades podem ser estratificadas; - Perceber a dinâmica da mobilidade social nas diferentes sociedades; - Identificar as principais formas de estratificação da sociedade brasileira, bem como as causas e conseqüências das diversas manifestações de desigualdade no Brasil.
Conceitos-chave
Estratificação social; diversidade; desigualdade social; desigualdade econômica; pobreza; miséria; classe social; casta; estamento (grupo de status); mobilidade social.
Temas Norteadores
• Formas de estratificação social; • Desigualdades sociais; • Mobilidade social.
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4º Bimestre
Tema - TRABALHO E SOCIEDADE
Habilidades &
Competências
- Compreender as formas de organização social das relações de trabalho em diferentes tempos históricos e diferentes culturas. - Perceber a complexidade do mundo do trabalho e suas transformações. - Distinguir as formas como os diversos grupos e classes sociais se apropriam do trabalho, material e simbolicamente.
Conceitos-chave
Modo de produção; trabalho; profissão; divisão social e divisão sexual do trabalho; solidariedade mecânica e solidariedade orgânica; forças produtivas; meios de produção; força de trabalho; relações sociais de produção; escravismo; feudalismo; mercantilismo; capitalismo; socialismo; racionalização e organização do mundo do trabalho.
Temas Norteadores
• Os diferentes modos de produção; • O trabalho em diferentes sociedades; • Meios de produção e relações produtivas; • Trabalho, profissão e identidades laborais.
SOCIOLOGIA – 2º Ano / ENSINO MÉDIO
1º Bimestre
Tema CULTURA E IDENTIDADE
Habilidades &
Competências
- Estabelecer a relação entre a construção da identidade individual e o pertencimento aos diferentes grupos e instituições sociais (religiosos, territoriais, étnicos, de parentesco, etc.). - Identificar os marcadores sociais da diferença (gênero, sexualidade/orientação sexual, raça/etnia, geração) na contemporaneidade e perceber sua interrelação na produção e reprodução das desigualdades. - Compreender o processo de construção da identidade e da cultura nacionais e suas implicações nas relações etnicorraciais e nas identidades regionais no Brasil, incorporando as principais contribuições da teoria social brasileira neste debate.
Conceitos-chave
Identidade social; diversidade cultural; grupos sociais; papel social; gênero; sexualidade; orientação sexual; raça/etnia; geração; identidade nacional; nacionalismo; regionalismo.
Temas Norteadores
• Grupos sociais, construção de identidades e diferenças culturais; • Marcadores sociais de diferença: gênero, raça/etnia, sexualidade, geração e classe; • Identidades nacionais, regionais e etnicorraciais no Brasil.
2º Bimestre
Tema - PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO
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Habilidades &
Competências
- Refletir sobre os processos de estigmatização e rotulação de determinados grupos e sujeitos sociais. - Identificar as diferentes formas de preconceito, discriminação e intolerância (raça, religião, gênero, geração, classe, sexualidade, nacionalidade, etc) e compreender suas múltiplas interrelações e sobredeterminações. - Identificar os principais debates que marcam a produção sociológica sobre preconceito e discriminação etnicorraciais no Brasil. - Perceber o caráter multicultural da sociedade brasileira e localizar, neste diagnóstico, a emergência das políticas de ação afirmativa como formas de discriminação positiva.
Conceitos-chave
Estereótipo; estigma; processos de rotulação; discriminação; preconceito; preconceito de marca e preconceito de origem; democracia racial; racismo; sexismo; xenofobia; homofobia; intolerância religiosa; multiculturalismo; ação afirmativa; políticas públicas, discriminação positiva.
Temas Norteadores
• Estereótipos e estigmatização; • Discriminação e preconceito; • Multiculturalismo e políticas de reconhecimento.
3º Bimestre
Tema - PODER, POLÍTICA E ESTADO
Habilidades &
Competências
- Compreender as diferentes formas de exercício do poder e da dominação, distinguindo o exercício da política nas sociedades com e sem Estado. - Identificar as diferentes formas de instituições políticas modernas e as diversas maneiras de organização do poder no Estado. - Compreender o processo histórico de formação do estado brasileiro e as diversas formas de exercício do poder e de participação política no Brasil, identificando as principais contribuições do pensamento social brasileiro.
Conceitos-chave
Poder; autoridade; dominação; legitimidade; soberania; Estado; governo; constitucionalismo; democracia; república, monarquia; tirania; oligarquia; absolutismo; autocracia; federalismo; federação; confederação; estado unitário; coronelismo; clientelismo; patrimonialismo, cordialidade.
Temas Norteadores • Poder, autoridade e dominação;
• Sociedades com Estado e sociedades sem Estado; • Formas de governo, formas de Estado e sistemas de governo; • Divisão dos poderes; • Estado, poder e participação política no Brasil.
4º Bimestre
Tema - TRABALHO E CAPITALISMO
Habilidades &
Competências
- Compreender as formas capitalistas de divisão do trabalho e de seu produto. - Compreender que no modo de produção capitalista coexistiram e coexistem diferentes relações sociais de produção. - Identificar as formas de divisão e dominação de classe no modo de produção capitalista, atentando para as mudanças históricas no padrão de estratificação econômica. - Compreender as especificidades do capitalismo brasileiro e sua dinâmica no processo de modernização do país, particularmente no que diz respeito ao papel exercido pelo Estado nesse processo. - Refletir sobre as conseqüências das transformações no padrão de acumulação capitalista e seus reflexos nas relações de
135
trabalho.
Conceitos-chave Capitalismo; classe social; relações sociais de produção; a dialética capital-trabalho; trabalho assalariado; alienação,
exploração e dominação de classe; mais-valia; valor de troca e valor de uso; mercadoria; sociedade industrial; fordismo; taylorismo; revolução burguesa no Brasil; modernização autoritária; modernização conservadora; globalização; neoliberalismo; especialização flexível.
Temas Norteadores • O modo de produção capitalista;
• Estratificação de classes no capitalismo; • Capitalismo e modernização no Brasil; • Fordismo, taylorismo, reestruturação produtiva; • Neoliberalismo e globalização.
SOCIOLOGIA – 3º Ano / ENSINO MÉDIO
1º Bimestre
Tema - CULTURA, PODER E CONSUMO
Habilidades &
Competências
- Refletir sobre a noção de cultura como instrumento de poder e como construção social; - Identificar as relações entre produções culturais populares e eruditas, relacionando-as aos seus grupos sociais de origem; - Compreender o atual processo de patrimonialização das manifestações culturais populares e eruditas, bem como identificar o reconhecimento e o tombamento do patrimônio material e imaterial como instrumentos de preservação cultural; - Construir uma visão crítica da indústria cultural, reconhecendo as diversas ideologias que a atravessam, bem como sua apropriação das produções culturais populares e eruditas e sua transformação em cultura de massa; - Refletir sobre a influência dos meios de comunicação de massa no consumo, nos estilos de vida e construção da identidade; - Conhecer as diferentes formas de manifestação de contracultura e seus questionamentos dos valores culturais e ideológicos dominantes.
Conceitos-chave
Ideologia; cultura popular; cultura erudita; cultura de massa; patrimônio cultural; patrimônio material e patrimônio imaterial; indústria cultural; meios de comunicação de massa; diversidade cultural; sociedade de consumo; consumismo; alienação; contracultura.
Temas Norteadores • Ideologias e visões de mundo;
• Cultura popular e cultura erudita; • Cultura e patrimônio; • Cultura de massas e indústria cultural – novas tecnologias; • Consumo e identidade; • Contracultura.
2º Bimestre
Tema - RELAÇÕES DE TRABALHO NO BRASIL
136
Habilidades &
Competências
- Identificar a dinâmica das relações de trabalho na sociedade brasileira; - Compreender e distinguir as diferentes manifestações de trabalho formal e informal no Brasil, com especial atenção às formas de trabalho precarizado, infantil, escravo e análogo à escravidão; - Entender a dinâmica do mercado de trabalho no Brasil relativamente aos marcadores sociais de diferença (gênero, orientação sexual, raça/etnia, credo, geração e região); - Identificar os processos de regulação e flexibilização das relações de trabalho e dos direitos trabalhistas no Brasil; - Conhecer as diferentes formas de participação dos trabalhadores na construção dos direitos trabalhistas e o papel dos sindicatos no Brasil.
Conceitos-chave
Trabalho formal e trabalho informal; trabalho escravo e trabalho análogo à escravidão; trabalho infantil; direitos; cidadania; desemprego; mercado de trabalho; globalização; neoliberalismo; precarização das relações de trabalho.
Temas Norteadores
• As diversas formas de trabalho no Brasil – trabalho formal e informal; trabalho escravo e trabalho análogo à escravidão. • Trabalho e marcadores de diferença no Brasil – gênero, raça/etnia, geração (ênfase no trabalho infantil); • A regulação do mundo do trabalho – os direitos trabalhistas no Brasil;
3º Bimestre
Tema - CIDADANIA E FORMAS DE PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA
Habilidades &
Competências
- Compreender a construção histórica dos direitos civis, políticos, sociais e culturais como reveladora da cidadania como um processo em constante expansão; - Perceber a importância da participação política para o pleno exercício da cidadania; - Distinguir as formas representativas e participativas da democracia e suas arenas deliberativas; - Compreender a organização e funcionamento do sistema eleitoral e do sistema partidário no Brasil, e a importância da alternância do poder como princípio democrático; - Compreender a relação entre esferas pública e privada no Brasil e sua importância para a construção de uma sociedade democrática - Perceber a construção da sociedade civil como instância fundamental para a garantia dos direitos humanos e da cidadania, compreendendo o papel dos movimentos sociais e seu poder de intervenção na estrutura das relações sociais.
Conceitos-chave
Democracia; sociedade civil; cidadania; Estado Democrático de Direito; participação política; partido político; direitos humanos; direitos civis, políticos, sociais e culturais; movimentos sociais tradicionais; novos movimentos sociais; mudança social; esfera pública; opinião pública; esfera privada.
Temas Norteadores • Democracia representativa e democracia participativa: arenas deliberativas;
• Sistema eleitoral e sistema partidário; • Estado e sociedade civil – esferas privada e pública; • Cidadania e direitos humanos; • Movimentos sociais tradicionais e os novos movimentos sociais.
4º Bimestre
Tema - ESPAÇO, TERRITÓRIO E SOCIEDADE
137
Habilidades &
Competências
- Reconhecer as transformações que atravessam as várias formas de uso e apropriação dos espaços rural e urbano; - Compreender a realidade social brasileira a partir da organização dos espaços rural e urbano e de suas relações; - Identificar o impacto ambiental das formas de organização, distribuição e uso dos espaços rurais e urbanos e dos recursos naturais; - Perceber a disposição da estrutura fundiária no Brasil e articulá-la às relações e conflitos rurais; - Identificar as disputas territoriais e os processos de exclusão e segregação sócio-espacial que marcam a construção das cidades. - Identificar o processo de produção de estigmas espacialmente referidos e de criminalização de populações subalternas e dos movimentos sociais a elas vinculados. - Construir uma cartografia social dos conflitos territoriais e ambientais, bem como das formas de violência rural e urbana no estado do Rio de Janeiro.
Conceitos-chave
Cidade; campo; conflito social; estrutura social; controle social; mudança social; pobreza; violência; criminalidade; cidadania; segregação sócio-espacial; territorialidade; meio ambiente; recursos naturais; conflitos ambientais.
Temas Norteadores • O Rural e o Urbano;
• Estrutura fundiária e os conflitos rurais; • A questão ambiental; • Segregação sócio-espacial e direito à cidade; • Violência rural e urbana; • Criminalização da pobreza e dos movimentos sociais urbanos e rurais.
138
Capítulo 8 O desafio da institucionalização da sociologia no ensino técnico integrado: o caso do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro - IFRJ
Katia Correia da Silva Julieta Romeiro
INTRODUÇÃO
Os debates acerca do retorno da disciplina Sociologia na educação básica trazem à tona a
questão da construção da legitimidade desta área de conhecimento nos currículos das instituições de
ensino básico do país.
No que se refere ao caso brasileiro, enquanto em outros países da América Latina a
introdução da disciplina se deu através dos cursos jurídicos, as primeiras cátedras de Sociologia
foram criadas em escolas normais como disciplina auxiliar da pedagogia (1924/1925), a inclusão da
disciplina integrava o esforço por democratização da educação do movimento reformista
pedagógico escolanovista.
Em 1925 a Reforma Rocha Vaz implantou o ensino desta disciplina nas escolas secundárias,
sendo em seguida ratificada pela Reforma Francisco Campos. A institucionalização da Sociologia
acadêmica no Brasil ocorreu em meados de 1930, com a criação da Escola Livre de Sociologia e
Política de São Paulo (1933) e com a criação da Seção de Sociologia e Ciência Política da
Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (1934). Em 1942, com a Reforma Capanema,
foi retirada a obrigatoriedade desta disciplina nas escolas brasileiras.
Segundo Azevedo (1957), o que abriu caminho para as pesquisas sociológicas no país foi o
desenvolvimento da indústria e do comércio nos grandes centros brasileiros, particularmente em São
Paulo e no Rio de Janeiro. Destarte, nos anos 50 e 60, como disciplina acadêmica, a Sociologia
centra-se no estudo da formação do moderno operariado fabril, mas discute também questões
voltadas para a reforma agrária, movimentos sociais no campo e nas cidades.
Os acontecimentos políticos do pós-64 abalaram o desenvolvimento das Ciências Sociais no
país, não obstante, muitos cientistas sociais se organizaram em instituições como o CEBRAP e
mantiveram seus estudos voltados à análise das políticas autoritaristas deste período. A partir de
1964 a disciplina passa a ser cada vez menos freqüente nos currículos do ensino básico, até
desaparecer completamente. Só a partir da década de 1980, com o processo de redemocratização
política, cogitou-se sua reinserção nos currículos escolares. Parlamentares, estudantes, professores,
139
instituições da sociedade civil, tomaram iniciativas importantes para que a Sociologia fosse
reinserida como disciplina formal no currículo do ensino médio e, gradativamente, alguns estados
brasileiros começaram a reinserir a disciplina nas matrizes currículos do ensino básico.
A Lei de Diretrizes e Bases promulgada em 20 de dezembro de 1996 (LDBEN 9.394/96)
passa a considerar a Sociologia e a Filosofia como área de conhecimento a ser trabalhada nos
currículos escolares. O primeiro parágrafo do artigo 36 da LDBEN 9394/96, estabeleceu que os
conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação do ensino médio deveriam se dar de maneira que ao
final desta etapa de formação, o estudante fosse capaz de dominar os conhecimentos de Filosofia e
Sociologia necessários ao exercício da cidadania.
Este artigo, no entanto, não deixou claro se esses conhecimentos seriam trabalhados através
da inclusão das duas disciplinas nas matrizes curriculares, ou tão somente, trabalhados dentro de
disciplinas tradicionais já legitimadas no ensino médio, o que levou muitas escolas a não
executarem ações efetivas para que os alunos tivessem contato com os debates próprios da
Sociologia e da Filosofia. Desse modo, em junho de 2008, a Lei nº 11.684 alterou a redação do Art.
36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/96), revogando o terceiro parágrafo e
incluindo um quarto que instituiu a inclusão obrigatória da Sociologia e da Filosofia como
disciplinas em todos os anos do ensino médio.
Não obstante, outra questão emergiu. Não havia nenhuma determinação de prazo para a
inclusão destas disciplinas, o que levou a Câmara de Ensino Básico do CNE, em outubro de 2008, a
se reunir para discutir os prazos de implementação das duas disciplinas. Ao fim desta reunião
produziu-se um documento (Parecer CNE/CEB no 22/2008) que estabeleceu que a implantação das
disciplinas deveria ser gradativa, ou seja, em 2009 seria implantada nas primeiras séries do ensino
médio, em 2010 nas primeiras e nas segundas séries e por fim, nas três séries até 2011. Nos cursos
técnicos que são de quatro anos, em 2012 deve ser concluída a implantação das disciplinas nos
quatro anos.
O objetivo deste artigo é relatar a experiência das autoras, professoras de Sociologia do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro – IFRJ -, no processo de
implantação da Sociologia como disciplina vigente em todos os anos do ensino médio.
Pretendemos ressaltar os embates que estão em curso ao longo do processo de negociação para a
institucionalização da disciplina no IFRJ, evidenciando as limitações da escola para efetivar na
prática a integração entre o ensino médio e o técnico.
O ENSINO TÉCNICO INTEGRADO AO ENSINO MÉDIO
140
O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) foi criado
em 2008 por força da Lei 11.892 de 29 de dezembro, que transformou o Centro Federal de
Educação Tecnológica de Química (CEFETEQ) em Instituto Federal. Todas as unidades do
CEFETEQ passaram a campi, conforme a Portaria nº. 04, de 06 de janeiro de 2009, incorporando
inclusive o Colégio Agrícola Nilo Peçanha, no município de Pinheiral, que pertencia à Universidade
Federal Fluminense (UFF)94.
No Brasil, o ensino profissional sempre foi considerado uma alternativa de formação
voltada para as classes menos favorecidas. A Constituição de 1937 foi um marco representativo da
inauguração de uma política pública de ampliação do número de instituições educacionais voltadas
para a formação do trabalhador. O Art. 129 desta Constituição menciona claramente para que
camada a educação profissional deveria ser direcionada, procurando disseminar para a população
menos favorecida o apreço ao trabalho:
“(oferecia), portanto, a todos os jovens vida sã e produtiva com aproveitamento das suas aptidões, a nova educação brasileira exclui a existência de incontentados, de inadaptados à vida social, de capacidades contrariadas, que constituem o material humano mais procurado pelos propagandistas do bolchevismo” (Vargas, 1943, apud Paiva, 1983:132).
Com o passar dos anos, gozando de certa autonomia em relação ao Ministério da Educação
no que dizia respeito a suas decisões pedagógicas e administrativas, o ensino técnico federal
conseguiu atingir o patamar de ensino de excelência, passando a ser cobiçado por pessoas oriundas
de várias classes sociais. O ensino técnico federal caminhou com êxito para uma formação que não
se restringia somente a área técnica, mas também ao desenvolvimento de habilidades voltadas para
as mais diversas áreas da ciência. A qualidade da formação dos estudantes das escolas técnicas
federais, aliada a baixa remuneração dos cargos técnicos no mercado de trabalho brasileiro, levaram
muitos estudantes a optarem pelo ensino superior ao invés de ingressarem como técnicos no
mercado de trabalho. O esvaziamento de mão-de-obra com formação técnica, apesar da existência e
expansão da rede federal de ensino técnico, levou ao questionamento sobre a forma como essa
modalidade de ensino era organizada e estruturada.
Um estudo feito pelo Banco Mundial (SILVA, 2002) apontou para o caráter de não
“aplicabilidade mercadológica” dos cursos das escolas técnicas federais e para o “alto custo” de seus
alunos, o que na concepção do Banco Mundial, tornava estas escolas ineficazes no cumprimento de
suas missões: formar técnicos de qualidade interessados em atuar no mercado de trabalho.
94 A primeira unidade da instituição está situada no município do Rio de Janeiro, e consagrou-se com seus cursos técnicos na área de Química. Hoje o IFRJ conta com 11 campi de ensino: Rio de Janeiro, Nilópolis, Mesquita, Realengo, Duque de Caxias, Paracambi, Nilo Peçanha- Pinheiral,Volta Redonda, Paulo de Frontin, São Gonçalo e Arraial do Cabo.
141
Sendo assim, nos anos 90, o governo federal propôs uma nova organização curricular para
os cursos técnicos e, em 1997 empreendeu uma grande reforma na educação profissional através do
Decreto 2.208/97, além de instituir em 1999, através da Resolução CNE/CEB 04/99, as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a educação profissional de nível técnico.
O Decreto 2.208/97 estabeleceu que as matrículas da educação profissional, ficariam
desvinculadas do ensino médio, desarticulando a formação técnica do ensino propedêutico, abrindo
a possibilidade de existirem nas escolas profissionais, módulos curtos de formação técnica, dirigidos
a trabalhadores que já atuavam no mercado de trabalho.
Esta nova configuração das escolas técnicas foi bastante criticada, inclusive pelos
profissionais que atuavam nestas instituições de ensino. A nova política de educação do Estado para
as escolas técnicas federais abandonava um modelo reconhecidamente bem sucedido e abraçava um
tipo de formação restrita, segundo Frigotto (2004), para atender a demandas por qualificação e (re)
qualificação profissional da população adulta de baixa escolaridade através de uma rede específica
de cursos de qualificação profissional de curta duração (educação profissional básica) dissociados
da educação básica e de um plano de formação continuada.
A reforma do ensino profissional empreendida nos anos 90 sofreu duras críticas e, no ano de
2004, o governo federal lançou o Decreto 5.154, que passou a apontar para a ênfase na integração
entre ensino médio e ensino profissional. Este decreto trouxe maior flexibilidade à educação
profissional, mantendo as possibilidades de formação previstas no Decreto de 1997, principalmente
no nível médio, dando certa autonomia, desde que respeitadas às diretrizes do Conselho Nacional de
Educação, para que as escolas e estados organizem sua formação. Estabeleceu uma articulação entre
o nível médio e o técnico em diferentes graus, permitindo a existência nas escolas técnicas de cursos
integrados (quando o ensino médio é oferecido ao mesmo tempo em que a formação técnica e o
aluno tem matrícula única); concomitantes (quando os cursos são oferecidos separadamente,
inclusive em instituições diferentes); e subseqüentes (quando a formação técnica é ofertada àqueles
que já concluíram o ensino médio).
Ao longo da história da educação brasileira, o ensino profissional foi estruturado de muitas
maneiras, uma vez que ele está diretamente relacionado às orientações do mercado e aos princípios
ideológicos e políticos do Estado. Esta relação fez com que a educação técnica no Brasil assumisse
uma forte característica dual. É possível observar nas escolas de formação profissional, um tenso
embate entre o saber técnico, e o saber de caráter humanístico. Ao longo do tempo e de diferentes
governos, políticas públicas ora enfatizavam uma formação estritamente técnica, ora acentuavam
um caráter de continuidade e generalidade na formação do trabalhador.
142
Neste sentido, as tensões resultantes do embate entre o campo técnico-científico e o campo
que acentua a importância dos debates sócio-culturais, se manifestam no interior das instituições
educacionais. Faz-se presente quando percebemos o status atribuído as disciplinas mais “exatas”,
onde o menor empenho dos alunos aos estudos sócio-culturais e políticos é justificado com
naturalidade pela necessidade de maior dedicação exigida pelas ciências exatas.
No campo científico, segundo Tomaz Tadeu da Silva (2000), existem grupos de intelectuais
que apregoam o inquestionável universalismo da ciência em contraposição ao campo da cultura
(relativa), espaço rico onde pode se fazer concessões à variabilidade e à invenção social. Para o
autor, esta relação entre o saber técnico-científico, e o campo da cultura, está impregnada de
relações de poder.
Para Bourdieu (2004) é preciso escapar do binômio “ciência pura” x “ciência escrava”.
Segundo o sociólogo, a primeira é totalmente livre de qualquer necessidade social; e a segunda,
subordinada às demandas político-econômicas, voltada para as necessidades puramente
mercadológicas. Podemos afirmar que, segundo a concepção de Bourdieu (2004), o mundo
técnico-científico é um mundo social e, como tal, faz imposições, solicitações, faz escolhas. Os
intelectuais, ao defenderem este universalismo da ciência, desconsideram as relações de poder
presentes no campo da ciência e no campo da cultura e a possibilidade destes campos estarem
vinculados por relações de poder (Silva, 2000), ancoradas em interesses econômicos, políticos e
ideológicos.
No caso do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, uma
instituição que oferece a modalidade de ensino médio integrado ao técnico, os antagonismos entre o
campo do saber técnico e o campo do saber de caráter humanístico, ficaram muito evidentes a partir
do processo de negociação para proceder à implementação das disciplinas Sociologia e Filosofia em
todos os anos do ensino médio. A seguir serão relatados os debates originados pela busca por maior
espaço de atuação da Sociologia no ensino médio integrado do IFRJ.
O PROCESSO DE INCLUSÃO DA DISCIPLINA SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO
INTEGRADO DO IFRJ
O processo de inclusão da disciplina Sociologia no IFRJ, em obediência a lei 11.684/08, que
torna obrigatória seu ensino, começou a ser discutida institucionalmente em fevereiro de 2011-
faltando pouca mais de um ano para o fim do prazo determinado pelo Parecer 22/2008.
No segundo semestre de 2010, os gestores do IFRJ enfrentaram os questionamentos do
Ministério Público, que havia recebido uma denúncia por parte de professores de espanhol. O IFRJ
143
não cumpria a Lei 11.161/05 que determina a oferta obrigatória pela escola e de matrícula
facultativa para o aluno, do ensino da língua espanhola. Tal fato levou a Pró-reitoria a rever sua
postura de postergação da reforma curricular das matrizes dos cursos técnicos, e a enfrentar o duro
debate sobre a inserção obrigatória das disciplinas Sociologia e Filosofia no ensino médio.
Então, no primeiro semestre de 2011, a Pró-reitoria de Ensino Médio e Técnico do IFRJ,
convocou todos os professores que ministram as duas disciplinas (Sociologia e Filosofia) nos
diferentes campi da instituição, para uma reunião. Apesar dos campi já terem em seus planos de
curso esta disciplina, a organização e distribuição da carga horária, bem como a contratação de
professores com formação na área não ocorriam de forma sistematizada pelo instituto, e obedeciam
as demandas dos campi, o que levava muitos professores de outras áreas a ministrarem estas
disciplinas95.
A necessidade de adequação a lei, e o questionamento por parte de vários professores da
instituição sobre o cumprimento dos prazos para a implantação das disciplinas, levaram ao primeiro
encontro dos professores de Sociologia e Filosofia do IFRJ, coordenado pela Pró-reitoria de Ensino
Médio e Técnico. Neste primeiro encontro, a lei que tornou obrigatório o ensino destas disciplinas
foi exposta, e logo em seguida, os problemas decorrentes de sua aplicação no IFRJ.
No decorrer deste encontro, a Pró-reitoria destacou o que ela chamou de ponto fraco da lei
que, por um lado é falha, pois não determina uma carga horária mínima para as duas disciplinas; e
por outro é autoritária, na medida em que obriga a inserção das disciplinas em todos os anos do
ensino médio. Feita a crítica, o primeiro problema estrutural levantado dizia respeito à contratação
de professores. Para cumprir a lei, o IFRJ deveria implantar em todos os seus períodos letivos96 o
ensino das duas disciplinas, o que significaria a necessidade de contratação de aproximadamente
trinta e quatro professores. Sobre este ponto residiam dois problemas: de um lado, o desinteresse da
instituição em ocupar suas vagas basicamente com professores destas áreas; de outro, a política do
recém empossado governo Dilma Rousseff de contenção de gastos e não-contratação de novos
servidores públicos.
O segundo ponto levantado nesta primeira reunião está relacionado à inclusão das
disciplinas nas matrizes curriculares dos cursos técnicos integrados. A implantação das duas
disciplinas em todos os períodos letivos, como determina a lei, traria um impacto direto na
organização curricular e na carga horária dos cursos. Isso significaria aulas no contra-turno e a
presença de disciplinas relativas ao ensino médio em todos os anos do ensino técnico integrado, dois
problemas entendidos como difíceis pela instituição. Além disso, para que essas disciplinas
95 A Sociologia na maioria dos campi é ministrada, até o momento, em apenas um semestre. 96 O período letivo no IFRJ é semestral, exceto no campus Nilo Peçanha-Pinheiral, onde ele é anual.
144
pudessem ser inseridas efetivamente seria necessária a revisão das matrizes curriculares dos cursos,
uma ação que não dependeria só do esforço da Pró-reitoria e dos professores das disciplinas em
questão, mas das direções e coordenações de curso de todos os campi do IFRJ.
O terceiro ponto relaciona-se a carga horária destinada às duas disciplinas. De acordo com a
Pró-reitoria não seria possível fazer cumprir a lei oferecendo as duas disciplinas com dois tempos de
45 minutos cada uma, pois isso “incharia” mais a carga horária dos cursos e causaria problemas com
outras disciplinas do chamado núcleo comum97, como História, Geografia e Língua Portuguesa, que
são oferecidas alternadamente ao longo dos quatro anos de curso.
Além disso, dentro da estrutura curricular dos cursos técnicos integrados da instituição, os
últimos períodos são destinados basicamente ao estágio obrigatório, a algumas disciplinas técnicas,
e à confecção do trabalho de final de curso. Com a obrigatoriedade da lei, os estudantes passariam a
ter aulas destas disciplinas pertencentes ao ensino médio até o último período.
As questões levantadas neste primeiro encontro mostraram as limitações técnicas e
operacionais da implantação destas disciplinas no Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio de Janeiro. Por outro lado, tornou evidente uma limitação pedagógica na
compreensão da importância das disciplinas pertencentes ao universo das ciências sociais e
humanas na formação intelectual e cultural dos estudantes, em uma instituição construída sob uma
forte influência técnica.
A ênfase nas dificuldades e limitações para a implementação destas disciplinas em todos os
períodos letivos deixou claro que a inclusão da Sociologia e Filosofia nas matrizes curriculares do
IFRJ deveria causar o menor impacto possível na estrutura da instituição. Para tanto, recomendou-se
que os professores destas disciplinas, estimulassem e participassem do processo de revisão das
matrizes curriculares em suas unidades, na tentativa de incluir as disciplinas no lugar de outras que
poderiam ser retiradas ou substituídas do currículo.
O não envolvimento da Pró-reitoria de Ensino Médio e Técnico nesta discussão com os
campi e o deslocamento da responsabilidade de revisão das matrizes para a inclusão da Sociologia e
Filosofia para o grupo de professores destas áreas, mostrou que esta questão era para a instituição
um procedimento de cumprimento da lei, o que gerou insatisfação por parte dos professores que
estavam envolvidos no processo.
As divergências oriundas deste processo levaram à criação de um grupo de trabalho
formado pelos professores destas disciplinas com o objetivo de discutir e propor alternativas para a
introdução da Sociologia e da Filosofia na grade curricular do IFRJ. Os debates iniciais do GT
97 As disciplinas no IFRJ são agrupadas em núcleo técnico e núcleo comum, inclusive com coordenações distintas, que na maioria das vezes não dialogam.
145
versavam principalmente sobre a carga horária das disciplinas e a forma como elas seriam
introduzidas e recebidas no currículo do ensino técnico integrado. A discussão sobre se deveríamos
propor um ou dois tempos de aula, passava necessariamente pelo entendimento do quê ensinar em
Sociologia e Filosofia. A compreensão de que estas disciplinas têm por finalidade levar o estudante
a assumir uma postura crítica e reflexiva diante das questões contemporâneas, principalmente
aquelas relacionadas ao mundo do trabalho, foi o ponto de partida para a organização das ementas
dos cursos.
Após vários encontros, o grupo de professores de Sociologia e Filosofia optou por
consolidar uma proposta em que as disciplinas figurariam com dois tempos de 45 minutos na carga
horária dos cursos técnicos integrados, em todos os períodos letivos. Apesar de termos
conhecimento de que esta proposta ia contra as orientações iniciais da Pró-reitoria, que desejava a
inclusão das disciplinas com apenas um tempo de aula, assumimos o desafio de levá-la a discussão
em nossas respectivas unidades. Conforme nos havia sido informado, as decisões dos campi seriam
respeitadas pela Pró-reitoria e levadas à votação no Conselho Acadêmico de Ensino Técnico do
IFRJ.
A proposta de revisão das matrizes já estava em curso no IFRJ e a necessidade de
consolidarmos as determinações expressas na lei 11.684/08 veio apenas se somar a este processo.
De volta aos campi de origem, muitos de nós se depararam com a extrema dificuldade de cumprir a
tarefa de participar e estimular o processo de revisão das matrizes curriculares. Nos deparamos
também, com a intensa resistência dos diretores, coordenadores de cursos e professores para
fazemos valer a proposta de dois tempos das disciplinas decidias no GT.
O desconhecimento por parte de muitos professores da instituição da relevância do ensino
destas duas disciplinas causou algumas polêmicas como, por exemplo, se essas disciplinas teriam
conteúdo programático suficiente para ser ensinado durante os quatro anos de curso. Em
decorrência destes questionamentos alguns professores tiveram que apresentar e defender suas
ementas diante de coordenadores e diretores dos diversos campi. Esses encontros foram marcados
por discussões e a validade destas disciplinas no ensino técnico integrado passou a ser questionada
por professores pertencentes ao núcleo do ensino técnico.
A argumentação se pautava em dois eixos centrais: o primeiro relacionado ao discurso
promovido pela Pró-reitoria, referindo-se a falta de professores destas áreas dentro da instituição e a
incapacidade das unidades oferecem estas disciplinas no contra-turno, já que muitos campi
funcionam em horário parcial de dois ou três turnos; a segunda questão pautava-se no não
reconhecimento destas disciplinas como importantes para a formação dos estudantes de cursos
técnicos. É bom ressaltar que alguns diretores e coordenadores ao mesmo tempo em que faziam
146
discursos reconhecendo a importância das duas disciplinas, defendiam ações de contenção da
inclusão das mesmas. Este ponto, na verdade, é o cerne do problema e esconde as dificuldades da
integração efetiva dos cursos técnicos ao ensino médio e sinaliza para uma disputa entre estas duas
áreas.
As discussões sobre a inclusão da Sociologia e da Filosofia nos cursos técnicos integrados
tiveram em algumas unidades momentos claros de disputa entre estas duas áreas de conhecimento.
As questões estruturais, colocadas pela Pró-reitoria como o maior desafio a ser enfrentado no
processo de inclusão destas disciplinas, acabaram dando lugar a uma veemente discussão entre
professores do ensino técnico e professores do ensino médio, na qual a relevância do ensino da
Sociologia e da Filosofia passou a ser questionada. Nesta disputa, a distribuição da carga horária
acabou tornando-se um símbolo do processo, que na verdade camuflava a difícil relação existente
entre o saber técnico e o saber propedêutico em uma instituição de ensino voltada para a formação
profissional.
A revisão das matrizes curriculares deveria ser um processo de reflexão sobre a grade
curricular dos cursos, assim como um momento para adequação do currículo às demandas sociais,
culturais e profissionais da atualidade. A reestruturação dos cursos técnicos integrados ao ensino
médio deveria exigir dos professores envolvidos um intenso processo de questionamentos e
construções coletivas, na medida em que eles passam a fazer parte de uma única modalidade de
ensino. No entanto, ao invés de um momento de reflexão e diálogo, este processo tornou evidente a
separação que existe entre esses dois campos de conhecimento dentro do IFRJ, bem como deixou
explícita a fragilidade de nosso processo de integração.
Neste momento, os professores do GT de Sociologia e Filosofia questionam o fato da
instituição ter optado pela modalidade de ensino técnico integrado ao médio, mas não ter promovido
ações efetivas para a real integração dos conteúdos. Essas limitações acabaram levando muitos
cursos a revisarem suas matrizes e não incluírem o ensino de Sociologia e Filosofia em suas grades
curriculares com os dois tempos sugeridos pelo GT. Em alguns locais, a não inclusão dos dois
tempos, relaciona-se a uma dificuldade de negociação entre as partes envolvidas, que foi agravada
pelo distanciamento da Pró-reitoria de Ensino Médio e Técnico deste processo. Já em outras
unidades, a inclusão dos dois tempos ocorreu de forma parcial, apenas no primeiro ano, ou apenas
no último ano.
A concorrência entre essas duas áreas de saber tem emperrado a implantação efetiva das
disciplinas de Sociologia e Filosofia no IFRJ. A disputa de poder entre o conhecimento técnico e o
conhecimento propedêutico tem representado um dos principais desafios da instituição na
construção de projetos e ações voltadas a efetivação do ensino técnico integrado ao ensino médio.
147
Além disso, evidencia um claro distanciamento entre a lei e a realidade, que nos obriga a refletir
sobre os processos pelos quais estas disciplinas estão passando para sua implantação efetiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No plano legal e na produção teórica da área educacional temos avançado para a defesa da
integração entre ensino médio e ensino profissional, não obstante, na prática esta articulação ainda
encontra problemas para sua real efetivação. No caso do IFRJ, essas limitações tornaram-se
evidentes no processo de implantação das disciplinas Sociologia e Filosofia. As disputas entre o
ensino técnico e o ensino propedêutico limitam a integração efetiva do ensino técnico e médio por
um lado, e do outro, cria obstáculos para a inclusão com qualidade das disciplinas de Sociologia e
Filosofia.
É perceptível que, ao mesmo tempo em que os professores de todas as áreas de ensino
afirmam que a articulação entre formação propedêutica e profissional produz estudantes mais
interessantes, atuantes, críticos e criativos, alguns dentre estes professores, resistem em ceder espaço
e compreender a importância de disciplinas consideradas menos “exatas” e mais “culturais”, pois
para esse grupo o ensino técnico deve voltar-se somente para a formação técnica e profissional de
nossos estudantes.
Fica evidente também, nesta instituição educacional, o grau de importância conferido às
disciplinas que fazem parte do núcleo das ciências exatas. Nas escolas vemos refletida a valorização
social do campo das ciências naturais e exatas, que se materializa não só na postura dos professores,
mas também na forma como os estudantes se relacionam com estas disciplinas, julgadas mais
“importantes” e que, portanto, merecem mais dedicação e atenção do que aquelas pertencentes ao
núcleo das ciências sociais e humanas.
É imprescindível destacar que a educação básica no âmbito da educação profissional de
qualidade não tem sido considerada ponto central neste processo de integralização. Isto porque
existe uma grande dificuldade por parte dos professores do IFRJ em articular os conhecimentos
dispostos nos currículos de forma efetivamente integrada, onde o ensino técnico e o ensino médio
deveriam passar a ser uma única estrutura, dialogando e trabalhando a partir de eixos comuns.
Desta forma, a característica de dualidade do ensino profissional, que ao longo da história da
educação se perpetua, poderia ser dirimida.
Percebemos também, que o estímulo à participação de toda comunidade escolar no projeto
político-pedagógico da instituição não ocorre efetivamente, uma vez que não percebemos um
empenho na execução de ações concretas que levem, nas palavras de Paulo Freire (2002), a atitudes
148
dialéticas e dialógicas no interior da instituição. O primeiro passo, para a concretização de ações
dialógicas e integradas, é ouvir todos os envolvidos nos processos de mudança que afetam a vida e o
futuro de toda comunidade escolar.
Em lugar disso, são tomadas atitudes que levam ao isolamento, ao confronto, à disputa, e ao
acirramento das relações de trabalho, dividindo o espaço escolar entre aqueles que se preocupam
com profissionais formados para executar com excelência técnicas de trabalho, e os que defendem
que a missão das escolas de formação profissional não é apenas a formação de mão-de-obra
qualificada, mas de um profissional crítico, autônomo e criativo. No seio do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro estes fatos têm criado controvérsias, pois não há
clareza sobre os fins da educação profissional, e mais ainda, sobre a importância em desenvolver no
interior das escolas e em âmbito de políticas educacionais, a formação de sujeitos sociais.
A questão da introdução das disciplinas Sociologia e Filosofia em todos os anos do ensino
médio no IFRJ reacendeu um debate antigo no âmbito da educação técnica e profissional sobre a
relevância do papel das ciências sociais e humanas na formação profissional dos estudantes. Os
embates que vêm marcando este processo em nossa instituição nos mostram os desafios que ainda
teremos que enfrentar para a efetiva institucionalização de nossas disciplinas, mas também, deixou
evidente que ainda temos um longo caminho a trilhar na busca pela concretização de um ensino
técnico realmente integrado ao ensino médio.
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149
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150
Capítulo 9 Sobre a Sociologia no Ensino Médio e uma experiência de licenciatura em Ciências Sociais98
Marco Antonio Perruso99 Nalayne Mendonça Pinto100
Introdução
Na ultima década as políticas públicas realizadas no campo da educação brasileira produziram
algumas significativas mudanças no quadro geral da oferta de novas vagas docentes e discentes na
educação, principalmente no ensino superior. No âmbito desse artigo importa considerar a expansão
da oferta de novos cursos de licenciatura, em especial a Licenciatura/Bacharelado em Ciências
Sociais. Esse processo vem produzindo alguns efeitos produtivos no campo de debates e reflexões
das ciências sociais, na medida em que permitiu o acesso de novos professores do campo às
universidades públicas e ampliou o quadro de vagas discentes.
Um dos efeitos produtivos gerados por essa ampliação é a demanda por novas pesquisas e
reflexões sobre as práticas pedagógicas realizadas dentro dos cursos de licenciatura, além da
inquietação dos licenciandos sobre a institucionalização da sociologia no ensino médio. No curso de
Licenciatura/Bacharelado em Ciências Sociais da UFRRJ atualmente vivenciamos esse processo.
Passado um pouco mais da metade do curso nos deparamos com novas provocações, sendo a
principal delas a necessidade de produzir estudos sobre a realidade do ensino de sociologia no
ensino médio. Durante o NEPE – Atividade Acadêmica – ministrada pelos autores no primeiro
semestre de 2011 ficou evidente que algumas temáticas são caras e imprescindíveis nas licenciaturas
em Ciências Sociais. O debate sobre a inclusão da sociologia no ensino médio a partir de 2008, sua
consolidação e práticas nos dias atuais, é parte constitutiva do interesse discente, todavia é uma
carência dentro das pesquisas no corpo docente. Além disso, importa ainda considerar a experiência
de estágio docente que os alunos estão vivenciando e transformá-la em material de debates e
estudos.
Nesse sentido, trabalhamos neste artigo abordando duas questões sobre o ensino de ciências
sociais. Num primeiro momento apresentaremos uma reflexão sobre a sociologia como disciplina
científica nas universidades francesas do final do século XIX, bem como suas implicações para a
institucionalização do ensino de sociologia no Brasil. Em seguida, serão discutidas as questões
98 O presente artigo é fruto de reflexões conjuntas realizadas após os autores terem ministrado o “Núcleo de Ensino e Pesquisa Sociedade e Modernidade” (Atividade Acadêmica obrigatória para a Licenciatura em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) no primeiro semestre de 2011. 99 Professor Adjunto de Sociologia da UFRRJ. 100 Professora Adjunta de Sociologia da UFRRJ.
151
relativas às práticas pedagógicas da Licenciatura/Bacharelado em Ciências Sociais da UFRRJ, curso
que teve início em março de 2009 e tem em seu projeto político-pedagógico a experiência dos
NEPEs a ser compartilhada.
1 A sociologia, seu ensino e sua efetividade na sociedade: algumas questões
O projeto sociológico durkheimiano
Em Vargas (2000) encontramos uma instigante interpretação sobre as origens da sociologia
acadêmica na França, a pioneira num certo padrão genérico que se dissemina de modo hegemônico
no Ocidente moderno. Analisando a efetivação deste projeto sociológico, para a qual cumpriu papel
central Durkheim, é possível delinear algumas questões relativas ao ensino da sociologia, presentes
até hoje.
A Terceira República francesa, após a derrota na Guerra Franco-Prussiana em 1870 e os
terríveis eventos da Comuna de Paris, elege como uma de suas prioridades políticas o
desenvolvimento científico como dimensionador e conformador da sociedade moderna, então em
processo irreversível de consolidação. Era corrente a percepção, entre os republicanos franceses, de
que apenas a ciência e a razão poderiam oferecer novos parâmetros para a organização social, em
substituição aos referenciais religiosos, tornados inviáveis a partir da Revolução Francesa. Tal era a
saída construída para dar conta do enorme convulsionamento político, social e cultural vivido pela
França no decorrer de todo o séc. XIX (Vargas, 2000, p. 76 e 79).
Para tanto, o Estado francês investe em grande medida numa reforma educacional onde é
estratégica a implementação de novas disciplinas científicas como a sociologia e a pedagogia. Se a
ciência passa a ser o eixo a partir do qual se deve organizar a sociedade (eleita ela mesma a nova
medida das coisas), um de seus lugares institucionais – a universidade – e seu agente incorporador –
o professor (que também é um pesquisador) – devem desempenhar papéis privilegiados. Seria por
meio da educação que a ciência tornar-se-ia acessível aos indivíduos, habilitando-os a viver
conforme a sociedade moderna. A sociologia durkheimiana construía-se justamente como a
disciplina científica específica capaz de tanto, por lograr desvendar o funcionamento dos novos
mecanismos sociais em vigor e se propor a solucionar os problemas daí decorrentes (Vargas, 2000,
p. 77/78, 80 e 92).
Mas para efetivar uma performance social significativa a sociologia dependia da educação, da
pedagogia, dependia do ensino, enfim, pois apenas sob este prisma ela chegaria a ser fator de
socialização para alguns grupos de indivíduos em escala massiva. Em decorrência, a sociologia, em
sua vertente durkheimiana francesa, nasce amalgamada à pedagogia:
152
[…] a sociologia ingressou nas Facultés des Lettres travestida de pedagogia. Neste sentido, as trajetórias de Durkheim e Espinas101 são reveladoras, principalmente se levamos em conta que, formados em filosofia e empenhados, ainda que segundo orientações intelectuais diferentes, em fazer sociologia, ambos passaram vários anos de suas carreiras acadêmicas ministrando cursos que portavam títulos relativos quer à pedagogia, quer a um misto de pedagogia e ciências sociais ou sociologia. Em 1882, por exemplo, Espinas foi encarregado do curso de pédagogie da Faculté des Lettres de Bordeaux e Durkheim […] foi apontado para substituí-lo. […] com a ida de Durkheim para Bordeaux como chargé de cours em 1887, o curso, originalmente de pédagogie, tornou-se curso de science sociale et pédagogie (Vargas, 2000, p. 124/125). O fato de a sociologia nascer institucionalmente nas Facultés des Lettres é ressaltado por
Vargas como um indicador de uma gênese universitária que remete a uma carreira “científica” e
“desinteressada”, em oposição a cursos tradicionais como Direito, que corresponde a noções como
“profissionalização” e “aplicabilidade”. Sintomaticamente, a sociologia nasce inserida nas Facultés
des Lettres, dedicadas também à formação de professores, em detrimento das Facultés de Droit, de
maior prestígio na hierarquia universitária e já possuidoras de outras disciplinas sociais (Vargas,
2000, p. 114).
Ainda que afirmando um feitio de ciência “pura”, a corrente majoritária da sociologia
francesa emerge dialogando intensamente com outras novas disciplinas universitárias – geografia e
psicologia, além da pedagogia, já citada, e de novas divisões intradisciplinares da história. Para
tanto, Durkheim chegava a definir “a sociologia como uma espécie de ciência de carrefour,
habilitada a prestar serviços às mais diferentes disciplinas” (Vargas, 2000, p. 121). Aqui novamente
se verifica a centralidade da performance pedagógica original da sociologia: uma ciência cuja
efetividade dependia em boa medida de seu ensino – para outros cursos universitários e, mais tarde,
para o ensino médio, como será visto.
É certo que todo este processo pode ser interpretado como uma estratégia de afirmação e
legitimação institucional da sociologia. Entendemos, contudo, que o caráter utilitário de tal hipótese
não é muito adequado para dar conta da complexidade inerente à gênese de uma nova disciplina
científica.
Vargas (2000, p. 101) lembra que a construção de uma ciência relativa ao social, capaz de
enfrentar os desafios postos pelo estabelecimento de uma sociedade moderna, remontava ao início
do séc. XIX (o que, de resto, é asseverado por quase todos os estudiosos da história da sociologia).
Deste período são vários os precursores das ciências sociais na França: Saint-Simon, Comte e Le
Play, entre outros. Mas, pelo menos para os dois primeiros destes pensadores, a sociologia consistia
numa ciência cuja aplicabilidade se restringia à operação, por parte de elites dirigentes ou
produtivas, de conhecimentos sobre o “social” para corrigir, aperfeiçoar, reformar e normatizar a
101 Alfred Espinas foi um filósofo e cientista social francês contemporâneo de Durkheim.
153
sociedade.102 Apenas a partir da antepenúltima década do séc. XIX, com Durkheim, a sociologia se
corporifica num projeto político e científico de explicação e intervenção no “social” por meio da
dimensão pedagógica e da institucionalidade educacional – universitária e escolar (visto que os
professores das escolas se formariam nas universidades, obviamente). Exclusivamente nesta feição é
que ela poderia cumprir sua missão e servir à sociedade moderna: “[...] os republicanos acreditavam
que a universidade reformada poderia elaborar e difundir as ideias “científicas” e os princípios
republicanos, tendo sido as ciências sociais as que associaram mais intimamente seu destino
institucional à elaboração e à difusão desses princípios” (Vargas, 2000, p. 113).
Cremos que aqui é possível enunciar uma primeira condição inevitável para se pensar o
ensino de sociologia em termos mais amplos: na própria origem de uma sociologia acadêmica
(localizada privilegiadamente nas universidades), absolutamente majoritária no Ocidente moderno,
encontra-se uma mediação essencial, a educação. Sem esta mediação pedagógica é impossível à
sociologia cumprir sua missão de socializar – familiarizar, capacitar – os indivíduos nos
conhecimentos necessários à vida social na modernidade. Vale citar novamente o autor ora
utilizado:
O estreito vínculo institucional entre a sociologia e a pedagogia pode ser interpretado como uma espécie de cristalização ou de coroamento do investimento político na produção de saber, que sob a forma tanto de produção de saberes relativos ao “social”, quanto de uma radical reforma do ensino, marcaria a vigência do regime republicano francês a partir das últimas décadas do século XIX (Vargas, 2000, p. 126). Se lembrarmos da influência francesa nas universidades e nas ciências sociais brasileiras, o
acima exposto torna-se inescapável para refletirmos a respeito do ensino de sociologia no Brasil, de
suas origens e de sua trajetória até os dias de hoje.
O ensino de sociologia no Brasil
Pesquisadores contemporâneos do campo do ensino de sociologia no Brasil – Sarandy
(2004, p. 46), Takagi & Moraes (2007, p. 93) – registram o pequeno interesse acadêmico nesta área.
Tal fenômeno é chamado, com muita propriedade, de “insulamento acadêmico” das ciências sociais
brasileiras (Sarandy, 2004, p. 46). Para compreendê-lo faz-se necessário rever sucintamente, a partir
da literatura sociológica pertinente (modesta devido ao âmbito deste pequeno artigo), a trajetória
histórica do ensino de sociologia no Brasil.
A sociologia se institucionaliza no sistema educacional brasileiro primeiramente no antigo
ensino secundário – que corresponderia, em linhas gerais, ao nosso atual ensino médio (Giglio, 1999
102 Quanto a outro dos tantos precursores da sociologia, Stuart Mill, trata-se de uma boa questão se ele seria facilmente enquadrável como seus contemporâneos Saint-Simon e Comte, no que tange a esta dimensão de aplicabilidade da nova ciência do “social”.
154
apud Sarandy, 2004, p. 33). Ela é ministrada desde 1925 no Colégio Pedro II no Rio de Janeiro, a
partir de 1928 nos chamados cursos normais (destinados à formação de professores) de alguns
estados, de 1931 a 1941 é obrigatória em todos os cursos secundários do país, em 1941 ela volta a
ser restrita aos cursos normais; apenas em 1933 com a Escola Livre de Sociologia e Política de São
Paulo e em 1934 com a USP e sua Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras as ciências sociais
tornam-se presentes no sistema universitário (Sarandy, 2004, p. 56/57; também Jinkings, 2007, p.
118 a 120). Tais mudanças institucionais eram empreendidas sob pressão do movimento
pedagógico escolanovista, que se inspirava no pragmatismo do filósofo estadunidense John Dewey
e que tinha no pedagogo Anísio Teixeira e no sociólogo e educador Fernando de Azevedo suas
figuras de proa (Sarandy, 2004, p. 35).
Essas mudanças se davam em consonância com o crescente desgaste do oligarquismo rural
da República Velha, com a eliminação progressiva dos traços escravocratas de nossa formação
social, a consolidação definitiva do trabalho livre (assalariado), das classes sociais em sua acepção
moderna e da modernização em seus componentes racionalizantes, bem como com a emergência da
industrialização, da urbanização e da Revolução de 1930. O advento do ensino de sociologia e da
sociologia universitária acompanhava toda a movimentação política, cultural e intelectual do
período (Semana de Arte Moderna, tenentismo, fundação do PCB) e construía-se enquanto resposta
ao seguinte desafio posto pela modernização capitalista por que passava o Brasil: como capacitar
certos grupos sociais, por meio da educação, a compreender os eixos estruturadores da sociabilidade
moderna e a eles se adequar? (Jinkings, 2007, p. 116/117).
Sem dúvida, os círculos intelectuais e políticos que inseriram neste processo as ciências
sociais como estratégicas para promover a modernização cultural e intelectual de setores da
sociedade brasileira podem ser comparados e mesmo identificados com a efetivação do projeto
sociológico durkheimiano na França das três últimas décadas do séc. XIX, antes visto. O
imbricamento entre sociologia e educação era claro, revelando a presença da mediação pedagógica
também nas origens das ciências sociais brasileiras. Como bem aponta Sarandy: “Havia o
sentimento da urgência de um pensamento sobre as questões de ensino; pensar o Brasil e pensar a
escola, a educação e o ensino da própria disciplina era uma só e mesma atividade intelectual, de
valor idêntico” (2004, p. 46).
No entanto, este casamento entre sociologia e pedagogia no Brasil duraria pouco. A
circunscrição do ensino de sociologia apenas aos cursos normais (de formação de professores) em
1941 revelaria dissonâncias significativas entre a inspiração pragmatista do escolanovismo e a
conformação francesa das ciências sociais uspianas, matriz original da sociologia acadêmica
155
brasileira103 (Sarandy, 2004, p. 46). Por motivos vários que não cabem no escopo do presente artigo,
a institucionalização universitária de nossas ciências sociais aparenta ter implicado no
enfraquecimento da mediação pedagógica na efetivação social da sociologia. Uma resposta possível
nos é oferecida por Sarandy (2004, p. 47), para quem, no processo em questão, a “meta mais
ambicionada” seria a construção legitimada da sociologia enquanto disciplina científica nas
universidades, em detrimento de sua performance pedagógica, que teria sido acionada em nome da
referida legitimação mas logo abandonada quando atingida aquela meta. E assim estaria configurada
uma das fontes constitutivas do atual desinteresse de nossas ciências sociais para com o ensino em
geral e para com a sociologia no ensino médio em particular – o referido “insulamento acadêmico”.
Nos anos 1940/50 o debate público entre os sociólogos (contando com a participação de
Costa Pinto, Florestan Fernandes, Antônio Cândido, Octavio Ianni, entre outros) ainda comportava
com grande força as questões relativas ao seu ensino fora do âmbito universitário, mas nas duas
décadas seguintes, vividas em parte sob a ditadura militar, não só a sociologia permanece fora do
antigo ensino secundário – em 1971 ela deixa de ser obrigatória inclusive nos cursos normais –
como o debate arrefece quase que completamente (Giglio, 1999 apud Sarandy, 2004, p. 44 e 57) .
No decorrer da ditadura militar, muitos cientistas sociais brasileiros se opunham ao regime e
lutavam pela restauração democrática ao mesmo tempo em que atuavam profissionalmente nas
universidades, cujas pós-graduações na área das ciências sociais se expandiam de modo acelerado
(Pécaut, 1989). Certamente este processo ambivalente incidiu fortemente no fenômeno do
“insulamento acadêmico” de nossas ciências sociais, agravando-o. Na transição dos anos 1970 para
os 80, num período de enorme movimentação política e social no país, a sociologia acadêmica
brasileira estava mais distante do que nunca das questões relativas ao ensino.
Daí a “redescoberta” da sociologia no ensino médio ter sido conduzida por movimentos
sindicais e profissionais. De 1984 a 1989 a sociologia progressivamente volta a ser ministrada no
ensino médio: em São Paulo, no Pará, no Distrito Federal, em Pernambuco, no Rio Grande do Sul,
no Rio de Janeiro. Entidades como a Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo (ASESP) e
a Associação Profissional dos Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro (APSERJ) são
importantíssimas nestas conquistas. Em 1996 é promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei n. 9.394 de 20 de dezembro de 1996), que preceitua serem fundamentais para o
“exercício da cidadania” os conhecimentos em sociologia e filosofia. Em 2006 o Conselho Nacional
de Educação torna obrigatória a sociologia no ensino médio em todo o país. Finalmente, em 2008 é
promulgada a Lei n. 11.684 de 02 de junho de 2008, por meio da qual se estabelecem a sociologia e
103 Tal diagnóstico aparentemente é contraditório com a inspiração durkheimiana original das ciências sociais uspianas.
156
a filosofia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio. As ciências sociais
universitárias apenas lentamente vão considerando o ensino de sociologia um campo acadêmico
relevante, a partir da segunda metade dos anos 90. Nesse processo se perdeu em boa medida a
memória histórica do interesse pedagógico da sociologia brasileira na primeira metade do séc.
XX104 (Sarandy, 2004, p. 44, 57 e 75; também Jinkings, 2007, p. 122).
Em consonância com esse quadro, verifica-se facilmente o modesto prestígio acadêmico da
área de ensino de sociologia no quadro contemporâneo das ciências sociais brasileiras. Da mesma
maneira, percebe-se, sem maior apuro, a distância social e institucional entre os cientistas sociais
que são professores/pesquisadores universitários – que seriam desconhecedores do viés pedagógico
da sociologia e/ou detentores apenas de conhecimentos teóricos a respeito – e os que são professores
de ensino médio – possuidores de um conhecimento prático do “chão-da-escola”, mas
desatualizados da sociologia acadêmica “de ponta” (Takagi & Moraes, 2007, p. 93/94, 96 e 106).
Podemos pressupor que, numa perspectiva crítica e de superação desta realidade de
“insulamento acadêmico”, os pesquisadores contemporâneos do campo do ensino de sociologia no
Brasil (alguns deles compondo a bibliografia por nós utilizada) estejam propondo a seguinte
compreensão, para o conjunto de nossas ciências sociais, qual seja: a de que a crescente inserção da
sociologia no ensino médio viria contribuir para o próprio desenvolvimento das ciências sociais no
país, uma vez que a sociedade poderia valorizar a sociologia enquanto ciência por meio de sua
socialização e familiarização na escola, além de assim ser possível restabelecer o diálogo entre
acadêmicos e professores do ensino médio (Takagi & Moraes, 2007, p. 94/95 e 106).
Neste sentido, o ressurgimento, desenvolvimento e consolidação do campo de pesquisas
sobre o ensino de sociologia vêm resgatar a mediação pedagógica inerente tanto ao projeto
sociológico durkheimiano como aos primórdios institucionais da sociologia brasileira.
O papel da sociologia no ensino médio
A relação entre ensino de sociologia e sociedade, mediada pedagogicamente, pode ser
visualizada de modo mais minucioso através das formulações, elaboradas por cientistas sociais e
educadores, a respeito de alguns objetivos postos para o ensino de sociologia nas escolas de nível
médio. Para tanto, retomaremos sucintamente, por meio de uma diminuta parte da bibliografia
104 Aparentemente os movimentos sindicais e profissionais dos anos 1980/90 que conquistaram o retorno da obrigatoriedade da sociologia no ensino médio fizeram um diagnóstico equivocado ao responsabilizar a ditadura militar pela sua exclusão do sistema escolar, quando na verdade por todo o período democrático anterior (1945-64) a sociologia se manteve fora das escolas (Sarandy, 2004, p. 59). É possível que tal impropriedade possa ter se originado em função da derradeira supressão da obrigatoriedade do ensino de sociologia – nos cursos normais – ter sido promovida em 1971 pelo regime de exceção.
157
pertinente, certas justificativas sociológicas e pedagógicas desenvolvidas na primeira metade do séc.
XX (período em que a sociologia foi pioneiramente implantada no antigo ensino secundário e
depois suprimida), em primeiro lugar, e no momento atual em que a sociologia é obrigatória no
ensino médio, em segundo lugar.
A partir dos já citados trabalhos de Sarandy, Takagi & Moraes e Jinkings, que se
debruçaram sobre as reflexões de intelectuais atuantes no período (como Fernando de Azevedo,
Costa Pinto e Florestan Fernandes, entre outros), é possível elencarmos um conjunto de objetivos
então propugnados para o ensino de sociologia nos antigos cursos secundários nos anos 1940/50,
quando ainda se lutava pelo retorno de sua obrigatoriedade: capacitar os indivíduos a operar com a
racionalidade, inevitável no quadro de modernização capitalista e industrializante da sociedade
brasileira e de superação dos resquícios da escravidão e do oligarquismo rural; fornecer
conhecimentos científicos sobre a vida social em geral, de maneira a fomentar, no educando,
consciências e atitudes autônomas bem como permitir sua ativa participação na sociedade; elevar
culturalmente e intelectualmente parcelas significativas da sociedade brasileira de modo a habilitá-
las a atuar na solução dos problemas sociais decorrentes daquela modernização assim como nos
desafios postos pela democratização por que passava o país; promover e disseminar uma cultura
cidadã, integrando e fortalecendo assim a Nação. Tais objetivos comporiam uma missão
modernizante ou “civilizadora” para a sociologia e seu ensino (Sarandy, 2004, p. 43; Giglio, 1999
apud Sarandy, 2004, p. 44 a 46 e 75; Meucci, 2000 apud Takagi & Moraes, 2007, p. 101; Jinkings,
2007, p. 116/117).
Tomando os mesmos autores de trabalhos relativos ao ensino de sociologia, elencamos
igualmente alguns objetivos colocados para a sociologia no ensino médio por seus operadores e
estudiosos, mas agora no período que se inicia nos anos 80 e se estende até os dias de hoje: propiciar
uma atitude ética do indivíduo na sociedade; formar um cidadão habilitado à vida social e ao
trabalho na sociedade capitalista contemporânea, caracterizada por um contínuo e dinâmico avanço
tecnológico; capacitar o educando a compreender as novas sociabilidades vigentes, que estão em
constante transformação, e a elas se adequar criticamente (Bispo, 2003 apud Sarandy, 2004, p.
49/50; Takagi & Moraes, 2007, p. 101/102 e 104; Jinkings, 2007, p. 114 e 116).
Os objetivos e motivos formulados nos anos 1940/50 para o ensino de sociologia são bem
resumidos e definidos por Sarandy como constitutivos de “uma intenção interventora sobre a
realidade por meio da educação, um fim determinado – a constituição de uma nação moderna
formada por indivíduos adaptados e competentes” (2004, p. 45). Já em relação ao período atual, que
desfruta da reconquista do ensino da sociologia no ensino médio principiada nos anos 1980, pode-se
afirmar, com Takagi & Moraes: as legislações pertinentes “confirmam que a educação como um
158
todo, mas especialmente a sociologia, deva ser responsável pela formação dos cidadãos” (2007, p.
102) na sociedade brasileira.
De imediato, salta aos olhos a marcante similitude das justificativas sociológicas e
pedagógicas para o ensino não-universitário da sociologia, separadas temporalmente por um período
de cerca de 40 anos, a ponto de Sarandy identificar uma “continuidade” na performance pedagógica
da sociologia, “porque, como antes, a disciplina reaparece hoje com uma aura missionária,
civilizadora ou, se quiserem, libertadora”, destacando ainda a permanência histórica da “ideia de
'consciência crítica' como função principal da disciplina” (Sarandy, 2004, p. 75). No mesmo sentido
concluem Takagi & Moraes: “No passado […] um dos objetivos do ensino de sociologia era a
preparação para a cidadania e hoje a ideia foi mantida em razão da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – LDB […]” (2007, p. 101).
Contudo, há uma diferença relevante: na primeira metade do século passado a ênfase nesse
fomento à cidadania propiciado pela sociologia se dá ancorada na modernização e no fortalecimento
do Estado-Nação, enquanto dos anos 1980 em diante a clivagem preferencial reside na própria
sociedade civil e na democratização.
De qualquer maneira, podemos concluir – ainda que provisoriamente – na seguinte direção:
os objetivos e motivos apresentados para o ensino de sociologia durante todo o séc. XX, em medida
significativa, foram os mesmos e implicam necessariamente na mediação pedagógica. As ciências
sociais brasileiras, remontando ao projeto sociológico original durkheimiano, mantém sua
formatação disciplinar de ciência “pura”, não-aplicada em termos imediatos. Simultaneamente, e
sem prejuízo de sua performance em termos de pesquisa e de aplicação para além do campo
pedagógico (extensão, assessoria, etc.), nossas ciências sociais demandam, mesmo que de modo
implícito, a mediação da educação para se fazer efetiva em grande escala na sociedade e cumprir
seu papel socializador e fomentador da razão crítica, da autonomia e da cidadania – papel este
permanentemente em disputa por seus pesquisadores, professores e pelos diversos grupos sociais
envolvidos.105
2 A expansão das universidades públicas e dos cursos de formação de professores na UFRRJ:
a Licenciatura em Ciências Sociais
105 O artigo “Perspectivas Políticas e Científicas acerca do Ensino da Sociologia”, de Adélia Miglievich Ribeiro e Flávio Sarandy, constante do presente livro, aprofunda uma série de questões abordadas direta ou indiretamente neste nosso pequeno trabalho e deverá nos subsidiar em um futuro artigo.
159
A inclusão da sociologia – e da filosofia – no ensino médio, em 2008, gerou entusiasmo por
parte dos movimentos sindicais e profissionais e dos estudantes de ciências sociais, bem como
expectativa por parte dos gestores públicos em decorrência da ausência de profissionais concursados
para assumirem essas cadeiras. A fim de suprir a carência de licenciados, instituições públicas
(federais) e privadas de ensino superior ampliaram a oferta de cursos de licenciatura nas respectivas
áreas, o que produziu, no mesmo sentido, a ampliação do número de interessados em cursá-las.
A expansão do ensino superior no Brasil na ultima década foi proporcionada pelo Programa
de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), que tem
como objetivo ampliar o acesso e a permanência na educação superior entre os anos de 2003 a 2012.
O REUNI foi instituído pelo Decreto n. 6.096 de 24 de abril de 2007 e entre seus objetivos
estão o aumento de vagas nos cursos de graduação, a ampliação da oferta de cursos noturnos, a
promoção de inovações pedagógicas e o combate à evasão. Através de diferentes ações
governamentais para o crescimento do ensino superior público, o Governo permitiu que
Universidades Federais aderissem ao Programa e realizassem uma significativa expansão física,
acadêmica e pedagógica.106
Na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro o Programa de Reestruturação e Expansão
da UFRRJ (PRE, 2007), elaborado em resposta ao Decreto presidencial, representou um
planejamento para a ampliação dos cursos de graduação, assim como uma reestruturação com vistas
à melhoria e ampliação de qualidade das atividades acadêmico-científicas e administrativas. Uma
das diretrizes do PRE da UFRRJ foi a expansão dos cursos de licenciaturas, o que se justifica pela
abrangência geográfica de atuação da Universidade e a carência de professores e profissionais em
determinadas áreas do conhecimento na região geográfica de sua influência.
A proposta de expansão das licenciaturas prevista no PRE (2007) da UFRRJ foi a ampliação
de 10 novos cursos, partindo dos 13 cursos implantados até 2007 para 23 em 2010. No total a
expansão proporcionada pelo REUNI na Universidade representou a abertura de 24 novos cursos de
graduação, gerando um significativo impacto na contratação de docentes e técnicos administrativos.
Entretanto este desafio de expansão demandou a necessidade da reformulação das licenciaturas já
em curso e a refundação quantitativa e qualitativa da discussão político-pedagógica dos novos
rumos para os cursos de licenciatura.
Nesse sentido, Majerowicz e Rizo (2012) apontaram que a intenção de contribuir para a
formação de professores para a educação básica colocou o desafio de buscar novas propostas
106 Segundo o Ministro da Educação Fernando Haddad, o REUNI ampliou em 120% o número de licenciaturas nas Universidades Federais. Fonte: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13583&Itemid=970.
160
acadêmicas e políticos institucionais que garantisse uma formação de professores qualificada.
Segundo as autoras:
A reestruturação das licenciaturas da UFRRJ se impôs para viabilizar uma concepção de formação inicial de professores comprometida com a valorização profissional da educação e com o perfil docente fundamentado na autonomia intelectual, na capacidade de compreender a atuar positivamente na complexidade da escola, considerando suas múltiplas dimensões (politica, social, histórica, acadêmica e pedagógica) (2012, p. 2). A partir do ano de 2008 reuniões do Fórum das Licenciaturas107 subsidiaram uma proposta
de qualificação das licenciaturas, elaborada por uma Comissão instituída para reestruturação dos
projetos político-pedagógicos dos cursos da UFRRJ. Este Fórum apresentou, ainda no ano de 2008,
uma minuta de política institucional e de formação inicial de professores de educação básica para
apreciação do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE).
Desse debate nasceu a Deliberação do CEPE n. 138/2008 que definiu o Programa
Institucional de Formação de Professores para Educação Básica da UFRRJ, e que serviu de
referencial para elaboração dos projetos político-pedagógicos dos cursos de licenciatura. Em seu
artigo 3º ela define que:
O projeto político-pedagógico dos cursos de licenciatura terá um núcleo de disciplinas de formação pedagógica comum a todas às licenciaturas (300 h ou 330 h); de um núcleo Pesquisa e Prática Pedagógica que objetiva articular teoria-prática e promover a formação para a pesquisa e a extensão, constituído de, no mínimo, uma disciplina de prática pedagógica específica de 60 horas, Núcleos de Ensino, Pesquisa e Extensão (120 h), Monografia (120 h), Estágio Supervisionado (400 h) e por Atividades Acadêmicas Complementares (200 h) [...] (Delib. 138/2008). Nesse processo, o Curso de Licenciatura e Bacharelado em Ciências Sociais foi fruto do
projeto REUNI-UFRRJ e previsto no Programa de Reestruturação e Expansão (PRE) de 2007. O
curso teve inicio em 2009 e conta com uma entrada semestral de 40 alunos.
A entrada no curso ocorre por uma única porta e a opção pelo bacharelado ou licenciatura
ocorre na transição do segundo para o terceiro período. A estrutura curricular do Curso de
Licenciatura em Ciências Sociais da UFRRJ integraliza 3.190 horas. O currículo é constituído por
eixos organizativos que articulam as dimensões do conhecimento, da metodologia, da teoria em
Ciências Sociais e da prática pedagógica a partir de conteúdos e práticas formativas que relacionam
organicamente: Eixo de Formação Profissional Específica, Eixo de Formação Geral, Eixo de
Formação Pedagógica e Eixo de Formação Livre, composto por disciplinas optativas e eletivas
relacionadas tanto à formação específica do cientista social quanto à formação geral ou pedagógica,
cuja intenção é contribuir no processo de autonomia intelectual do discente. Além desses eixos
107 A Comissão Permanente de Formação de Professores da UFRRJ é constituída de: um representante da Pró-Reitoria de Graduação como Presidente; dois representantes da Área Pedagógica; dois representantes da Área de Psicologia; um representante de cada Colegiado de Curso de Licenciatura da UFRRJ.
161
formativos, o discente deve cumprir carga horária ligada ao Estágio Supervisionado, às Atividades
Complementares e às Práticas como componente curricular.108
Um dos grandes desafios para a consolidação e qualificação das Licenciaturas é a
articulação entre teoria e prática de ensino. Alvo de diversas críticas e considerações por parte dos
alunos, o diálogo entre as disciplinas pedagógicas, disciplinas específicas e disciplinas práticas
apresenta-se como uma das principais dificuldades e projeções para a excelência do curso. Ainda
precisamos caminhar nesse sentido.
Na tentativa de auxiliar essa articulação, foram criados pelo Programa Institucional de
Formação de Professores para Educação Básica os NEPEs. O Núcleo de Ensino, Pesquisa e
Extensão foi criado pela citada Deliberação n. 138 de 11 de dezembro de 2008 e tem como
finalidade “articulação dos conhecimentos das áreas específicas com a abordagem pedagógica
enfatizando os processos/práticas de ensino aprendizagem no ambiente escolar, tendo como
característica a articulação entre ensino, pesquisa e extensão”.109
Segundo a Pró Reitora de Graduação da UFRRJ Nidia Majerowicz :
Os NEPEs foram resultado do debate em torno da reestruturação curricular das Licenciaturas ao longo de 2008 no Fórum das Licenciaturas. Surgiu como uma componente curricular voltada para estimular a formação com o protagonismo do aluno no desenvolvimento de pesquisa e extensão nas diferentes áreas e com o olhar sobre a escola e a educação. Os NEPEs representam uma construção coletiva após um intenso debate que visava contemplar uma exigência das Diretrizes Curriculares das Licenciaturas (400 h de pesquisa e prática pedagógica) e a preocupação de desenvolver no futuro professor a capacidade de pesquisar e gerar conhecimentos com os estudantes da educação básica [...]. Os NEPEs são um diferencial na concepção de formação e tem como objetivo envolver o aluno, orientado por professores, na produção de conhecimentos, ao mesmo tempo em que interage com a realidade da escola (Majerowicz, 2011 - Entrevista concedida). No projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais da UFRRJ os NEPEs
I, II, III e IV são considerados como Atividades Acadêmicas obrigatórias e visam a prática
pedagógica como componente curricular, sua carga horaria é de 45 horas aulas em cada NEPE. Os 4
NEPEs são identificados pelas nomenclaturas: Sociedade e Modernidade; Politica e Relações de
Poder, Identidade e Cultura; e Conflitos e Consensos.
A proposta dos NEPEs dentro da Licenciatura em Ciências Sociais consiste em permitir que
temáticas diferenciadas e articuladas pelas três áreas que compõem as Ciências Sociais sejam
introduzidas nas discussões pedagógicas. A intenção é permitir que o NEPE seja um espaço de
108 Prática Pedagógica como Componente Curricular: as Atividades Acadêmicas (AA) orientam-se no sentido de propiciar ao aluno uma formação que conjugue prática e teoria pedagógica nos diversos campos disciplinares da área de ciências sociais. As Atividades Acadêmicas (AA) estão distribuídas nas seguintes modalidades: Monografia I e II; Atividades Complementares (AC); Núcleo de Ensino e Pesquisa em Ciências Sociais I,II,III,IV, conjugando atividades presenciais e atividades práticas; Seminário Educação e Sociedade (AA) e Estagio Supervisionado. As Atividades Complementares (AC) são atividades extra classe a serem definidas pela Coordenação do Curso totalizando 200 horas. (Projeto Politico-Pedagógico do Curso de Ciências Sociais da UFRRJ, 2009) 109 Programa Institucional de Formação de Professores para Educação Básica da UFRRJ - anexo à Deliberação n. 138 de 11 de dezembro de 2008.
162
formação prática e reflexiva para os licenciandos, estimulando o debate nas questões relativas à
prática pedagógica e os desafios teóricos metodológicos da sua atuação.
Nesse sentido, é possível pensar como estratégias de inserção nos NEPEs temáticas como,
por exemplo: ensino relacionado à questão étnico-racial; educação quilombola; educação indígena;
novas metodologias de ensino; inserção da sociologia no ensino médio; análise dos livros didáticos;
análise dos conteúdos curriculares existentes; produção de material paradidático, entre outros. Essas
temáticas e propostas devem ser ampliadas seguindo a determinação da deliberação que cria os
NEPEs, o qual prevê: “esta componente curricular deverá resultar em artigos para publicação (...) e
produtos didático-pedagógicos como softwares, kits e materiais, aplicando os recursos das
Tecnologias da Informação e Multimídia (TICs) como vídeos, programas de rádio e TV,
hipertextos, comunidades virtuais de aprendizagem” (Delib. 138/2008).
Foi durante a preparação e ministração do NEPE sobre ensino de sociologia no Brasil em
2011.1 que os autores do presente texto tiveram um maior contato com a literatura sobre esta
temática. Um aspecto importante que se destacou em nossos levantamentos foi a carência de
pesquisas sobre ensino de sociologia que ultrapassem a trajetória histórica de institucionalização da
disciplina. É notável a ausência de estudos empíricos realizados no ensino básico, estudos que
dialoguem com a realidade das escolas de nível médio em nosso país. Em parte, isto ocorre pela
recente obrigatoriedade da sociologia no ensino médio.
Quando falamos de licenciaturas é preciso considerar que o ensino de sociologia é uma
temática muito pouco explorada no campo de estudos das ciências sociais. Segundo Amaury
Moraes “isso se explicaria por uma hierarquização entre os campos acadêmico, científico e escolar
nas ciências sociais, dado que o ensino ocupa uma posição de pouco prestigio diante dos demais
campos” (2007, p. 93).
A percepção dicotômica entre ensino e pesquisa, entre bacharelado e licenciatura, ou entre
formação para pesquisa e formação para ensino vem prejudicando o desenvolvimento de pesquisas
nas áreas de educação e do ensino de sociologia. A fim de ampliar os estudos sobre ensino de
sociologia mister se faz aumentar o diálogo entre pesquisadores da acadêmica e professores do
ensino médio, sem, contudo, hierarquizar os saberes.
Moraes lembra que Bourdieu chamava a atenção dos sociólogos que abandonaram o objeto
“educação” aos pedagogos, abrindo mão dessa especialidade - sociologia da educação - para
educadores. “A educação como objeto ou campo de atuação há muito vem passando por um
processo de desvalorização, não só entre cientistas sociais, mas também quanto ao que se refere ao
nível básico” (2003, p. 10).
163
O mesmo autor defende a superação do atual modelo de formação do professor de
sociologia, com integração efetiva entre bacharelado e licenciatura. Para ele há uma relação difícil
entre as duas formações, constituindo cursos com objetivos diversos: um forma pesquisadores e
outro professores.
Nesse sentido, é preciso reconhecer que a formação do professor de sociologia de nível
médio é uma tarefa dos professores dos cursos superiores - bacharelado e licenciatura - em ciências
sociais. Professores, doutores e mestres, concursados para os cursos de bacharelado e licenciatura
em Ciências Sociais, ainda que não tenham passado por uma formação especifica para “ensinar a
ensinar” devem assumir um papel de compromisso com a formação docente dos licenciandos.
É preciso valorizar as licenciaturas com recursos humanos e materiais, além de criar
interlocução e diálogo entre os atores envolvidos: professores do curso de ciências sociais
(bacharelado e licenciatura), professores das faculdades de educação (que ministram as disciplinas
pedagógicas), além de professores e gestores das escolas de nível médio onde os licenciandos
realizam seus estágios.
Há outros dois atores importantes nesse processo, institucionalizados pelo Projeto Político-
Pedagógico do Curso de Ciências Sociais da UFRRJ: um é o professor orientador do Estágio
Supervisionado, que deve se articular e trabalhar em conjunto com os professores de ensino médio
que recebem os alunos nas escolas; outro é o professor de Ensino de Ciências110 responsável pela
discussão metodológica e didática do ensino de sociologia no ensino médio.
Entretanto, a expansão das licenciaturas no Brasil e a introdução da sociologia no ensino médio em
2008 abrem novos caminhos para rediscutirmos a formação dos professores em sociologia no país.
Como destacou Nise Jinkings:
A licenciatura torna-se uma temática investigativa da maior importância nos dias de hoje [...]. Ao mesmo tempo, reflexões e debates tem ocorrido no âmbito das universidades, buscando valorizar a licenciatura e o magistério e enfrentar a dissociação histórica entre licenciatura e bacharelado nos cursos de graduação (2007, p. 124). Muitos cursos de licenciatura em ciências sociais foram abertos no país a partir da expansão
REUNI, no entanto, ainda carecemos de uma aproximação entre as mesmas e de um
aprofundamento do debate sobre formação de professores e currículo para ensino médio.
Os cursos de licenciatura devem ofertar ensino, pesquisa e extensão, estimulando a abertura
de campos de pesquisa no contexto escolar. É cada vez mais importante motivar professores a se
tornarem também pesquisadores desse campo de pesquisa e fomentar que professores de ensino
110 O professor da disciplina Ensino de Ciências Sociais é concursado pelo Departamento de Teoria e Planejamento de Ensino do Instituto de Educação da UFRRJ. Esta disciplina (antiga Prática de Ensino), no Projeto Político-Pedagógico do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais da UFRRJ , tem como proposta refletir sobre questões teóricas, metodológicas e didáticas da sociologia no ensino médio.
164
médio e professores universitários sejam capazes de se aproximar e discutir as bases para uma
formação adequada e de qualidade do aluno licenciando em ciências sociais, assim como das
diretrizes curriculares para o ensino de sociologia (diga-se ciências sociais) no ensino médio.
Esse é ainda um desafio que estamos reconhecendo no Curso de Ciências Sociais da
UFRRJ. Muito ainda temos a construir e caminhar, perguntas ainda nos inquietam. Nos próximos
anos devemos discutir conjuntamente qual o perfil da licenciatura e que professores de sociologia
estamos formando. Precisamos ainda fortalecer esse projeto coletivo e envolver todo corpo docente
nesse propósito. Por fim, ainda necessitamos repensar quais caminhos e metodologias podem nos
auxiliar no aprimoramento dos NEPEs e na aproximação com as disciplinas pedagógicas, tudo isso,
articulado com as escolas e professores de ensino médio e os alunos licenciandos.111
Considerações finais
Pensar o ensino de sociologia requer na atualidade o diálogo de dois eixos complementares,
a educação no ensino médio e no ensino superior. Como discutido na primeira parte do texto, a
institucionalização da sociologia no Ocidente moderno foi mediada essencialmente pela educação.
No entanto, após conquistado seu status de disciplina cientifica universitária ocorreu o declínio na
sua performance pedagógica. O que explicaria o atual desinteresse de nossas ciências sociais para
com o ensino em geral e para com a sociologia no ensino médio em particular – o referido
“insulamento acadêmico”.
O que esperamos é que tal desinteresse se reduza com a atual expansão das licenciaturas em
ciências sociais, de igual modo com a inclusão da sociologia no ensino médio. Recentes
provocações estão gerando demandas por novas pesquisas nesse campo ainda tão carente de
estudos. Por conseguinte, desejamos contribuir nos debates, na pesquisa e na troca de experiências
com outros cursos. No final de 2012 formaremos a primeira turma de licenciados e esperamos
continuar aprimorando nossas práticas, entre elas a efetivação dos NEPEs como laboratórios de
experiências e vivências sobre ensino de sociologia.
De modo geral, a expansão das licenciaturas nos apresenta velhos e conhecidos desafios que
são hoje urgentes, entre os quais: aproximação dos cursos de licenciatura e bacharelado em ciências
sociais nos Estados e a nível nacional; aproximação das instituições de ensino superior e de
111 A primeira parceria do Curso de Ciências Sociais da UFRRJ com escolas públicas ocorreu no ano de 2010, quando o curso foi contemplado com 20 Bolsas do projeto CAPES/MEC PIBID – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, com o tema “Multiculturalismo, Diversidade e Conflitos nas Escolas”. Essa foi a primeira experiência que permitiu a alunos do curso entrarem em três escolas estaduais, duas do Município de Seropédica e uma do Município de Rio Claro. Esse projeto vem produzindo junto com a iniciação à docência um levantamento sobre as práticas metodológicas, os currículos e as experiências de ensino de sociologia nas escolas de Seropédica.
165
coordenações de curso com as escolas onde são realizados os estágios supervisionados e fomento de
trabalhos em conjunto; fortalecimento do papel do professor orientador do estágio supervisionado,
trabalhando em parceria com o professor regente da disciplina nas escolas; ampliação das pesquisas
empíricas no ensino médio; rediscussão dos currículos e metodologias para ensino de ciências
sociais; ampliação da participação dos licenciandos nas discussões institucionais; consolidação do
campo de pesquisas sobre o ensino de sociologia.
Finalmente, esperamos encontrar parceiros de outras instituições que estejam dispostos a
compartilhar e trocar novas experiências com o Curso de Bacharelado e Licenciatura em Ciências
Sociais da UFRRJ ([email protected]).
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167
Capítulo 10 Licenciatura em Ciências Sociais: da construção do Projeto Pedagógico de Curso (PPC) aos desafios da formação para o ensino de Sociologia
Célia Regina Neves da Silva *
Precisamos contribuir para criar a escola que é aventura, que marcha, que não tem medo do risco, por isso que recusa o imobilismo. A escola em que se pensa, em que se atua, em que se cria, em que se fala, em que se ama, se adivinha, a escola que apaixonadamente diz sim à vida. (Paulo Freire, 1993)
1- Introdução
Este trabalho resulta da experiência como coordenadora e professora do curso de Ciências
Sociais das Faculdades Integradas Campo-Grandenses (FIC), na Zona Oeste da Cidade do Rio de
Janeiro. As FIC, mantidas pela Fundação Educacional Unificada Campograndense (FEUC), foi
criada no ano de 1960, quando recebeu o nome de Faculdade de Filosofia de Campo Grande. Desde
então, têm oferecido diversos cursos de Licenciatura, dentre eles, o curso de Ciências Sociais. Ao
longo desta trajetória de mais de cinqüenta anos, o referido curso passou por algumas mudanças. No
ano de 2003, a partir da elaboração de um novo Projeto Pedagógico de Curso (PPC), em
conformidade com as exigências do Parecer CNE/CP 9/2001, adota-se o regime seriado semestral e
extingui-se o regime seriado anual, que vinha sendo adotado desde sua criação.
O objetivo é apresentar parte desta trajetória, mais precisamente a partir da consolidação
desta nova estrutura curricular, que se dará com a conclusão, no ano de 2005, da primeira turma
neste novo regime. A elaboração do novo PPC112 ocorre num cenário de grande empenho
acadêmico no que tange ao compromisso com a formação docente, uma vez que as novas Diretrizes
Curriculares Nacionais (PARECER CNE/CES 492/2001) definem que os egressos deverão ter uma
formação sólida aliada a um perfil investigativo que permita à realização de diferentes trajetórias.
Ancorado nos cinco princípios norteadores da concepção das diretrizes curriculares, conforme
segue abaixo,
*Professora e Coordenadora do Curso de Ciências Sociais das FIC (Faculdades Integradas Campo-Grandenses), Professora da Rede Pública da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Graduada em Ciências Sociais, Especialista em Sociologia e Mestra em Planejamento Urbano e Regional, pelo IPPUR/UFRJ. 112O novo projeto do curso foi enviado para autorização, junto ao MEC, em2002. No entanto, vale ressaltar que um projeto pedagógico precisa estar sempre em movimento, sobretudo quando traz mudanças substanciais, como é o caso. Nesta medida, ele tem sido resultado da interlocução com os diferentes sujeitos da educação: docentes, discentes e comunidade.
168
• Propiciar aos estudantes uma formação teórico-metodológica sólida em torno dos eixos que formam a identidade do curso (Antropologia, Ciência Política e Sociologia) e fornecer instrumentos para estabelecer relações com a pesquisa e a prática social. • Criar uma estrutura curricular que estimule a autonomia intelectual, a capacidade analítica dos estudantes e uma ampla formação humanística. • Partir da idéia de que o curso é um percurso que abre um campo de possibilidades com alternativas de trajetórias e não apenas uma grade curricular. • Estimular a produção de um projeto pedagógico que explicite os objetivos do curso, articulação entre disciplinas, as linhas e núcleos de pesquisa, as especificidades de formação, a tutoria e os projetos de extensão. • Estimular avaliações institucionais no sentido do aperfeiçoamento constante do curso.
O PPC vem sendo desenvolvido, ao longo desta década, voltado sobretudo para a formação
de profissionais comprometidos com o estudo e aprofundamento da realidade brasileira, a fim de
atuar em diferentes espaços educativos, sobretudo no ensino médio, na perspectiva de contribuir na
formação de sujeitos críticos e participativos como propõe a LDB 9294/96, no item 3, da sessão IV,
como uma das finalidades do ensino médio: o aprimoramento do educando como pessoa humana,
incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico.
Por fim, serão apresentadas as expectativas que docentes e discentes têm construído ao
longo desta trajetória acerca de sua formação, assim como em relação ao trabalho que vêm
desenvolvendo no ensino médio, ou ainda, que pretendem desenvolver, no caso daqueles e daquelas
que concluíram o curso recentemente.
2- Projeto Pedagógico e Identidade Formativa: um processo inacabado
Um Projeto Pedagógico de Curso deve refletir os princípios e objetivos de um
determinado projeto de educação. Para tanto não pode se constituir num mero relatório onde
estão organizados conteúdos e disciplinas, normas e instruções de uma determinada escola ou
curso a fim de garantir seu funcionamento. Deve ter como ponto de partida o sujeito da educação
e a educação propriamente dita como ferramenta de emancipação e humanização.
A dinâmica da vida contemporânea - marcada por profundos antagonismos a nível global
e local, onde o avanço na produção não tem significado a eliminação da miséria, tampouco sua
atenuação; onde as fraturas sociais têm atingido cada vez mais um conjunto maior de indivíduos
e grupos sociais, sobretudo os mais pobres do Planeta, uma vez que o modelo de sociedade
dominante tem se pautado na acumulação de riquezas e capital para alguns e degradação da vida
em todas as suas dimensões para os demais - exige um conhecimento que apresente alternativas
que garanta um futuro digno para toda a humanidade.
169
Gadotti afirma que todo projeto supõe rupturas com o presente e promessas para o
futuro (In Veiga, 2005, p.12). Portanto, deve refletir a dinâmica do seu tempo e lugar, ou seja,
deve ser fruto de um criterioso olhar histórico para que não caia em armadilhas positivistas ao
naturalizar o que é resultado das relações entre os diferentes grupos e classes sociais. Deve
atentar, portanto, para a atual conjuntura econômica, política e social, além de refletir acerca do
modelo de educação dominante nestes tempos neoliberais e, assim, se constituir em ferramenta
para a elaboração de práticas pedagógicas voltadas à produção e circulação de saberes, fundados
na pesquisa histórica acerca da realidade brasileira. Trata-se do compromisso com a formação de
profissionais competentes e sensíveis à construção de processos educativos que contribuam na
constituição de sujeitos críticos e participativos para a vida em sociedade.
Vale ressaltar que tendo a Licenciatura adquirido integralidade em relação ao bacharelado,
em conformidade com o Parecer CNE/CP 9/2001, tornou-se necessária a elaboração de propostas
curriculares que identifiquem a Licenciatura e a diferencie em relação ao Bacharelado. De acordo
com o processo de elaboração das propostas de Diretrizes Curriculares para a graduação, conduzido
pelo MEC/SESu, o(a) licenciado(a) não pode ser um bacharel com formação pedagógica. Isso
exigiu a definição de currículos próprios da licenciatura que não se confundam com o bacharelado
ou com a antiga formação de professores que ficou caracterizada como modelo “3 + 1”. (MEC,
2001, p. 06)
Essa mudança promoveu a elaboração de um curso mais comprometido com uma
formação para o fazer pedagógico, na medida em que, sendo o percurso acadêmico costurado
por disciplinas pedagógicas, uma vez que o PPC propõe que estas componham a grade curricular
desde o início do curso, os diferentes conteúdos da grade curricular passam a ser refletidos à luz
das ciências da educação.
Além das disciplinas de importante peso teórico no campo da Sociologia, Antropologia,
Economia e Ciência Política, fazem parte da grade curricular disciplinas que cumprem o papel de
alargar o pensamento crítico e instaurar um ambiente reflexivo e analítico relativo aos fenômenos
sociais da atualidade. Trata-se das disciplinas Cultura e Sociedade, Estado e Políticas Públicas,
Sociedade e Movimentos Sociais, Ética e Cidadania e História e Cultura Afro-Brasileira.
Consideramos que esta concepção tem permitido a realização dos princípios balizadores da
DCNs para o Curso, sobretudo o terceiro princípio: Criar uma estrutura curricular que estimule
a autonomia intelectual, a capacidade analítica dos estudantes e uma ampla formação
humanística. (MEC, 2001, p.6).
Esta trajetória tem possibilitado a formação para a docência como um processo integrado,
uma formação fundada na interdisciplinaridade, tecida pelos princípios filosóficos de uma educação
170
dialógica, àquela que resulta da ação de sujeitos que se reconhecem como inacabados e que, por esta
condição, estão em permanente diálogo, construindo saberes e fazeres, construindo História, como
enfatiza Freire: O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação
dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente
movimento na História. (1996, p.154). É desta perspectiva que o referido PPC tem sido construído:
a organização da grade curricular, o diálogo entre as disciplinas e as práticas pedagógicas, a
pesquisa monográfica e as atividades de extensão têm sido fermento para esta construção.
Nesta perspectiva organizamos o Curso em cinco eixos/áreas, conforme orientação do Parecer
CNE/CP 9/2001 cada um deles com uma identidade e propósitos, e em diálogo com os demais,
tendo por objetivo alargar a reflexão, a análise e a elaboração de práticas voltadas para a intervenção
na realidade local. Eixo de aprimoramento introdutório e de nivelamento, Área de Conhecimentos
Específicos, Área de Conhecimentos da Educação e Metodológicos, Área de Estágio Orientado,
Área de Atividades científico-culturais-complementares. Além dessas áreas, faz parte dos
componentes curriculares a realização da monografia como trabalho de final de curso. Para tanto
foram definidas três linhas de pesquisa: Educação, Estado e Políticas Públicas; Movimentos Sociais
e Espaços Educacionais e Cultura e Educação em Direitos Humanos.
3- Concepção do processo ensino e aprendizagem: interdisciplinaridade articulando teoria
e prática
A concepção curricular adotada leva em consideração os desafios da educação universitária
diante das intensas transformações que têm ocorrido na sociedade contemporânea, no mundo do
trabalho e das atividades da vida cotidiana. É desta realidade que buscamos elementos sobre os
quais possamos construir referenciais analíticos, no campo das Ciências Sociais, a fim de alimentar
diferentes ambientes de ensino e aprendizagem. Vale ressaltar que a forma como temos trabalhado o
currículo advém do reconhecimento da diversidade e desigualdade sociais crescentes na
contemporaneidade, assim como da identificação dos processos históricos que as forjaram, a fim de
contribuir na formação de profissionais capazes de lançar mão dos conteúdos das Ciências Sociais
para o trabalho docente. Trata-se de uma formação que busca a competência em mobilizar
conhecimentos fecundos à compreensão dos diferentes fenômenos da realidade social e histórica,
assim como apresentar possibilidades de organizar o trabalho pedagógico em virtude da atuação
profissional nas escolas de ensino médio.
Para tanto têm sido organizadas diferentes atividades que articulam ensino, pesquisa e
extensão, algumas previstas na matriz curricular como o Programa Rede de Leitura, que se
171
destina ao desenvolvimento da autonomia intelectual fundada no incentivo à leitura de obras de
grande valor teórico e metodológico. A partir da destinação de tempos e espaços curriculares para a
leitura, são realizadas atividades acadêmicas diversas, como seminários, trabalhos de campo,
pesquisas, etc. que deverão se realizar de forma interdisciplinar. A cada período, o programa
contemplará um conjunto de disciplinas113, cada uma delas, além da bibliografia básica e
complementar, previstas no programa, contará com uma obra de leitura obrigatória que poderá ser
articulada às demais disciplinas. Além deste programa, as Práticas pedagógicas através das
atividades complementares têm sido de grande valor para o curso, na medida em que ampliam as
possibilidades de metodologias para o ensino de Sociologia. Tais práticas são componentes
curriculares integrados às diversas áreas de conhecimento dos cursos de Licenciatura, tendo como
objetivo o enriquecimento da formação científica, acadêmica e cultural, podendo ser realizadas
através de atividades como participação em seminários, apresentações, exposições, eventos
científicos, trabalhos de campo, monitorias e projetos de extensão. Dentre estes ressaltamos o
encontro anual do Curso.
Encontros anuais do curso de Ciências Sociais
Nos dias14, 15 e 16 de setembro do corrente ano, realizamos o XIII Encontro de Ciências
Sociais com o tema Juventude e Direito à Cidade: Rebatimentos Locais para Perspectivas
Globais. A partir do diálogo entre estudantes do curso e seu corpo docente foi organizado o
encontro com o objetivo de refletir acerca da questão da juventude na atualidade. Para tanto foram
propostas, a partir de pesquisas realizadas em algumas disciplinas a apresentação de comunicações,
pôsteres e mostra de artes. Vale ressaltar que o encontro teve como meta trazer a juventude de
projetos locais para dentro da universidade. Experiências comunitárias de educação, arte e trabalho
fizeram parte do diálogo, assim como a participação de alunas e alunos da rede pública estadual.
Nesta trajetória, o Núcleo de Estudos Urbanos Josué de Castro (NEURB), núcleo de
pesquisa e extensão, congregando discentes e docentes do curso, tem desenvolvido atividades
utilizando diferentes metodologias e linguagens a fim de desenvolver projetos, sobretudo na
perspectiva da extensão. Trata-se de ações diversas com o objetivo de romper os muros da
universidade, levando a universidade para a comunidade e trazendo a comunidade para dentro da
universidade. Para tanto tem sido realizados encontros, cursos de extensão, cursos de formação,
113 Disciplinas do programa: 1º p. (Oficina de produção de textos, Mercado de trabalho e Cultura e sociedade e Introdução à sociologia); 2º p. (Fundamentos históricos e filosóficos da educação); 3º p. (Sociologia urbana e Psicologia da educação); 4º (Estado e políticas públicas e Didática geral); 5º (Psicologia social e Didática do ensino de Ciências Sociais); 6º (Pensamento social brasileiro e Educação brasileira.
172
grupos de trabalho e projetos diversos em parcerias com ONGs, como atualmente com o PACS114,
a fim de ampliar as possibilidades de extensão à comunidade. Tratam-se ações que têm fortalecido a
proposta do Curso de Ciências Sociais, o estudo, reflexão e atuação sobre a realidade brasileira.
Dentre as atividades desenvolvidas, atualmente realizamos:
Projeto Cinema na FEUC
O Projeto Cinema na FEUC tem se constituído numa ferramenta pedagógica de
fundamental importância. Já no seu oitavo ano de realização, o projeto vem promovendo a exibição
de documentários nacionais e estrangeiros na perspectiva de pensar a realidade política, econômica
e social de diferentes lugares e países em diferentes períodos da história, sobretudo dos Países do
Sul. O Objetivo principal é promover o conhecimento de realidades vividas por países e grupos
sociais e que a Grande Mídia não tem interesse em revelar e, assim, estimular o debate e a reflexão
coletiva acerca destes temas a fim de fortalecer a habilidade em analisar diferentes processos sociais
e dinamizar reflexões em diferentes grupos de estudo. Vale ressaltar que procuramos selecionar
vídeos de acordo com eventos e episódios ocorridos em nossa história de acordo com a data de
exibição. Trata-se de uma forma de elucidar a importância do tema para a construção da história.
Trata-se de uma atividade que possibilita a dinamização do processo de produção do
conhecimento ao ampliar as linguagens enquanto instrumento de construção simbólica, necessários
a todo fazer pedagógico que se pretende aberto e criativo.
Grupos de Trabalho: Educação, direitos humanos e cidadania
O Grupo de trabalho Educação, Diretos Humanos e Cidadania tem se constituído a partir
dos projetos de Educação Popular do NEURB, sobretudo no processo de realização do Projeto Pré-
vestibular Voluntário Inovadores do saber115 da FEUC. Esta experiência demonstrou a importância
114 O PACS é uma Ong que, há vinte e cinco anos vem desenvolvendo pesquisas e ações sócio-educativas na perspectiva da economia sócio-solidária. Há seis anos vimos realizando uma parceria que tem permitido a realização de oficinas, cursos e encontros na perspectiva de fundar novas práticas para uma convivência sócio- solidária. 115 O projeto foi criado no ano de 2001, por um grupo de alunos e alunas do curso de Ciências Sociais e Geografia. Tinha por objetivo contribuir na formação e preparação para o concurso vestibular. Direcionado aos segmentos pobres e oriundos das escolas públicas da região, que vêm, historicamente, sofrendo a exclusão das universidades públicas, uma vez que a educação básica oferecida pela rede pública, onde estudam estes segmentos populares, não têm sido capazes de formar e preparar para aquilo que se propõe o vestibular. No processo de realização do projeto o grupo definiu a disciplina Cultura e Cidadania, entendendo que a reflexão proposta contribuiria no desvelamento da estrutura social que segrega muitos/as enquanto privilegia alguns/mas e finalmente concebeu um projeto que mais do que colocar na universidade pretendia contribuir na formação de sujeitos críticos e participativos que quisessem, uma vez ingressando na universidade, nela permanecer e dela sair fazendo a diferença na vida social. O projeto foi desenvolvido por voluntárias/os durante nove anos, sendo o ano de 2009 o último ano em que se realizou na FEUC. A partir de 2010 o projeto passa a ser desenvolvido pelo IFHEP (ifhep.or.br), entidade parceira do NEURB.
173
do estudo sobre a sociedade brasileira numa perspectiva histórica acerca dos Direito Humanos,
apresentando assim a necessidade de aprofundamento teórico para a continuidade das ações do
Núcleo. Nesta perspectiva foi criado um Grupo de Estudos com o objetivo de aprofundar as
questões relativas ao fortalecimento do perfil investigativo e crítico do/a profissional da educação e
de garantir uma formação humana que o/a habilite ao tratamento dos temas transversais presentes
nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Básico. Trata-se de uma experiência com
grande possibilidade de forjar sujeitos críticos e criativos e que se engajem nos projetos de extensão
universitária da Instituição. A proposta é que possamos ampliar o trabalho com a realização de
oficinas pedagógicas para a rede pública de ensino da região, assim como para grupos comunitários.
Cursos realizados pelo PACS
O PACS (Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul), tem realizado diversos cursos de
formação ao longo de cinco anos de parceria com o NEURB. Há seis anos o PACS vem se
dedicando ao trabalho de formação e empoderamento de segmentos populares da Zona Oeste.
Quando projetou esta iniciativa, procurou o NEURB, para que o trabalho fosse realizado a partir
desta parceria. Desde então têm sido realizadas diversos projetos, tais como:
1- Curso: Economia e Mulheres;
2- Oficinas de sustentabilidade de projetos da economia popular;
3- Curso: Orçamento Participativo;
4- Encontros, seminários e oficinas relativos à economia sócio-solidária.
Projeto Fazendo Cena: o teatro como ferramenta para reflexão e construção de práticas
pedagógicas (em gestação)
Parte-se da hipótese de que experiências com o teatro permitem a vivência dos temas e
questões trabalhadas em diferentes disciplinas. O pressuposto da experiência é que essas
experimentações teatrais podem suscitar nos participantes a vivência de novas situações educativas
e proporcionar a construção de práticas pedagógicas que se constituam em respostas aos desafios
teórico-metodológicos referentes a temas e objetos sociológicos variados. Trata-se de uma proposta
que visa romper com o ensino enquadrado na leitura clássica de textos acadêmicos e aulas
expositivas e ampliar o material para leitura e escritura dos processos cotidianos, material necessário
à formação de sujeitos ativos. Para tanto é importante a seleção de textos e autores em que os temas
cumpram este papel. A seleção deverá ser realizada a cada período e em diferentes disciplinas, com
174
o objetivo de potencializar questões fundamentais que estas apresentem. Bertold Brecht, Edgard
Alan Poe, João Cabral de Melo Neto, João Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Ferreira Gulart...
Peças, poesias, contos, não importa o tamanho, tampouco a forma, o que importa é que suscite a
produção da Cena. Fazendo Cena é uma proposta para que cada um/a se coloque como sujeito da
questão. Fazendo Cena é uma proposta de mística para seduzir o neurônio do desejo. Fazendo Cena
é uma proposta de revelar saberes silenciados e contidos. Fazendo Cena é, sobretudo, uma proposta
para encantar a educação.
Considerações Finais
A cada ano, quando formamos uma nova turma, confirmamos a convicção de que temos
feito a coisa certa. O curso tem contribuído na formação de profissionais conscientes do alcance da
educação e desta consciência, têm reconhecido, como afirmou Freire, que,
Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da eqüidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outro caminho se não viver plenamente a nossa opção. Encarná-la, diminuindo assim a distância entre o que fizemos e o que fazemos. (FREIRE, 2000, p. 67).
É desta perspectiva que temos percebido nossos alunos e nossas alunas ao final do curso. No
entanto, também temos percebido profundas inquietações originadas da dificuldade em desenvolver,
com estudantes de ensino médio, reflexões propostas pelas Ciências Sociais. Inquietações que
partilham por também terem vindos dos bancos destas escolas. Sabemos todos e todas nós que
temos nos dedicado à educação, sobretudo a educação pública, o quanto há por ser feito. Sabemos
das enormes dificuldades em ensinar e aprender, em aprender e ensinar, sobretudo para os
segmentos populares, atendidos pela educação básica pública, cada vez mais sucateada e poluída
por projetos e mais projetos.
Quando a comunidade escolar será convocada a pensar sua realidade e construir
coletivamente seu projeto de educação? Quando será vista como sujeito de sua história e não
simplesmente um receptáculo de saberes encomendados a institutos distantes de sua realidade e de
suas gentes. Diante da convicção de que as mudanças necessárias não virão do alto, temos indagado:
- O que fazer?
Trabalhar incansavelmente encharcados da esperança freireana, como condimento
indispensável à experiência histórica (FREIRE, 1999, p. 81).
175
Referências Bibliográficas
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela Terra. Petrópolis. RJ: Vozes,
1999.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP,
2000.
___. Pedagogia da Autonomia. 12ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
___. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
Gadotti, Moacir. Pedagogia da Terra. São PAULO: Peirópolis, 2000.
PADILHA, Paulo Roberto. Planejamento dialógico: como construir o projeto político-pedagógico
da escola. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire, 2005.
VEIGA, Ilma Passos A. Projeto político-pedagógico da escola: uma construção possível. 21ª ed.
São Paulo: Papirus.
PARECER CNE/CP 9/2001 In http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/009.pdf, 13/11/2011, às
13h30min
PARECER CNE/CES 492/2001 In http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/492.pdf,
13/11/2011, às 14h30min
ANEXOS
Matriz Curricular vigente a partir de 2010.2
P
DISCIPLINA CARGA HORÁRIA
CÓDIGO NOME
PRES. SEMIPRES. TOTAL
GERAL SP EC
1º
0560 Introdução à Sociologia 30 50 0 80
0087 Economia 30 0 0 30 0677 Oficina de Produção de Textos 60 50 0 110 0678 Cultura e Sociedade 30 25 0 55 0679 Mercado de Trabalho 30 25 0 55
TOTAL 180 100 0 280
2º
0070 Expressão Oral e Escrita 60 0 0 60
0136 História Econômica, Política e Social Geral 60 0 0 60
0002 Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação 30 50 0 80
0137 Introdução à Filosofia 30 0 0 30
0404 Métodos e Técnicas de Estudo 30 0 0 30
TOTAL 210 100 0 310
3º
0166 Sociologia Urbana 30 50 0 80
0140 Geografia Humana e Econômica 60 0 0 60
0141 História Econômica, Política e Social do Brasil 60 0 0 60
0561 Sociologia 60 0 0 60
0446 Sociologia da Educação 30 0 0 30
0023 Psicologia da Educação 30 50 0 80
TOTAL 270 100 0 370
176
4º
0562 Estado e Políticas Públicas 30 50 0 80
0475 Economia Política 60 0 0 60
0477 Ciência Política 60 0 0 60
0478 Antropologia 60 0 0 60
0449 Informática Educativa 30 0 0 30
0234 Didática Geral 30 50 0 80
TOTAL 270 100 0 370
5º
0476 Teoria Social 60 0 0 60
0252 Aspectos Antropológicos da Educação 30 0 0 30
0473 Psicologia Social 30 50 0 80
0479 Pensamento Político Brasileiro 60 0 0 60
0563 Ética e Cidadania 30 0 0 30
0564 Didática do Ensino de Ciências Sociais 30 50 0 80
0033 Estágio Orientado I 30 0 170 200
TOTAL 270 100 170 540
6º
0565 Sociedade e Movimentos Sociais 30 0 0 30
0617 Pensamento Social Brasileiro 60 50 0 110 0598 Análise e Interpretação de Dados 30 0 0 30
0484 Antropologia Brasileira 60 0 0 60
0418 Educação Brasileira 30 50 0 80
0420 Elaboração de Projeto 30 0 0 30
0041 Estágio Orientado II 30 0 170 200
TOTAL 270 100 170 540
7º
0480 Sociologia do Conhecimento 30 0 0 30
0567 Educação e Trabalho 30 0 0 30
0171 Sociologia do Trabalho 60 0 0 60
0676 Tópicos Especiais em Teoria Social 60 0 0 60
0568 História e Cultura Afro-brasileira e indígena 30 0 0 30
0422 Estudo da Língua Brasileira de Sinais 30 0 0 30
0494 Monografia (Orientação Individual) 60 0 120 180
TOTAL 300 0 120 420
Atividades Complementares 0 0 0 200
TOTAL GERAL 1770 600 460 3030 NOMENCLATURA PRES.: Presencial SP: Semipresencial (Rede de leitura e Trabalho Monográfico) EC: Extra Classe
177
Capítulo 11 O Programa de Iniciação à Docência da UFF: experiências didático-pedagógicas no ensino de sociologia
Rosana da Câmara Teixeira
Introdução
O objetivo do presente texto é apresentar e discutir a concepção116 de formação docente que
venho desenvolvendo na disciplina Pesquisa e Prática de Ensino de Ciências Sociais, assim como,
as ações empreendidas nesta perspectiva, no âmbito do programa de Iniciação à Docência,
implementado pelo Setor de Prática Discente da Universidade Federal Fluminense (UFF).
As questões trazidas pretendem contribuir com o debate em torno da formação inicial do
professor de Sociologia, sobretudo no momento em que esta disciplina se torna componente
curricular obrigatório em todas as escolas brasileiras de nível médio117.
A estrutura curricular da UFF prevê que os alunos a partir do 30 período possam realizar as
disciplinas do eixo de formação pedagógica, sob a responsabilidade do Departamento Sociedade,
Educação e Conhecimento da Faculdade de Educação118.
O componente curricular Pesquisa e Prática de Ensino (PPE) inclui o estágio supervisionado
na escola, mas não se esgota neste, pois supõe a articulação teoria e prática como fundamento do
processo. Assim, os alunos, observam e pesquisam as práticas escolares e a dinâmica da disciplina
sociologia, a partir das orientações e discussões teórico-metodológicas realizadas nos encontros
semanais, na universidade. Além disso, são estimulados a planejar e realizar atividades didático-
pedagógicas relativas à docência, em cooperação com o professor regente.
É importante assinalar que na PPEIV os alunos devem elaborar relatório final de caráter
monográfico que revele a reflexão teórica a partir da imersão no espaço escolar ao longo dos dois
anos de estágio. Conjugando formação teórica e prática educativa pretende-se eliminar distorções
decorrentes da priorização de um dos pólos”. (CANDAU, 2003:69).
116 As idéias aqui apresentadas são fruto de um trabalho conjunto que eu (então professora substituta) e a professora Anita Handfas iniciamos em 2005, na Faculdade de Educação da UFRJ, no contexto da disciplina Didática Especial e Prática de Ensino de Ciências Sociais e que atualmente desenvolvo como professora adjunta do quadro efetivo da Faculdade de Educação da UFF. 117 Lei no 11.684, de 02 de junho de 2008 que altera o Art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos três anos do Ensino Médio. 118 Na UFF, o Curso de Ciências Sociais oferece dupla habilitação, Licenciatura e Bacharelado. O currículo aprovado em 2006, pela resolução CEP 42/06, de 01/02/2006, estabelece para o eixo de formação pedagógica um total de 800hs. O componente curricular Pesquisa e Prática de Ensino (I a IV), ministrado ao longo de dois, anos totaliza 400h.
178
Três dimensões articuladas fundamentam a proposta: a formação do professor, a realidade
escolar e o ensino da sociologia. Os licenciandos devem escolher um desses campos para
formulação do seu trabalho final, sem perder de vista as outras dimensões. O projeto desenvolvido
pretende possibilitar que os alunos formulem reflexões sobre: a) visões e práticas didático-
pedagógicas que circulam no espaço escolar; reconhecendo a escola pública como campo central na
formação; b) possibilidades e desafios da sociologia enquanto disciplina escolar; c) o papel da
sociologia na escolarização das juventudes.
A formação inicial do professor de Sociologia para a educação básica: uma abordagem
antropológica
Partindo do pressuposto de que o ofício docente não é resultado de um dom, de ato
espontâneo e tão pouco do mero aprendizado de técnicas, parece pertinente considerá-lo um
fenômeno social, melhor situado se compreendido em seus condicionantes históricos, culturais,
sócio-políticos, e nas dimensões didático-pedagógicas que conforme destaca Lana Cavalcanti
(1992:190) “se desenvolve, se reconstrói pela ação dos sujeitos”.
O argumento de que a Prática de Ensino pode ser melhor dimensionada a partir noção
antropológica de rito de passagem foi desenvolvido em outros textos (HANDFAS, TEIXEIRA,
2007; TEIXEIRA, 2010), mas gostaria de retomar aqui algumas idéias centrais que fundamentam o
projeto de formação inicial defendido.
Do ponto de vista antropológico, um ritual de passagem refere-se à passagem de um
indivíduo de um status social a outro no decorrer da sua vida. Por mais diversos que sejam,
apresentam três fases seqüenciais: separação, liminaridade, agregação. Segundo Victor Turner
(1974.p.116-117), a primeira fase implica o afastamento do indivíduo ou de um grupo de um ponto
na estrutura social, o período liminar, intermediário o sujeito ritual apresenta características
ambíguas e, por fim, a terceira fase, quando se completa a passagem, finalizando o trânsito, e sendo
realizada a reagregação às estruturas, quando são definidos direitos, obrigações e responsabilidades
em um sistema de relações sociais. Na condição liminar, interestrutural, opera-se uma
transformação. Período reflexivo em que os neófitos são encorajados a pensar sobre sua sociedade,
seu cosmos e poderes que geram e sustentam. Para Turner, entre a pessoa de antes e depois opera-se
uma transformação.
Nesta perspectiva, Ana Maria Monteiro (2002) já defendia a importância da Prática de
Ensino como momento estratégico na formação inicial que pode favorecer a construção da
179
identidade docente, oportunidade de reflexão e construção de referencial teórico/prático para
atuação futura.
Na condição transitória de aluno-professor, o licenciando, exposto a rituais e provas, tem a
oportunidade de experiências e aprendizados em um processo de socialização controlada até que se
complete o período ritual e o neófito esteja pronto para o “renascimento social”.
Ao assumir a formação inicial como um processo de iniciação supõe-se que o familiar não é
necessariamente conhecido (VELHO, 1991), pois o fato de cada aluno ter uma experiência escolar
prévia não significa que compreenda as regras que organizam àquele universo, as formas de
sociabilidade que ali se estabelecem, os projetos individuais e/ou coletivos que se desenvolvem.
Desse modo, observar a dinâmica escolar significa construir um olhar sensível à vida
escolar/sala de aula, às juventudes que ali transitam, às questões/tensões que se desenrolam, aos
aspectos didático-pedagógicos envolvidos nos processos de ensino-aprendizagem. Estar atento à
dimensão cultural, à teia de significados que ali está sendo construída e negociada cotidianamente
pode ser revelador de processos sociais mais amplos, permitindo reconstruir conceitos,
ressignificando-os a partir das experiências empíricas observadas. (TEIXEIRA, 2010).
Valendo-se do referencial das Ciências Sociais, parece sugestivo e interessante que o
licenciando pense a sua entrada na escola para realização do estágio, a partir da descrição
emblemática de Malinowski quando chega à aldeia nas ilhas Trobriand, no Pacífico Sul:
“Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista (...). Suponhamos, além disso, que você seja apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem ninguém que o possa auxiliar – pois o homem branco está temporariamente ausente ou, então, não se dispõe a perder tempo com você” (1978.p.19).
O sentido metodológico dessa estratégia é produzir um distanciamento mínimo, um
estranhamento necessário que torne possível ver, ouvir e descrever que segundo Roberto Cardoso de
Oliveira (2006) compreendem estratégias fundamentais na elaboração do conhecimento próprio das
Ciências Sociais e da Antropologia, em particular. “Se o olhar e o ouvir constituem a nossa
percepção da realidade focalizada, o escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso
pensamento, uma vez que o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar” (p.31-32).
Ainda seguindo o pensamento de Cardoso de Oliveira (op.cit., p.33) duas “idéias-valor”
marcam o fazer antropológico: “a observação participante” e a “relativização”, “atitude epistêmica
eminentemente antropológica, graças à qual o pesquisador logra escapar da ameaça do
etnocentrismo – essa forma habitual de ver o mundo que circunda o leigo, cuja maneira de olhar e
ouvir não foram disciplinados pela antropologia”.
180
Textualizar, trazer os fatos observados – vistos e ouvidos – para o plano do discurso não é
apenas uma forma de escrita, de simples exposição mas uma interpretação balizada pelas categorias
básicas da disciplina fundada nos dados construídos no campo. Para Geertz (1973), trata-se de um
tipo de esforço intelectual, risco elaborado para uma descrição densa, possível quando o olha
treinado torna-se capaz de captar “nuanças, modulações, princípios de classificação diferentes a
partir dos arranjos dos próprios atores” (MAGNANI, 2003:5).
Mais uma vez lembrando Malinowski, o licenciando deve identificar o esqueleto (as
estruturas mais formais e conscientes que organizam o universo investigado) a carne (as rotinas
cotidianas, relações em movimento, os rituais, os imponderáveis, as surpresas) e o sangue da vida
nativa (a mentalidade, o ponto de vista do Outro).
O licenciando é estimulado a registrar suas impressões em um caderno de campo durante
seu estágio na escola, cujo objetivo é, não apenas uma troca mais orientada com os colegas durante
as aulas, mas a utilização desse registro na elaboração do relatório apresentado ao final do estágio e
do qual se espera uma reflexão que demonstre que “esteve lá” (GEERTZ,1989)119.
Pede-se que observem os processos de ensino-aprendizagem, os materiais e recursos
utilizados e formas de avaliação. (TEIXEIRA, 2010). Por outro lado, em articulação com as escolas
propõe-se que gradativamente planejem e executem atividades didáticas.
A escola como espaço sócio-cultural (DAYRELL, 1996) deve ser compreendida tanto
como espaço de socialização quanto de sociabilidade; de tensão entre a homogeneização
institucional e a prática da diferença. Como uma espécie de fenômeno social total120 o universo
escolar é atravessado por dimensões políticas, econômicas, sócio-culturais, simbólicas e materiais.
Estar atento às forças que o constituem, as representações e práticas que são tecidas, em um
permanente processo de construção social, os dilemas e projetos dos sujeitos sociais que ali
transitam, é um exercício central em um projeto de formação, comprometido com o sentido
democrático da diversidade cultural e do convívio com a diferença121.
119 Emerson Giumbelli (2002:104) chama a atenção para o fato de que “ganha cada vez mais adeptos a impressão de que “aqui” e “lá” não mais correspondem a lugares distantes entre si. Seja como for, o fato é que já faz algum tempo que se aceitou repatriar a antropologia, fazê-la dizer algo diretamente sobre nós mesmos”. Importante dizer que “a antropologia não pode ser definida nem em função de determinados tipos de objetos, nem em função de uma metodologia estrita”. 120Segundo Marcel Mauss (1974), existem fenômenos sociais que manifestam, ao mesmo tempo, dimensões religiosas, jurídicas, morais, políticas e econômicas. 121 Conforme assinala Ana Lucia Valente (2003:10-11): “Se é verdade que a escola é um espaço de convivência entre crianças e adolescentes de diferentes origens, de transmissão dos conhecimentos sistematizados sobre o país e o mundo e um dos lugares onde são ensinadas as regras do espaço público, isso não significa necessariamente que estas promovam o convívio democrático com a diferença. Ao contrário, ali podem ser ensinadas as regras do espaço público marcadas historicamente pelo desrespeito à diferença: como se fosse possível que a crítica dirigida à sociedade permanecesse fora dos muros da escola; como se a desigualdade, a injustiça, os conflitos de classe e de cultura existentes na sociedade, de alguma maneira fossem neutralizados no contexto escolar que se tornaria, desse modo, uma realidade a-histórica”.
181
É preciso refletir sobre práticas e representações dos jovens, suas necessidades e
expectativas. Para Bourdieu (1983) tratar a juventude como fase da vida ou como um grupo
marcado pelos mesmos interesses, processos relacioná-los a uma idade, constituiria uma
manipulação. Parece fundamental não perder de vista as dimensões sociais e culturais do
fenômeno. Trata-se, pois, de uma categoria historicamente produzida no embate entre interesses e
disputas.
O programa de iniciação à docência da UFF: construindo possibilidades na formação do
professor de sociologia para a educação básica.
Uma das questões centrais, e fonte de dúvidas e questionamentos por parte dos licenciandos,
diz respeito à relação entre a sociologia como campo de conhecimento (área de referência) e a
disciplina escolar sociologia. Considerando que seus limites e objetivos não coincidem, faz-se
necessária “a adequação em termos de linguagem, objetos e temas”, assim como, discutir as
mediações pedagógicas necessárias para construção do conhecimento pelo aluno, conforme
assinalado nas Orientações curriculares nacionais (BRASIL, 2006).
Segundo Lopes (2000) são instâncias próprias de conhecimento, pois as disciplinas
escolares apresentam constituição epistemológica sócio-histórica específica e distinta das científicas.
Desse modo, a lógica científica é sempre uma lógica recontextualizada. Na transposição didática,
outros saberes de referência tornam-se estratégicos, além do conhecimento científico, tais como, as
práticas sociais, atividades de pesquisa, atividades culturais.
Vale ainda frisar que a noção de transposição didática, tal como formulada por Yves
Chevalard (LEITE, 2004) supõe a necessidade de algum tipo de adaptação do conhecimento quando
se trata de ensiná-lo. Tal adaptação não significa transpor de um lugar a outro, sem alterações, mas
trata das mudanças que sofre o conhecimento nesse processo, partindo da premissa de uma distância
entre a dimensão do saber ensinar e os objetos de ensino.
Na medida em que o aluno não consegue perceber alguma identificação com os sabres que
já domina, o estranhamento pode inviabilizar o aprendizado. Isso significa que, enquanto a esfera de
produção de saberes move-se pela busca de resolução de problemas colocados pela comunidade de
pesquisadores, a esfera de ensino é impulsionada pela contradição entre aquilo que é conhecido e o
novo, no caso, os objetos de ensino, em uma relação de contradição, superação e aprendizado122.
122 Bachelard (1996) ao discutirr a noção de obstáculo pedagógico, afirma que o ato de conhecer se realiza contra um conhecimento Portanto, é preciso levar em consideração que o estudantes têm conhecimentos constituídos, “obstáculos já sedimentados”, que é preciso derrubar.
182
Nesse sentido, o programa de iniciação à docência da UFF objetiva promover a formação
inicial e continuada, através dos subprojetos de ensino elaborados a partir do diálogo entre os
professores de PPE, da escola pública e os licenciandos. O setor da prática discente, além de dar
apoio pedagógico e administrativo ao estágio supervisionado, é responsável pelo programa “bolsa
licenciatura” visando fortalecer o intercâmbio entre a universidade e as escolas da rede pública de
ensino localizadas, preferencialmente na cidade de Niterói.
Os subprojetos de ensino são atividades pedagógicas produzidas pelos licenciandos sob a
orientação do professor de PPE e do professor regente, podendo ser realizadas oficinas, produção
textual, de jornal escolar, cineclube, visitas pedagógico-culturais, entre outros, configurando-se
como oportunidades de aprendizagem no magistério. O programa atende aos alunos que estão
cursando a disciplina PPE, e, portanto, nos últimos períodos da graduação. Os licenciandos-bolsistas
devem cumprir a carga horária de 12 horas semanais na realização das atividades previstas e
apresentam seus trabalhos na Semana de Iniciação à Docência123 que acontece, em geral, ao final de
cada semestre e contam com a participação dos professores da educação básica nas bancas
avaliadoras.
Iniciação à docência no ensino de sociologia: algumas experiências
Desde 2010, venho coordenando o projeto de ensino “A Sociologia vai à escola: programas,
metodologias, concepções de professores e alunos” cujo objetivo é possibilitar, que o licenciando
desenvolva ações, reflexões e avaliações que subsidiem sua experiência docente futura;
considerando os projetos de ensino e a pesquisa de campo eixos articuladores. Neste período foram
realizadas cinco experiências, envolvendo 05 alunos e dois professores regentes, ex-alunas da UFF,
Lívia Bekendorf e Rachel Romano que tem participado tanto na supervisão do estágio
supervisionado, recebendo e orientando os estudantes, como do programa de iniciação à docência.
Os subprojetos foram formulados de acordo com interesses temáticos dos licenciandos, e da sua
observação do espaço escolar, tendo sido discutidos com as professoras da escola. Passo, então, ao
breve relato das ações.
O subprojeto “Violência nas escolas, uma abordagem a partir da falas dos educandos do
Colégio Estadual Baltazar Bernardino”; foi realizado pelos licenciandos Lucas Bottino do Amaral e
Pedro Henrique Ferko, com a supervisão da Profa. Lívia Bekendorf, no primeiro semestre de 2010.
Foram desenvolvidas as seguintes ações: apresentação do projeto para as turmas do 1º ano do ensino
123 O evento é aberto a todos os alunos das práticas de ensino que estejam desenvolvendo atividades e desejem partilhar suas experiências, sendo obrigatório para aqueles que estão no programa de inicação à docência.
183
médio com o intuito de abrir um espaço livre para as falas dos educandos, buscando conhecer suas
percepções em relação a situações do seu cotidiano que identificavam como violentas. Em seguida,
foi solicitado que escrevessem individualmente a respeito, para a realização de debate com o
restante da turma. A segunda dinâmica baseou-se no rap “Periferia é periferia” do grupo Racionais
Mc´s, que exemplifica diversas formas de violência que um indivíduo pode sofrer ou praticar, mas
enfatiza, sobretudo, a necessidade de superação dos desafios que recaem sobre as classes populares.
A partir da música, foram tratados vários temas (violência e pobreza, violência e drogas, violência e
relações de trabalho, violência e política). Na terceira etapa foi exibido o filme “Pro dia nascer feliz”
(2007) de João Jardim sendo abordada a temática violência e a instituição escolar com o propósito
de discutir caminhos e possibilidades de mudança.
O subprojeto “Introduzindo a prática sociológica na escola” foi desenvolvido pela
licencianda Ana Carolina Freire Accorsi Miranda na Escola Estadual Baltazar Bernardino, sob a
supervisão da Profa. Lívia Bekendorf, e buscou contribuir para uma maior aceitação da Sociologia
como disciplina, familiarizando os alunos com as metodologias de pesquisa desenvolvidas pelas
Ciências Sociais para realizar seus estudos e produzir conhecimento. O projeto foi desenvolvido em
três etapas, no decorrer de três semestres. Na primeira, partindo do tema Educação foram colocadas
em prática as seguintes estratégias: uma redação “Meu olhar sobre minha escola”, um levantamento
bibliográfico, a aplicação de um questionário sócio-cultural e a exibição do filme “Pro dia nascer
feliz”, (João Jardim Brasil, 2007). Na segunda fase, os alunos foram introduzidos no universo da
pesquisa quantitativa, participando da criação e aplicação de um questionário, na escola.
Organizados em grupo, elaboraram uma pergunta e realizaram pesquisa na sala de informática, e em
casa, sobre o tema relacionado. Perguntas/temas dos trabalhos: 1- Você trabalha? (Juventude e
trabalho), 2-Você tem filhos (Gravidez na adolescência), 3-Seus pais migraram de outra cidade para
Niterói? (Êxodo rural/conflitos no campo), 4-Você pretende cursar uma Universidade? (Sistema de
Cotas ); 5-Você costuma ler livros? (Cultura de massa/ mídia); 6-Você tem acesso a internet em
casa? (Inclusão digital/tecnologia); 7-Você já usou drogas? (Tráfico de drogas). A partir dos
resultados, cada grupo ficou responsável por elaborar um cartaz contendo parte escrita e um gráfico.
Finalmente, na última fase ocorreu o desenvolvimento de pesquisa qualitativa sobre o tema “Minha
árvore genealógica”, quando os alunos foram orientados a levantarem informações sobre a história
da família.
O subprojeto “A imagem cinematográfica como mediadora entre os conceitos sociológicos
e o senso comum” consistiu na criação de uma oficina que utilizou a imagem cinematográfica como
recurso didático-pedagógico e foi desenvolvido no Colégio Estadual Raul Vidal com a supervisão
da Profa. Rachel Romano, em uma turma de EJA. A dinâmica partiu da uma problematização
184
através de perguntas que visavam conhecer as visões dos alunos sobre os temas a serem
posteriormente objeto de discussão, permitindo relacionar representações existentes e os
conhecimentos que seriam trabalhados após a exibição do filme. Foram escolhidos “A onda”
(Dennis Gansel, Alemanha, 2008) para discutir Estado e formas de governo e “Ilha das Flores”
(Jorge Furtado, Brasil, 1989) para tratar os conceitos de fetichismo, alienação, e mais valia,
situando a importância do pensamento de Karl Marx.
O subprojeto “A prática da educação ambiental e o ensino de sociologia”, da aluna Regina
Helena Pacheco Soares buscou trazer para o campo da Sociologia e de sua prática de ensino, as
discussões sobre o meio ambiente. A estratégia consistiu em estabelecer relações entre a sociedade e
a natureza através dos temas, conceitos e teorias oriundos da sociologia Para desenvolver sua
proposta de trabalho, sob a supervisão da Profa. Lívia Bekendorf, do Colégio Baltazar Bernardino, a
aluna realizou, em primeiro lugar, o levantamento do perfil ambiental da escola. Depois, elaborou
uma atividade em sala de aula, a partir do documentário “Ilha das Flores” (Jorge Furtado, Brasil,
1989) tratando de aspectos diretamente ligados aos ideais de consumo e descarte da produção
capitalista. Em seguida, elaborou um conjunto de perguntas com o objetivo de conhecer os pontos
de vistas dos alunos, e trabalhar nessa direção. Na segunda etapa, com o objetivo de sensibilizar e
familiarizar os alunos com a problemática do meio ambiente foi selecionado um tema chave: a
questão da água para analisar diferentes formas de utilização. Foram apresentadas, então, três
maneiras distintas de utilização desse recurso: um grupo de agricultores familiares que precisa da
água para sua reprodução socioeconômica; uma fábrica de tecidos cuja água é fundamental para seu
funcionamento; e, por fim, um pequeno núcleo urbano que utiliza a água apenas para fins
domésticos, porém, paga pelo serviço. Os alunos responderam a duas questões: como fazer para não
poluir a água? Como agir para diminuir o consumo de água? A partir das respostas foram retomados
os conceitos e a problemática da educação ambiental.
É importante assinalar que os projetos desenvolvidos foram objeto de análise dos trabalhos
de conclusão da disciplina Pesquisa e Prática de Ensino IV.
Considerações finais
A intenção principal neste texto foi apresentar os projetos de iniciação à docência dos
licenciandos articulando-os à concepção sobre a formação inicial do professor de Ciências Sociais
que vem sendo desenvolvida, destacando a Prática de Ensino como um rito de passagem e as
possibilidades teórico-metodológicas abertas por esta estratégia.
185
Tal concepção está alicerçada no projeto antropológico de conhecimento das diferenças
através da construção de um certo “olhar, ouvir e descrever” enquanto estratégias metodológicas
que podem propiciar que a Prática de Ensino seja vivenciada como um momento estratégico na
construção da identidade docente. Todavia, é importante lembrar que o processo identitário não se
reduz à reprodução de modelos, mas “implica um vir a ser” que se produz no contexto de múltiplas
relações (CARDOSO, 2003, p.14).
Como se procurou evidenciar, tanto o trabalho desenvolvido na PPE, como no âmbito do
programa de iniciação à docência visa possibilitar aos licenciandos uma maior compreensão a
respeito das visões e práticas que circulam no espaço escolar, dos atores sociais ali presentes, assim
como sobre os limites e possibilidades da sociologia enquanto disciplina escolar. Por outro lado,
incentiva os alunos na proposição de ações, criando condições para que sejam implementadas, em
cooperação com os professores da Educação Básica. A prática pedagógica possibilita a aquisição de
saberes no cotidiano, construindo conhecimento profissional, a partir da interpretação das situações
que enfrentam.
Nessa perspectiva, se a identidade docente, se constitui em função de uma trajetória fruto de
escolhas, a definição desse projeto profissional expressa interesses, objetivos e anseios que se
desenham a partir de um certo campo de possibilidades124. “A identidade, por conseguinte, depende
dessa relação do projeto do seu sujeito formulado com a sociedade, em permanente processo
interativo” (VELHO, 1994, pág. 104). Sendo o projeto dinâmico, é permanentemente reelaborado,
provocando repercussões sobre a identidade.
Para François Dubet (1997), uma das dimensões centrais no enfrentamento do cenário de
desencantamento envolvendo a escola, diz respeito a uma formação de professores mais rigorosa e
menos ideológica. Considerando que não há pedagogia miraculosa, capaz de mobilizar os alunos,
destaca a importância do estágio, de modo que os futuros professores sejam orientados, apoiados em
suas iniciativas. Deste modo, uma sensível aproximação com o universo escolar que promova o
efetivo aprendizado de práticas, pode permitir aos sujeitos, findo o processo ritual de iniciação,
vislumbrar possibilidades futuras de atuação, socialmente renascidos como professores.
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124 “As trajetórias dos indivíduos ganham consistência a partir do delineamento mais ou menos elaborado de projetos com objetivos específicos. A viabilidade de suas realizações vai depender do jogo e interação com outros projetos individuais ou coletivos, da natureza e do campo de possibilidades”. (VELHO, op.cit., p.47).
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188
Capítulo 12 Juventude e tempo presente: a contribuição da Sociologia como disciplina escolar
Fatima Ivone de Oliveira Ferreira INTRODUÇÃO
A fragmentação do tempo presente, o desprezo pelo passado e também pelo futuro,
percebidos na experiência da vida cotidiana e potencializado pela midiatização e interconectividade
contemporâneas tem afetado todas as gerações, mas particularmente os jovens que cada vez mais
são influenciados pela cultura da mídia, filmes, televisão e jogos de computador. Canclini (2009)
observa em estudos sobre consumo, certa intolerância dos jovens com filmes mais intimistas e
reflexivos e declarada preferência por filmes de ação. ”É possível interpretar que, diante das
dificuldades de saber o que fazer com o passado e com o futuro, as culturas jovens consagram o
presente, consagram-se ao instante” (idem, p.218).
Neste contexto, apresentar conhecimentos sociológicos para jovens implica em reconhecer a
busca desses mesmos jovens por outros referenciais na construção de sua identidade para além da
família, como parte de seu processo de individualização perante o mundo familiar e social. De
acordo com Steinberg e Kincheloe:
O conhecimento da mídia vem a ser não um raro acréscimo a um currículo tradicional, mas uma prática básica necessária para negociar a identidade do indivíduo, valores, e estar numa hiperrealidade saturada pelo poder (Steinberg e Kincheloe, 2001, p.22).
Dessa maneira, a Sociologia, enquanto disciplina escolar cumpre o papel de estimular uma
atitude reflexiva no jovem, fazendo com que ele comece a perceber que suas escolhas diárias não
são necessariamente tomadas de forma livre e racional. Na realidade, elas se inserem e são
produzidas num universo condicionante marcado por estruturas de poder.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em seu artigo 36, parágrafo1º, inciso III,
relaciona “conhecimentos de Sociologia” e “exercício da cidadania”. O Colégio Pedro II, instituição
federal de ensino vinculada à Secretaria de Educação Básica do MEC, mantém desde 1994 através
de seu Departamento de Sociologia, disciplinas que elegeram a noção de cidadania plena como foco
de discussão com o alunado, utilizando-se do referencial teórico das Ciências Sociais. Atualmente,
no ensino fundamental, a disciplina Ciências Sociais consta da composição curricular dos 7º, 8º e 9º
anos, além da Sociologia no ensino médio. A idéia de formar um cidadão consciente de seu papel na
189
construção da realidade social também aparece de forma recorrente nas falas dos alunos. Por
exemplo, perguntamos sobre a importância da Sociologia e tivemos a seguinte resposta:
Faz você entender Política, o clientelismo, o patrimonialismo. (Gabriel, 3ª série do Ensino Médio).
A função dominante do Ensino Médio juntamente com o Ensino Fundamental e com a
Educação Infantil, é a formação geral do cidadão assegurando-lhe a formação humana indispensável
para o exercício da cidadania. Para os jovens alunos entrevistados, a leitura do mundo parece estar
sendo facilitada pelos conceitos aprendidos em aula. Novas perspectivas de ação aparecem a partir
da percepção dos direitos sociais e políticos. Há, por exemplo, o aluno que começa a participar do
grêmio estudantil percebendo a possibilidade de intervenção no mundo, pela tentativa de
transformar sua realidade próxima. Autonomia não significa, no atual contexto histórico-cultural,
independência financeira nem ingresso no mundo do trabalho, mas uma sensibilidade atenta à
dinâmica da sociedade.
A noção de cidadania aparece tanto no sentido estrito do ato de votar nas eleições,
quanto num sentido mais amplo de participação crítica na realidade social. No entanto, a abordagem
deste conceito enquanto demonstração de civilidade nas relações de convivência, por vezes aparece
nas falas dos estudantes e pode estar relacionada à percepção de uma tendência controladora de
comportamentos antissociais e à ideia do jovem plenamente integrado na sociedade, conformado e
funcional a ela.
A escola básica é um território privilegiado de sociabilidade juvenil, expansão social e
formação humana, conciliando a oportunidade do sujeito jovem estar entre iguais e a transmissão
sistemática de parte da cultura humana acumulada. Segundo Spósito:
Na ausência de experiências mediadoras entre o mundo da casa e o universo impessoal da esfera pública, a escola passa a ser o único território de interações contínuas para adolescentes e jovens, ainda sob certa proteção do mundo adulto, mesmo que este último apareça distanciado e, também, em crise. (SPÓSITO, 2004)
Os estudantes criam uma cultura juvenil, relativamente autônoma no interior da escola e no
exercício cotidiano das tarefas escolares. As percepções acerca das práticas escolares em Sociologia
recriam as suas representações sobre a sociedade.
Acho que a Sociologia me ajuda a entender melhor as questões sociais, como o racismo e o preconceito. Ajuda a ser mais cidadão, a ter uma cidadania mais efetiva (Lucas, 1º ano do Ensino médio).
É certo que no âmbito da instituição escolar, as práticas docentes e discentes estão
enquadradas numa moldura onde os conteúdos formais ministrados pelas disciplinas são
priorizados. A preparação para a continuação dos estudos, concursos externos e a existência de um
190
sistema de avaliação baseado principalmente em provas escritas compõem um cenário exigente de
competência acadêmica. A Sociologia faz parte deste cenário, mas parece ocupar um lugar
identificado pelos alunos como ideal para exercerem uma maior liberdade de debaterem temas que
tratem de aspectos da vida em geral.
De fato, existe uma demanda por discussões mais próximas ao mundo concreto dos jovens,
ao seu cotidiano. Essas temáticas são altamente mobilizadoras do jovem aluno ao considerar que
tem melhores condições de contribuir ativamente nessas aulas. A missão de formar os alunos
enquanto cidadãos, e a necessidade de ampliar as ações pedagógicas para além dos aspectos de
cada disciplina mobiliza todos os professores que atuam na educação básica. Para o professor de
Sociologia, que precisa mediar debates sobre diferentes recortes da realidade social, procurando
superar a perspectiva do senso comum, o desafio parece ser ainda maior. Além da competência
intelectual, este professor precisa da perspectiva de alteridade para sensibilizar-se e interagir com a
cultura juvenil.
Algumas categorias próprias da linguagem sociológica estão incorporadas ao discurso dos
jovens entrevistados e esta apropriação pode ser mais uma contribuição da Sociologia para a
formação dos jovens na Escola Básica, como sugere o documento de Orientações Curriculares para
o Ensino Médio (2006). Segundo este mesmo documento, o pensamento sociológico cumpre um
papel central, apresentando a desnaturalização das explicações dos fenômenos sociais. Outra
característica da perspectiva sociológica é provocar o processo de estranhamento na medida em que
transforma o familiar em objeto de estudo e conhecimento.
O que acontece na Sociologia é que você passa do comum para o estranhamento. Você meio que analisa tudo, começa a comparar. Você vai entendendo mais o que acontece com você e aprende a entender o pensamento de outra pessoa. (Mariana, 3ª série do Ensino Médio) Tenho afinidade com as Ciências Humanas. Dá outras visões de mundo. É um conhecimento importante e todos deveriam ser obrigados a aprender. (Luiz Felipe, 3ª série do Ensino Médio) Sociologia mexe com a questão do trabalho. A gente aprende a ver como os trabalhadores se comportaram antigamente e se comportam agora. Como agir em relação ao trabalho. Pensamos sobre a moda, as questões empresariais. O etnocentrismo. Você conhece tudo sobre outras etnias, sem julgar. (Cícero, 3ª série do Ensino Médio) A Sociologia faz refletir um pouquinho na sociedade em que vivemos. Pensar no preconceito, no racismo, nos vários tipos de preconceito. (Jonatan, 3ª série do Ensino Médio)
PENSAR A VIDA E A ESCOLA: UM EXERCÍCIO SOCIOLÓGICO
191
Os depoimentos dos estudantes demonstram que a Sociologia é compreendida como uma
disciplina “pensante” que provoca a curiosidade e revela uma realidade quase sempre encoberta pela
naturalização das relações sociais. A organização do programa da disciplina no Colégio Pedro II
propõe uma trajetória de conhecimento que parte do aluno enquanto indivíduo e se amplia até a
esfera pública, buscando estabelecer um nexo consistente entre conteúdos e formas mais
democráticas de convivência humana.
Nesse ponto é preciso estabelecer uma relação entre a identidade e função do ensino médio e
a inserção da Sociologia nos termos da Lei 11684/2008. O Ensino Médio tem a missão de
consolidar os conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental, preparar para o exercício pleno da
cidadania, para o trabalho e para o prosseguimento dos estudos. A Sociologia enquanto disciplina
escolar obrigatória nos três anos de ensino médio precisa construir um corpo de idéias sobre seu
status escolar e consolidar seu espaço social para a formação de cidadãos críticos e reflexivos.
Minha área é Exatas. Mas eu acho interessante estudar o que leva as pessoas a tomarem determinadas atitudes em seus comportamentos. A Sociologia me fez refletir sobre a escola. (Ary, 3ª série do Ensino Médio)
A descoberta deste espaço curricular marcado pelo debate qualificado leva os estudantes a
explorarem a sua realidade próxima com olhos mais críticos. Então a escola, seu funcionamento,
gestão e os atores sociais envolvidos podem converter-se em objeto de observação sociológica. É aí
então que os conflitos que definem a presença ou ausência da Sociologia nos currículos escolares
aparecem mais claramente.
Mais do que um mero enriquecimento do currículo, a Sociologia converte-se em uma postura
política da comunidade escolar, num permanente repensar de seu fazer pedagógico. (OCEM, 2006)
Quando estudamos reestruturação produtiva, pensamos na organização da escola e então sugerimos ao professor entrevistar os funcionários terceirizados da limpeza. Foi bem diferente! (Carolina, 3ª série do ensino Médio)
Para a equipe de professores de Ciências Sociais e Sociologia do Colégio Pedro II o
caminho sempre foi o estabelecimento da relação dialógica com os jovens estudantes, o que implica
em considerar certa compreensão da juventude enquanto categoria histórico-cultural. Por esta
perspectiva, são apropriadas as revisões críticas já consagradas às concepções de juventude como
mero recorte biológico ou demográfico (SPÓSITO, 2004).
Mesmo considerando a perda do monopólio cultural da escola sobre os jovens (SARLO,
2006), a Sociologia, enquanto disciplina escolar, parece estar cumprindo o papel de “dar voz ao
aluno” no sentido de deixar marcado o espaço de sua identidade jovem. Se a escola pretende
preparar para o trabalho e para o exercício da cidadania de forma plena, é necessário compreender
192
as modificações do mundo do trabalho na vida contemporânea, analisar o aumento do trabalho
considerado informal e analisar as competências exigidas para um mercado mais flexível. O
conhecimento sociológico, traduzido didaticamente para o saber escolar pode levar aos jovens um
quadro teórico capaz de torná-lo um cidadão crítico, reflexivo e atuante.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Colégio Pedro II pertence à rede pública federal de ensino, com um bom nível de
resultados, segundo avaliações oficiais. É reconhecidamente uma experiência exitosa na educação
brasileira. Seus estudantes compartilham de certo orgulho de pertencimento à instituição e
diferenciam-se dos outros alunos de escolas públicas do Rio de Janeiro. Os elementos dessa
distinção podem ser: o disputado concurso de ingresso; o uniforme que permanece sem
modificações há bastante tempo, consagrando certo “orgulho” de pertencimento ao grupo de alunos,
o qual se estende ao longo do tempo, mesmo depois de sair do colégio e passar à universidade ou ao
mundo do trabalho; os 174 anos da instituição, preservados em pesquisas, histórias, memória oral e
escrita, nos seus prédios e nos rituais renovados semanalmente nas diversas unidades, como por
exemplo: o canto do hino do colégio, seguido do grito de tabuada. Há que se destacar, também,
além da existência de uma atuante associação de ex-alunos, a manutenção da organização estudantil,
alicerçada em grêmios presentes nas diversas unidades escolares e que buscam se articular por meio
de ações diversas (jogos, torneios e campeonatos, mobilizações reivindicatórias e perfis nas redes
sociais online).
O discurso dos estudantes do Colégio Pedro II revela que o contato com as “disciplinas
pensantes” ao lado dos outros tradicionais conhecimentos que compõem o currículo da escola
média, produziu uma formação humana mais solidária e comprometida com a sociedade mais
ampla.
A implementação da lei 11.684, que determina a obrigatoriedade do ensino da Sociologia e
da Filosofia em todas as séries da escola média brasileira, impõe que os gestores dos sistemas
escolares assumam um compromisso com a formação docente e com a garantia do estabelecimento
de cargas horárias compatíveis aos padrões mínimos de eficiência e qualidade. Será preciso também
que os professores das outras áreas de conhecimento reconheçam a Sociologia enquanto valor, para
que sua inserção na composição curricular não se transforme em disputa política.
A ideia de que os conhecimentos sociológicos servem para disciplinar os jovens,
apresentando a dimensão da normatização social, deve ser superada. Antes, deve-se criar um
193
diálogo com o jovem aluno procurando despertar o interesse pela observação e reflexão do mundo e
suas práticas cotidianas.
O valor da Sociologia enquanto disciplina escolar está em provocar no jovem o
deslocamento do mundo individual e privado para o mundo social e público. Traduz-se em um
espaço de facilitação do esforço intelectual em experimentar ir além da própria visão de mundo
considerando a tolerância e a diversidade cultural. A Sociologia na escola é capaz de levar o jovem a
ultrapassar a concepção utilitarista da educação e pensar na vida, no coletivo para imaginar novos
caminhos e alternativas: este é o sentido da “disciplina pensante” do Ensino Médio.
Referências Bibliográficas
ABRAMO, HelenaW. Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil. Revista
Brasileira de Educação. São Paulo, n5/6,25-36,1998.
CANCLINI, Néstor García. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. Rio
de Janeiro. Editora UFRJ, 2009.
GROPPO, Luis Antônio. Juventude- ensaios sobre Sociologia e História das juventudes modernas.
Rio de Janeiro: Difel, 2000.
ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA O ENSINO MÈDIO: volume3, Ciências Humanas e
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SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna – intelectuais, arte e videocultura na Argentina. Rio
de Janeiro: Editora UFRJ,2006.
SPÓSITO, Marília Pontes. (Des)encontros entre jovens e a escola. Ensino Médio: ciência, cultura e
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e a rua: novos conflitos e a ação coletiva na cidade. Tempo Social, v.5,n.1 e 2, p. 161-178, 1993.
STEINBERG e KINCHELOE(organizadores) Cultura Infantil: a construção corporativa da infância
.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
194
Capítulo 13 O debate de gênero na escola: uma proposta para transformação.
Simone Bastos
Apresentação:
Iniciei meus trabalhos como professora de Sociologia no ensino médio em 2003, no colégio
de aplicação do ISERJ (Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro). Já lecionava Geografia
no município do RJ desde 1999. Embora minha formação tenha sido em Ciências Sociais fiz parte
de uma das últimas turmas que permitiam ao licenciado em Ciências Sociais ministrar aulas de
Geografia e História no segundo segmento do Ensino Fundamental. Este detalhe é importante até
hoje para a prática pedagógica que adotei e aprimoro no ensino de Sociologia.
Tal prática reproduz a compreensão de que não há como ensinar Sociologia sem implicar
outras Ciências Sociais. O desafio não é simplesmente encontrar o conteúdo e o método para a
disciplina. O desafio é construir um novo ethos no ambiente escolar que permita questionar a
separação inusitada das disciplinas da área de humanas, como se fosse possível pensar o mundo de
forma compartimentada. A proposta apresentada neste artigo está baseada na tarefa de romper as
fronteiras, destruir os falsos muros, mobilizar o pensamento para construir uma prática dotada de
sentido.
Para tanto, o artigo apresenta uma experiência baseada na metodologia da utilização de um
tema propulsor para o debate permitindo o espaço para que a teoria sociológica disponibilize
instrumentos para mudança efetiva na compreensão de mundo dos envolvidos na prática educativa.
O tema escolhido é Gênero por se tratar de um assunto considerado atraente para os estudantes,
tanto por ser uma problemática mundial, como por se tratar efetivamente de cada um de nós; por
outro lado, é um assunto que venho estudando há quase quinze anos, o que possibilita qualidade na
esfera da prática educativa.
Ensinando Sociologia a partir do debate de Gênero.
Como ensinar Sociologia? O que interessa ao estudante? O que o faz pensar? Quais
caminhos serão mais eficazes para estimular o estudante a conhecer a Sociologia? Cotidianamente
nos fazemos estas perguntas e vivemos o dilema entre os limites dos recortes conceituais e o
195
trabalho específico com o empírico, ou seja, o chamado trabalho a partir das temáticas. A proposta
de utilizar o debate de Gênero como eixo central para as aulas de Sociologia pretende abranger
equilibradamente as teorias sociológicas a partir de um tema específico. Haja vista o pressuposto ao
qual inicio o método: estimular um olhar crítico acerca do mundo e da vida do próprio indivíduo
neste mundo, criando uma conexão direta entre esses dois pólos aparentemente desconexos.
Para cumprir tais objetivos, identificamos dois temas nas Ciências Sociais que quando
tratados no espaço escolar permitem o debate de teorias sociológicas e a proposição de uma prática
para a transformação efetiva das atitudes através da compreensão do mundo e do indivíduo como
parte ativa deste mundo. Uma é a questão étnica, especificamente relativa ao tema sobre o negro. O
outro é a questão de gênero. Em ambos os temas é possível observar a curiosidade, o interesse e a
disposição dos estudantes em debater e entender o que se passa no mundo. São temas que
identificam o papel de cada: do homem, da mulher, da negra, do negro, da trabalhadora, do
trabalhador, enfim, quem sou e onde estou localizado(a) politicamente nesta realidade tão vasta.
Comumente, as temáticas vêm sendo trabalhadas deslocadas da teoria sociológica e outras
vezes como meios de se debater a cidadania. A presente proposta de trabalho não está alinhada com
nenhuma das duas formas. Primeiramente porque a teoria sociológica não pode ser descartada, pois
será esta diferenciação entre os autores, especialmente os clássicos, que permitirá ao estudante
compreender a diversidade de formas de enxergar o mundo e a importância da metodologia
científica para a construção dos conceitos; segundo, porque à Sociologia cabe o papel de
“desnaturalizar” o que parece natural. Sendo assim, o próprio significado da palavra cidadania é
tema de debate. Tratá-lo como um conceito comum e definitivo seria mantê-lo no âmbito do senso-
comum.
Portanto, utilizar uma das duas temáticas acima como um ponto de referência para pensar o
mundo em que vivemos prescinde de referências teóricas e exemplos factuais. Para o debate de
Gênero, o qual nos propomos neste trabalho, partimos de uma referência teórica que é o
Materialismo Histórico. Mas não deixamos de lado o pensamento existencialista de Beauvoir sobre
a condição da mulher e nem mesmo dos estudos antropológicos sobre a divisão sexual do trabalho
em agrupamentos societais localizados em outros espaços e tempos que não o da cultura ocidental
moderna. E para ajudar na compreensão da temática no campo da subjetividade utilizamos a teoria
de Bourdieu sobre a Violência Simbólica como um meio de manter e alargar a opressão.
O Materialismo Histórico como referência teórica para o debate sobre Gênero.
196
O elemento essencial do materialismo histórico é a dialética. A dialética será determinante
nas teorias historicistas exatamente porque impõe a ideia de contradição. Tanto uma contradição de
contrários como uma contradição de contraditórios. Esse pressuposto permite a compreensão do
mundo através do movimento e das causas que o permitem e o possibilitam. Nós, seres humanos,
fazemos parte desta realidade. Mas, não da mesma forma, no mesmo espaço, com as mesmas
condições sociais ou econômicas. MARX retrata o movimento e a contradição das sociedades
através da afirmativa “A história de todas as sociedades que existiram até hoje tem sido a história
das lutas de classes.” 125
Assim, ver o mundo a partir do materialismo histórico possibilita compreendê-lo como
resultado de um processo histórico onde os seres humanos não compõem um grupamento único e,
portanto, não possuem as mesmas responsabilidades e nem mesmo as mesmas condições de vida e
de atuação. Contudo, têm a possibilidade de transformar o mundo através da síntese entre idéia e
realidade material, tendo a ideia uma base material e a matéria a prévia-ideação que permite a
reprodução social da vida humana.126 Portanto, o método do materialismo histórico implica o fator
produção e reprodução da vida imediata como elementos que fazem a engrenagem da história
funcionar.
E a produção e a reprodução da vida se estabelece através do trabalho. A relação primeira
do ser humano se concretiza através da sua relação com a natureza “(...) um processo em que o
homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele
mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as
forças naturais pertencentes a sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de
apropriar-se da matéria natural numa forma útil para a própria vida. Ao atuar, por meio desse
movimento, sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua
própria natureza (...)”.127 Desse modo, MARX nos ajuda a perceber o trabalho como um meio de
modificação da natureza, enquanto fonte de recursos, e da nossa própria natureza enquanto seres
sociais.
Você deve estar se perguntando onde está a questão de gênero neste debate. Pois está num
ponto crucial: a divisão sexual do trabalho. Se todos os seres humanos precisam transformar a
natureza para a sua sobrevivência, desde quando e por que se começou a dividir tarefas entre
homens e mulheres? E por que tal divisão destinou o espaço público para o homem e o espaço
privado para a mulher? Para buscar explicações, em primeiro lugar, a referência do materialismo
125 MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. 9ed. SP: Global, 2000, pp.75. 126 LESSA, Sergio, TONET, Ivo. Introdução a filosofia de Marx. SP: Expressão Popular, 2008: 35-45. 127 MARX,K. O Capital: Crítica a economia política. ,1988: 142 In GUTERRES, Simone B. Classe social e gênero: elementos para uma controvérsia. Tese de Mestrado, Unicamp, 2001: 23.
197
como método de análise nos permite desnaturalizar o que parece natural. Por exemplo, muitos
apontariam a questão da força física como elemento determinante na divisão de tarefas, enquanto
outros culpariam os instintos. As duas visões estão impregnadas de ideologia. E só tem um jeito de
provar isso: através da pesquisa histórica.
ENGELS é um referencial importante na perspectiva marxista para iniciar a pesquisa
histórica. Segundo o autor, a origem da opressão à mulher está associada aos sistemas de
parentescos e as formas de família, que procuram organizar a sociedade segundo a lógica da
apropriação do excedente. O interessante é que para ENGELS chegar até a família patriarcal,
realizou um estudo das teorias de Lewis MORGAN sobre as sociedades primitivas. Esse fato nos
aproxima da Antropologia e concede um panorama diferenciado da perspectiva econômica que
estávamos tratando com os estudos de MARX.
Os estágios pré-históricos de cultura apontados nos escritos de ENGELS acerca da teoria de
MORGAN permitem aos estudantes o registro de outras perspectivas societais, além da que
vivemos. Até chegarmos ao ponto crucial abordado nos estudos sobre a família Sindiásmica: a
monogamia como uma norma prescrita. A família monogâmica como uma construção histórica e
não natural. A monogamia sacralizou a opressão à mulher através do controle do seu corpo,
possibilitando ao homem o reconhecimento da filiação paterna. Além de se constituir como o cerne
da família patriarcal, espaço objetivo e subjetivo da escravização da mulher. Segundo ENGELS, “o
primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do
antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; a primeira opressão de classes, com a
opressão do sexo feminino pelo masculino”.128
MARX e ENGELS, em outros escritos, teriam considerado como primeira divisão do
trabalho existente na história da humanidade a divisão entre o homem e a mulher para a procriação
dos filhos. A limitação de ENGELS está no fato de não explicar a divisão sexual do trabalho na sua
integridade, ou seja, o autor não explica o sentido do trabalho doméstico para a reprodução da força
de trabalho produtiva. No entanto, ENGELS ao relacionar o surgimento da família patriarcal com a
produção de excedente e a constituição da propriedade privada, nos fornece a referência necessária
para estabelecer conexão entre a opressão contra a mulher e o processo de desenvolvimento do
Capitalismo.
Neste processo de desenvolvimento, o Capitalismo utiliza a divisão sexual do trabalho,
marcada pelo trabalho produtivo destinado ao homem e o trabalho reprodutivo destinado à mulher,
para estabelecer a reprodução da força de trabalho. É no espaço doméstico que a reprodução ocorre,
128 ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 14ª ed. RJ: Bertrand do Brasil, 1997:70.
198
onde a mulher realiza o trabalho de reprodução gratuitamente para patrões e para o Estado, a partir
de uma dominação ideológica construída e mantida no Patriarcado. Dessa forma, o Capital
consegue produzir e elevar os seus lucros, mesmo após a inserção da mulher no mercado de
trabalho. O que para MARX e ENGELS possibilitaria a libertação da mulher, sua inserção na
produção social, o Capital com sua característica camaleônica transformou em geração de lucro.
Assim, a dupla jornada de trabalho será vista por autoras marxistas e não marxistas como
uma problemática central no debate de gênero. O que de fato significou a libertação parcial para as
mulheres, a sua inserção na produção social, a ocupação de um espaço no âmbito público, não a
retirou das tarefas do espaço privado. O trabalho doméstico ainda é destinado “naturalmente” às
mulheres. Uma questão permanece para o debate: a relação da dupla jornada com o modelo de
família patriarcal que se mantém mais ideologicamente do que efetivamente numa prática,
considerando que uma proporção cada vez maior de famílias são sustentadas financeiramente por
mulheres, não só no Brasil como em muitos lugares do mundo. De modo que a opressão,
independente de encontrarmos os motivos que a originaram, na sociedade capitalista vigente
cumpre um papel, ao que tudo indica, essencial para a acumulação de riquezas.
Por outro lado, muitas antropólogas criticaram o marxismo por estabelecer a origem da
opressão como fruto da propriedade privada, já que outras sociedades comunais apresentaram um
histórico de divisão sexual do trabalho similar à que ocorre nas sociedades capitalistas. É
importante que essa crítica seja aberta para os estudantes, afinal buscamos estimular as perguntas.
Mesmo porque o debate apontado pela Antropologia nos permite pesquisar outras realidades,
trazendo para dentro da sala-de-aula a diferença como parte do mundo. Somente aceitando o
diferente é que poderemos pensar o mundo e reconhecer os preconceitos que praticamos
diariamente. Para estimular este debate, iniciamos com os estudos da antropóloga Margaret MEAD
sobre sociedades antigas da Nova Guiné .
MEAD demonstra a importância da cultura para definir os papéis de cada indivíduo ou
grupamento de indivíduos. Neste ponto podemos abordar o tema cultura. O que é cultura? Quais
suas características? Como a cultura se comporta temporal e espacialmente? Buscamos Marilena
CHAUÍ para contribuir na conceituação do tema, mas são os exemplos fornecidos por MEAD em
relação às sociedades de Arapesh, os Mundugumore e os Tchambuli que demonstram não haver
justificativa natural para os papéis desempenhados nas sociedades, pois são construções históricas.
Segundo MEAD, entre os arapesh o sentimento maternal não pertence apenas às mulheres e em
algumas situações se recorre ao infanticídio; para os mundugumor a violência e a agressividade
sexual não pertencem somente aos homens, mas sim a ambos os sexos; e as mulheres da tribo dos
tchambuli devem pescar e comercializar, enquanto os homens se dedicam as artes e se enfeitam para
199
ir às compras ou às vendas, somente efetuando tais atividades com o consentimento das suas
mulheres.
Tais estudos demonstram que somos frutos da sociedade em que vivemos e, nesse sentido, a
afirmativa de Simone de BEAUVOIR “A mulher não nasce mulher, torna-se mulher” nos
permite questionar o significado de ser mulher e ser homem na sociedade em que nascemos e
vivemos. Por isso, embora o nosso tema de Gênero inicie com a questão da opressão da mulher, de
fato o que desejamos é a amplitude do debate na medida que a opressão ocorre através da relação
entre sexos diferentes. Assim, o conceito de gênero, segundo Joan SCOTT "transforma seres
biologicamente machos e fêmeas em homens e mulheres, seres sociais". Ou seja, não são as
diferenças biológicas que determinarão as desigualdades. Assim, partimos para desnaturalizar o que
insistentemente pode parecer natural.
Observe que metodologicamente partimos da compreensão da história como um processo
de contradições, um processo em movimento contínuo e não linear. Essa é a nossa base.
Procuramos desfazer ideias pré-concebidas relativas à família, à monogamia e à divisão sexual do
trabalho. Estimulamos o questionamento a respeito do que é considerado inquestionável, como por
exemplo, a família patriarcal e a monogamia como os únicos modelos viáveis. Inserimos no debate
o tema cultura com o objetivo de ampliar as dimensões do significado de família e do papel de cada
um nesta instituição. Tratamos a própria instituição familiar como uma construção histórica,
portanto variável de acordo com o espaço e o tempo. E introduzimos o debate sobre o
desenvolvimento do capitalismo relacionando trabalho produtivo e trabalho reprodutivo.
Para avançarmos, precisamos compreender o lugar do masculino e do feminino nas nossas
vidas. Se temos consciência da opressão, se compreendemos que não é natural a divisão das tarefas,
se sabemos que o Capital prescinde dessa opressão para aumentar as suas taxas de lucro, afinal, por
que permanecemos subjugados e subjugadas aos padrões? Qual a dificuldade de rompê-los?
BOURDIEU nos fornece bases para entender e até sentir a ação dos elementos simbólicos no nosso
cotidiano, como veremos à frente.
Pierre Bourdieu: A dominação masculina pensada através do simbólico.
Uma das maiores contribuições de BOURDIEU à questão da dominação masculina é
demonstrar que a divisão entre o masculino e o feminino parece estar na “ordem das coisas”, porque
é tratado como natural. À todas as coisas damos classificações masculinas ou femininas, tanto no
seu caráter objetivo e aquelas de caráter subjetivo. BOURDIEU demonstra que através de um
200
sistema de oposições entre o masculino e o feminino sustenta-se uma forma de apreender o mundo
que pode parecer inevitável.
Segundo o autor, as diferenças sexuais estão na totalidade das oposições que organizam a
sociedade, construindo um esquema de pensamento capaz de naturalizar a oposição simples e direta
entre o masculino e feminino. Como afirma BOURDIEU: “Arbitrária em estado isolado, a divisão
das coisas e das atividades (sexuais e outras) segundo a oposição entre o masculino e o feminino
recebe sua necessidade objetiva e subjetiva de sua inserção em um sistema de oposições
homólogas, alto/baixo, em cima/embaixo, na frente/atrás, direita/esquerda, reto/curvo,
seco/úmido, duro/mole, temperado/insosso, claro/escuro, fora (público)/dentro (privado) etc,que
para alguns, correspondem a movimentos do corpo (alto/baixo//subir/descer,
fora/dentro//sair/entrar).129
A ordem social esta pautada pela divisão entre os sexos no âmbito temporal, espacial e
especialmente, no que tange a realização das tarefas, na divisão sexual do trabalho. A realidade
biológica de diferenciação sexual naturaliza as construções sociais. O corpo humano que
constantemente é tratado como um retrato da natureza, “é produto de uma construção efetuada a
custa de uma série de escolhas orientadas, ou melhor, através da acentuação de certas
diferenças, ou do obscurecimento de certas semelhanças”.130 Assim, a dominação parte do
princípio masculino da superioridade (dita natural) do corpo masculino em relação a sua força
corpórea e ao falo. A mulher está no oposto, marcada pela inferioridade corpórea, pela sua fraqueza
e pela vagina (símbolo da passividade).
O curioso está na visão de mundo organizada através dos gêneros, de modo que a existência
do falo só é possível a partir da comparação com a vagina, assim como a sua potencialidade está
submetida à desvalorização da vagina. Para isso o autor inverte a relação de causa e efeito: “(...) não
é o falo (ou a fata de) que é o fundamento dessa visão de mundo, e sim é essa visão de mundo
que, estando organizada segundo a divisão em gêneros relacionais, masculino e feminino, pode
instituir o falo, constituído em símbolo da virilidade, de ponto de honra caracteristicamente
masculino (...)”. 131 A construção simbólica começa no corpo e se completa na realização da
diferenciação do uso legítimo dos corpos, incluindo os cérebros, é claro.
Desse modo a dominação será incorporada por mulheres e efetivada pelos homens. Desde a
infância, os ritos de passagem para o lugar do masculino impõem aos meninos o distanciamento do
mundo materno até a sua completa separação. Para isso, os objetos simbólicos os conduzem e os
129 BOURDIEU, Pierre. A dominação Masculina. 8ª Ed. RJ: Bertrand do Brasil, 2010: 16. 130 Idem. pp. 18. 131 Idem. pp. 32.
201
estimulam para os espaços objetivos e subjetivos considerados masculinos, como exemplo a rua
(objetivo) e a virilidade (subjetivo) como ponto de honra. E de forma paradoxal, ocorre o mesmo
com as meninas, mantidas no espaço privado (a casa) e na passividade. BOURDEIU demonstra
que embora as mulheres tenham conquistado o direito a outras atitudes, o fato é que a moralidade na
utilização do corpo permanece a mesma. E o mais importante: mesmo que as mulheres tenham se
liberado sexualmente e rompido com normas e formas tradicionais, a referência para o uso do
próprio corpo permanece sendo masculina.
A ordem social e as relações sociais de dominação e de exploração baseadas nos contrários
masculino e feminino - diga-se de passagem, uma contrariedade construída - impõe ao mundo a
lógica de dominação masculina e heterossexual. Essa lógica perversa, por ser excludente, se
reproduz na organização familiar e estatal, sendo assim, nas relações de poder. As estruturas sociais
e as atividades produtivas e reprodutivas são parte da reprodução desse modelo paradoxal, onde as
mulheres incorporam tais relações de poder. Para BOURDIEU, a mulher ao aderir e não pensar sua
própria condição, tratando-a como natural, assim o faz por sofrer uma violência simbólica.
O conceito de violência simbólica é utilizado no espaço escolar não como uma negação ao
debate da violência prática, efetiva e passiva de denúncia. Mas, como uma categoria que permite
tratar como natural o que deveria ser inaceitável: a autodepreciação concedida pela depreciação
permitida. BOURDIEU a classifica como uma violência quase invisível, permitida, aceita e muitas
vezes requerida pelas mulheres. É ilustrativo o exemplo dado pelo autor relativo às mulheres
francesas:
“Constatou-se (...) que as mulheres francesas, em sua grande maioria, declaram que elas desejariam ter um cônjuge mais velho e, também, de modo inteiramente coerente, mais alto que elas, dois terços delas chegando a recusar explicitamente um homem menor. Que significa essa recusa de ver desaparecerem os signos correntes da “hierarquia” sexual? ‘Aceitar uma inversão das aparências, responde Michel Bozon, é fazer crer que é a mulher que domina, algo que (paradoxalmente) a rebaixa socialmente: ela se sente diminuída com um homem diminuído’.”132 A teoria da violência simbólica está presente na racionalidade de uma coerção mecânica
associada a uma submissão voluntária; baseada muitas vezes na lógica dos sentimentos associada à
lógica da impossibilidade do evitável; padronizada e impressa no corpo humano e nos corpos
institucionais; nos símbolos de poder. Sendo então, ingênuo acreditar na possibilidade da libertação
plena da mulher simplesmente a partir da consciência da existência desta violência. Pelo contrário, a
história demonstra que a consciência efetivada numa prática permitiu conquistas objetivas para
mulheres e homens.
132 Idem. pp.47-48.
202
Nesse ponto podemos partir para a abordagem dos movimentos sociais e revoluções aos
quais as mulheres atuaram e obtiveram conquistas, como: as lutas sindicais que deram origem ao
oito de março, dia Internacional da mulher, passando pela Revolução Russa e pelos movimentos
feministas das décadas de 60 e 70, a luta pela discriminalização do aborto e o movimento feminista
na atualidade.
Contudo, todo esse debate teórico abordado nas aulas de sociologia ainda carece de um
sentido no espaço escolar. Algumas questões ainda persistem: Como fazer com que este debate de
Gênero ultrapasse os limites da sala-de-aula e permita a modificação do ethos masculino e opressor
presente nas escolas? Para responder estes questionamentos precisamos compreender a escola que
temos e a prática pedagógica que se perpetua, inclusive na Sociologia. Só assim poderemos
construir um novo ethos capaz de dotar o aprendizado de sentido para estudantes e educadores.
A Pratica pedagógica, a escola e o espaço para o debate de Gênero.
Geralmente as práticas pedagógicas no ensino da Sociologia nas escolas estão marcadas por
um dilema: como ensinar Sociologia sem abrir mão da teoria sociológica mas tornando-a
compreensível para os estudantes? Na realidade este é o dilema de todas as outras disciplinas. Todos
os outros querem ensinar suas teorias e serem compreendidos. A nossa diferença é que temos um
papel importante na desconstrução do senso-comum, e por isso a Teoria tem uma importância
fundamental. Sem os conceitos podemos reproduzir ideologias. Por isso, proponho uma outra
questão: como trabalhar a desconstrução de mitos, de ideologias, de senso-comuns responsáveis por
perpetuar pré-conceitos que geram opressão no interior de uma instituição que transborda mitos,
ideologias e senso-comuns?
Assim é a escola: uma instituição recheada de pré-conceitos. No que tange a questão de
gênero, por exemplo, identificamos uma escola extremamente masculinizada. Os valores associados
ao positivo são masculinos, no sentido apontado por Bourdieu. Como a anulação do sentimento
(feminino) e a valorização da razão (masculino); o ambiente reto, alinhado (masculino) e a não
aceitação do sinuoso (feminino); a tendência monocromática (masculino) em contraposição ao
colorido (feminino); e por aí podemos identificar os valores masculinos cultuados pela escola.
Enfim, poderíamos indicar muitas outras variações desse tipo, mas gostaríamos de trilhar o caminho
da compreensão dessa instituição chamada escola.
Chamamos atenção para a necessidade dos sociólogos e sociólogas aprofundarem o debate
pedagógico, espaço ocupado pela Sociologia da educação, mas bastante abandonado pelos cursos de
bacharéis em Ciências Sociais. Para tanto pensar a escola é de certo modo pensar a sociedade em
203
que vivemos e suas relações de poder. As diferenças de etnia, gênero e classe estão presentes nas
relações sociais que se estabelecem no interior da escola. Compreender as limitações da escola
implica compreendermos as nossas limitações para debatermos profundamente o espaço escolar
como um espaço de disputa.
Portanto, a proposta é que a Sociologia, nesta nova fase de inserção, não seja mais uma a
compor o currículo seguindo a mesma lógica que perpetua o espaço escolar como algo estanque.
Mas, que a Sociologia estimule a pensar questões da nossa própria existência enquanto educadores.
No geral, as escolas possuem uma estrutura física e curricular que propicia o não questionamento, o
pensamento fragmentado e a visão dual do mundo. Ou está certo ou está errado, o professor fala e o
aluno ouve, as disciplinas têm tempo e hora para acabar, o sinal interrompe o pensamento. Este
modelo de educação baseado na memorização e na fragmentação do conhecimento, do tempo e do
espaço, vem sendo criticado por diversos autores, entre eles Paulo Freire.
FREIRE, em seu livro Pedagogia do oprimido faz uma crítica ao que denomina de educação
bancária, onde a narração pertence ao professor enquanto o acúmulo de conteúdo é tarefa do aluno.
O educador detém o conhecimento e deve transmití-lo ao educando, que mais se assemelha a um
pote vazio pronto para ser cheio. Para o autor, este modelo de educação privilegia a manutenção da
ordem, pois não interessa ao opressor transformar a situação dos que oprime, mas sim a sua
mentalidade, para melhor adaptá-lo a esta situação.133 Segundo FREIRE,
“A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres vazios a quem o mundo ‘encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência espacializada, mecanicisticamente compartimentada, mas nos homens como ‘corpos conscientes’ e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo” 134.
Partindo desta referencia de prática pedagógica e por entender que a Sociologia pode
contribuir, e muito, com a compreensão do mundo e do próprio indivíduo em relação a este mundo,
passa a ser uma tarefa da Sociologia debater a escola e contribuir para criar um novo ethos na
escola. Isso é possível porque a escola abriga uma contradição central: é reprodutora das relações
de opressão, mas concomitantemente representa um papel libertador a partir da difusão do
conhecimento. É um espaço em disputa segundo GRAMSCI,
“como um dos espaços em que se inscreve a batalha de ideias e a luta pela hegemonia e pelo consenso, e a educação, por sua vez, é compreendida como estratégia fundamental no processo de formação do ‘novo homem’ também na perspectiva da superação das relações capitalistas”.135
133 FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. 44ª Ed. RJ: Paz e Terra, 2005: 69. 134 Idem.p. 77. 135 FALLEIROS, Ialê. Parâmetros curriculares nacionais para a educação básica e a construção de uma nova cidadania. In NEVES, Lucia (org.). A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso. SP: Xamã, 2005: 210.
204
O “novo homem”, da ordem hegemônica do século XXI, está sendo construído de acordo
com os princípios hegemônicos, que são princípios baseados na competição, na visão acrítica do
mundo e de todas as coisas, da absorção de um conhecimento eurocêntrico. Este “novo homem” da
visão hegemônica permanece com as mesmas referências do que sempre foi considerado exemplo
de sucesso nas sociedades capitalistas. O modelo é do homem, branco e heterossexual. Mas, para ser
completo deve se sentir culpado pelos problemas do mundo, deve fazer algo individualmente para
amenizar as desgraças humanas e do meio ambiente; deve ser voluntarioso; deve exigir do Estado
os direitos, mas sem aprofundar sua crítica a ponto de questionar o capitalismo.136
Aqui está presente a problemática da prática pedagógica impetrada há anos para a
Sociologia. Os modelos curriculares apresentados pelas secretarias de educação e pelos PCN’s
destinam como papel central para a nossa disciplina o debate através do eixo Cidadania. O nó da
questão é exatamente a não problematização do próprio conceito de cidadania, que na maioria das
vezes é o retrato deste “novo homem” defendido pela pedagogia hegemônica. Não é raro perceber
que à Sociologia é entregue a tarefa de fazer o aluno perceber a sua responsabilidade perante o
mundo, no que tange seu papel voluntário de ‘ajudar’ a diminuir a miséria ao seu redor. E, nesse
caso, as teorias sociológicas são abandonadas dando espaço para uma série de ideologias associadas
ao cooperativismo e ao voluntarismo, garantindo o direito do indivíduo de criticar o Estado, sem
abandonar a sua responsabilidade individual de encontrar saídas para os problemas inerentes de um
sistema baseado na exploração.
A proposta pedagógica para o ensino de Sociologia que estamos construindo descarta
completamente a existência de uma temática sem questionamento do seu fundamento. Portanto, se o
tema é desigualdade social será preciso problematizar e encontrar o significado ou os significados
para este tema. E o mesmo para todos os outros temas, como política, trabalho, sociedade, cultura,
democracia e cidadania. Certamente os fundamentos serão encontrados nas diferentes teorias, mas
para que tais teorias tenham algum sentido para o estudante será preciso estimular a sua imaginação
sociológica. E, muitas vezes, só poderemos estimular a imaginação sociológica se trabalharmos
anteriormente no concreto, no que é objetivo.
Em relação à temática de gênero, ainda cabe a pergunta em relação à escola: como fazer
com que este debate ultrapasse o limite da teoria e passe a ser uma prática de vida, tanto no interior
da escola como na vida cotidiana de educadores e estudantes? Neste artigo apresentamos
possibilidades: primeiro, o preparo cuidadoso do debate teórico o que possibilita efetuar o processo
educativo com o rigor capaz de nos fazer compreender melhor o mundo em que vivemos; segundo,
136 Ibdem. p. 211.
205
não nos abstermos da discussão teórica e prática sobre a escola necessária para superarmos a
reprodução de ideologias que só servem para manter a ordem branca-heterossexual-burguesa,
considerando os elementos constituintes desde a sua estrutura física até as suas estruturas morais e
organizacionais; e terceiro, insistir no debate sobre gênero, etnia e classe social como um tripé
estruturador da sociedade brasileira, mas ainda desconhecidos na sua historicidade pela maior parte
dos educadores do país.
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WALLERSTEIN, Immanuel. Análise dos sistemas mundiais. In Teoria social hoje/ GIDDENS,
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206
Capítulo 14 O Ensino de Sociologia e a (re)significação das Redes Sociais On-line na escola básica.
Fátima Ivone de Oliveira Ferreira137
Rogerio Mendes de Lima138
Introdução
A implantação da Sociologia como disciplina obrigatória nos currículos de Ensino Médio
como forma de cumprimento da Lei 11648/2008, resultado de longa jornada, caracteriza, em
principio, uma nova posição política e pedagógica para a disciplina no âmbito da educação básica.
Contudo, esta nova realidade traz para todos os cientistas sociais, particularmente aqueles que
exercem suas atividades enquanto professores e pesquisadores do ensino de Sociologia, novas e
desafiadoras experiências. Entre elas, a definição do papel a ser exercido pela disciplina na
formação dos jovens e adultos que frequentam o ensino básico.
Neste sentido, considera-se que a Sociologia, enquanto conteúdo curricular tem uma tarefa a
exercer no interior da escola. Este papel, na concepção que orienta o trabalho em tela, é o de que a
Sociologia deve se afastar de uma concepção tradicional de escola e de disciplina em que a
educação é concebida como simples acúmulo de conhecimentos não refletidos, naquilo que Freire
(1997) denominou de educação bancária, que tende a diminuir os espaços para a reflexão e
formação crítica. O espaço a ser ocupado pela Sociologia deve ser aquele onde a realidade social
seja estranhada, problematizada e posteriormente desnaturalizada, possibilitando uma formação para
além dos modelos tradicionalmente concebidos de cidadania e realizando o proposto por Moraes,
Tomazi & Guimarães (2006) no que se refere aos objetivos da Sociologia no Ensino Médio.
Sendo assim, entendemos que a Sociologia que emerge neste contexto seja uma disciplina
afastada tanto da escola tradicional, quanto dos modelos behavoristas, atuando como um elemento
colaborador na redefinição dos processos formativos, das relações sociais no espaço escolar e por
consequência, na reflexão dos jovens e adultos que compõem o corpo discente, sobre a escola e a
sociedade em que vivem, de modo que possam atuar como sujeitos em seu cotidiano.
Dentre tantos fenômenos que nas últimas décadas tem produzido efeitos no interior do
espaço escolar, um merece destaque. As denominadas redes sociais on-line, que ao unirem
137 Professora e Chefe do Departamento de Sociologia do Colégio Pedro II; Doutoranda em Educação pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). 138 Professor Adjunto do Instituto de Aplicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Professor do Colégio Pedro II; Professor Adjunto do Centro Universitário da Cidade.
207
tecnologia, espaço de sociabilidade e meio de circulação de informações, tornou-se uma febre, para
usarmos um termo bem ao gosto de nossa época, entre aqueles que têm acesso à internet, em
especial, o público juvenil. Suas consequências, positivas e negativas, podem ser observadas na
escola das mais diversas maneiras. Na relação entre alunos, na relação por vezes entre estes e seus
professores, em menor grau, na relação entre os próprios professores. Estas redes sociais on-line
interferem ainda nas demandas, conflitos e desafios que enfrentam atualmente as escolas. Se não
podem ser consideradas responsáveis pelos problemas e desafios vividos no interior deste espaço,
dão a estes uma nova configuração, inserindo diversos elementos que tornam mais complexa a
compreensão e a ação sobre as relações e estruturas que constituem o espaço da escola.
Buscando inserção no intenso debate que vem sendo realizado por diversos pesquisadores
(RECUERO,2009, LEMOS &LÈVY,2010) no âmbito da Comunicação e das Ciências Sociais, este
artigo procura inicialmente estabelecer uma relação entre as redes sociais on-line e o modo como a
juventude se constitui socialmente. Consciente de que esta relação impacta na interpretação e
experiência que os jovens constroem em seu cotidiano e partindo da premissa que uma das tarefas
da Sociologia é desnaturalizar e gerar estranhamento frente a realidade social, procuramos, em um
segundo momento, apontar como as estratégias e conteúdos das aulas de Sociologia podem
contribuir para que as redes sociais on line possam ser este instrumento, a médio e longo prazo.
Neste sentido, este estudo procura dar conta das seguintes questões: Qual o impacto das
redes sociais na desnaturalização e no estranhamento da realidade social por parte destes jovens?
Estariam estas redes colaborando no sentido de desvelar as estruturas sociais sob as quais
organizamos nossas vidas? Ou seriam espaços de consolidação de uma visão de mundo específica
que valoriza o consumismo e a futilidade, afastando-os dos grandes debates acerca de seu próprio
mundo?
As Orientações Curriculares Nacionais (MORAES, TOMAZI & GUIMARÃES 2006; 111)
afirmam que as razões para a Sociologia estar presente na composição curricular do ensino médio,
se reforçam ainda mais em nossos dias. As relações sociais mais complexas, a racionalização cada
vez mais mediada pelo conhecimento científico e tecnológico, combinados com um predomínio do
discurso que “naturaliza” todas as recentes transformações ocorridas em nossas sociedades,
fundamenta a intervenção da Sociologia no processo de formação da juventude.
A partir destas reflexões, foi elaborado um projeto de pesquisa que visa acompanhar durante
determinado tempo, um conjunto de jovens alunos do ensino médio de duas escolas tradicionais da
cidade do Rio de Janeiro, o Colégio Pedro II (CPII) e o Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues
da Silveira, mais conhecido como Colégio de Aplicação da Universidade de Estado do Rio de
Janeiro (Cap-UERJ), avaliando como a implementação das propostas, métodos e atividades diversas
208
da disciplina Sociologia tem produzido impacto no modo como estes alunos fazem uso das redes
sociais on-line como forma de reconhecimento, reflexão e intervenção crítica sobre sua própria
realidade. O presente artigo traz para debate algumas das primeiras impressões observadas nas fases
iniciais da pesquisa.
I - Redes Sociais on-line e Sociabilidade Juvenil
Tradicionalmente, coube a Antropologia desenvolver o conceito de redes sociais, vistas como
elos que perpassam diversos grupos em suas relações coletivas internas criando vínculos que
sustentam de modo mais ou menos intenso uma dada formação social (BOTH, 1976). Antes dela,
podemos identificar em Mauss (2003) em seu Ensaio sobre a Dádiva, elementos importantes para a
reflexão sobre as redes sociais contemporâneas.
Mauss (2003) em uma crítica ao utilitarismo e às teorias sobre a predominância do mercado
discute que a vida social é fundamentada na associação e nas relações entre os homens. Estas
relações, por sua vez se cristalizam em um conjunto de ações recíprocas que constroem laços e
vínculos entre indivíduos e grupos no interior de um sistema social. Redundam por sua vez em
rituais que reforçam estes laços e seu caráter balizador na constituição das relações sociais de
determinada coletividade, em especial, as representações coletivas que estes indivíduos associados
constroem.
Barros (1987) ressalta o fato de que estas representações permitem observar o estado em que se
encontra o grupo social em questão. No interior de um sistema social, diversas representações
coexistem e permitem ao ator social estabelecer diferentes conexões em variados graus com outros
sujeitos que partilham, integral ou parcialmente, de algumas destas representações. A transformação
desta consciência coletiva em ações ou laços concretos constitui o embrião das denominadas redes
sociais.
No interior das Ciências Sociais, emergem duas diferentes abordagens das redes sociais
(Marteleto, 2001). Na primeira visão, considera-se que as redes permitem identificar o
comportamento e a conformação das organizações sociais. De outra perspectiva, as redes são um
instrumento de construção de sentido dos atores sociais em oposição às determinações sociais.
Vilarinho e Ferreira (2010) afirmam que este conceito pode ser utilizado em diferentes quadros
e contextos, buscando dar conta das diferentes configurações que as relações entre grupos e dentro
deles vão adquirindo no processo de construção da vida social. Termos como conexidade, malha
estreita, malha frouxa, são usados para caracterizar o impacto das relações construídas entre
indivíduos, grupos e sociedades.
209
Castells (1999) analisa o conjunto de transformações que modifica profundamente as estruturas
das sociedades contemporâneas e ao fazê-lo identifica na tecnologia um elemento central para a
compreensão do que ele denomina sociedade da informação. Nesta nova configuração social,
trazida pela exponencial aplicação de tecnologia ao cotidiano, o conceito de rede social adquire
outros significados para além da perspectiva adotada pelas discussões antropológicas da segunda
metade do século passado.
De acordo com Marteleto e Tomael (2006;75) “redes sociais referem-se a um conjunto de
pessoas (ou organizações ou outras entidades sociais) conectadas por relacionamentos sociais”.
Estes relacionamentos podem ser “motivados pela amizade e por relações de trabalho ou
compartilhamento de informações e, por meio dessas ligações, vão construindo e reconstruindo a
estrutura social.” (idem).
Recuero (2006;26), afirma que “uma rede social é definida por dois elementos: os atores
(pessoas, instituições ou grupos; os nós da rede) e suas conexões (interações ou laços sociais)”.
Pode ser compreendida como as trocas que possibilitam o processo de comunicação entre os
indivíduos que origina os diferentes grupos sociais. No contexto de consolidação de uma sociedade
em que a tecnologia informacional (CASTELLS, 1999), se torna um mediador das relações sociais,
a análise das redes sociais on- line ganha importância.
Na atualidade, a tecnologia assume um papel de centralidade na cultura juvenil. A comunicação
mediada pelo computador (RECUERO, 2006) é parte integrante da realidade cotidiana deste
público. Neste sentido, as redes sociais on line são instrumentos de desenvolvimento de
sociabilidades diversas no contexto de um mundo em que a mediação digital ocupa cada vez mais
espaço na vida dos jovens.
Lemos (2003) e Lemos e Lévy (2010), relacionam as redes sociais on- line à cibercultura,
entendida como “conjunto de processos tecnológicos, midiáticos e sociais emergentes a partir da
década de 70 do século passado com a convergência das telecomunicações, da informática e da
sociabilidade” (LEMOS, 2003; 13). No modo como percebem as redes sociais, estas se constituem
em conseqüência da consolidação de novas práticas culturais e sociais que tem no mundo virtual seu
local de expressão por excelência.
Na visão de Almeida & Eugênio(2006) o uso da Internet pelos jovens transformou a “tela”
em espaço de experiências e interações que formam a arquitetura social de nosso dias. A
popularização das tecnologias da comunicação vem ampliando as maneiras de estabelecer vínculos.
Segundo (LEMOS & LÈVY, 2010), as comunidades formadas no ciberespaço ligam-se por
proximidades semânticas e não apenas geográficas ou institucionais. As redes sociais
contemporâneas, como o facebook, twitter e orkut, instituíram uma verdadeira “computação social”
210
(idem, 2010) ao unir ferramentas da web 2.0 para compartilhar gostos, usos, imagens,
intensificando as possibilidades de contatos interpessoais.
Castells (2003) aponta que são os comportamentos socioculturais que definem o alcance das
tecnologias e não o oposto. Desse modo, é possível pontuar que as redes sociais on-line devem ser
pensadas a partir do uso e do lugar que ocupam no universo dos jovens, o que possibilita uma visão
mais ampliada e menos esquemática das próprias redes.
A partir deste ponto, há que se considerar que suas identidades pessoais e coletivas e em
muitos casos, o modo de interação com o mundo seguem parâmetros que são estabelecidos pelas
experiências vividas nestas redes e o peso que elas têm na construção das referências sociais sobre o
seu cotidiano. Libânio (2004) interpreta que a tecnologia tem exercido o papel de afastar os jovens
de sua realidade, configurando uma forma de ideologia que leva à perda de consciência social e
política dos jovens e a consequente redução do papel ativo na definição dos rumos da sociedade,
visto que se constrói uma cultura do individualismo e uma apropriação da tecnologia com um viés
narcisista e alienado. Virilio (1999) argumenta que a internet e seus desdobramentos são uma forma
de desagregação social bastante grave.
De nosso ponto de vista, avaliamos que uma caracterização das redes sociais que não
considere os efeitos e consequências de sua utilização pelos jovens, tende a desconectar a ação na
rede da realidade social cotidiana, como se estas constituíssem espaços sociais distintos. Em
verdade, do mesmo modo que não se pode separar as dimensões material e simbólica da cultura no
interior dos indivíduos, também não se pode pensar em um mundo virtual que exista independente
das estruturas e relações sociais que se travam no mundo real.
Castells (2001) ao discutir o papel das comunidades virtuais aponta que estas se
desenvolvem num contexto em que as estruturas que serviram de base para a construção das
diferentes formas de sociabilidade a partir do século XIX, estão em profunda transformação. O
padrão de sociabilidade caminha para um núcleo constituído em torno da família nuclear “a partir de
onde redes de laços seletivos são formadas segundo os interesses e valores de cada membro da
família.” (CASTELLS, 2001;107).
Nestas redes, as relações estabelecidas raramente são íntimas, e os laços construídos, em sua
maioria, não se perpetuam, porém são importantes na construção das identidades sociais. Uma das
questões mais prementes dentro desta discussão consiste na proposição de que os três princípios da
cibercultura (emissão, conexão e reconfiguração) estariam transformando as relações sociais rumo a
uma ciberdemocracia planetária (LEMOS e LÈVY, 2010), nessa direção, as redes sociais on-line
seriam um local de liberação da palavra. No entanto, os relatos descortinam que há limites impostos
pelos próprios atores.
211
“O que a pessoa escreve pode influenciar muitas pessoas e acarretar várias consequências, ou a pessoa pode até ficar mal vista dependendo do que escreveu. Mas acho sim que as pessoas hoje se sentem mais desinibidas para falar no computador, redes sociais, do que pessoalmente, ali cara-a–cara” (depoimento de aluna do ensino médio CPII)
Deste modo, a chamada liberação da palavra, ainda que presente, não está totalmente
apartada dos padrões culturais locais. As teorias que defendem o espaço on- line como um local de
rompimento com as raízes socioculturais e com os limites impostos pelo convívio social, não
encontram correspondência na percepção que os jovens atores sociais têm de sua inserção nas redes.
De outra maneira ainda, a tese de que a participação nas redes tende a democratizar ou criar
uma nova forma de participação pública, parece contradizer a perspectiva individualista que tem
sido o padrão de participação nas redes on-line. Castells (2001; 108-109) discute que a característica
marcante destas comunidades virtuais é de serem suporte para a construção de um “individualismo
em rede”.
“Não falo sobre religião, nem política,não me sinto vigiada, mas não gosto muito de ser “fuxicada” por desconhecidos”.(depoimento de aluna do ensino médio CPII).
Os relatos e observações realizadas até o momento entre os jovens analisados nesta pesquisa
permitem concluir que, por um lado, a percepção da rede como um local de desenvolvimento de
uma revolução democrática que alteraria os padrões e a compreensão do espaço público, não se
confirma. A predominância de uma perspectiva centrada nas próprias questões e interesses
particulares tem sido a atitude predominante e não o interesse coletivo. Percebemos a repetição nas
redes on-line, de uma característica presente nos espaços não virtuais, o predomínio da lógica
individual sobre a coletiva.
Uma segunda questão a ser desenvolvida refere-se ao papel que estas redes poderiam
assumir no estranhamento e desvelamento das estruturas sociais que nos cercam. Em nossas
observações, as redes sociais on-line não podem ser consideradas ainda como instrumentos para
uma intervenção crítica na realidade social. Muito porque a predominância da perspectiva
individualista impede o estranhamento e o posterior desvelamento das estruturas sociais, como
demonstram as falas abaixo.
“É uma forma fácil de conhecer pessoas novas, falar rapidamente com um conhecido, até também para se divertir.”; “As redes sociais, na verdade, a Internet em geral, vêm tornando as relações interpessoais cada vez mais distantes. Aos poucos, as pessoas (em especial os jovens) vão deixando de saber dizer certas coisas frente-a-frente”.; “De certa forma os relacionamentos são “virtualizados“ demais, mas as redes sociais são, hoje em dia, a melhor forma de se manter contato”; “Hoje, é muito mais fácil se comunicar, a maioria dos jovens estão “logados” praticamente 24 horas, realmente, a praticidade que a Internet trouxe, só facilitou”. (depoimentos de alunos do ensino médio CPII)
212
Em alguns momentos, os relacionamentos estabelecidos na rede cumprem uma função para
além das relações interpessoais. Mesmo quando isto parece acontecer, como na recente crise do
Governo do Estado do Rio de Janeiro com os bombeiros, ocasião em que as redes exerceram um
papel importante na divulgação das propostas e atividades da categoria, criando um exemplo de
malha de solidariedade com as demandas dos trabalhadores, ela não resulta em laços permanentes
ou em envolvimento mais direto na questão. Sobressai uma interação distante com o fenômeno
ocorrido.
“No caso dos bombeiros a rede social ajudou a mobilizar as pessoas para a passeata e para soltar os que estavam presos. Eu mesmo convoquei vários colegas (...) depois que soltaram os soldados eu não prestei mais atenção no caso.” ( fala de um aluno de Ensino Médio do CAp/UERJ) Diante deste quadro, esta primeira análise aponta que o potencial de reconhecimento das
estruturas sociais e da intervenção dos jovens a partir da utilização das redes sociais on-line, tem
sido limitado pela apropriação que este público tem feito das informações obtidas ou
disponibilizadas na rede, ou mesmo de como estes jovens tem transformado as afinidades
simbólicas em ações concretas.
Na hipótese inicial deste estudo, este fato se explica por conta da perspectiva sócio-cultural
que estes jovens têm da rede. A valorização de uma percepção individualista e por vezes narcisista
deste espaço, resultante de um conjunto de fatores, entre os quais, a naturalização das
transformações sociais que geram a sociedade da informação, combinada com uma cultura que
(re)produz uma “identidade pessoal flexível e compatível com as novas relações de trabalho e (...) a
conversão do sujeito à moral das sensações imediatas.” ( COSTA, 2007; ).
Concordamos que as redes sociais on-line possam colaborar no sentido de construir uma
cultura mais democrática e cidadã, que favoreça a luta por novas formas de organização social e
política e incentive diferentes modelos de participação política ativa nos próximos anos.
Partilhamos da expectativa de Santos (2000) de que as novas tecnologias que geram a sociedade da
informação, possam também ser utilizadas como elemento de questionamento das estruturas sociais
injustas e desiguais que permeiam as sociedades capitalistas. Entretanto, isto não é algo dado
naturalmente. Precisa ser construído. Em outras palavras, o sentido e o alcance das transformações
geradas pelas redes sociais on-line dependem dos significados que elas possam ter para os atores
sociais. É neste ponto que reside o papel a ser exercido pelo ensino de Sociologia.
II. O Ensino de Sociologia e as Redes Sociais On-line
213
Uma crítica recorrente à instituição escolar diz respeito à sua incapacidade em considerar as
necessidades da juventude. Ao oferecerem resistência aos mecanismos de distinção formais
propostos pela escola, os jovens evidenciam a gestores e professores, que existe uma dicotomia entre
os objetivos institucionais e a cultura juvenil (BARBOSA e ARAÚJO, 2009). Os jovens que hoje
estão na escola básica brasileira, ao vivenciarem um processo de socialização permeado pela cultura
digital, experimentam mudanças radicais nas concepções de tempo e espaço e em suas dinâmicas de
interação social.
Estudos e reflexões anteriores (VILARINHO & FERREIRA, 2010; LIMA, 2009; SILVA,
2010) demonstraram os impasses que a educação vem enfrentando na sociedade da informação. A
resposta para tais impasses sinaliza necessária, mas não unicamente, para a reorganização do espaço
escolar e para a redefinição dos modelos pedagógicos utilizados principalmente no ensino médio.
Dentro desta perspectiva, a Sociologia tem uma contribuição indispensável a disponibilizar. A
história da disciplina, sua tradição teórica e metodológica, desde que efetivamente mediada por
proposta pedagógica adequada, pode constituir-se em um diferencial na construção de uma nova
proposta de educação e de escola (LIMA, 2009).
A convivência entre a estrutura acadêmica formal da escola e a cultura das interfaces exigirá
uma reformulação das práticas e estratégias pedagógicas dos atores envolvidos. Além disso, a vida
contemporânea nos centros urbanos, atravessada pela presença das tecnologias de informação e
comunicação (TICs) em todos os setores sociais, potencializa processos de fragmentação da
experiência. Os estudantes da escola básica, especialmente os do ensino médio, têm expressado certa
dificuldade em acompanhar e formular uma argumentação consistente que conecte o tempo histórico
com o tempo presente, o que sugere a professores e pais, a presença de um universo cultural
particular e desafiante.
A aceleração crescente da oferta de tecnologias analíticas - cognitivas, visuais, auditivas,
médicas, gustativas, aliada à manipulação de uma demanda pela satisfação consumista e imediata,
reflete uma face cultural de exaltação da novidade e ataque à história. No entanto, essas mesmas
tecnologias que fragmentam a experiência, conectam esses jovens ao mundo inteiro, possibilitando a
abertura de redes de colaboração jamais vividas por tantos em relação a tantos (LEVINE,1997).
A escola e os docentes já incorporaram outras tecnologias a seu cotidiano, Dwyer (2010)
aponta a possibilidade que o professor, especialmente o de Sociologia, tem em explorar o trabalho
intelectual à distância, a partir da investigação de vários discursos em blogs, sessões de bate-papo,
intercâmbios entre grupos diversos e construção de análises alternativas e comparativas. Nossa
pesquisa teve como alvo alunos de ensino médio de duas escolas públicas do Rio de Janeiro
consideradas de excelência, esses jovens configuram-se como usuários das redes sociais on-line e
214
sempre que possível, estão conectados. Em uma das escolas estudadas, já existe o ambiente
wireless, o que permite aos estudantes e professores proprietários de laptops, iPhones e
smartphones, a mobilidade informacional. Entretanto, tal potencialidade tecnológica não é
aproveitada como recurso didático.
Os jovens estudantes parecem compartilhar um estilo de vida digital que enfatiza os valores
típicos da sociedade contemporânea, como a conectividade e a velocidade. Entretanto, no contexto
escolar, as práticas por meio das quais o uso da internet e redes sociais on-line se constituem,
podem sofrer alguma influência dos valores e normas institucionais locais. Sassen (2007) aponta o
processo de imbricações digitais / sociais como forma de evitar os riscos de interpretar e conceber
separadamente o digital e o não – digital, desconsiderando os vínculos com o lugar e impedindo
uma leitura mais complexa das interações entre mundo digital e as condições sociais dos atores
envolvidos. É a captura das imbricações digitais / sociais que favorece a compreensão da lógica
social das formações digitais.
Ao colocar em discussão a sociedade e os processos humanos de construção de uma
sociabilidade, a Sociologia, enquanto saber escolar, pode questionar a visão fetichista da tecnologia,
acenando para o uso melhor e mais criativo dos recursos tecnológicos disponíveis. Em recente
encontro de ensino de Sociologia na educação básica (ENSOC 2010), uma professora afirmou ter
recorrido ao orkut para conhecer melhor seus alunos. Tal afirmação pode causar estranheza, ao
contrastar presença física e virtual, afinal a professora está em contato presencial com seus alunos,
como imaginar que acessar um software social pode agregar mais detalhes e uma aproximação
maior ao relacionamento da professora com seus alunos?
De acordo com Almeida & Eugênio (2006 a), a lista de amigos e comunidades do orkut serve
como um atalho para construir uma espécie de “planta-baixa” de alguém, um percurso que levaria
muito tempo se fosse trilhado off-line. De fato, cada vez mais jovens professores, consumidores das
redes sociais on-line, estão compartilhando aspectos de suas realidades com seus jovens alunos,
também presentes e atuantes nestas redes. Configura-se um novo padrão de interação social,
mediado pela internet, com sua capacidade de multiplicar as relações sociais e assumindo
centralidade nas expressões e sociabilidades juvenis.
Por outro lado, o uso indiscriminado de celulares, ipods e câmeras em sala de aula é ainda
motivo de conflito entre professores e alunos . O risco é a dispersão, a invasão da privacidade (qual
privacidade?) e transgressão das normas disciplinares. No Rio de Janeiro, a Lei nº5222, de 11 de
abril de 2008 proíbe o uso de telefones celulares nas escolas estaduais. Segundo a pesquisadora da
PUC-SP, Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida, a proibição só incentiva o uso escondido e a
215
desatenção na dinâmica da aula139. Por outro lado, os celulares podem possibilitar o trabalho com
imagens, filmagens e acesso a conteúdos da internet.
III. A proposta pedagógica da Sociologia e a (re) significação das redes sociais on line: um caso
de afinidade eletiva?
É bastante significativo perceber que entre os jovens com os quais estamos em contato, as redes
sociais on-line são reconhecidamente, uma forma eficaz e generalizada de estar em comunicação
com cada vez mais amigos, facilitar o gerenciamento das tarefas escolares, administrar encontros
presenciais, compartilhar fotos, organizar e divulgar eventos e obter informações sobre os mais
variados temas. Ainda que dentro de uma perspectiva centrada em si mesmo e em seus interesses
mais pessoais e imediatos.
Problematizar o tipo de relação social experimentado em redes, relacionando-o com
conceitos como movimentos sociais, identidade social ou a temas como vida cotidiana e violência
urbana, torna-se uma possibilidade pedagógica imperativa.
O fenômeno das comunidades mediadas por computador pode ser analisado a partir dos
conceitos clássicos de comunidade e sociedade, destacando as motivações empáticas de agregação
nas redes sociais on-line e off-line. A análise criteriosa das potencialidades das ferramentas
sociotecnicas disponíveis na contemporaneidade, referendadas por leituras críticas de seus principais
teóricos, pode acenar para a reflexão do uso que o jovem faz das redes sociais on-line, despertando
a curiosidade e abrindo caminhos para a mobilização e intervenção social.
A clássica abordagem da relação indivíduo e sociedade e o conceito de socialização, presentes
em muitos livros didáticos de Sociologia, por sua importância na compreensão dos processos
sociais, podem ser estudados a partir da atualidade das redes sociais on-line. Também a
desigualdade social e os rumos da democracia no planeta podem sugerir a discussão do direito ao
acesso à internet e ajudar a refletir sobre o conceito e as políticas de inclusão digital.
Pensar as redes sociais on-line como estratégia estruturante de um programa de Sociologia na
escola básica significa criar um ambiente de integração entre a cultura juvenil e a escola. Significa
ainda envolver o que há de mais novo e estimulante na realidade dos estudantes, em uma
apropriação criativa para o processo pedagógico. Problematizar a realidade do mundo do trabalho e
relacionar as transformações na esfera produtiva com o desenvolvimento da sociedade da
139 Entrevista publicada na Revista Nova Escola de junho/julho de 2010, na qual a pesquisadora defende o webcurriculo, ou seja, um currículo que se desnvolve por meio das tecnologias digitais de informação e comunicação, especialmente mediado pela internet.
216
informação é outra das tarefas que a Sociologia pode cumprir em uma proposta pedagógica em que
as redes sociais on line sejam consideradas como parte essencial no processo de construção do
indivíduo e da sociedade dos nossos dias. Analisar o contexto socioeconômico em que as redes são
produzidas é outra das possibilidades que a Sociologia tem enquanto disciplina.
Em todos os exemplos mencionados, a reflexão sociológica pode cumprir um duplo papel.
Permitir ao jovem aluno estranhar a própria rede e entendê-la como um produto histórico,
desnaturalizando uma concepção bastante comum que consiste em considerar as redes sociais on
line como uma “evolução” dos processos de comunicação.
Estes podem ser alguns dos passos que articulados com outras estratégias e experiências
pedagógicas podem levar os alunos a descobrirem um novo significado para as redes sociais on
line. Neste processo, evidentemente, muitas podem ser as alternativas e possibilidades. Não nos
cabe aqui referendar esta ou aquela tese sobre o futuro destas redes. Mas há, sem sombra de dúvida,
um papel a ser exercido pela Sociologia nesta (re)significação.
O conceito de afinidade eletiva é utilizado na Sociologia pela primeira vez quando Weber
(2002) estabelece uma relação entre certo tipo de ascese protestante e as condições culturais que
colaboram no desenvolvimento do capitalismo em determinadas regiões da Europa. Lowy (1989)
descreve o desenvolvimento e a utilização histórica deste conceito desde sua origem até sua
apropriação pelas Ciências Sociais. Para ele, este é um conceito que:
nos permite justificar processos de interação que não dependem nem da causalidade direta, nem da relação “expressiva” entre forma e conteúdo (por exemplo, a forma religiosa como “expressão” de um conteúdo político ou social). (...) Naturalmente, a afinidade eletiva não se dá no vazio ou na placidez da espiritualidade pura: ela é favorecida (ou desfavorecida) por condições históricas ou sociais. (...). Neste sentido, uma análise em termos de afinidade eletiva é perfeitamente compatível com o reconhecimento do papel determinante das condições econômicas e sociais. (LOWY APUD BOTH; 415-416)
Na linha de raciocínio proposta por este artigo, nos parece que nas condições históricas,
culturais e políticas da atualidade no Brasil, a Sociologia e as redes sociais on line constituem um
caso particular de afinidade eletiva. A Sociologia enquanto disciplina em busca de seu lugar no
interior da educação básica, tem como uma de suas propostas prementes a utilização de novas
ferramentas pedagógicas que dêem aos alunos a possibilidade de estranhar e desnaturalizar o seu
próprio cotidiano.
Por outro lado, as redes sociais on line como ferramentas de comunicação e construção de
sociabilidades, em um mundo em que a mediação digital se torna cada vez mais importante, carece
de uma apropriação menos individualista e egocentrada que permita um aproveitamento mais
qualificado e coletivo das inúmeras possibilidades sociais, culturais e políticas que a tecnologia
disponível nos permite.
217
Neste sentido, a combinação entre ambas pode resultar na descoberta de uma saída para
alguns dos inúmeros impasses que a educação básica e o espaço escolar enfrentam em nossos dias
ao mesmo tempo em que tanto a Sociologia quanto as redes sociais on-line podem se consolidar
como alternativas pedagógicas, educacionais e sociais importantes na explicação e compreensão de
uma realidade social ainda desconhecida e desafiadora.
Considerações Finais
Muitas são as possibilidades de trabalho pedagógico em Sociologia utilizando os recursos das
redes sociais on-line. Esta pesquisa em andamento, procura investigar a centralidade desses
softwares sociais na vida dos estudantes do Cap - UERJ e do Colégio Pedro II, entendendo que na
atualidade, se constituem como elementos estruturantes das relações sociais e afetivas desses jovens.
A proposta de reflexão sobre o uso que os jovens atores sociais fazem dessas redes, aponta alguns
caminhos de apropriação dessas ferramentas na leitura crítica do mundo contemporâneo.
As informações obtidas até o momento apontam para a necessidade de produção de novos
significados para as redes sociais on-line. A constatação de que estas redes são de fato um novo e
cada vez mais importante espaço de sociabilidade em nossos dias, traz para o ensino de Sociologia
uma responsabilidade ainda maior. Se antes era necessário estranhar e desnaturalizar o mundo a
partir de elementos concretos da realidade, hoje há o desafio de fazê-lo nos espaços virtuais.
Principalmente porque estes podem ser locais em que questões fundamentais da produção da
existência, da cultura e das relações de poder, sejam destituídas de seus contextos concretos e
tratadas de modo irrelevante, em que a vida cotidiana seja pensada como produto de relações
virtuais sem conexão com a realidade concreta vivida pela maior parte da humanidade.
No entanto, apesar dos desafios e impasses, as condições peculiares da Sociologia enquanto
disciplina de educação básica podem favorecer a construção de estratégias pedagógicas que dêem
outro significado as redes sociais on-line, numa combinação que permita a ambas exercerem um
papel fundamental no desvelamento das estruturas sociais por parte dos jovens, resultando talvez
num novo e rico momento de formação das novas gerações.
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220
Capítulo 15 A Educação Ambiental Crítica na Sociologia ∗
Alexandre Maia do Bomfim140
1. Introdução
Havia uma estranha quietude. Os pássaros, por exemplo – para onde tinha ido? Muitas pessoas falavam neles, confusas e inquietas. (...) Os poucos pássaros que se viam estavam sem vozes. Nas manhãs que outrora palpitavam com o coro dos pintarroxos, tordos, pombas, gaios, carriças e diversas vozes de outros pássaros, agora não havia nenhum som. Apenas o silêncio pairava sobre os campos, bosques e pântanos. (Rachel Carson, no livro Primavera Silenciosa de 1962)
Refletir a Questão Ambiental em Sociologia deveria ser uma tarefa tão esperada, o quanto é
para o Ensino de Ciências ou o quanto é para Geografia. Na verdade, em se tratando de um tema
transversal, “Meio Ambiente”, a proposta seria, desde a segunda metade da década de 90 (cf.
BRASIL, 1997), que todas as disciplinas incorporassem seu conteúdo. Algo que poderia ocorrer até
com a matemática, por exemplo.
Não obstante, tem se observado (cf. MENDONÇA; TRAJBER, 2006) que a escola
comumente prefere subordinar, as propostas de inter e transdisciplinaridade assim, grosso modo: os
professores de Filosofia ficam com o tema transversal “ética”; os de Ciências ficam com “saúde”,
“orientação sexual” e “meio ambiente” (este também com os de Geografia); os professores de
Sociologia, História e Línguas ficam com “Pluralidade Cultural”.
Aqui, neste estudo não há a indicação de analisar os pormenores dessa divisão, mesmo porque
há inúmeras variáveis que a engendram (falta de apoio pela estrutura escolar, arbitrariedade por
parte do Estado em relação a esses temas, conformação do professores, etc.), mas será possível
reforçar o quanto alguns temas poderiam romper com esse engavetamento e perpassar por diferentes
áreas. No caso faremos isso entre “meio ambiente” e “sociologia”.
1.1 A Educação Ambiental do senso comum
De maneira geral, a Educação Ambiental da educação formal (escolar) e mesmo a não-
formal está circunscrita por conteúdos como: reciclagem de lixo, mitigação de resíduos,
higienização do espaço, preservacionismo de alguns lugares (muitas vezes desassociando o homem
da natureza – o meio ambiente ideal parece ter que se desvencilhar do homem)... A Educação
∗ Este trabalho é fruto de recentes artigos, realizados, ora individualmente, ora em parcerias, mas muito a partir dos estudos feitos no interior do Grupo de Pesquisa em Trabalho-Educação e Educação Ambiental (GPTEEA) do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro – IFRJ. Conforme o prosseguimento deste texto, esses artigos serão apresentados. 140 PROFESSOR ADJUNTO DE ENSINO SUPERIOR em SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro - IFRJ.
221
Ambiental (EA) geralmente é associada a ações comportamentalistas e individualizantes, como, por
exemplos: economia do gasto doméstico da água, a diminuição de uso de sacolas plásticas, coleta de
óleo comestível, diminuição da ação poluidora individual... Ou para abordagens frequentemente
ligadas, sobretudo: à reciclagem e recolhimento de materiais (preferencialmente oficinas com as
garrafas pets, latas de alumínio e caixinhas de conservação feita de papelão ); a eventos esporádicos
e plantios de árvores na Semana do Meio Ambiente, sob a liderança atenta de professores de ciência
e/ou de geografia, etc. (MENDONÇA; TRAJBER, 2006).
Não que esse conteúdo e ações em EA sejam dispensáveis, mas, pode-se dizer que nesse
patamar é insuficiente. Restringindo-se a esse patamar, essa EA pode ser adjetivada a
“conservacionista”, “preservacionista”, presa a uma perspectiva biologizante (cf. BOMFIM;
PICCOLO, 2009). As Unidades de Conservação (UC), as Áreas de Preservação Permanentes (APP)
são as respostas mais avançadas para esse tipo de EA, que produz um corolário igualmente pouco
avançado, indica à sociedade que haja áreas para preservar e outras para poluir (cf. BOMFIM,
2011b). Não obstante, mesmo a perspectiva biocêntrica de EA tem um item educacional
interessante, quando questiona o tratamento que o homem dá à natureza, quando questiona esse
homem que incessantemente (embora seja impossível) procura dominar e antropomorfizar a tudo.
Quer dizer, a EA biocêntrica, ao menos, procura mostrar que esse homem é apenas mais um item de
um emaranhado de itens que se relacionam, chamado (meio) ambiente.
Porém, é exatamente na desvalorização do homem, quer dizer, no abandono do humanismo
que essa perspectiva biocêntrica pode incorrer num direcionamento político-ecológico ineficaz.
Vamos aos argumentos a seguir.
Num patamar mais rasteiro, pode-se dizer que os ambientalistas que consideram mais a
natureza do que os homens, acabam obtendo politicamente menos adesão à sua causa. Não obstante,
esse é um patamar razoavelmente superado, o próprio desenvolvimento do debate sobre a Questão
Ambiental já permitiu, por exemplo, que entidades que foram criadas para a proteção específica de
determinados animais (mico-leão-dourado, urso panda, tartarugas, etc.) ou lugares, percebessem que
tais ações e atividades não eram suficientes para obter eficiência e eficácia ecológica. Ou seja, não
dá para prescindir da compreensão de como o homem e sua organização social se relacionam com a
natureza.
Uma “Educação Ambiental Conservadora”, de início, seria aquela que trata a Questão
Ambiental de forma positiva, desconsiderando os elementos políticos e ideológicos, negando que
por detrás da degradação da natureza há uma forma de organização social que se impõe, estabelece
relações de produção, de desenvolvimento, de dominação e expropriação da natureza, etc. Neste
ponto é que a Sociologia pode ajudar.
222
Portanto, a Sociologia só pode entrar num diálogo com uma EA que não seja conservadora,
porque sendo concervadora não tem como superar suas próprias limitações conceituais.
1.2 Um convite à Sociologia
Talvez não fosse necessário, mas pode ser interessante começar este item com um convite
feito, não por um sociólogo, mas por um biólogo e ambientalista... Philippe Pomier Layrargues tem
um artigo com título bem sugestivo “Muito prazer, sou a Educação Ambiental, seu novo objeto de
estudo sociológico” (LAYRARGUES, 2002). Nesse texto, ele vai fazer um movimento duplo: tanto
o de demonstrar que a questão ambiental é objeto de estudo da Sociologia, quanto o de demonstrar
historicamente onde começa esse hiato (o distanciamento da Educação Ambiental da Sociologia). O
que por fim, acaba sendo uma reiteração de um convite à Sociologia, para que possa ajudar a
“superar o caráter ingênuo que se cristalizou na educação ambiental, para que ela possa abrigar em
sua meta não apenas a mudança ambiental, mas também a social” (ibid, p. 2).
À disciplina Sociologia pode ser também interessante incorporar mais a Questão Ambiental,
porque através desses novos elementos dessa temática, algumas contradições podem ficar mais
evidentes. Em contrapartida, a EA pode obter da Sociologia, uma perspectiva diferente para seus
problemas conjunturais e estruturais (permanentes), como também uma melhor apreensão e relação
de conceitos importantes para a compreensão do social, como “trabalho”, “cultura”, “história”,
“classe social”, etc.
2. A questão ambiental entre os conceitos de cultura e trabalho141
Um ponto a ser assimilado em “Questão Ambiental”, imprescindível, é entender que se trata
de um tema abordado por inúmeros agentes sociais (ambientalistas, movimentos sociais, governos,
políticos, educadores) com posições distintas e, muitas vezes, divergentes.
Dessa maneira, o primeiro passo para se constituir uma “Educação Ambiental Crítica” (EA-
CRÍTICA) é não lhe retirar o conteúdo sócio-político-ideológico.
Os “problemas ambientais” são construídos socialmente e se referem aqueles fatos que se
tornam problemas para uma sociedade por estarem relacionados a uma moral estabelecida pelos
setores que têm meios e poderes para a imposição de valores (LECLERC, 1979).
Para compreender a importância de considerar os conteúdos político-ideológicos nas
reflexões sobre EA, temos que lembrar que a maneira como a educação é construída em uma
sociedade, bem como a visão que os membros dessa sociedade possuem sobre a natureza e sua ação
sobre ela está estreitamente relacionada à cultura desses grupos sociais.
141 Essa parte é adaptada do trabalho: BOMFIM, A. M.; PICCOLO, F. D. EDUCAÇÃO AMBIENTAL CRÍTICA: para além do positivismo e aquém da metafísica. VII Enpec. Anais. Florianópolis: Abrapec, 2009. http://www.fae.ufmg.br/abrapec/viempec/7enpec/pdfs/753.pdf.
223
Para a Sociologia, o homem é um ser total, isto é, o biológico, o psicológico e o social estão
indissoluvelmente entrelaçados, um fator condicionando o outro (MAUSS, 1974). Nesse sentido,
não é possível compreender a questão ambiental sem levar em conta o homem e sua visão sobre a
natureza.
Por isso mesmo, não se pode incorrer no erro de diminuir na reflexão sociológica as
questões próprias da Ecologia. As opções que são feitas no interior de um sistema cultural não
podem destituir, no final das contas, a condição do homem de se relacionar com os demais seres
vivos e com o meio inorgânico. Opções equivocadas podem constituir numa “cultura de morte”, que
não se refere exclusivamente ao fim indubitável físico dos indivíduos, mas ao modo de vida que
antecipa o fim do próprio agrupamento humano em questão e, o mais trágico, não somente no
sentido simbólico.
Garantida a importância da Cultura para a Educação Ambiental é importante retira-lhe o
espectro metafísico que ronda esse importante conceito das Ciências Sociais. Muitas vezes a idéia
de cultura parece uma entidade sobre os homens, algo que os constituiria num plano quase mágico.
Assim sendo, como e quando se constitui a cultura? Dizer que há uma relação dialética entre os
homens e a cultura, de construção, reconstrução, assimilação, transmissão e retransmissão
sincronicamente entre os indivíduos e com as gerações futuras (diacronicamente) é o início, mas não
suficiente.
O conceito de Trabalho – caro à Sociologia –, advindo das teorias materialistas, pode ser
utilizado junto ao conceito de “Cultura”, de tradição simbólica culturalista. E, para a EA, “Trabalho”
se torna interessante por reintegrar o homem à natureza e indicar uma explicação não-metafísica. Na
verdade, essa inversão a favor do materialismo, de ponta-cabeça, traz conseqüências importantes
para se tratar as questões sociais e para nosso caso com a EA.
Uma EA que desconsidere questões de classe social, especialmente as desigualdades sociais,
também se direciona ao equívoco. Menos do que realizar o resgate de teorias anticapitalistas, esta
reflexão parte de uma constatação: na relação entre ricos e pobres são estes últimos que mais
experimentam as mazelas da degradação ambiental, moram próximos aos rios e baías poluídos, nas
encostas desmatadas, absorvem a poluição dos carros, das queimadas, dos lixões, entre outros.
Então, o conceito de “classe social” pode ser interessante para a EA.
Seria muito importante que EA alcançasse grau maior de crítica (um desafio importante a
ser feito com a sociologia), saísse do patamar da higienização e culpabilização simplista de todos os
indivíduos para: (1) questionar o incentivo consumista da sociedade capitalista; (2) apontar os
principais responsáveis pela degradação ambiental; (3) mostrar que o aumento no nível de
consciência da crise ambiental proporcionalmente não a diminuiu; (4) lembrar que, embora
224
democratizada a responsabilidade, a experimentação das mazelas advindas da destruição da
natureza não é tão igualitária, pois os pobres a sentem mais; (5) mostrar até que a destruição da
natureza não ameaça o “sistema do capital” (MÉSZÁROS, 2002), porque exatamente a escassez
dos recursos que possibilita a realização de novos e bons negócios (CHESNAIS; SERFATI, 2003).
3. Temas sócio-ambientais: Trabalho, Meio Ambiente e Educação142
O capitalismo – Marx no Manifesto – ampliou as cidades submetendo o campo, concentrou
o Capital, trouxe a subjugação das forças da natureza (MARX; ENGELS, 1968, p. 28), alienou do
trabalhador a riqueza que ele verdadeiramente produziu/produz, etc.
A “questão do meio ambiente” vem se incorporar à pauta de luta dos trabalhadores e de seus
aliados (os vermelhos), não deve se restringir apenas aos ambientalistas ou ecologistas (os verdes),
pois revela como o atual modelo de desenvolvimento é insustentável e que há necessidade de
mudança não somente conjuntural, mas estrutural da sociedade.
Duas obras de autores de autores críticos têm destaque aqui para nos auxiliar no debate: o
livro Ecologia e Socialismo de (LÖWY, 2005) e o artigo “Ecologia” e condições físicas de
reprodução social: alguns fios condutores marxistas (CHESNAIS; SERFATI, 2003). Com eles
tecemos considerações para a uma prática-refletida da Educação Ambiental...
Em seu livro, Löwy resgata, principalmente Marx e depois em Engels, reflexões e
passagens que valem de crítica comum ao Capitalismo tanto para os socialistas quanto para os
ecologistas. E Löwy faz isso com muito cuidado, para não forçar por demais uma visão de que em
Marx e Engels havia plena “consciência ecológica”. Não obstante, vê na crítica de Marx ao
desenvolvimento capitalista como o ponto principal a ser reforçado na luta dos verdes.
Percebe-se a intenção de mostrar que as reticências que possuem os ecologistas em
relação aos marxistas não são producentes, já que insistem em restringir Marx ao seu viés
antropocêntrico. Löwy não destitui de Marx suas características iluministas e, de alguma forma,
reconhece os limites do seu entendimento, mas aproveita para rebater alguns pontos fechados de
alguns ecologistas a respeito, que: na luta pela preservação da natureza acabam esquecendo do
homem, conseqüentemente da situação dos trabalhadores, das populações marginalizadas, etc.
Não obstante, da mesma forma que Löwy teceu uma crítica aos verdes não-humanistas,
há também uma para os vermelhos: o calcanhar-de-aquiles do raciocínio de Marx e Engels era (...)
uma concepção acrítica das forças produtivas capitalistas (...) como se elas fossem “neutras”
(LÖWY, 2005 p. 39). Löwy mostra a existência de uma leitura dentro do marxismo que, de algum
142 Essa parte é adaptada do trabalho: BOMFIM, A.M. TRABALHO, MEIO AMBIENTE E EDUCAÇÃO: APONTAMENTOS À EDUCAÇÃO AMBIENTAL A PARTIR DA FILOSOFIA DA PRÁXIS. Revista Labor. , v.1, p.03 - 19, 2011. ISSN: 1983-5000
225
modo, pretende preservar a estrutura produtiva do capitalismo, pois não vê nela o mal, mas somente
em quem a conduz. Porém, tal leitura enviesada incorre num erro. Löwy argumenta que a
tecnologia, obviamente não-neutra, já prescreve em si um direcionamento, possivelmente já
degradador. Em alguns casos, precisam as máquinas ser concretamente “quebradas”, pois não há o
que salvar, por exemplo, nas indústrias bélicas ou naquelas evidentemente poluidoras. Löwy não
propõe um novo movimento luddista, mas percebe que não vai ser simplesmente mudando o
comando que a estrutura vai mudar.
Apesar dessa grande contribuição de Löwy, uma contribuição que possui uma crítica
em grau maior à Questão ambiental é feita na obra de Chesnay e Serfati (cf. CHESNAY; SERFATI,
2002). Embora, de algum modo, Chesnay e Serfati aceitem a proximidade da luta política entre
“verdes” e “vermelhos” porque teriam como pano de fundo a crítica ao Capitalismo, se distanciam
um pouco de Löwy na qualificação dessa luta. Chesnay e Serfati não vêem que a destruição da
natureza seja uma contradição ao “Sistema do Capital” (cf. MÉSZÁROS, 2002), como vê Löwy.
Löwy havia apontado que a destruição da natureza seria também ameaça ao
Capitalismo, pois estaria exaurindo a natureza da mesma forma que faz com o trabalhador, pois para
Löwy a destruição da natureza seria a 2ª contradição do Capital. Já Chesnay e Serfati (ibid.)
divergem dessa visão, mostram em seu estudo que o Capital em seu movimento de depredação da
natureza na verdade não é ameaçado, nem mesmo num momento posterior, como seria na sua
relação com o Trabalho. O Capital necessita da exploração do Trabalho para valorizar-se, essa é sua
única contradição. A escassez da natureza não é uma ameaça ao Sistema Capital, porque será essa
mesma escassez que proporcionará bons novos negócios. Quanto mais a natureza se exaurir, mas se
vislumbra a possibilidade de mercantilizar a água, o ar, a beleza, o que restar do verde, dos animais,
etc. O Sistema do Capital é capaz de destruir primeiro a natureza, o ser humano, do que a si mesmo.
Com Chesnay e Serfati, pode-se inferir que a luta dos vermelhos e verdes está estritamente
condicionada à transformação integral do Sistema do Capital.
A questão ambiental é um dos elementos de uma nova pauta e ainda que não chegue a
constituir uma 2ª contradição (cf. CHESNAIS; SERFATI) imprime sobre “os vermelhos”
importantes desafios teórico-práticos. Não nos parece que a luta dos trabalhadores possa
desconsiderar a questão ambiental; de que a crença no desenvolvimentismo (por vezes também
encontrada em Marx) não possa ser relativizada; de que em sua luta por sobrevivência, os menos
abastados também não possam e já não estejam oferecendo novas respostas à degradação
ambiental... A destruição do planeta pode não ser uma contradição para o Sistema Capital, mas é
para os homens...
226
4. Temas sócio-ambientais: a Questão Ambiental nos Países Periféricos143
Não reverteremos o quadro de destruição da natureza se não tocarmos em alguns pontos
viscerais ao atual modelo societário: a questão da sociedade de consumo; o desenvolvimento
ilimitado; o direito também sem limites de propriedade dos ricos; a expropriação do trabalhador; o
processo de mercantilização de tudo, etc. Há a necessidade de se questionar o termo
“Desenvolvimento Sustentável”, porque da forma que esse conceito vem sendo utilizado nos
últimos anos, tornou-se um oxímoro (como entrar-sair, escuro-claro), tornou-se uma justaposição
inconciliável entre duas palavras, no caso: “Desenvolvimento” e “Sustentável”. Tudo que se fala a
respeito de “responsabilidade ambiental”, “consciência ecológica”, “áreas de preservação”,
“políticas verdes”, etc. não conseguem impedir a destruição da natureza, em nome do
desenvolvimentismo. Se coletivamente não desejamos a destruição da natureza, por que isso segue
acontecendo? Por que a degradação ambiental persiste?
Os países desenvolvidos, maiores responsáveis pela destruição da natureza, estão hoje
alcançando um novo grau de consciência ecológica, posto pelo que Altvater chama de novas
fronteiras ecológicas, desafios de uma sociedade que pretende manter o desenvolvimento
econômico, mas que aos poucos precisar enxergar os limites impostos pela natureza. Altvater:
alguns [os que já alcançaram a “consciência ecológica] criticam a “liquidação ecológica”
praticada pelos países menos desenvolvidos (...) (ALTVATER, 1999). Altvater, é um estudioso
crítico, mas, pode-se dizer, que sua visão ainda é eurocêntrica. Hoje, ainda que tenhamos uma
Europa mais preservacionista, até mesmo recuperadora do meio ambiente, o caminho de
desenvolvimento que experimentaram não parece ser exemplo aos países do hemisfério sul, porque
também degradaram muito seu meio ambiente. A consciência ecológica pode ter chegado, mas
tarde o suficiente para fazer sucumbir, de forma irrecuperável, muitos elementos da natureza,
existentes antes das revoluções agrícola e industrial.
Na verdade, o que parece estar posto aos países ricos é a constatação de que vivem
infelizmente no mesmo planeta dos pobres, desses que deveriam preservar a natureza, mas que
também reivindicam o mesmo “direito de poluir” para se desenvolver. O problema é desejar que as
populações distantes das benesses do sistema capitalista, as que, contraditoriamente, mais sofrem
com a degradação ambiental, ainda tenham que, sem contrapartida ou sem a construção de uma
nova práxis, adquirir consciência ecológica imediata para a preservação da natureza e
sustentabilidade da sociedade.
143 Essa parte é adaptada do trabalho: BOMFIM, A. M. O (Sub)Desenvolvimento (In)Sustentável: A Questão Ambiental nos países periféricos latino-americanos. In: Trabalho Necessário, Rio de Janeiro, ano 8, n° 10. Rio de Janeiro, UFF, 2010
227
Para os países parasitalmente dependentes, a temática ambiental é ainda mais urgente,
porém precisa ser refletido de outra forma. Os países pobres não são historicamente os maiores
responsáveis pela degradação ambiental, mas também não parece ser o caminho reivindicar o
“direito de poluir”. A conveniência dos países pobres em aceitar a ajuda dos países ricos, numa
falsa simbiose, que permite a estes últimos continuarem a poluir, na verdade é apenas uma forma de
controle temporário, um paliativo, que não tem impedido o crescimento da degradação ambiental
diante de um grande contingente de homens e mulheres já degradados por sua condição de vida.
Nosso sistema social tem uma lógica de consumo associada ao produtivismo.
De imediato, qualquer proposta de ruptura dessa lógica nos parece trazer consequências, como:
crise, recessão, desemprego, carestia, atraso, etc. Quando consumimos pouco, a indústria cai, o
desemprego aumenta, o setor terciário também sofre, a crise se instala e todos os seus efeitos mais
perversos podem aparecer (fome, guerra...). Por isso, dentro desse sistema não se pode atacar o
consumismo, grosso modo. Esse é o maior dilema para a proposta de desenvolvimento sustentável,
que comumente hipostasia a questão, apontando como problema a produção de lixo em vez do
consumo. A contribuição da Sociologia em conjunto a outras ciências afins (Economia, História,
Antropologia, etc.), por vezes materializadas nas disciplinas da Educação Básica, está
principalmente na crítica ao sistema social (sendo sob orientações de aperfeiçoamento do sistema ou
sendo sob orientações de rompimento/transformação integral do sistema).
5. Onze Teses contra uma Educação Ambiental Conservadora e a favor de uma Educação
Ambiental Crítica 144
I- Resgate do Humanismo
Ao mesmo tempo em que se resgata o homem quanto “ser da natureza”, pode ser
politicamente estratégico devolver-lhe a condição de “ser da cultura”, porém com uma concepção
de cultura construída a partir e através do trabalho, da relação homem-natureza, do fazer e refazer do
ser, do movimento histórico... Onde o capitalismo é apenas uma das possibilidades de expressão de
sociabilidade humana e não-perene.
II- Denúncia e desmitificação do sistema do capital
III- Limites do “Desenvolvimento Sustentável”
O item certamente importante à EA-CRÍTICA é mostrar a relação entre o sistema do capital
com a degradação ambiental, sem alarde, apontando as relações de exploração, expropriação,
acúmulo excessivo, desperdício, exclusão, etc. No mínimo, questionar a manutenção da lógica
desenvolvimentista associada à sustentabilidade. Denunciar essa falsa idéia de “sustentabilidade”
144 BOMFIM, A. M. Educação Ambiental (EA) para além do Capital: estudos e apontamentos para a EA sob a perspectiva. Trabalho Necessário. , v.ano 9, p.1 - 20, 2011. ISSN: 1808-799X
228
geralmente colocada para o futuro, em que para o presente fica apenas a tarefa de não esgotar os
recursos naturais. Uma idéia de sustentabilidade que credita sempre no avanço tecnológico como
capaz de reverter quadros de degradação, poluição...
IV- Revisão permanente para evitar a conformação
V- Crítica à perspectiva conservacionista e conservadora da EA
VI- Crítica à EA que se reduz a ações higienizadoras e de simples culpabilização dos
indivíduos
Para a EA se fazer Crítica é importante tomar cuidado com um caminho que está sempre em
seu entorno, na verdade da Educação de maneira geral: a reprodução do sistema. Isso pode
acontecer por variadas formas, principalmente: a) ao dar mais atenção aos efeitos do que às causas
(a produção do lixo, por exemplo, em vez do consumo); ou quando orienta mais às ações
individuais, comportamentais sem mostrar a maior degradação realizada pelos governantes e pelas
grandes corporações; no momento que fica na dimensão conservacionista (em que se garantem
lugares para preservar e conseqüentemente outros para poluir)...
VII- Questionamento do consumismo na Sociedade capitalista e do reducionismo da
EA que só trata da reciclagem dos lixos e mitigação dos resíduos
O que não significa desprestigiar o tratamento do lixo, mas apontar que é apenas uma das
indicações para diminuir a degradação da natureza.
VIII- Denúncia: os principais responsáveis pela depredação ambiental
IX- Quem realmente sofre com as mazelas provocadas pela degradação ambiental
Incrementar a perspectiva de classe: hierarquizar os agentes poluidores segundo sua
capacidade de poluição e segundo suas responsabilidades de reverter o quadro de depredação do
meio ambiente, também podem ser elementos da EA-CRÍTICA. Mostrar quem realmente sofre com
a degradação e quem não pode transferir seus efeitos: os pobres. Estes que moram nas encostas dos
morros, ao lado do mangue e rio poluídos, moram próximo ou trabalham nas fábricas que expelem
toxinas. Os mesmos que são responsabilizados igualmente aos ricos pelos problemas ambientais,
embora participem bem menos da lógica consumista do sistema.
X- Conscientização ambiental não é suficiente, pois a degradação ambiental não é
ameaça ao sistema do capital
Tarefa árdua para a EA-CRÍTICA dizer que a conscientização é insuficiente, já que um dos
seus propósitos da educação é a “conscientização”. Não obstante, esse posicionamento é importante
para fazer a EA efetivamente Crítica, porque a Educação não explica em si mesma, não é ponto de
chegada, mas de partida. “Do mesmo modo, contudo, procurar margens de reforma sistêmica na
própria estrutura do sistema do capital é uma contradição em termos” (MÉSZÁROS, 2005, p. 27).
229
Uma EA-CRÍTICA pode encontrar espaço diante da “deseducação” promovida pelos
setores filiados ao desenvolvimentismo e consumismo. O agravante é ter a compreensão de que o
capital não se desvaloriza com a degradação da natureza. Claro que o capital não prescinde da
escola, como vimos com Frigotto (1993) na “produtividade da escola improdutiva”, mas a
degradação ambiental, como vimos com Chesnais; Serfati (2003) pode até valorizar o capital. “É
por isso que é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma
alternativa educacional significativamente diferente” (MÉSZÁROS, 2005, p. 27).
Indicar, ensaiar as ações políticas, para além da Educação, sejam elas conjunturais ou
estruturais. Como nos exemplos feitos abaixo, com medidas políticas e econômicas para um novo
enfoque que: [a] priorize a distribuição em relação à concentração de renda; não reivindique o
“direito de poluir” para se desenvolver; [b] busque justiça social imediatamente e não a vislumbre só
para o futuro; [c] redirecione o “desenvolvimento” tecnológico à diversificação e aos elementos que
impactam menos à natureza; [d] impeça de transformar a escassez da natureza em negócio; [e] não
permita que o direito natural de reprodução da vida pelos grupos humanos se dê exatamente pela
depredação de seu ambiente... Ou seja, a “Questão Ambiental” é no fundo uma “Questão sócio-
político-econômico-ambiental” (BOMFIM, PICCOLO, 2009).
Assim, encaminhamento interessante à EA-CRÍTICA é arriscar em apontar ações políticas
noutros espaços além da Educação formal. A síntese dos apontamentos alcançados até agora, para
uma EA-CRÍTICA, surgiu da contribuição das Ciências Sociais, correspondendo, em parte, ao
chamado feito por Layrargues (2002), que propôs à Sociologia que também assumisse a Educação
Ambiental. Estamos fazendo isso, sob a perspectiva do trabalho.
XI- Em busca das aspirações emancipadoras...
Um dos apontamentos que se pode alcançar à EA “crítica” e à
Sociologia é que, paradoxalmente, de dentro da Educação Formal deve-se garantir uma perspectiva
para além de seus próprios muros. Mészáros chega a dizer que “(...) muito do nosso processo
contínuo de aprendizagem se situa, felizmente, fora das instituições educacionais formais” (grifos
nossos, 2005, p. 53).
Mészáros com o termo “felizmente” carrega uma leitura do marxismo de que é importante
sempre ter uma relação desconfiada com a escola (também nossa visão), porque possivelmente ela é
reprodutora do sistema do capital. Por outro lado, ter essa relação desconfiada é exatamente para
não condená-la definitivamente, mas garantir uma “direção à perspectiva de uma alternativa
hegemônica à ordem existente” (ibid. p. 27).
Não obstante, acrescentaríamos à frase de Mészáros o termo “infelizmente”, assim:
“felizmente e infelizmente”, porque também não é sempre que nos espaços não-formais e informais
230
de ensino acontece a “alternativa hegemônica”, mas muitas vezes o contrário: o estabelecimento da
própria hegemonia do capital. O que se vê nas novelas, na grade inteira das redes de TV, na
publicidade, na mídia impressa, nos entretenimentos de massa de maneira geral, nas orientações
políticas, nas leis, nos apologetas da economia das empresas, senão a pedagogia do capital?
Uma Educação Ambiental e uma Sociologia que se querem críticas devem, de seu espaço
(no caso formal), desmitificar, desvelar, esmiuçar o conteúdo apologético que acontece em todos os
espaços (no seu e nos outros) de ensino utilizados pela pedagogia do capital. A EA-CRÍTICA pode
fazer isso.
De imediato, vale posicionar que, paradoxalmente, por não ser a Questão Ambiental uma
contradição para o desenvolvimento do capital, faz com que não haja ações (nem mesmo
concessões) concretas à preservação da natureza, mas somente ações paliativas, pseudoconcretas
(cf. KOSIK, 1986). A primeira tarefa da EA-CRÍTICA é destruir essa pseudoconcreticidade. Como
a crise ambiental é resultado da possível crise capitalista, mas não o contrário, a EA-CRÍTICA
poderia escancarar ainda mais a “fatal incontrolabilidade do sistema do capital” (cf. MÉSZÁROS,
2002) que, no final das contas, não está preocupado com a preservação da natureza.
Na verdade, no capitalismo, o Estado tem tarefas anteriores à preservação da natureza: a
manutenção da sociedade de classes e controle do trabalho, a busca incessante por lucro e expansão.
O que a EA-CRÍTICA pode fazer é denunciar a praxis utilitarista do capitalismo, em que mede
tudo sob a curta racionalidade de custos e benefícios, e ainda de forma piorada porque só considera
como parâmetros o “valor de troca” e os critérios de escolha da “mão invisível” do mercado.
A EA-CRÍTICA no interior da disciplina de Sociologia pode mostrar a irracionalidade do
sistema – por não receber concessões concretas – apontar a ineficácia dos programas de política
ambiental, as ações paliativas, as inconsistências do mercado livre, a necessidade infinita de
produzir supérfluos na busca do lucro e valorização do capital, etc. A EA-CRÍTICA pode mostrar
que apesar da maior conscientização ambiental e com algum reflexo nas leis e nas políticas
ambientais, o processo de degradação ambiental é contínuo, pode até passar por refluxos, mas tende
a impactar agressivamente a biodiversidade até quase sua obliteração.
A contrapartida que EA-CRÍTICA pode oferecer aos trabalhadores – outro ponto de
interesse da sociologia – é mostrar os momentos em que sua luta se faz míope. Míope, quando –
assim como a pedagogia do capital – ataca os efeitos e não as causas, quando – por conta de
legítima luta imediata e de contexto local – não consegue enxergar mais ao longe e para a estrutura.
Como acontecem nos casos de luta de funcionários de madeireira, como nos casos dos catadores de
lixo que temem pelo fim dos lixões, etc. Esses “trabalhadores que margeiam a degradação
ambiental” querem salvar a qualquer custo seus empregos, mesmo quando são precarizados.
231
Destarte, é uma reflexão que também vale para os trabalhos que assim não se vêem imediatamente,
nem precarizados e nem na fronteira da degradação, mas que também, à distância, estão filiados
somente ao desenvolvimentismo e não a uma real sustentabilidade. No mínimo porque não se
interessam por novas reflexões e ações.
Por onde a Sociologia pode prosseguir?
Um dos desafios que podemos colocar à Sociologia, no fim deste capítulo, é tentar resposta
para essa problematização: Como se desvencilhar do caminho desenvolvimentista com novas
respostas aos trabalhadores e a partir deles? E não reivindicando o direito de poluir, de
consumir, de destruir como fizeram os países centrais, o que fazer? A busca por essa(s)
resposta(s) passa por variados níveis, inclusive e principalmente pela escola da Educação Básica,
por seus professores e por seus alunos, com experiências concretas que possam superar as ações
comportamentalistas e higienizadoras e possam aprender a realidade sócio-ambiental do entorno e
possam debater os aspectos sócio-político-ambientais mais amplos, nacionais e até globais...
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233
Capítulo 16 Violência simbólica e política educacional: etnografia dos conflitos escolares e ensino de sociologia no Rio de Janeiro
Andrey Cordeiro Ferreira145 Valena Ribeiro Garcia Ramos
Introdução
Este artigo realiza uma breve reflexão etnográfica sobre a política educacional 146 e como
ela expressa práticas de poder de Estado e lutas simbólicas (travadas entre os trabalhadores da
educação, agentes de Estado e etc.). A etnografia aqui proposta pretende, a partir do estudo de caso
do ensino de sociologia na rede de educação estadual do Rio de Janeiro, problematizar como as
diferentes formas de violência simbólica se manifestam no cotidiano e condicionam a dinâmica e o
contexto escolar. O contexto da inserção da sociologia como disciplina obrigatória do ensino médio
possibilita uma reflexão sobre a interação entre essas dimensões e a compreensão dos diferentes
projetos e visões da educação em conflito.
O artigo é divido em três partes. Na primeira, analisamos como o conceito de cultura é
apropriado dentro do atual contexto histórico por determinadas políticas educacionais, sendo
transformado em símbolo dentro de determinadas estruturas discursivas que estão associadas a
práticas de dominação desencadeadas como efeitos de ações administrativas (direcionadas, por sua
vez, pelo conceito de “sucesso escolar” e “eficácia”). Na segunda parte, apresentamos uma breve
descrição etnográfica do processo de reinserção da sociologia no ensino médio, na rede pública
estadual, e a identificação de alguns elementos presentes no discurso dos professores e nas práticas
cotidianas escolares (especialmente como as atuais políticas educacionais são vividas na experiência
cotidiana e como são desenvolvidas formas de resistência e conflito). Na parte final, apresentaremos
um esboço de como a antropologia e a etnografia podem contribuir para o desenvolvimento de
práticas educacionais dirigidas por um projeto voltado para a autonomia, exatamente num quadro de
dominação política e violência simbólica.
145 Andrey Cordeiro Ferreira é antropólogo e professor do CPDA/UFRRJ e Valena Ribeiro Garcia Ramos é professora de sociologia da SEEDUC e doutoranda em antropologia pela UFF. 146 Apresentamos aqui resultados parciais de uma pesquisa desenvolvida no âmbito do projeto "Sociologia e Autonomia – desenvolvimento de tecnologia socioeducativa para o ensino de sociologia na educação básica" que visa à compreensão das dinâmicas escolares e produção de material didático de sociologia na educação básica. A pesquisa levada a cabo tem a proposta de conjugar a perspectiva antropológica focada nas práticas do cotidiano escolar (para compreender as formas de dominação na educação) com o desenvolvimento de novos processos educativos direcionados à autonomia. Trata-se de projeto financiado pela Faperj e iniciado em maio de 2011. Os dados aqui utilizados foram oriundos de pesquisa histórica e documental e também de observação participante e conversas informais em escolas da região metropolitana, assembléias do sindicato dos profissionais de educação, atos públicos da SEEDUC e dos trabalhadores de educação ocorridos durante o ano de 2011.
234
1 – Práticas educacionais e estruturas discursivas: “eficácia”, “sucesso” e “cultura como núcleos de significação e poder Alguns autores já notaram certa ambivalência no uso do conceito de cultura, que oscilou em
sentidos muitas vezes opostos (universalização/particularização, singularização/pluralização) e a
mudança de sua condição de discurso especializado e científico para categoria de difusão
generalizada entre diferentes atores e campos sociais, sendo seu sentido dado por processos
significativos que precisam ser tematizados em cada caso concreto147. O conceito de cultura tem
sido deslocado para múltiplos contextos disciplinares do campo científico, como mostram o
interesse das disciplinas de educação e pedagogia pela cultura escolar148 mas também migrou para
o arsenal dos técnicos e gestores responsáveis pela política educacional.
Nesse sentido, a análise do discurso e do uso de determinadas categorias como símbolos
(que visam organizar, hierarquizar e gerar práticas e sentidos específicos) é fundamental. Mais do
que pensar a escola a partir do conceito de cultura (e a idéia de uma “cultura escolar”) iremos
analisar como o conceito de cultura está sendo acionado no discurso que compõe as políticas
educacionais e como ele integra mecanismos de violência simbólica149.
Para isso faremos a análise de alguns documentos e acontecimentos recentes que marcam a
política educacional no Brasil e a forma de sua aplicação no estado do Rio de Janeiro. Esses
documentos e acontecimentos foram produzidos entre 2008 e 2011 e seus efeitos ainda não são
plenamente manifestos. Entretanto, alguns conflitos já estão se desenrolando, sejam estes explícitos
e coletivos, sejam latentes e difusos. Dessa maneira a análise aqui apresentada não pretende ser
exaustiva nem muito menos conclusiva, mas um exercício analítico e etnográfico acerca da
introdução de mudanças simbólicas e discursivas na política educacional e como estas podem ser
um instrumento para a problematização da política educacional e condição escolar.
Iremos agora analisar um documento que consideramos emblemático do processo de
mudança na política educacional brasileira e que repercute em políticas de gestão educacional no
Rio de Janeiro. Referimo-nos aqui a pesquisa “Melhores Práticas em Escolas de Ensino Médio no
Brasil” que se originou em 2008 quando o Ministério da Educação (MEC) iniciou entendimentos
147 O Livro de Adam Kuper “Cultura – a visão dos antropólogos” traz importantes contribuições para o entendimento da multiplicidade de usos políticos do conceito de cultura, mostrando que o mesmo pode ser empregado para questionar formas de homogenização social ou para legitimar práticas discriminatórias. 148 Nesse sentido, o uso do conceito de cultura na área de educação tem sido freqüentemente um instrumento crítico-metodológico, permitindo analisar as diferenciações sociais dentro das escolas e orientar a produção de práticas de ensino adaptadas a diferentes realidades (ver, por exemplo, Vera Candau: 2009). Mas queremos mostrar que mesmo esse uso se dá dentro de um quadro de disputa pelo sentido do conceito dentro de um universo mais amplo de luta de classificações. 149 Utilizamos aqui o conceito de violência simbólica como formulado por Pierre Bourdieu em “O Poder Simbólico”, para mostrar como a luta de classes se manifesta no plano das representações e classificações do mundo. Assim, violência simbólica é uma forma de exercício da dominação de classe por meio da imposição de categorias de pensamento acionadas como socialmente legitimas e freqüentemente exclusivas.
235
com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) tendo em vista a necessidade do
“aprimoramento das políticas públicas nesse nível de ensino” e a importância que o tema assumia
para o Ministério. No ano 2009, em acordo com as Secretarias Estaduais de Educação
(SEEDUCds), foi realizada uma pesquisa de campo em 35 escolas de quatro secretarias (Acre,
Ceará, São Paulo e Paraná), analisaram-se os resultados preliminares com os Estados e com o MEC
e prepararam-se os relatórios correspondentes. Esse trabalho resultou na elaboração de um texto
com o mesmo nome. Esse documento é complexo e mereceria uma análise mais detida, mas aqui
ficaremos restritos a um aspecto específico, o de como se articula o conceito de cultura com a
estruturação de uma prática de violência simbólica na qual se desenrola o atual processo de “re-
inserção” da sociologia no ensino médio.
“A análise dos dados quantitativos e qualitativos produzidos pela investigação permitiu identificar, nas escolas dos Estados selecionados, características recorrentes que se manifestam de forma sistêmica e em diferentes níveis de intensidade. Essas características estão presentes nas boas práticas de todas essas escolas, consideradas responsáveis pelos resultados alcançados pelos jovens que nelas estudam. É interessante notar que essas práticas são congruentes com as identificadas ao longo das últimas décadas na literatura internacional sobre escolas eficazes... (Herrán, 2009)”
Esse trecho explicita um aspecto geral do objetivo do documento, que é aumentar a eficácia da
escola. A noção de escola eficaz ganha conteúdo político quando os autores apresentam os
critérios150 para definí-la. No total são sete critérios e destes dois são referentes à percepção
subjetiva dos educadores e um à atribuição de “senso de responsabilidade/expectativa de sucesso”.
Três dizem respeito à intensificação do controle do tempo e do espaço de trabalho, com nítidas
implicações trabalhistas (“trabalho em equipe + preservação do tempo escolar + clima
harmonioso”) e um fala da autonomia e criatividade da equipe escolar. Essa análise inicial do
documento já permite destacar um elemento fundamental: a efetividade da escola depende das
práticas que as equipes escolares associam ao “sucesso escolar”. E aqui fica posta uma contradição
fundamental: controle (para produzir o “sucesso”) X autonomia, sendo que essa última, mesmo
figurando no discurso da política educacional é cada vez mais reduzida, seja do ponto de vista da
relação de trabalho, seja do ponto de vista cognitivo-epistemológico.
Existe um encadeamento hierárquico no diagnóstico dos fatores que condicionam o
funcionamento da escola que advém de uma concepção geral “econômica”, diagnóstico este
organizado a partir de uma diferenciação entre “insumos externos” e “insumos internos” e da noção
de “escola-eficaz” e/ou “efeito-escola”. O diagnóstico indica que existe uma homogeneidade das
150Fazendo aqui uma síntese, os critérios são os seguintes: “1) aprendizagem como foco central da escola; 2) expectativas elevadas sobre o desempenho dos alunos; 3) elevado senso de responsabilidade profissional dos docentes em relação ao sucesso dos estudantes; 4) trabalho em equipe e lideranças reconhecidas; 5) preservação e otimização do tempo escolar; 6) normas de convivência claras, aceitas e incorporadas à dinâmica da escola; 7) clima harmonioso: a escola como um lugar agradável para ensinar e aprender; 8) autonomia e criatividade por parte da equipe escolar.” (Herran ET. All, 2009, P. 17)
236
condições dos insumos externos (ou seja, das condições de infraestrutura e recursos disponíveis à
escola) e por isso o núcleo principal para a definição da eficácia da escola estaria na organização e
gestão dos “insumos” internos.
É nessa estrutura discursiva que emerge a formulação de uma política educacional derivada
do diagnóstico do documento, como podemos ver pelo trecho abaixo:
“Esses fatores permitem identificar um conjunto de “melhores práticas¨ presentes, em maior ou menor grau, em todas as escolas pesquisadas. Nas escolas que integram o estudo, as práticas identificadas articulam-se de forma sistêmica ..., apresentando-se como nodais para seu sucesso. A ênfase em uma ou em outra é peculiar a cada uma das instituições de ensino; a forma como elas se manifestam responde à identidade de cada escola e resulta dos modos como estas se apropriam de sua história, das normas institucionais e do que delas se espera, “formando uma cultura própria de responsabilidade (accountability interna) cujo foco é a aprendizagem dos alunos. Todas as ações demonstram que as escolas se preocupam com a apreensão de conteúdos e com o desenvolvimento de competências e de habilidades dos estudantes”. (Herrán ET all, 2009, p. 17).
Aqui chegamos talvez ao argumento nuclear do documento: a configuração de um tipo
específico de “cultura” da escola derivada de fatores subjetivos dos profissionais de educação e dos
fatores de gestão são os elementos centrais para produção de uma escola “eficaz”. Em última
instância existe uma fórmula que associa cultura da responsabilidade = efeito-escola positivo
(eficácia econômica da escola). Por outro lado, a “cultura” aqui adquire um sentido específico, pois
ela não expressa pontos de vista e tradições locais, mas um determinado ponto de vista ou
moralidade considerado como prescritivo para o sucesso escolar.
Queremos chamar atenção ao fato de que nessa estrutura discursiva existe um predomínio
de concepção economista-marginalista, mas essa mesma estrutura discursiva vai evocar o conceito
de “cultura” (da responsabilidade) como um operador fundamental (como um insumo essencial à
eficácia da escola). O conceito de cultura será o núcleo explicativo da eficácia da escola e essa
eficácia é medida pela capacidade da escola atingir os índices e indicadores de avaliação externa. O
conceito de cultura é acionado para explicar o “sucesso escolar” e na realidade torna-se um de seus
componentes.
Devemos enfatizar que nesta concepção cultura não é nada que os atores presentes na escola
expressam, mas sim aquilo que é expresso como um modelo ao qual estes têm de se enquadrar.
Dessa maneira a idéia de cultura da responsabilidade é acionada como fonte de positivação dos
“insumos internos da escola” e essa cultura é vista como o resultado de práticas associadas pelo
documento ao controle do tempo e espaço, ao controle e uniformização do saber e a intensificação
do poder do gestor e sua racionalização .
Se de um lado são recomendadas mudanças na gestão do espaço e tempo escolar, de outro
são sugeridas mudanças cognitivas, uma vez que um componente fundamental é a idéia da
237
uniformização das práticas de ensino a partir de conteúdos. Em outro momento do documento se
afirma claramente esse alinhamento: “ii) a coerência ou o alinhamento entre a proposta curricular
(o conteúdo), os materiais e a capacitação e as avaliações externas” (Herran ET. All, 2009, p. 25).
Aqui existe um componente fundamental. A cultura que se pretende produzir na escola visa um
alinhamento direto entre as formas de organização e circulação dos saberes e dos significados
(através da seleção de determinados conteúdos curriculares) e de determinados poderes políticos,
uma vez que estes deverão ser comandados por uma avaliação externa que é o principal
componente de uma política educacional de Estado. Isso faz com que na realidade exista uma
tendência a se determinar a política educacional em função do processo avaliativo (sejam os
direcionados a determinar a continuidade ou não do aluno no sistema escolar, como o vestibular, ou
de avaliação de política educacional) e, consequentemente, todo o processo pedagógico. A
imposição de uma determinada política é a imposição de determinados significados e formas de
saber.
A análise do discurso que compõe o resultado da pesquisa encomenda pelo MEC poderia
ser considerada como um fator em si mesmo relevante. Mas essa estrutura discursiva, que explicita
uma determinada orientação para a política educacional em escala nacional, já começou a produzir
efeitos na própria política educacional no âmbito do estado do Rio de Janeiro. Não se trata apenas
então de um documento, de um texto, dentre outros textos, nem de pensar que o texto em si mesmo
produziu efeitos práticos, mas ver como esse texto faz parte e sinaliza para emergência de
determinadas ações de Estado, por meio da política educacional, e que coincidem com uma
produção administrativa que converge em objetivos, técnicas de poder e estruturas discursivas.
Por isso, a análise de alguns acontecimentos recentes complementa o sentido da análise de
uma determinada construção discursiva e como na realidade elas são fontes gerativas do exercício
de uma dominação por meios político-administrativos e simbólicos. Podemos dizer que esses
acontecimentos se inserem dentro de um mini-contexto que começa com a substituição do secretário
de educação do Rio de Janeiro em 2010, sendo nomeado para o cargo Wilson Risolia.
“O novo secretário estadual de Educação do Rio de Janeiro, o financista Wilson Risolia, assumiu a pasta, nesta quarta-feira (6), com promessas de avanços na área, que teve um dos piores índices de desenvolvimento do país, como a valorização dos professores, um sistema de bonificação e ainda plano de metas para as escolas. ´Eu não vim para o risco, podem ter certeza. Vim para somar. Meu compromisso é tentar colocar o Rio em uma posição que ele merece. Nós vamos levar esse estado a uma posição digna pelo potencial que tem´, afirmou Risolia, prometendo obter resultados da mesma forma que fez na direção da RioPrevidência, cargo que entregou na terça-feira (4) e onde ficou durante três anos e meio. Na sua gestão, o órgão foi modernizado e o tempo de concessão de benefícios foi reduzido de um ano para 30 minutos. (...) Com uma visão e o linguajar de economista, o secretário reconheceu que os números da Educação no estado são ruins e já definiu os próximos passos à frente da pasta. Segundo ele, a prioridade agora é traçar um diagnóstico profundo da rede de ensino do Rio. ´ Quem são esses alunos, os diretores? Que capacitações esses ‘entregadores do saber’
238
possuem? Eu penso educação como um negócio. Quero saber se o meu produto é bom´, disse. O outro compromisso, segundo ele, é obter sucesso nos rankings de educação. Para isso, a rede de ensino será certificada e os professores receberão bonificações, como é feito na Secretaria de Segurança. ´Esses professores, diretores, esses ‘entregadores do saber’ precisam estar preparados para fazer isso de maneira adequada, vamos apoiá-los com infraestrutura, vamos dar elementos para que eles consigam empenhar essa função, valorizando o professor, mas vamos cobrir o que em finanças a gente chama de taxa de retorno. Nós daremos as ferramentas, mas queremos obter resultados´, explicou. Segundo o secretário, o atual sistema de avaliação nas escolas terá continuidade. A ideia é anunciar o plano de metas ainda esse ano para que seja colocado em prática em 2011. Todos os professores, diretores e também alunos serão avaliados. Risolia fez críticas à gestão do programa de bonificação Nova Escola, que acabou sendo interrompido pelo governo do estado. “O problema ali foi de acompanhamento. Se pensou em algo excelente, mas não se conseguiu gerir aquilo. Não houve acompanhamento. No nosso caso garanto que não haverá problema”, prometeu ele. O governador Sérgio Cabral anunciou o nome do novo secretário que ficaria no lugar de Tereza Porto na terça (5), dois dias depois de reeleito. A educação no Rio foi alvo de ataques de adversários durante a campanha eleitoral. Em nota oficial, Cabral chamou a atual gestão de excelente. “Tereza completou um ciclo muito importante, tirando a Educação do nosso estado de um atraso de décadas151”.
Poderíamos fazer uma conexão entre as bases “economistas” dos conceitos que ajudam na
elaboração da política educacional do MEC e o léxico financista-economista anunciado pelo
secretário de educação. Essa associação indica um predomínio de uma determinada visão de mundo
e projeto político no comando da política educacional na esfera federal e estadual. Mas não é esse o
aspecto, igualmente importante, que queremos chamar a atenção agora. Mas sim o fato de que essa
mudança política implicou numa modificação da política educacional no Rio de Janeiro no período
imediatamente posterior.
Esses objetivos começaram a ser traduzidos no “Plano Estadual de Educação”, documento
produzido pela Secretaria Estadual de Educação do estado do Rio de janeiro (SEEDUC-RJ) em
janeiro de 2011 em que são traçadas as orientações gerais e objetivos da política educacional do Rio
de Janeiro. O quadro abaixo apresenta uma síntese das ações do documento.
Processos e Ações 2011 do Plano de Educação/SEEDUC-RJ Dimensão Melhorar Condições do
Docente Dimensão Estruturação
da Área Pedagógica Dimensão
Meritocracia Recrutamento e Seleção de Funções Estratégicas Criação de novas carreiras e funções (Carreira nível Técnico, Função Gestor) Acompanhamento de Currículo Mínimo Formação e Desenvolvimento –
Universalização do Ensino Médio Integrado Redução da quantidade de alunos em situação de defasagem idade/série Orientação Vocacional – a partir do 2º ano do EM Disponibilizar e
Processo Seletivo Interno para funções estratégicas pedagógicas de Diretor de Unidade Escolar a Subsecretário de Ensino Formação continuada
151 Ver “Novo secretário de educação do RJ assume com promessa de avanços”, por Carolina Lauriano. Do G1 RJ. (http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2010/10/novo-secretario-de-educacao-do-rj-assume-com-promessa-de-avancos.html)
239
programa de formação continuada de 10.000 professores por semestre (Meta) Reassunção de Servidores Disposição de Servidores – cessão sem ônus Benefícios –Auxílio Qualificação (maio/11), Remuneração Variável, Auxílio Transporte (fev/11) Avaliação de Competências Criação da Escola Corporativa SEEDUC
incentivar aulas de reforço Currículo Mínimo Simulados Bimestrais
por meio de certificação Auxílio Transporte (R$ 68 milhões) Auxílio Qualificação (R$ 25 milhões) �Remuneração Variável (no limite, R$ 140 milhões)
O documento contém um item que denomina de “diretriz estratégica” definida como “Estar
entre os 5 melhores no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) em 5 anos” que é
composto do que é denominado “3 Pilares” (Dimensão Melhorar Condições do Docente; Dimensão
Estruturação da Área Pedagógica; Dimensão Meritocracia) e cinco frentes de trabalho. Estas teriam
como objetivo resolver questões pedagógicas, o remanejamento de gastos, a rede física, o
diagnóstico de problemas e os cuidados com os alunos. As medidas mais destacadas, porém, foram
a implantação de um regime meritocrático para a seleção de gestores; a realização de avaliações
periódicas (com a criação do Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro –
Saerj); o estabelecimento de metas de desempenho para balizar a concessão diferenciada de
gratificações aos docentes; e a revisão das licenças de 8 mil professores.
O plano, por sua vez, foi materializado numa produção de atos de Estado, basicamente em
decretos e resoluções administrativas do Governo do Estado e SEEDUC-RJ. O quadro abaixo nos
ajuda a visualizar essa mudança, não a orientação da política educacional em si, mas a emergência
de uma nova prática administrativa direcionada para o exercício da dominação sobre o tempo, o
espaço escolar e (também) sobre o saber, subordinando-o a uma determinada política educacional,
econômica e simbólica hegemônica.
Quadro Sinóptico da Legislação e Políticas Educacionais no RJ 1990-1994 1995-1998 1999-2002 2003-2006 2007-2010 2011 Lei 1.614 de 1990
Lei 3.067 - 25 de setembro de 1998 Lei 3.155 - 29 de dezembro de 1998 Lei 9.394 -
» Decreto 34.738 - 29 de janeiro de 2004 » Resolução / FNDE / CD / 38 de 23 de agosto de 2004 » Lei 4.301 - 26 de março
Decreto 6.425 - 04 de abril de 2008 Lei 5.451 - 22 de maio de 2009 Lei 5.597 - 18 de
Decreto 42.838 - 4 de fevereiro de 2011 Decreto 42.837 - 4 de fevereiro de 2011 Decreto 42.793 - 06 de
240
23 de dezembro de 1996 » Lei 2.654 - 16 de dezembro de 1996
de 2004 Lei 4.528 - 28 de março de 2005 Lei 4.746 - 11 de abril de 2006
Lei 4.856 - 28 de setembro de 2006
dezembro de 2009
janeiro de 2011 Decreto 42.791 - 06 de janeiro 2011 Decreto 42.788 - 06 de janeiro 2011 Resolução 4.669 - 4 de fevereiro de 2011
O quadro nos permite observar o seguinte: o ano de 2011 foi especialmente marcado pela
concentração de criação de instrumentos normativos-administrativos na área educacional. Foram
cinco decretos e uma resolução (contra um decreto e duas leis promulgadas entre 2008 e 2009).
Outro aspecto destacado é que o número de decretos indica uma maior intervenção do executivo na
política educacional. Com isso, diversas ações do Plano Estadual de Educação foram materializadas
por meio dos Decretos: 42.788 de 06 de janeiro de 2011, 42.793 de 06 de janeiro de 2011 e
Resolução 42. 830 de 04 de fevereiro de 2011.
Dessa maneira, a política educacional sofreu uma mudança que pode ser inferida pela
intervenção inicial da gestão, criando novas normas e procedimentos para organização e gestão das
escolas. Esse processo poderia parecer relativamente independente dos discursos e orientações do
MEC que analisamos acima. Mas quando examinamos o conteúdo desses novos instrumentos
administrativos e seus objetivos enunciados podemos perceber exatamente como essa política
educacional aplicada no Rio de Janeiro está se alinhando com uma estrutura discursiva que não
somente justifica, mas formula e orienta o conteúdo simbólico e a forma específica do exercício da
dominação no espaço das escolas enquanto espaço de circulação de saberes e local de trabalho.
Uma análise preliminar mostra como se articulam em procedimentos administrativos formas
de violência simbólica e praticas de dominação estatal. Podemos destacar aqui dois conjuntos de
ações que, por meio de medidas político-administrativas, incidem sobre a escola como local de
trabalho (através das medidas “meritocráticas”), e, outro conjunto que incide sobre a escola como
local de saber, sobre a dimensão simbólica e cognitiva sendo na realidade a segunda determinante
para as primeiras nesse caso concreto. A criação do Índice de Avaliação da Educação do estado do
Rio de Janeiro (Iderj) cria toda uma hierarquia de procedimentos como a Instituição do “currículo
241
mínimo152” visando avaliações externas; a subordinação da política salarial à aplicação desses
resultados; instituição de mecanismos de avaliação153 de cumprimento de metas pelos profissionais
da educação centrados em dois componentes: a) cumprimento de 100% do currículo mínimo” e b)
participação em todas as avaliações internas e externas, além de efetuar o lançamento das notas do
alunado na forma e prazo estabelecidos entre outras metas) 154.
Figura 1 - Hierarquia de categorias simbólico-discursivas que estruturam práticas de poder na
atual política educacional Podemos, então, chegar a algumas conclusões a partir dessa etnografia e análise das formas
de poder político e simbólico exercidos por meio da política educacional. O campo atual em que se
desenvolve a etnografia do ensino de sociologia e da política educacional é marcado pela
emergência de um conjunto de discursos e práticas de poder, materializada através do conceito de
“fracasso” e de precariedade das condições de ensino da escola, sendo o Rio de Janeiro um dos
estados com piores índices na avaliação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb),
o que motivou não somente a mudança no comando da SEEDUC-RJ em 2010, mas a instituição de
medidas práticas através de atos políticos do poder executivo estadual e administrativo da secretaria
de educação. A idéia da “escola eficaz” – que é evocada como núcleo central de determinados
discursos acerca da política educacional –, como vimos pela análise do documento do MEC, vai se
152 Cabe destacar que foi instituída a adoção de currículos mínimos para as disciplinas de Língua Portuguesa/Literatura, Matemática, História, Geografia, Filosofia e Sociologia. A SEEDUC criará mecanismo de acompanhamento bimestrais do currículo mínimo. Haverá também provas bimestrais que servirão para calcular o IDERJ. 153 Faz parte do Programa ainda um sistema de avaliação contínua da atividade individual de cada servidor, observando os seguintes fatores: assiduidade; pontualidade; produtividade; conhecimento técnico; relações interpessoais; conduta ética. Os profissionais receberão um conceito instituído pela SEEDUC. 154 Como alcançar, no mínimo, 95% de resultado de cada meta do Iderj do ensino regular da unidade escolar; alcance de, no mínimo, 80% de resultado de cada meta do indicador de desempenho da educação de jovens e adultos presencial da unidade escolar.
242
tornar um símbolo componente de uma determinada política educacional e será mobilizado no ano
de 2010 o Rio de Janeiro começa a ser retratado como um dos piores estados em termos de
educação155. A idéia do “fracasso” da educação vai ser assim um dos elementos que marcará as
mudanças na política educacional no Rio de Janeiro. Por outro lado, existe uma clara convergência
– não somente no léxico econômico-financista da pesquisa do MEC com o do secretário de
educação do Rio de Janeiro – que vê a educação como um negócio, mas especialmente na forma
pela qual as práticas são organizadas. Como vimos acima, a idéia de eficácia da escola (para avaliar
a instituição) e “sucesso escolar” para avaliar o desempenho dos alunos são o centro dessa política e
dessa estrutura discursiva. A “eficácia e sucesso escolar” são associados aos procedimentos de
controle do processo de trabalho, por meio de práticas de poder político administrativo e de
processos cognitivos, ou seja, de práticas de poder simbólico.
Nessa estrutura discursiva é difundida a idéia de que a eficácia e o sucesso escolar são
derivados dos “insumos internos”, ou seja, da capacidade de gestão da prática dos professores e sua
adequação aos objetivos da política educacional, bem como da aferição positiva nas avaliações dos
próprios órgãos estatais. A cultura da responsabilidade que é mencionada no documento é, em
última instância, a imposição da eficácia e sucesso escolar como valor absoluto da escola, valor que
deve ser compartilhado pelos atores por meio de sua subordinação voluntária às normas de controle
administrativo e processos avaliativos.
Na política educacional vislumbrada pela pesquisa do MEC tal como está sendo
desenvolvida no Rio de Janeiro hoje, isso está sendo feito por meio de práticas de poder político-
administrativo e simbólico, do qual o centro é o binômio currículo/avaliação. Por outro lado, dentro
dessa lógica, o “fracasso escolar” é pensado a partir dos insumos internos, ou seja, da sua “qualidade
e capacidade”. Como esses insumos internos dizem respeito aos trabalhadores da educação, o
sucesso ou o insucesso, eficácia e ineficácia escolar são atribuídos estruturalmente aos profissionais
da educação e sua capacidade ou incapacidade (que é medida pela adequação e execução da própria
política educacional, ou seja, pela subordinação voluntária e aceitação do poder político e simbólico
que é exercido por meio dela). O elemento mais destacado desse momento é a existência de uma
nítida e explícita associação entre práticas de saber e práticas de poder, uma vez que o poder é
exercido sobre o saber (o currículo, conteúdos, conhecimentos e organização do espaço escolar, o
155 É importante lembrar que tal questão foi colocada na agenda durante as eleições para o Governo do Estado do Rio de Janeiro. O então governador e candidato “Sérgio Cabral, candidato à reeleição pelo PMDB, culpou os oito anos de gestão do prefeito Cesar Maia pelo fraco desempenho do estado do Rio no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Cabral fez referência ao período em que vigorou no Ensino Básico – atribuição do município – a aprovação automática. O candidato à reeleição pelo PMDB, que participa de uma sabatina pelo portal UOL, no Rio, também citou a falta de aumento aos professores durante 12 anos e a carência quantitativa desses profissionais como outros fatores para os baixos índices educacionais no estado”. Ver http://veja.abril.com.br/blog/eleicoes/disputa-nos-estados/cabral-culpa-cesar-maia-por-fracasso-do-rio-no-ideb/.
243
tempo e a subjetividade dos profissionais da educação subordinados aos índices e a eficácia) e sobre
as relações de trabalho no âmbito interno da escola em geral, via secretaria de
educação/profissionais da educação, numa conjugação do poder político-administrativo e do poder
simbólico.
Sendo esse um contexto geral, podemos notar outro componente fundamental que é a forma
particular pela qual o ensino e prática dos professores de sociologia vêm sendo condicionada. O
comando da política educacional por uma orientação determinada (economicista-financista) e por
uma visão centrada no “sucesso escolar” (com todos os pressupostos cognitivos analisados acima)
cria assim um contexto específico de transferência da determinação da interpretação das condições
de funcionamento da escola da “sociedade” para os “indivíduos” e suas “práticas”, o que
poderíamos colocar como des-sociologização da educação. Esse processo está assim materializado
no ambiente escolar e tenderá a condicionar156 a prática e o ensino de sociologia, já que no caso
dessa disciplina existe um choque direto. Não deixa de ser significativo também que a sociologia
tenha estado entre as primeiras disciplinas selecionadas para a produção de um “currículo mínimo”
e continue, como veremos, numa instabilidade de sua institucionalização, mesmo depois do Parecer
CNE/CEB 38/2006 que institui a disciplina como componente curricular obrigatório no ensino
médio. Ou seja, existe um atual contexto de normatização e imposição de valores, símbolos e
objetivos políticos por meio da política educacional. Cabe agora colocar como isso se relaciona com
a experiência particular do ensino de sociologia no Rio de Janeiro e como esses acontecimentos
estão afetando a experiência dos profissionais de educação da área de sociologia.
2 – A sociologia vai à escola: conflitos entre projetos e políticas educacionais
Para entender melhor os conflitos que envolvem a re-introdução da sociologia no ensino
médio e as concepções em torno do papel que pode desempenhar na área da educação,
apresentaremos um breve histórico sobre a sua trajetória, centrada no final da década de 80,
momento de ressurgimento da mesma na grade curricular no estado do Rio de Janeiro e a sua
progressiva institucionalização a nível nacional. Revisando a história da sociologia na educação
básica, percebe-se que a oscilação entre a inclusão da disciplina (ora na condição de
obrigatoriedade, ora na condição optativa), e sua total retirada do currículo básico foi um aspecto
que expressa os conflitos em torno de sua legitimação enquanto campo de conhecimento escolar.
A primeira iniciativa de sua inclusão no sistema educacional, ocorrida em 1882, se deu nos
156 Cabe observar que a própria sociologia, enquanto disciplina, não é homogênea e a transformação num conjunto de conteúdos escolares colocam problemas que ainda precisam ser melhor discutidos. Mas o importante é que esse movimento de “des-sociologização” não foi criado por essas ações e leis, mas elas tendem a reproduzi-lo e reforçá-lo.
244
cursos preparatórios e superiores. Contudo, tais esforços não foram materializados. Entre 1890 e
1897, tornou-se obrigatória nos cursos preparatórios de sexto e sétimo anos secundários, porém,
mais uma vez não foi posta em prática.
O período de institucionalização do ensino de sociologia foi curto, entre os anos de 1925 e
1942, quando esteve presente na matriz curricular como componente obrigatório, em seguida
passou a ser cobrada nos exames de ingresso as universidades. Mas com a reforma Capanema, a
disciplina é definitivamente excluída do currículo permanecendo apenas como sociologia
educacional nos cursos de formação de professores normalistas. Entre 1961 e 1971 torna-se
componente optativo nos cursos colegiais, mantendo-se nesta condição até 2006.
Neste ínterim, a LDB 9.394/96 destaca a sua importância, bem como a da filosofia, ao
afirmar que os educandos devem ter o domínio dos conhecimentos destes campos de saber
científicos necessários “a formação indispensável ao exercício da cidadania”, mas não assegura a
sua obrigatoriedade, devendo ser abordada de forma interdisciplinar e contextualizada, condição que
foi posteriormente reafirmada com as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio-
DCNEM .
Somente em 2006, com o parecer nº 38/2006, é que a sociologia retorna à condição de
disciplina obrigatória no currículo do ensino médio (Moraes: 2003). Ainda que a ausência de
regulamentação acerca dos prazos e da definição dos profissionais qualificados ao desenvolvimento
da disciplina tenha adiado por mais três anos a sua efetiva inclusão.
O seu retorno à condição de disciplina obrigatória, depois de oitenta anos de exclusão, é
fruto de um processo lento, descontínuo e gradual de regulamentação e institucionalização, que
revela tanto as disputas em torno de concepções e projeto de educação pública presentes na
sociedade, quanto a busca de delimitação de campo de atuação profissional e o reconhecimento dos
aspectos pragmáticos da sociologia enquanto ciência.
A mobilização e pressão política das entidades representativas dos cientistas sociais,
professores de sociologia e filosofia e estudantes universitários e secundaristas e de parlamentares
tiveram um papel importante neste gradativo retorno, que podem ser observados nos marcos legais
apresentados abaixo:
Marco Regulatório Ano |Conteúdo que dispõe a matéria: Lei 9.394 (LDB) 1996 Acena para a importância do educando demonstrar
conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao
exercício da cidadania
Projeto Lei 3.178 1997 Altera o dispositivo do artigo 36 da LDB assegurando a
245
(não aprovado) obrigatoriedade das disciplinas de Filosofia e Sociologia.
Projeto Lei 1.641
(não aprovado)
2003 Altera o dispositivo do artigo 36 da LDB assegurando a
obrigatoriedade das disciplinas de Filosofia e Sociologia, em
todas as séries do ensino médio.
Projeto Lei apresentado pelo
Ministro da Educação na
época Cristovam Buarque
(não aprovado)
2003 Altera o dispositivo do artigo 36 da LDB assegurando a
obrigatoriedade das disciplinas de Filosofia e Sociologia, mas
não define a necessidade de garanti-las nos três anos do
ensino médio.
Parecer CNE/CEB 22/2003
2003 Tratou sobre o questionamento acerca da inclusão da
Filosofia e sociologia, afirmando a não obrigatoriedade
enquanto componentes curriculares
Parecer CNE/CEB 38/2006 2006 Altera o artigo10, parágrafo segundo, das Diretrizes
Curriculares Nacionais para o ensino médio (resolução
CNE/CEB nº3/98), versando sobre a inclusão da Filosofia e
Sociologia como componentes curriculares obrigatórios.
Lei n.º 11.684 2008 Altera o artigo 36 da LDB (lei 9.394 de 1996), incluindo as
disciplinas de filosofia e sociologia como obrigatórias nos
currículos do ensino médio, em todas as séries.
Parecer CNE/CEB 22/2008 2008 Define o prazo de inclusão da sociologia e filosofia nos três
anos do ensino médio
A inclusão da sociologia e da filosofia no ensino médio envolve a luta em torno de
concepções diferenciadas acerca do papel da escola básica e da sua relação com o projeto de
sociedade, que pressupõe, neste caso, também a reflexão acerca da contribuição das ciências sociais
e humanas:
(...) Percebe-se, em compensação, a correlação de seu ensino com o avanço do processo democrático tornando-se imperativo restaurar um pensamento crítico na educação. Compreende-se que seja assim, pois não propriamente ofício filosófico (nem sociológico, mutatis mutantis) sem sujeitos democráticos e não há como atuar no campo político e cultural, consolidar a democracia, quando se perde o direito de pensar, a capacidade de discernimento, o uso autônomo da razão. Quem pensa opõe resistência (Projeto lei apresentado por Cristovam Buarque) (Conterato,2009).
Podemos situar duas perspectivas cognitivas neste debate: uma que podemos chamar
tecnicista, voltada exclusivamente para atender as demandas do mercado de trabalho e do sistema
produtivo, eliminando conteúdos mais críticos e reflexivos, e outra que podemos chamar
“humanista” (que assume muitas vezes um viés salvacionista sobre o qual falaremos adiante),
246
voltada para a formação dos indivíduos enquanto “cidadãos” e/ou sujeitos, ainda que, em algumas
de suas matrizes teórico-conceituais, esteja presente também a formação voltada para inserção no
mercado de trabalho. De toda maneira, tecnicismo e humanismo não ocupam oposições absolutas,
nem esgotam as leituras e projetos de educação, mas representam, talvez, uma das principais
polarizações existentes entre os atores.
Sob a perspectiva de uma formação humanista, a sociologia, assim como a filosofia, é
destacada e valorizada como componente disciplinar essencial por ter uma especificidade de
fomentar através de seu método científico o pensamento crítico e reflexivo, garantindo ao aluno
uma formação voltada para a problematização da sua realidade mais direta, bem como uma reflexão
de mesma envergadura que transcenda o seu próprio universo, conforme trechos destacados em
justificativa de sua inclusão no ensino médio, presentes em projetos-lei e pareceres dos órgãos
oficiais:
A inclusão da sociologia e filosofia no currículo de ensino médio representa uma medida necessária à consolidação da base humanista no que se refere aos conhecimentos adquiridos pelo educando. Dificilmente será bem sucedida a inclusão de temas referentes a estes campos em outras disciplinas, com docentes que não tenham a formação plena e adequada ao cumprimento dessa tarefa (...) (projeto-lei 3.178 de 1997 – Dep. Federal Padre Roque – apresentado no ano de 2007 -)( Conterato,2009).
Sob a justificativa de contribuir para a formação cidadã e para o aprimoramento da
cidadania, no caso específico do estado do Rio de Janeiro, a sociologia se torna obrigatória ainda em
1989, a partir da emenda popular aditiva nº. 1989 a Constituição Estadual, que foi resultado de um
amplo movimento liderado pela Associação Profissional dos Sociólogos do Estado do Rio de
Janeiro (APSERJ), alunos e professores dos cursos de licenciatura em ciências sociais das
universidades públicas e privadas do Rio de Janeiro (UFF, UFRJ, UERJ e FEUC), movimento
estudantil secundarista, organizações não governamentais e políticas.
Apesar disso, sua introdução efetiva foi descontínua e lenta no Estado do Rio de Janeiro, em
função da inexistência da obrigatoriedade no contexto nacional, o que fez deste uma das referências
de luta, bem como da não regulamentação. Contudo, as conquistas nacionais que conferiram o
status de componente curricular obrigatório para a Sociologia e Filosofia tiveram impactos na rede
estadual de educação pressionando a secretaria estadual a realizar uma institucionalização mais
concreta, com a sua introdução em todos os anos do ensino médio, em 2009, ainda que esta
instituição tenha criado mecanismos legais de impedimentos, conforme analisado por Santo
Conterato (2006):
“No entanto, no mesmo ano de 2006 o CEE emitiu o Parecer CEE nº 033/2006 (...), onde afirmar-se o seguinte: “tendo em vista a inexistência de cursos de licenciatura para algumas disciplinas, como Filosofia, Sociologia... e tendo em vista a baixa procura aos cursos de licenciatura como por
247
exemplo, Filosofia, Sociologia...Sugerimos as seguintes medidas internas...para aproveitamento e contratação de docentes... E a partir disso qualquer profissional disponível poderá assumir e ministrar as duas disciplinas. Como é que um egrégio Conselho de Educação pode cometer tanta barbaridade em documento oficia? Como não há cursos de licenciatura em Ciências Sociais e Sociologia? E os existentes na UERJ, UFRJ, UFF, FEUC e UCAM, e mais outros? E se afirma que não há cursos, no mesmo documento, diz que a procura é baixa?...Quando digo que precisamos ficar em alerta permanente é por uma das razões. Para justificar a falta de interesse pela qualidade de ensino vale tudo, até afirmar que não há profissionais disponíveis... Para APSERJ não basta, inclusive, somente incluir a sociologia na matriz curricular do ensino médio, mas contribuir para a melhoria do ensino como um todo” (Conterato , 2006).
Esta nova situação de obrigatoriedade traz um conjunto de demandas, que não são novas e
já foram sinalizadas desde a primeira iniciativa de introdução da mesma no segmento médio da
educação, entre os anos 1925 a 1942. Dentre estas demandas, destacam-se a necessidade de garantia
das condições mínimas ao desenvolvimento da disciplina, como, por exemplo, profissionais
habilitados e qualificados e carga horária mínima ao processo de ensino-aprendizagem. Além das
questões relacionadas à definição dos objetivos norteadores do ensino da sociologia, dos conteúdos
programáticos (currículo), a formação de professores, a elaboração de material didático e de uma
metodologia de ensino. Diante da trajetória oscilante da introdução da sociologia na escola básica,
os profissionais da área se deparam com um constante recomeço para lidar com tais demandas,
impedindo um avanço mais significativo.
Dessa forma, quando a sociologia torna-se obrigatória nos currículos das três séries do
ensino médio no ano de 2009, as escolas da rede estadual reiniciam um ciclo de admissões de
professores graduados em ciências sociais para dar conta dessa nova demanda. Outros concursos já
haviam sido realizados anteriormente, mas, efetivamente, tem-se nesse novo contexto de expansão
do ensino de sociologia na rede estadual do Rio de Janeiro a entrada de novos profissionais para
suprir a carência deixada por um considerável tempo sem concursos públicos.
É, principalmente, a partir desse ano que acontecem as observações e as análises que servem
de base para a construção desta etnografia e dos antigos e novos debates acerca da disciplina, dos
atores sociais e das instituições envolvidas no processo de ampliação e na trajetória da sociologia no
estado do Rio de Janeiro.
Em decorrência dessas rápidas mudanças tratadas acima, podemos observar também um
aumento na produção de conhecimentos sobre a inclusão da sociologia no ensino médio, como
mostra a intensificação de iniciativas de pesquisa sobre esta temática: produção de teses,
dissertações, artigos sobre experiência do ensino de sociologia na escola básica e livros didáticos,
bem como a realização de encontros, fóruns e debates.
No caso do Rio de Janeiro, a partir de 2008 professores da rede básica, grupos de pesquisa e
associações profissionais retomam atividades voltadas para a reflexão sobre a forma da inserção do
248
ensino de sociologia no ensino médio. O quadro abaixo mostra um resumo dessas atividades
associativas recentes.
2008 2009 2010 2011
1º ENSOC (Encontro Estadual de ensino de sociologia)
1º ENESEB (Encontro Nacional sobre Ensino de Sociologia na Educação Básica)
2º ENSOC (Encontro Estadual de ensino de sociologia)
2º ENESEB (Encontro Nacional sobre Ensino de Sociologia na educação básica)
Organizado pela Faculdade de Educação da UFRJ e Laboratório de Ensino de Sociologia Florestan Fernandes
Organizado pela Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS)
Organizado pela Faculdade de Educação da UFRJ e Laboratório de Ensino de Sociologia Florestan Fernandes
Organizado pela Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS)
1º Seminário Nacional de Educação em Ciências Sociais
I Fórum Estadual de Professores de Sociologia do Estado do Rio de Janeiro
Organizado pela Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS)
Organizado pelo Sindicato dos Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro (Sindserj)
Essas atividades expressam, assim, um movimento coletivo de elaboração de uma forma
específica de ensino de sociologia. É interessante notar que na pauta desses encontros destacam-se
alguns elementos: 1) formação profissional; 2) currículo e produção de material didático; 3)
articulação e intercâmbio entre as universidades e os professores de sociologia da educação básica;
4) incentivo para a produção científica em torno da experiência do ensino da sociologia. Dessa
maneira, existe um movimento que parte dos profissionais da área de ciências sociais e que incidem
também sobre os aspectos cognitivos do ensino de sociologia. É importante ressaltar que, além
desse movimento coletivo, a prática de autoprodução de material didático pelos professores de
sociologia é muito comum, já que frequentemente os livros didáticos são vistos como insuficientes
ou inadequados para o universo escolar particular no qual são utilizados.
A emergência dessas novas atividades e dessas novas formas de produção e reflexão sobre a
prática escolar acaba compondo também o universo dos professores de sociologia, já que alguns dos
professores participam desses eventos, seja compondo a audiência, seja apresentando trabalhos
dentro das dinâmicas dos encontros acadêmicos157. Assim, está claramente configurado um campo
de disputa pela produção e orientação legítima dos saberes que serão reproduzidos no universo
escolar por meio da disciplina sociologia. Associações profissionais, grupos de pesquisa e os
professores, individualmente, estão desde o ano de 2006 vivenciando um processo emergente de
luta pela autoconstrução de uma referência profissional e, consequentemente, de formas específicas
157 Os encontros normalmente são organizados por meio de mesas com oficinas e grupos de trabalho, nos quais os professores podem apresentar trabalhos e materiais produzidos.
249
de poder simbólico.
As atuais ações da SEEDUC e da política educacional do Governo do Rio de Janeiro entram
assim numa rota de colisão com esse processo e, na realidade, tentam subtrair das associações e
profissionais de educação aquilo que eles vêm tentando construir ou conquistar, ou seja, a
possibilidade de uma ou várias referências adequadas ao ensino de sociologia adaptadas a realidade
e condição dos alunos e dos próprios professores. Temos então um ponto de confrontação, de luta
pelo poder simbólico, num movimento de baixo para cima, de profissionais de educação,
associações e grupos de pesquisa que tentam produzir formas específicas de práticas escolares e um
movimento de cima para baixo, da política educacional, que tenta colonizar o currículo e
transformá-lo num dos principais meios de exercício da dominação política e simbólica, através da
difusão da idéia/valor do sucesso escolar como imperativo e da criação de mecanismos de controle
do processo e da força de trabalho.
Mas esse movimento não abrange a totalidade dos professores de sociologia. Ele representa
o esforço e as expectativas de uma parcela dos profissionais, mas grande parte deles entram no
universo escolar e podem observar sem tomar diretamente a participação nesses movimentos
coletivos ou sem concordar e se adequar aos parâmetros impostos pela SEEDUC. Nesse sentido, a
condição do professor dentro da escola é determinada fundamentalmente pela forma de inserção nas
relações de trabalho, e sua percepção dessa condição de trabalho é determinante para o tipo de
relação que ele vai estabelecer com as diferentes práticas escolares. Por isso faremos agora uma
descrição da percepção dos professores dessa condição e dos demais agentes, para ver como essas
percepções podem se relacionar com essas confrontações pelo poder simbólico que perpassa a
discussão do currículo e das práticas escolares.
O tema da construção do currículo mínimo – e a forma pela qual está sendo realizada pela
atual política educacional –, é assim um ponto estratégico de articulação entre o exercício da
dominação política (racional-legal) e simbólica. Essa dominação explicita algumas polarizações,
especialmente, o controle X autonomia, e o economismo-tecnicismo x “humanismo”. O currículo
tem sido objeto de reflexão dos profissionais de sociologia, pesquisadores e associações
profissionais, e assim é, também, um espaço do conflito político e simbólico.
Esse processo de construção do Currículo Mínimo começa em 2010 com a formação de
uma Comissão responsável pela elaboração da proposta curricular. A Comissão era composta por
um coordenador (professor universitário convidado a participar do processo) e de professores da
rede que passaram por um processo seletivo. Como o currículo mínimo se constitui como um dos
pilares da GIDE – Gestão Integrada das Escolas – a SEEDUC apresentou uma primeira versão
curricular em “escuta pública” aos professores de sociologia da rede, no início do ano de 2011, logo
250
após o anúncio da nova política educacional. O argumento da secretaria em torno da necessidade de
definição deste currículo foi o de que “é a base para os conteúdos aplicados em sala de aula (...)
inicialmente foram definidos os conteúdos, competências e habilidades para nortear a prática
docente (...) É apenas um ponto de partida, mas o professor tem total autonomia para enriquecer
suas práticas em sala de aula e desempenhar seu trabalho com sucesso (...) (Documento do
planejamento estratégico da SEEDUC- 2011)”.
Entretanto, a SEEDUC realizou uma revisão dos currículos mínimos elaborados em 2010,
que se deu por meio de escutas públicas realizadas no mês de novembro de 2011. Esse evento serve
para explicitarmos os conflitos e a recepção desse processo. Essa consulta pública, ocorrida em
novembro deste ano, denominada de escuta, foi realizada por uma nova Comissão de Currículo,
substituindo a anterior que havia preparado proposta curricular para 2010.
A escuta pública para revisão dos currículos mínimos de sociologia foi realizada no CEFET-
Maracanã nos dias 21 e 29/11. Nossa equipe de pesquisa acompanhou a escuta no dia 29/11 na parte
da tarde, tendo participado do debate com os membros da SEEDUC, cerca de quinze professores.
Foram colocados pelos professores presentes dois tipos de questionamento de ordem política: a)
sobre a natureza do processo de elaboração do currículo; b) de ordem técnica, que questionou os
componentes do currículo e temas. Destes, pelo menos 4 professores se manifestaram sobre o tema
político. Quanto à parte técnica, pelo menos 8 professores se posicionaram colocando o próprio
currículo em questão. Dessas intervenções se apreendeu que, na visão dos presentes nesse dia, a
elaboração do currículo mínimo (CM) foi realizada através de um processo autoritário e
antidemocrático, sendo esta a visão de alguns professores da rede, os quais se viram alijados da
discussão mais ampla sobre os conteúdos pedagógicos que orientam o ensino de sociologia, além de
questionarem a ausência de divulgação e transparência do processo, uma vez que a sua participação
foi limitada a sugestões enviadas por meio do site da SEEDUC, pouco divulgada e não sujeita ao
processo de decisão democrática dos docentes garantido apenas por uma ampla participação.
Assim ficou expresso na fala dos professores presentes que ainda que reconheçam a
necessidade de definição de uma proposta curricular que oriente o ensino de sociologia na escola,
fruto de investimento desses profissionais que participam das discussões sobre currículos e materiais
didáticos, em diversos fóruns e encontros pensados e realizados com este fim, eles não aceitam a
maneira como este processo se deu e fazem críticas também aos conteúdos pensados,
fundamentalmente, porque não são vistos como adequados a diversidade social e cultural do aluno
da rede pública de educação, que envolve não apenas questões relacionadas com as diferenças de
modalidades de ensino (formação para jovens e adultos, formação regular, cursos profissionalizantes
e técnicos, como, o de formação de professores, que apresentam dinâmicas diferenciadas em relação
251
ao processo ensino aprendizagem), mas também de perfil e de condições socioeconômicas,
identidades sociais, trajetória escolar e ciclos de vida.
Mesmo diante das orientações curriculares para o ensino de sociologia propostas pela
SEEDUC antes da GIDE, professores entendiam que tinham certa autonomia e esta está sendo
retirada com o currículo mínimo, uma vez que, antes, a definição dos conteúdos pedagógicos era
feitas basicamente em reuniões de planejamento de equipe, no início de cada ano letivo, tendo o
professor possibilidade de então adequá-los a realidade e contexto da escola. Por fim, o
questionamento também faz referência à vinculação do cumprimento do currículo ao pagamento de
bonificações diferenciadas para a categoria profissional.
Por sua vez, coordenadores e professores integrantes da equipe do CM acreditam que este
processo tem alguma legitimidade porque conta com a presença de professores da rede, capazes de
representar as demandas e opiniões do restante dos professores, trazendo para a discussão do
currículo mínimo a realidade da rede estadual, e mesmo que contando com um tempo restrito de
elaboração existe um canal de diálogo com as escutas públicas e por meio eletrônico. Como parte da
retórica do discurso da equipe de sociologia, com vista a legitimar a sua participação neste processo,
duramente criticado pelos professores da rede presentes à escuta pública, há a concepção que o
envolvimento dos professores e acadêmico faz-se necessário porque o currículo é um instrumento
importante para reconhecimento da sociologia enquanto campo de conhecimento na escola básica.
Contudo, a própria dinâmica de condução da escuta já revelava as impossibilidades dadas ao
debate mais amplo e de alteração da proposta apresentada, uma vez que a consulta ao público foi
direcionada exclusivamente aos pontos de alteração feitos à proposta da equipe do CM anterior, e
afirmação de que mudanças substanciais seriam evitadas, visando não prejudicar o trabalho do
professor. Ainda assim, os participantes imprimiram outra lógica para a escuta ao questionarem o
processo e a política educacional do governo, bem como ao apresentarem alterações com base em
suas experiências em sala de aula, cujas propostas foram direcionadas com relação à seqüência e
encadeamentos dos temas e à perspectiva conteúdista do currículo, uma vez que a sociologia só
possui na grade curricular cinco tempos ao logo do ensino médio regular e quatro no EJA.
Se a questão do currículo foi objeto de expressão das diferenças e de conflito durante a
escuta, a publicação da resolução da SEEDUC que versava sobre a redução da carga horária de
Sociologia e Filosofia no ensino médio regular e de formação de jovens e adultos (EJA), em seguida
à escuta, que retirou um tempo da grade curricular de sociologia e filosofia, acrescentou outro
componente ao processo. Esta medida foi adotada sem conhecimento das equipes de sociologia e
filosofia, que foram surpreendidas durante o processo e provocou uma reação dos professores da
rede, das entidades profissionais e acadêmicas e demais agentes envolvidos na luta pela construção
252
de uma sociologia crítica na escola básica das diversas redes públicas de educação, como, por
exemplo, Departamento de Sociologia do Colégio Pedro II, Faculdade de Educação da UFRJ,
Sindicato dos Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro (SINDSERJ), APSERJ e Sindicato dos
Profissionais em Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEPE), através de cartas públicas,
manifestos e da participação em audiência pública sobre educação na ALERJ, momento em que o
secretário de educação apresentou o balanço da sua gestão e foi cobrado com relação às demandas
da educação pública, dentre elas foi convidado a prestar esclarecimento acerca da redução da carga
horária de sociologia e filosofia.
A redução da carga horária se dá num contexto geral de busca pelo sucesso escolar e política
economicista de inclusão de cursos de formação profissionalizante e técnica na rede estadual,
realizadas através de parceira público-privada, já em curso, em três escolas pilotos, conforme
reportagem da SEEDUC:
“A Secretaria de Educação começou o ano letivo com duas novas escolas na rede: Colégio Estadual Erich Walter Heine, em Santa Cruz, e Colégio Estadual Deputado Pedro Fernandes, no Jardim América. Criado a partir de uma parceria da Secretaria com a siderúrgica ThyssenKrupp CSA, o C.E Erich Walter Heine oferece Ensino Médio Integrado - com ensino profissionalizante em Administração (...) O projeto segue os moldes de outros dois colégios de excelência da rede estadual: Colégio Estadual José Leite Lopes (Núcleo Avançado em Educação - Nave), que fica na Tijuca e tem como parceiro o Instituto Oi Futuro; e o Colégio Estadual Comendador Valentim dos Santos Diniz (Núcleo Avançado de Educação em Tecnologia de Alimentos – Nata), localizado no município de São Gonçalo e em parceria com o Grupo Pão de Açúcar”158.
A construção de uma sociologia e filosofia crítica na escola básica da rede pública de
educação se choca com a perspectiva de educação tecnicista adotada pela atual gestão da SEEDUC,
em que se valoriza a primazia dos conteúdos voltados para uma idéia de “eficácia”.
No atual contexto, a clivagem em torno dos projetos de educação materializados na
condição de uma disciplina – a sociologia – expressa como o tecnicismo se constitui em uma forma
de aprofundamento da “des-sociologização” da educação, tanto em sua organização social quanto
na sua dimensão cognitiva. Mas mesmo no universo da aplicação no local de trabalho, ou seja, na
escola, existem formas de contestação e resistência a tais práticas, por meio de narrativas evasivas e
questionamentos diversos como indicado acima.
O que está em jogo nesse tipo de abordagem política é a reprodução do próprio ciclo
escolar e política educacional – dirigido para produzir indicadores de sucesso e a missão que a
própria instituição se coloca como sendo a mais importante que é diminuir ou zerar o número de
reprovações e evasões e aumentar de modo acelerado a quantidade de aprovações. Dentro do
contexto da atual política educacional é a avaliação que se torna o elemento central do processo de
158 In: http://www.rj.gov.br/web/imprensa/exibeconteudo?article-id=353867, acessado em 15/12/2011.
253
educação e, para que isso aconteça, faz-se necessário que os atores sociais presentes no ambiente
escolar, que são aqueles capazes de efetivar tal política, acreditem na meritocracia como uma
proposta que venha a melhorar não só o ensino, mas, sobretudo, incentivem e alimentem uma
espécie de cultura escolar que reproduza exatamente a missão escolar colocada pelo próprio Estado
através da implementação da GIDE pela Secretaria de Educação, em conjunto com as direções
escolares. É nesse campo complexo que a sociologia vem sendo colocada como disciplina escolar e
se faz necessária como instrumento de análise para as novas questões que essas políticas públicas
voltadas para a área da educação traçam para as escolas e que afetam diretamente o cotidiano de
professores, funcionários, alunos, coordenadores, gestores e comunidade escolar, para citar apenas
alguns sujeitos envolvidos nesse processo, que está sendo executado de modo diferenciado na rede
estadual de ensino.
Dessa maneira temos um movimento complexo, de um lado, controle político (racional-
legal-administrativo) sobre os professores como trabalhadores e o seu tempo de trabalho, e de outro,
o poder epistemológico sobre os saberes e sua função dentro da organização social da escola. Esses
poderes se materializam e entrecruzam por um processo material de avaliação e organização escolar
que precisa ser problematizado. É isso que faremos agora.
3 – Usando a antropologia para pensar e fazer a educação
Cabe agora, na última parte do trabalho, apresentar um esboço de como a antropologia e a
etnografia podem contribuir para a compreensão da organização social da escola e para o
desenvolvimento de práticas educacionais.
Conforme analisado na primeira parte deste trabalho, a idéia de “sucesso escolar” é
concebida pelo poder estatal como derivada de práticas das equipes de ensino. Podemos afirmar que
esse tipo de abordagem não permite uma satisfatória compreensão do próprio caráter dos “fatores
sociais” que seriam responsáveis pela “efetividade”. E a idéia de “efetividade” da escola vai ser
definida de forma circular pela capacidade da escola “reproduzir” – através de indicadores de
aprovação/evasão/reprovação – a sua “missão estatal”. Assim também a ênfase sobre a política
“pública” coloca toda a questão do que pode ser ou não feito no processo de ensino e a melhoria das
práticas de ensino sob atribuição do próprio Estado. A sociedade não existe, a escola parece
“suspensa”, sem contexto.
Existe também uma clara situação de conflito e um descompasso entre as representações dos
diferentes atores envolvidos no universo e nas práticas escolares. De um lado, existe o poder de
Estado e as redes de interesse econômico, que exercem através da política educacional e da
254
SEEDUC a dominação racional-legal e simbólica, visando controlar o tempo-espaço dos
trabalhadores e os signos e processos cognitivos dentro do universo escolar. Essa dominação parte
da representação da incapacidade dos atores (docentes, gestores) que precisaria ser corrigida pela
criação de uma cultura da responsabilidade, o que significa uma cultura da adesão aos objetivos e
normas de eficácia do próprio Estado. Esse movimento de controle se expressa na
institucionalização de uma organização social da escola regida pelos sistemas de avaliação.
De outro lado, nós temos um movimento coletivo organizado por associações profissionais,
grupos de pesquisas e professores que tentam discutir a prática escolar e produzir formas
alternativas de transmissão de conhecimento, mesmo que essas tentativas sejam limitadas em
abrangência. E, por fim, temos a prática dos professores de sociologia nas escolas, que envolvidos
ou não nesses movimentos, se dedicam a autoprodução de material didático uma vez que o mesmo
se apresenta insuficiente ou inadequado, e quando inacessível uma vez que 2012 será o primeiro ano
de adoção de livro didático para esta disciplina na rede estadual.
Podemos dizer que, por meio do teor economista, pautado por uma des-sociologização da
análise do sistema educacional, os agentes do Estado impõem uma percepção sobre a escola,
percepção essa que em última instância culpabiliza os profissionais da educação, vistos como
incapazes de gerir os insumos internos à escola e os externos oferecidos pelo Estado.
Aqui então temos uma primeira polarização que deriva dessa orientação da política
educacional, uma polarização entre controle x autonomia. E essa polarização se expressa na
organização social da escola, que implica como já observamos, micro-poderes políticos sobre os
professores, alunos e também sobre os saberes escolares.
Podemos dizer que etnografia e antropologia podem dar uma contribuição específica ao
ensino de sociologia na educação básica e, por extensão, à compreensão das dinâmicas e práticas
escolares. Mesmo a nossa pesquisa estando apenas em sua fase inicial e os dados aqui apresentados
ainda suficientes para tirar conclusões muito duradouras, podemos indicar que o próprio contexto
etnográfico fornece elementos importantes. Numa situação de conflito, etnografia e antropologia
podem ser usadas de diferentes maneiras para compreender a situação de conflito e, ao mesmo
tempo, fortalecer a própria produção de práticas escolares autônomas, que nesse tipo de situação
implicam na compreensão e questionamento/confrontação das formas de violência simbólica.
Dessa maneira, podemos estabelecer algumas tarefas básicas para antropologia das práticas
escolares:
Caracterizar as formas de violência simbólica e dominação que operam por meio de poderes
administrativos e epistemológicos. Isso implica em não somente descrever a organização social da
escola e os efeitos do exercício de micropoderes, mas também a contextualização do processo de
255
transmissão de conhecimento (objeto clássico da antropologia), da qual a transmissão do
conhecimento escolar é um tipo particular. Essa contextualização exige dois procedimentos
sociológicos principais: a) caracterização da diversidade cultural e socioeconômica dos sujeitos, no
caso, da organização social da escola (alunos, professores e demais profissionais da educação) e da
forma de interlocução entre sujeitos formados em diferentes universos e com distintas identidades
fragmentárias e linguagens discursivas; b) descrição das formas de significação e sua
multivocalidade, bem como do fator violência simbólica que hierarquiza grupos sociais e discursos,
em função das desigualdades sociais e políticas existentes na sociedade brasileira e como isso
impregna a organização social da escola.
Contribuir para a “sociologização” da educação, não somente através de subsídios para a
sociologia como disciplina escolar, mas também através da produção de um conhecimento crítico
das formas de organização da escola dentro de contextos sociais diversos. Uma descrição da
organização social da escola é fundamental, mostrando tanto sua materialidade (formas de coerção,
pressões econômicas e políticas) quanto à limitação da sua função (nesse sentindo, evitando visões
salvacionistas da escola e das próprias disciplinas escolares). Diante deste choque cognitivo entre
uma política educacional que está des-sociologizando a compreensão e o diagnóstico do sistema
escolar e definindo suas ações normativas pela negação desses aspectos sociais, uma abordagem
antropológica pode ajudar na inserção da sociologia no ensino médio ao orientar capacidade de
“sociologizar” a prática escolar pela produção não somente de “conteúdos”, mas de um novo olhar
sobre a escola e suas dinâmicas e fazendo dialogar esses dados com a prática política e
epistemológica.
Ajudar na vinculação entre os dados oriundos da descrição da diversidade cultural e
socioeconômica ao das práticas escolares (produção de material didático e organização curricular)
de maneira que não somente a antropologia e ciências sociais sejam temas tratados em sala de aula,
mas que os próprios instrumentos didáticos sejam orientados em sua produção pelas abordagens
críticas das ciências sociais. Esse é talvez o maior desafio e o maior objetivo da relação entre
antropologia/sociologia e educação (e inclusive educação de sociologia na educação básica). Isso
nos leva também a reconhecer que essa “re-sociologização” implica também numa contra-
organização da escola e em contra-poderes (políticos, epistemológicos) que se dão no plano da
prática (e não apenas normativo ou cognitivo), ou seja, o problema da sociologia no “ensino médio”
não é apenas uma arena onde se dá um embate entre diferentes visões de mundo, projetos políticos e
de educação porque estas estão vinculadas a formas de poder e dominação que também precisam
ser questionadas. Sem o questionamento dessas formas de poder, qualquer elaboração programática
para os “currículos” ou “missão” da sociologia na escola se dissolvem. A polarização “controle x
256
autonomia” que marca a política educacional torna-se assim também um componente fundamental
que precisa ser incorporado como parte da autoconstrução da sociologia como disciplina escolar
pelos sujeitos individuais e coletivos. A intervenção nesse campo tende a reforçar um dos pólos
dessa tensão estrutural da organização social da escola.
Dessa maneira, a antropologia e a etnografia podem acrescentar força simbólica ao ajudar na
sistematização das práticas escolares produzidas localmente como formas de resistência e a sua
localização num outro patamar cognitivo (não de saber marginal ou periférico, mas de saber de
resistência ou insurgente). Essa sistematização se faz tanto pela dimensão cognitiva, pela
organização e produção de conhecimentos através da etnografia sobre o universo escolar, como por
meio da re-inversão desses elementos no próprio universo das práticas escolares. O objetivo deste
texto é ajudar na caracterização das contradições da instituição e sistema escolar e ao mesmo tempo
na resolução dos desafios que os atores subalternizados e alvos das formas de violência simbólica
enfrentam no processo de luta por sua autonomia.
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258
Capítulo 17 Estereótipo, discriminação e preconceit o escovados a contrapelo: desafios cognitivos e possibilidades sociológicas 159
Tatiana Bukowitz160
“Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie.E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.” Walter Benjamin (1994, tese nº 7).
1. Introdução: identificando vencidos e vencedores.
Inspirada na brilhante, instigante e enigmática obra Sobre o conceito de história, de
Walter Benjamin (1994) uma nova metodologia de trabalho foi estruturada para motivar
alunos do 7º ano do ensino fundamental do Colégio Pedro II nas aulas de Ciências Sociais. O
objetivo era fazê-los perceberem-se como sujeitos históricos ativos e capazes de fazer do
“agora” o momento central de ação social e histórica. Na obra benjaminiana, o “agora”,
originalmente do alemão “Jetztzeit”161 (momento presente, momento do agora) possui
importância fundamental: é nele que ocorrem as tomadas de decisão, os instantes de lucidez e
entendimento profundos, catalisadores do agir em favor das transformações necessárias e
capazes de trazer a tona mais que apenas a “história dos vencedores”. Abrir espaço para que a
história humanidade seja expressa, analisada e observada em suas nuances mais terríveis e
reais é, segundo Benjamin, uma das principais tarefas do materialismo histórico. Para tanto,
Benjamim defende a necessidade de entender-se claramente para que interesses ( de quem, de
que grupos sociais) o historicismo serviu. Mais que isso, é imperativo compreender por que
motivos é preciso superar o historicismo (redator e legitimador da “história dos vencedores”),
direcionando-nos ao verdadeiro materialismo histórico – este sim, imbuído da construção da
159 O presente artigo é uma versão alterada do trabalho originalmente apresentado no GT 09: Ensino de Sociologia, do XV Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado em Curitiba (PR) em julho de 2011, intitulado “Estereótipo, discriminação, preconceito: desafios cognitivos e possibilidades sociológicas”. 160 Tatiana Bukowitz (professora de Ciências Sociais do Ensino Fundamental II do Departamento de Sociologia do Colégio Pedro II – Rio de Janeiro – UESCII – Unidade Escolar São Cristóvão II e é aluna do curso de doutorado do PPFH/UERJ - Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob orientação do professor Pablo Gentili). E-mail: [email protected] 161 Sobre a centralidade do conceito “Jetztzeit” na obra de Walter Benjamin, vale consultar o artigo de Tereza de Castro
Callado: A Metafísica benjaminiana e o agora (Jetztzeit).
259
história dos vencidos, a ser escrita pelos vencidos, historicamente silenciados num passado
marcado por episódios atrozes de genocídio, escravidão e crudelíssimas práticas
discriminatórias.
Toda esta abordagem metodológica visa reverter a posição de “vencidos”, nas quais,
além dos alunos, muitos de nós, docentes, nos enquadramos, contribuindo para que todos os
envolvidos no processo de ensino-aprendizagem possamos transpor esta posição de
“vencidos” associada às barbáries históricas diretamente associadas ao preconceito, a práticas
de discriminação (que chegaram a ser cientificamente e governamentalmente legitimadas) e
aos estereótipos negativos que carregam tantos grupos sociais devido a sua origem cultural,
étnica e/ou “racial”.
À primeira vista, a proposta benjaminiana pode parecer inadequada e demasiada
abstrata para alunos do 7º ano. Contudo, conforme será apresentado a seguir, é possível
realizar um trabalho ao mesmo tempo ricamente reflexivo, motivador e vinculado à realidade
presente dos discentes, fazendo-os reconhecer em si mesmos potenciais atores do “Jetztzeit”
benjaminiano. Desta maneira, os conceitos estereótipo, discriminação e preconceito podem
ser abordados de uma maneira altamente significativa para os alunos, deixando entendidos
por eles como palavras distantes, passando a ser elementos norteadores do entendimento que
possuem sobre si, sobre a realidade sociocultural e histórica da qual fazem parte, tendo a
noção explícita das relações de poder que estabeleceram-se e ainda estabelecem-se nas
interações sociais mediadas por estereótipos, discriminação e preconceito.
O primeiro passo para esta abordagem metodológica é, portanto, discutir, em cada
aula, que relações de poder atravessam as relações sociais marcadas por estereótipos,
preconceito e discriminação, realizando de modo colaborativo um mapeamento constante de
que grupos sociais foram apresentados como “vencidos” e, em contrapartida, que grupos
sociais foram apresentados como “vencedores” a cada fato histórico, livro, reportagem, filme
ou outro recurso didático que for abordado no espaço de diálogo coletivo em sala de aula.
Seguindo esta proposta, quando quer que se trate do debate e da construção cognitiva
sobre o conceitual estereótipo, discriminação e preconceito bem como seus desdobramentos
(tais como: etnocentrismo, racismo científico, desigualdade social e racismo na atualidade,
políticas de ação afirmativa, relativismo cultural e diversidade cultural – para citar alguns), é
mister ter-se em mente tanto a necessidade de reconhecer a barbárie presente na história da
humanidade (pretérita e contemporânea), como a tarefa ativa de utilizar-se do “Jetztzeit” para
configurar no universo cognitivo discente uma visão ampla, politizada, dotada de criticidade,
260
capaz de motivar suas ações para práticas que valorizem e respeitem a diversidade humana
em toda sua riqueza, superando a narrativa unilateral da historiografia dos vencedores.
2. Brevíssima162 apresentação teórica para esta metodologia pedagógica.
A prática docente apresentada neste trabalho é fundamentada na reflexão crítica de
Walter Benjamim (como apresentado inicialmente), na pedagogia de Paulo Freire (segundo o
qual é preciso partir e contar com a realidade sociocultural discente), considera a reflexão
política de Antonio Gramsci (segundo a qual a escola, peça fundamental da sociedade civil, é
um espaço privilegiado de atuação política capaz de formar consciência crítica, autonomia
intelectual e maturidade social) e tem como suporte complementar o aparato teórico de
Jürgen Habermas (que valoriza a ação comunicativa como método de interação social e
construção cognitiva coletiva e participativa). Ao abordar o papel da escola em sua obra Os
intelectuais e a organização da cultura (1978, p. 121), Gramsci postula que:
“A escola unitária ou de formação humanista (entendido esse termo ‘humanismo’, em sentido amplo e não apenas em sentido tradicional ou de cultura geral) deveria se propor a tarefa de inserir os jovens na atividade social depois de tê-los levado a um certo grau de maturidade e capacidade, à criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa.” Ou seja, antes de inserir o jovem na atividade social, antes de ensiná-los a realizar
uma atividade profissional, antes de darmos a eles as ferramentas técnicas, antes de
instrumentalizá-los racionalmente, há que se atentar para a criação de sua autonomia, há que
se fomentar sua iniciativa e sua criação intelectual.
Na obra Teoria da ação comunicativa (1981) Habermas elabora uma teoria social
mais amadurecida, na qual o foco da análise é o mundo vivido e a ação comunicativa, ou
seja: o universo relacional, a sociabilidade humana e o universo lingüístico que o permeia. É
neste esforço reflexivo que encontramos em Habermas elementos de sustentação para uma
prática pedagógica descentrada da figura docente, valorizando o discurso não coercitivo, e
acentuando a politização da esfera pública. Habermas postula uma teleologia em que o êxito
da comunicação é resultado da troca entre interlocutores em geral, suprimindo-se a idéia de
que o sucesso da comunicação depende do impacto direto do comunicador sobre o ouvinte;
deste modo, há uma renovação completa do que significa o conceito comunicação que passa
162 Ciente de que a apresentação de fundamentação teórica só pode ser realizada aqui de modo restrito, sugerimos ao leitor interessado que aprofunde a leitura nas obras dos autores acima mencionados apresentadas nas referências bibliográficas ao fim desse artigo.
261
a ser entendido como um procedimento coletivo e interativo em todas as suas etapas
(emissão, recepção, interpretação, redirecionamento, nova emissão), resultando em um
benefício extenso da ação comunicativa segundo a nova semântica e prática habermasiana.
Reconhecendo as relações de dominação econômica e política presentes na sociedade
brasileira, e buscando superar a subordinação presente nas práticas políticas e culturais
brasileiras, Paulo Freire (1967) propõe e realiza um projeto pedagógico contra-hegemônico,
crítico e rearticulador da “vontade popular” e da construção coletiva e emancipatória de
conhecimento através dos chamados “Círculos de Cultura”. Neles, desenvolve um novo
vínculo dialogal, criando espaço e valorizando o debate, a discussão coletiva, a politização da
informação. Este novo modelo de construção do conhecimento reposiciona o professor e o
ensino, diluindo inclusive as tênues redes de poder reconhecidamente presentes na tradicional
relação professor-aluno, o que se almeja na metodologia aqui apresentada, em que o
conhecimento vivido tem papel central:
“(...) se já pensávamos em método ativo que fosse capaz de criticizar o homem através do debate de situações desafiadoras, postas diante do grupo, essas situações tinham de ser existenciais para os grupos. Fora disso, estaríamos repetindo os erros de uma educação alienada, por isso instrumental.” (Freire, 1967, pp. 106-107).
3. Construção da metodologia e da proposta pedagógica.
A proposta pedagógica para tratar das temáticas estereótipo, discriminação e
preconceito para alunos do sétimo ano do ensino fundamental, perpassando pelas teorias do
racismo científico, pelos sistemas binários de classificação humana e pela criação social de
padrões de comportamento humano tomados como superiores ou inferiores foi acompanhada
de elaboração de material didático criado originalmente para este trabalho de construção
cognitiva.
Inicialmente, para as primeiras aulas, os alunos foram orientados a realizar pesquisa
de levantamento de dados, imagens, charges e piadas sobre os temas tratados (preconceito,
discriminação e estereótipo), fazendo com que participassem do processo de construção do
conhecimento de modo cooperativo e colaborativo, tornando-se, eles próprios, veículos de
informação e construtores de conhecimento – deixando a figura do professor numa posição
mais equilibrada dentro do discurso coletivo em sala de aula. A primeira atividade de
participação discente foi uma rodada geral de contação de piadas preconceituosas resultado
de pesquisa realizada por estes. Podiam ser piadas que contivessem qualquer tipo de
preconceito. O processo pode ocorrer livremente com as participação ativa dos alunos e a
risada é geral. O docente anota o teor e tema dessas piadas preconceituosas, e após um tempo
262
em que apenas ouve-se e ri-se dessas piadas, começa-se a realizar o processo de reflexão
sobre os valores, hierarquia social e redes de poder e dominação implícitas nelas. Neste
momento, através do debate gerado entre os alunos, diferentes visões preconceituosas são
reforçadas e/ou criticadas diferentemente entre os próprios alunos, cabendo ao docente
organizar a pauta de discussão e encaminhar a discussão para um aprofundamento de
questões sociais e históricas mais amplas e profundas que colaboraram para fazer com que
certos grupos sociais fossem considerados “vencedores” / discriminadores, enquanto outros
fossem identificados como “vencidos” / discriminados.
A renovação que esta prática pedagógica representa vem trazendo resultados bastante
positivos para os alunos envolvidos com esse processo de cognição: o conhecimento não é
apresentado como um objeto distanciado a ser obserrvado com neutralidade, porém, de modo
contrário, é entendido como elemento intrínseco de cada um daqueles envolvidos no processo
pedagógico, tanto dos alunos como do docente. Essa aproximação entre sujeito e objeto do
conhecimento tem proporcionado um maior envolvimento, interesse e incorporação do
aparato conceitual próprio da disciplina Ciências Sociais: os discentes percebem a pertinência
e a presença dos temas tratados em sala com a realidade concreta do universo sociocultural
do qual fazem parte. Dentro dessa experiência pedagógica, as Ciências Sociais são
vivenciadas pelos discentes e docentes, ao invés de simplesmente serem apresentadas como
um campo de saber neutro, distanciado e acabado. As transformações sociais, disputas de
poder, construções e reconstruções culturais são apresentadas como elementos em
movimento dentro das sociedades humanas.
Com o simples trabalho de contar piadas preconceituosas e que contém estereótipos,
vivenciar o processo de rir delas e perceber-nos dentro de seu universo simbólico após análise
em processo dialogal, a transitoriedade dos sistemas sociais e das redes de poder ao longo da
história é notada, fazendo com que a disciplina seja percebida pelos alunos como um campo
de saber em movimento, exigindo observação e olhar sociológico apurado capaz de perceber
mudanças e permanências em relação a passado e presente, diferenciando-se de modelos de
aprendizados estanques que apresentam o saber como algo dado e acabado. Por meio dessas
práticas dialógicas, afirma-se a possibilidade, necessidade e pertinência do ensino de
temáticas vinculadas ao saber sociológico mesmo para os últimos anos do ensino
Fundamental II, demonstrando que há alternativas e mudanças positivas e propostas férteis
sendo criadas a partir do desafio que caracteriza a inserção da Sociologia no nível da
educação escolar brasileira. O resultado profícuo dos alunos, sistematicamente demonstrado
no próximo item desse trabalho (Análise de dados: escovando a história a contrapelo)
263
pode servir como estímulo para outros profissionais da educação que estão procurando
métodos inovadores para realizar uma prática docente mais adequada ao ensino dessa
temática no ensino básico.
A proposta metodológica pedagógica é composta de diferentes atividades,
concatenadas entre si, visando um crescente envolvimento cognitivo, emocional, racional e
dialógico dos alunos entre si e consigo mesmos. Elas tomam um total de16 tempos de aula,
no mínimo (cada um com 45minutos de duração) e foram realizadas a partir da realidade
escolar dos alunos do 7º ano do ensino Fundamental II da Unidade Escolar São Cristóvão do
Colégio Pedro II no Rio de Janeiro, em 2010, em que dispusemos de dois tempos semanais da
disciplina Ciências Sociais para cada turma. Vejamos abaixo o cronograma e descrição básica
do método de construção do conhecimento proposto como meio de trabalhar com os
conceitos estereótipo, discriminação e preconceito:
A���� atividade motivadora inicial: contação livre de piadas preconceituosas (um tempo de
aula). Nos dois tempos seguintes, há um debate entre os alunos em que o docente ajuda os
alunos a identificarem os principais preconceitos apresentados, começando a explicar que
estereótipos estão a eles relacionados. A explicação sobre preconceito e estereótipo surge
após a vivência coletiva de uma atividade que só é possível pois os preconceitos existentes
foram não só comprovados entre o grupo mas também vivenciados pelo grupo. Dessa
maneira, não se começa por uma exposição abstrata dos conceitos; contrariamente, partimos
de elementos e exemplos concretos já mencionados e vividos pelo coletivo.
B� sistematização da atividade motivadora: como prosseguimento de constatação e análise
de preconceitos e estereótipos, avançamos um pouco mais pedindo aos alunos que em casa,
realizem pesquisa (individual ou em dupla) trazendo para a escola, na aula seguinte,
elementos impressos que tratem do tema, podendo também incluir relatos jornalísticos em
que ocorre discriminação. Nessa aula, ao pedir-se a atividade de pesquisa, explica-se a
diferença entre preconceito e discriminação, mencionando-se aspectos jurídicos relacionados
a atos discriminatórios associados à historia política brasileira. Aos alunos, pede-se que,
juntamente com o material impresso, tragam uma reflexão escrita sobre o que encontraram ou
então que se preparassem para apresentar, oralmente, o que encontraram, analisando
conseqüências positivas e negativas para os atores sociais presentes em cada uma das
situações pesquisadas. Para uma turma de 35 alunos em média, dois tempos de aula, no
mínimo, são necessários para a apresentação oral e discussão coletiva do material pesquisado.
A partir desse material impresso trazido pelos alunos, pode-se montar um mural em sala, que
264
colaborará para manter em questão alguns dos temas em debate, caracterizando,
materialmente, o processo de construção coletiva do conhecimento.
Foi elaborado material didático, cujo objetivo era um exercício analítico, de
identificação dos grupos discriminados e discriminadores, e da veracidade ou não dos
estereótipos presentes nas piadas e charges apresentadas pelos alunos – um trabalho a ser
realizado coletivamente, em sala de aula, por escrito, já comprometendo os alunos com o uso
adequado dos conceitos associados a uma redação crítica e politicamente posicionada. Para
esta atividade (partilha de dados e análise escrita considera-se a necessidade de dois tempos
de aula). Durante a exposição oral dos alunos, estimula-se que sejam usados corretamente os
novos termos conceituais, criando um novo patamar lingüístico e abrindo-se espaço para a
construção do olhar, reflexão e prática sociológica em sala de aula. Nesta atividade o docente
já pode perceber como está o envolvimento e entendimento da turma sobre as questões
abordadas.
C� Instauração e manutenção de ação comunicativa crítica, reflexiva e questionadora
constante entre alunos bem como entre alunos e professora são elementos a serem
trabalhados a cada encontro pedagógico, nesse sentido, apresenta-se para a turma a
importância da co-responsabilidade de todos para que o processo cognitivo possa ter bons
resultados. Reforça-se eventualmente o compromisso coletivo com a construção coletiva e
significativa e politizada do conhecimento gerado; valorizando-se a curiosidade, dando
espaço para verbalização de perguntas e elaboração conjunta de respostas. Um
aprofundamento maior e reflexão escrita pode ser realizado através da proposta de redação
sobre a presença de estereótipos, discriminação e preconceitos na vida e/ou realidade social
dos discentes, a qual pode ser realizado em parceria interdisciplinar com as equipes de
Língua Portuguesa, Literatura e História.
D���� Elaboração de material didático original: para colaborar com a sistematização conceitual
dos conteúdos programáticos escolares respeitando a faixa etária discente, foi elaborado
material didático de apoio escrito163 pela docente, considerando toda a experiência
anteriormente vivida com suas turmas de alunos e uma definição mais precisa e sociológica
sobre os conceitos trabalhados. O material foi impresso para cada um dos alunos, lido e
discutido em sala. Para dar conta desse material didático escrito apresentado foram
necessários quatro tempos de aula.
163 Disponibilizo este material aos interessados caso contatem-me pelo e-mail [email protected]
265
E���� Elaboração de avaliação pertinente ao tema e aplicação de instrumentos avaliativos
formais. Tendo-se em vista que a disciplina Ciências Sociais está sendo lecionada
formalmente como parte da grade curricular regular da instituição, instrumentos formais de
avaliação como prova escrita individual e atribuição de nota numérica a cada aluno faz parte
do trabalho docente. Nesse sentido procuramos, enquanto equipe docente, elaborar
instrumentos que permitam ao aluno sua reflexão aprofundada e o uso adequado do conteúdo
conceitual, teórico e histórico aprendido, valorizando mais a análise crítica, evitando a
costumeira prática de “decorar conceitos”. Parte da proposta avaliativa e alguns de seus
resultados são mais detalhadamente apresentados no item 3 deste artigo. A aplicação de
instrumento de avaliação emprega dois tempos de aula.
F���� Fecha-se o ciclo de aprendizado sobre essa temática uma análise coletiva e apreciação dos
resultados cognitivos alcançados pelos alunos através de vista de prova, leitura de respostas
escritas elaboradas pelos alunos, partilha de conhecimento coletivamente sistematizado e
auto-avaliação docente e discente em sala de aula, levantando-se pontos positivos e negativos
do trabalho realizado e trazendo-se sugestões para que as próximas atividades tenham melhor
resultado cognitivo – o que pode ser realizado por escrito no quadro e anotado no caderno
individual por cada aluno, deixando-se registrada uma avaliação coletiva do processo
metodológico percorrido durante os 16 tempos de aula (de 45 minutos cada) – ou um total de
12 horas.
Por fim, é importante deixar registrado que este é um relato de metodologia
pedagógica em processo de desenvolvimento, a ser aprimorado e adequado a cada grupo
discente/docente. Foi fundamentado em revisão e aprofundamento de estudos dos teóricos
brevemente apresentados como base teórica. Todo o percurso didático acima descrito foi
elaborado e sistematizado como PROCESSO DE PESQUISA DE REFLEXÃO
PERMANENTE da docente. Ao apresentar o processo pedagógico como PESQUISA,
atribuímos à docência, à prática educativa institucional e à reflexão político-educacional
status diferenciado: neste trabalho defende-se sim que a prática docente e a busca por
definições de metodologias pedagógicas inovadoras e adequadas à realidade material,
cultural, social e política de cada grupo social de alunos devem ser consideradas como
PESQUISA CIENTÍFICA no campo cognitivo da Educação Básica associada ao Ensino de
Sociologia, atribuindo-se valor adequado ao trabalho de pesquisa, sistematização de dados e
de elaboração de material didático como tarefas do PESQUISADOR DOCENTE.
266
4. Análise de dados: escovando a história a contrapelo.
Em suas teses Sobre o conceito de história (1994) Walter Benjamim suscita-nos a
refletir sobre a historiografia e sobre a construção dos dados históricos164, atentando-nos para
o fato de que somos responsáveis pela demarcação de novos marcos, ações e, principalmente,
cabe-nos adotar uma perspectiva crítica e analítica acerca das relações de poder que
entremeiam e fazem parte da complexa trama que compõe o universo cultural humano.
Enquanto judeu durante o regime nazi-fascista, Benjamim vivenciou em primeira pessoa a
força destrutivamente impactante dos preconceitos raciais anti-semitas, testemunhando os
horrores causados por modelos racionais cientificamente ratificados em favor da
discriminação e de suas conseqüências sociais mais tórridas. Não é de surpreender que seu
estilo estético na redação seja caracterizada por figuras de linguagem que acentuam as marcas
afetivas do drama por ele vivenciado. Tudo isso fica impresso, emotivamente, em variados
planos: nas palavras empregadas para a realização de sua sistematização teórica, na escolha
por ensaios, na opção por uma análise social que questiona radicalmente o “cientificismo”
predominante em sua época.
Firmando-se no materialismo histórico e refutando o “método da empatia” cuja
“origem é a inércia do coração”165, Benjamim exige uma reflexão e um questionamento que
permita-nos mapear
“com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão.”166
Diante dessa realidade, em que o próprio processo de transmissão da cultura encontra-
se imiscuída de barbárie, Benjamim define que a tarefa do materialista histórico é “escovar a
história a contrapelo”. Isso significa ir na contracorrente, observar o que não está aparente
nos sentidos convencionais, escovando a contrapelo podemos deixar emanar o incômodo de
elementos enraizados mas escamoteados. O exercício de fazer explicitar a barbárie cultural e
demonstrá-la racional e emocionalmente foi uma das propostas presentes nas atividades de
avaliação da aprendizagem sobre os conceitos estereótipo, discriminação e preconceito.
164 Neste sentido, a proposta colabora para a incorporação prática da Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". 165 Ver tese nº 7 de Walter Benjamin em Sobre o conceito de história, 1994. 166 Todos os trechos de Benjamin aqui citados referem-se à mesma tese nº7, acima citada.
267
Em Sobre o conceito de história Benjamim tangencia e oferece fundamento histórico,
sociológico, antropológico e filosófico sobre como os conceitos estereótipo, discriminação e
preconceito para serem compreendidos exigem mais do que uma simples cognição racional,
exigindo uma sensibilidade capaz de captar as relações político-culturais definidoras de quem
são os vencedores e quem são os vencidos, em outras palavras, quem pratica preconceito,
discriminação e emprega estereótipos negativos, em favor de quem e levando que grupos
sociais ao despojo. Por que motivos? A que custo? Com que conseqüências? Nesse sentido, a
reflexão benjaminiana é adequada, motiva e catalisa o processo reflexivo, fazendo-nos
ressignificar tradicionais empatias com “o vencedor”.
Após todo o trabalho de sensibilização, discussão e debates em sala, construção
coletiva do conhecimento, aprofundamento de informações, elaboração de pesquisas e
sistematização de dados seguindo a proposta engajada, dialógica, crítica e politizada
defendida (ainda que com diferentes nuances) por Benjamin, Freire, Gramsci e Habermas
como um dos itens da avaliação e análise final, foi apresentado aos alunos do 7º ano do
Ensino Fundamental II, em 2010, em prova escrita a ser realizada individualmente, o texto
jornalístico abaixo. Sobre este, os alunos deveriam debruçar-se e posicionarem-se diante da
situação apresentada tal como formulado a seguir:
Leia a atentamente os textos A e B e em seguida responda o que se pede:
Texto A: Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes) é um sistema brasileiro de avaliação dos alunos dos cursos de graduação das faculdades e universidades de nosso país. Em maio de 2008 os resultados dessa avaliação relacionados aos alunos do curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia não foram bons: a Faculdade de Medicina da Bahia recebeu nota 2 (considerando-se 5 a nota máxima) sendo uma das 17 escolas médicas reprovadas. Ao receber o resultado negativo dessa avaliação, o professor Antonio Dantas, Coordenador da Faculdade de Medicina da Bahia, declarou que “o baixo desempenho da faculdade no Enade devia-se a um déficit* de inteligência dos estudantes baianos, à inferioridade cultural dos baianos, ao déficit intelectual dos estudantes e contaminação da questão das cotas que trazem cada vez mais negros e pessoas de baixa renda para serem alunos da universidade”. Antônio Dantas também disse que "o baiano toca berimbau porque só tem uma corda, e se tivesse mais cordas, não conseguiria". Afirmou ainda que a “falta de inteligência dos alunos é hereditária e que pode ser verificada através do covívio com pessoas nascidas na Bahia."
*Déficit - Aquilo que falta. Deficiência.
�O texto acima foi editado, para fins didáticos, a partir das reportagens disponíveis nos sites: http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,,167692,0.htm e http://jornalcidade.uol.com.br/paginauser.php?id=1883
Texto B: Constituição Federal do Brasil - Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989
Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”
268
O representante e responsável superior de uma faculdade ou universidade chama-se REITOR. Portanto, há um REITOR acima de Antonio Dantas (coordenador do curso da Faculdade de Medicina da Bahia). � Se você fosse o REITOR da Faculdade de Medicina da Bahia, e tivesse a chance de conversar com Antonio Dantas, o que você diria a ele? � Você diria que Antonio Dantas estava correto ou errado em suas afirmações sobre os baianos? � Explique a Antonio Dantas a sua opinião:
Sr. Antonio Dantas... _______________________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ As respostas redigidas pelos alunos foram, na verdade, o principal elemento
motivador para a apresentação desse texto. O conteúdo e a forma estão em consonância com
a proposta e estilo benjaminianos: emergem em seus escritos, simultaneamente, a
emotividade, a perplexidade, o incômodo com a barbárie adicionados do engajamento e da
necessidade de uma tomada de posição: em outras palavras, poderíamos dizer que a reflexão
escrita dos alunos exige a práxis e a transformação da realidade apresentada em uma outra
situação em que destrone-se o discurso dos “vencedores”, dando-se espaço para o discurso e
atitude libertadores por parte dos “vencidos”.
No contexto cultural brasileiro, as práticas discriminatórias voltadas a afro-
descendentes, a regiões geográficas onde estes grupos étnicos são maioria demográfica, e a
grupos sociais destituídos de condições econômicas favoráveis ainda estão institucionalmente
enraizadas. Em resposta a situação apresentada, destaco abaixo alguns dos elementos que
matizaram as respostas do universo de alunos pesquisados (120 estudantes do 7º ano do
Ensino Fundamental Colégio Pedro II – UESCII – 2010).
Para ilustrar a síntese analítica realizada pelos alunos, apresento a seguir alguns dos
trechos por eles redigidos. As expressões em negrito foram por mim grifadas, tendo em vista
deixar explícito elementos que caracterizam a capacidade cognitiva destes jovens alunos do
7º ano trabalharem com novo aparato conceitual desenvolvido nas aulas de Ciências Sociais,
abordando-o de modo extremamente significativa, trazendo-o para o campo da experiência
vivida, demonstrando capacidade de realizar um mapeamento político da situação descrita,
evidenciando seus desconfortos diante do fato relatado e sua mobilização para atitudes a
serem realizadas no agora:
“Caso o senhor não saiba o que é estereótipo, eu lhe explico: é o que afirmou sobre os baianos. Isso é errado. Não devemos julgar ou classificar as pessoas. O desempenho de nossos alunos foi mau por talvez não terem se esforçado suficiente, e jamais por serem negros ou de baixa renda.”
269
“O senhor não tem o conhecimento e nem a autoridade suficientes para dizer essas barbaridades sobre os alunos, pois se o senhor estivesse bem informado, saberia que essa história de que brancos são superiores aos negros já está totalmente anulada cientificamente, e que não é só porque a pessoa é de baixa renda que ela não tem capacidade ou inteligência”. “O senhor está cometendo um grande erro caracterizando um grupo social como inferior aos outros. ‘Raça’, nacionalidade e inteligência não podem ser confundidas. A inteligência, independente de ‘raça’ ou nacionalidade, está em todos. Não desrespeite a Constituição Federal de novo e não crie estereótipos generalizados e superficiais.” “Receio ter de lhe dizer, mas o senhor está errado. Não sei como pode cometer tal atrocidade, pois sua desculpa quanto à sua própria falta de empenho a ensinar os alunos foi burrice hereditária? E o único burro aqui, de fato, é o senhor, por não saber que julgar os outros por sua procedência regional é crime, pois se soubesse ler, veria na Constituição o ato gravíssimo que cometera.” “O senhor está errado, pois a sua afirmativa foi uma visão etnocêntrica. Claro, existem baianos pobres, mas pobre não é e nem nunca foi sinônimo de burro. Foi totalmente desrespeitoso o seu comentário. Com isso, não acho que o senhor tenha capacidade para ser diretor de uma faculdade, ainda mais de medicina.” “O senhor agiu errado quando discriminou os baianos e os inferiorizou de forma repugnante.” “Devido ao desrespeito feito aos alunos da faculdade, inferiorizando-os e ofendendo, você está oficialmente suspenso de suas atividades na universidade e preso por violar a lei nº 7716.” Creio que o senhor se equivocou sobre o assunto do ENADE falando frases racistas e preconceituosas de nossos caros alunos que sonham um dia se tornarem médicos. Com suas palavras, eu, reitor da Universidade de Medicina da Bahia, venho a acreditar que o senhor apóia o racismo científico e a discriminação de alunos de classes econômicas inferiores e ainda está criando um estereótipo negativo do nosso povo baiano. Sinceramente, senhor Coordenador, espero que o senhor tome as providências necessárias sobre esse caso. Peça desculpas a todo povo baiano, publicamente, e afaste-se de seu cargo temporariamente. “Você está totalmente errado ao afirmar que a cultura dos baianos é inferior e ao fazer qualquer estereótipo negativo sobre eles, pois cada grupo tem suas crenças, cultura cor, etc. e não cabe ao senhor e nem a ninguém os classificar quanto a isso. Saiba que todos nós somos iguais perante a lei.” “Escrevo para lhe dizer que ao falar aquelas coisas todas preconceituosas aos baianos, que o senhor está totalmente errado.(...) Como todos nós, eles são inteligentes, sua cultura não é inferior e eles não têm deficiência mental. Meu coração está doído por saber que uma pessoa como você disse isso. Espero que isso não se repita.” “O senhor está completamente errado ao dizer que a explicação do fracasso da escola foi pelo fato dos estudantes serem baianos e, alguns, por serem negros. A raça e a nacionalidade não são ligadas à inteligência de cada pessoa. Este fracasso pode ter ocorrido por falta de preparo dos estudantes, bem diferente dessa explicação preconceituosa que o senhor deu.” “Sobre suas teorias sobre o mau desempenho da instituição no ENADE, expresso aqui minha opinião: é inadmissível uma opinião dessas a partir de um professor, pois, além de antiética, vai contra a Constituição Federal da Nação. Meu sentimento é de pura tristeza sobre esse fato ocorrido.”
270
“Sua errante explicação após o resultado do ENADE inferiorizou intelectualmente a capacidade da inteligência do povo baiano, colocando justificativas preconceituosas para o seu ato. Sua atitude discriminatória ‘manchou’ publicamente a imagem da nossa honrada Faculdade de Medicina. Espero que essa imagem superficial e generalizada que você tem contra o povo baiano seja erradicada de seu pensamento. Se tal coisa não for possível, não a exponha diante das pessoas, mantenha guardada para si.” “O senhor, como um dos funcionários, faltou com o respeito aos alunos, que podem ter ido mal nesta prova pelo baixo investimento do governo na educação baiana.” “A partir de uma nota da universidade o senhor adjetiva todos os baianos de uma forma muito negativa e generalizada. Não se deve caracterizar todos os baianos e discriminá-los por apenas uma nota de um grupo de estudantes.” “Quero que peça desculpas aos estudantes baianos imediatamente. Você sabia que está cometendo um crime? A culpa das notas baixas não é deles e sim da universidade que não atendeu às necessidades que os alunos tiveram.” “É, meu caro, se eles não foram muito bem, não foi porque eles eram ruins, mas sim porque faltou o ensino, a prática e a explicação do professor de verdade, sem preconceitos que não os discriminassem e sim um professor que lhes ensine sem preconceitos, que lhes tratem igual e lhes ensinem o certo.” “Os alunos não são burros ou inteligentes pela a sua cor, nacionalidade ou condição financeira. O problema de um rendimento tão baixo assim foi culpa da faculdade e não por negros que estudam lá.” “Se os alunos tiraram notas ruins foi porque eles ainda não estavam preparados o suficiente, não porque eles são burros. Pelo contrário, são bastante inteligentes pois não são preconceituosos como o senhor!” “Você me entristeceu muito ao dizer que os baianos não foram bem na prova porque são negros. Você está errado ao dizer isso! A imagem da nossa universidade foi manchada pelo seu depoimento. Agora não tem escapatória: você está demitido! E eu vou depor contra você por discriminação racial!” “Você está errado em afirmar quer os baianos são menos inteligentes, pois qualquer um que se esforce pode se tornar uma pessoa capacitada para exercer funções acadêmicas.” “Os negros são iguais aos brancos, com o mesmo potencial e capacidade. As pessoas de baixa renda também tem a mesma capacidade de aprender igual a nós. Como exemplo, temos o nosso próprio e atual presidente Lula. Os baianos não são inferiores e ninguém é inferior ou superior à ninguém.” “O seu pensamento é errado ao dizer que as notas foram baixas por causa da “falta de inteligência” dos estudantes baianos e por causa da contaminação dos negros e das pessoas de baixa renda. Pense melhor antes de falar, senhor Dantas.” “Você está tendo uma visão etnocêntrica sobre os negros e baianos. Se você conhecer um baiano preguiçoso, isso não significa que todos sejam assim. Pelo contrário, muitos baianos são esforçados, trabalhadores, etc.”
271
“Você está errado porque não pode discriminar e classificar os negros por causa da cor da pele como se fossem um animal ou planta. Todo mundo tem direito de ser tratado como cidadão, e mesmo que tenha uma baixa renda, deve ter chance a um bom futuro.” “O déficit intelectual de alguma pessoa, seja ela qual for, não é ditado pela cor ou procedência regional/nacional, o que nos faz dizer que se as notas dos nossos alunos não foram boas no ENADE é porque deve estar havendo algum déficit profissional.” “A falta ou não de inteligência de um povo ou uma pessoa não pode ser explicada pela sua cor, ‘raça’, religião ou procedência nacional, mas sim pela falta de oportunidades da pessoa ou povo em questão.” “Eu, como reitora dessa universidade, acho que foi um equívoco do senhor ligar o baixo rendimento dos alunos ao fato de serem negros, de baixa renda e até mesmo por terem nascido na Bahia, que é uma terra muito visitada e admirada, onde todas as classes e culturas se misturam e forma a beleza daqui. Sendo assim, acho que o senhor, como um dos funcionários, faltou com o respeito aos alunos, que podem ter ido mal nesta prova pelo baixo investimento do governo na educação baiana. Atenciosamente, a Reitora da Universidade Federal da Bahia.” “Quem tem déficit de inteligência é o senhor, que deu essa explicação ignorante ao baixo rendimento de nota no ENADE. Essa sua resposta manchou a imagem de nossa Faculdade mais do que as notas baixas.” “Como o senhor pode falar mal dos baianos se o senhor não conhece todos os baianos? As notas baixas devem se explicar por falta de ensino, não por falta de inteligência.” “Você me entristeceu muito ao dizer que os baianos não foram bem na prova porque são negros”. “A sua opinião está completamente errada pois se os alunos tiraram notas ruins foi porque eles ainda não estavam preparados o suficiente, não porque eles são burros. Pelo contrário, são bastante inteligentes pois não são preconceituosos como o senhor!” “Eu, como reitora da Faculdade de Medicina da Bahia, à respeito da entrevista que o senhor deu para o jornal Estadão sobre alunos de nossa faculdade, digo que o senhor não tem o conhecimento e nem a autoridade suficientes para dizer essas barbaridades sobre os alunos, pois se o senhor estivesse bem informado, saberia que essa história de que brancos são superiores aos negros já está totalmente anulada cientificamente, e que não é só porque a pessoa é de baixa renda que ela não tem capacidade ou inteligência.”
Aptos a escovar a história a contrapelo, os alunos de 11 a 13 anos, (ainda que muito
jovens, mas, comprovadamente de modo algum imaturos para lidar com o processo analítico
e conceitual sociológico/antropológico) trouxeram elementos ricos em suas respostas,
demonstrando claramente, tal como vimos acima, que os conceitos foram claramente
apreendidos, foram dotados de significados (e não apenas memorizados), estavam articulados
com uma preocupação social mais ampla, evidenciavam a presença de equívoco por parte de
Antonio Dantas na sua forma preconceituosa e etnocêntrica de explicar o fracasso dos alunos
baianos na avaliação do ENADE. Além do uso correto do conceitual apresentado, buscavam
apresentar explicações sociológicas mais razoáveis para o problema das notas baixas, que, no
272
entender dos alunos, não poderia ser caracterizado por incapacidade genética, racial, regional
ou por classe econômica. O incômodo emocional com a explicação dada por Antonio Dantas
esteve expressa em muitas respostas, mas sempre acompanhadas de análise racional,
referência jurídica à legislação brasileira e encaminhando o caso para uma solução, a qual
frequentemente perpassava pelo pedido de desculpas, publicamente, pela demissão de
Dantas, pela reformulação dos processos pedagógicos realizados pelos professores dessa
instituição. Pode-se dizer também, como um todo, que os alunos solicitaram tanto a retratação
pública de Dantas como a solução do problema de aprendizado caracterizado pelas notas no
ENADE.
Deste modo, o artigo procurou confirmar que os desafios sociológicos podem estar
associados a possibilidades cognitivas inovadoras e bem sucedidas quando norteadas por
metodologia pedagógica comprometida com a práxis e com a reflexão crítica.
Referências Bibliográficas:
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