sociologia introduao a ciencia da sociedade cristina costa

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5/9/2018 SociologiaIntroduaoaCienciaDaSociedadeCristinaCosta-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/sociologia-introduao-a-ciencia-da-sociedade-cristina-cos PAG. : 18 / LIVRO : sociologia – INTRODUCAO A SOCIOLOGIA – Autora: Cristina Costa Editora Moderna. TEXTO SCANEADO 1 - O Renascimento Introdução O Renascimento, talvez mais do que a maioria dos diversos momentos históricos, suscita grandes controvérsias. Há quem veja nesse movimento filosófico e artístico o momento de ruptura entre o mundo medieval - com suas características de sociedade agrária, estamental, teocrática e fundiária - e o mundo moderno urbano, burguês e comercial. Mudanças significativas ocorrem na Europa a partir de meados do século XV lançando as bases do que viria a ser, séculos depois, o mundo contemporâneo. A Europa medieval, relativamente estável e fechada, inicia um processo de abertura e expansão comercial e marítima. A identidade das pessoas, até então baseada no clã e na propriedade fundiária, vai sendo progressivamente substituída pela identidade nacional e pelo individualismo. A mentalidade vai se tomando paulatinamente laica - desligada das questões sagradas e transcendentais -, as preocupações metafísicas vão convivendo com outras mais imediatistas e materiais, centradas principalmente no homem. Embora as preocupações metafísicas e filosóficas tenham importado ao homem desde a Antigüidade, no Renascimento a nova sociedade que emerge exige a distinção entre conhecimento especulativo e pragmático. Diferentes visões do Renascimento Alguns historiadores têm uma visão otimista do Renascimento, como a tiveram também aqueles que assim o batizaram, por terem erroneamente considerado a Idade Média como a Idade das Trevas e do obscurantismo. Para eles as mudanças que ocorreram na Europa, principalmente na Itália, e depois na Inglaterra e Alemanha, foram essencialmente  positivas e responsáveis pelo desenvolvimento do comércio e da navegação, do contato com outros povos, pela proliferação de obras de arte e de obras filosóficas. Nessa ótica foi o movimento renascentista que promoveu o renascer da cultura e da erudição, o gosto pelo saber, além de tê-los, aos poucos, posto à disposição da população em geral. Mas há também os historiadores mais pessimistas, que conseguem perceber nessa época um período de grande turbulência social e política. Para essa análise, esses historiadores apóiam-se na falta de unidade política e religiosa, nos grandes conflitos existentes entre as nações, nas guerras intermináveis, nas inquisições e perseguições religiosas, no esforço de conservação 19 de um mundo que agonizava, características marcantes do período. Consideram sintomas de tudo isso os exílios, as condenações e os longos processos políticos e eclesiásticos, os grandes genocídios que a Europa promoveu na América e o ressurgimento da escravidão

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PAG. : 18 / LIVRO : sociologia – INTRODUCAO A SOCIOLOGIA – Autora: CristinaCosta Editora Moderna.

TEXTO SCANEADO

1 - O RenascimentoIntrodução

O Renascimento, talvez mais do que a maioria dos diversos momentos históricos,suscita grandes controvérsias. Há quem veja nesse movimento filosófico e artístico omomento de ruptura entre o mundo medieval - com suas características de sociedadeagrária, estamental, teocrática e fundiária - e o mundo moderno urbano, burguês ecomercial.

Mudanças significativas ocorrem na Europa a partir de meados do século XVlançando as bases do que viria a ser, séculos depois, o mundo contemporâneo. A Europa

medieval, relativamente estável e fechada, inicia um processo de abertura e expansãocomercial e marítima. A identidade das pessoas, até então baseada no clã e na propriedadefundiária, vai sendo progressivamente substituída pela identidade nacional e peloindividualismo. A mentalidade vai se tomando paulatinamente laica - desligada dasquestões sagradas e transcendentais -, as preocupações metafísicas vão convivendo comoutras mais imediatistas e materiais, centradas principalmente no homem.

Embora as preocupações metafísicas e filosóficas tenham importado ao homem desdea Antigüidade, no Renascimento a nova sociedade que emerge exige a distinção entreconhecimento especulativo e pragmático.

Diferentes visões do Renascimento

Alguns historiadores têm uma visão otimista do Renascimento, como a tiveramtambém aqueles que assim o batizaram, por terem erroneamente considerado a Idade Médiacomo a Idade das Trevas e do obscurantismo. Para eles as mudanças que ocorreram naEuropa, principalmente na Itália, e depois na Inglaterra e Alemanha, foram essencialmente positivas e responsáveis pelo desenvolvimento do comércio e da navegação, do contatocom outros povos, pela proliferação de obras de arte e de obras filosóficas. Nessa ótica foi omovimento renascentista que promoveu o renascer da cultura e da erudição, o gosto pelosaber, além de tê-los, aos poucos, posto à disposição da população em geral.

Mas há também os historiadores mais pessimistas, que conseguem perceber nessaépoca um período de grande turbulência social e política. Para essa análise, esseshistoriadores apóiam-se na falta de unidade política e religiosa, nos grandes conflitosexistentes entre as nações, nas guerras intermináveis, nas inquisições e perseguiçõesreligiosas, no esforço de conservação

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de um mundo que agonizava, características marcantes do período. Consideram sintomasde tudo isso os exílios, as condenações e os longos processos políticos e eclesiásticos, osgrandes genocídios que a Europa promoveu na América e o ressurgimento da escravidão

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como instituição legal.De fato, um certo clima de fim de mundo perpassa a produção artística do período,

expresso na Divina comédia de Dante Alighieri, no Juízo final de Michelângelo, pintado naCapela Sistina e em vários quadros do artista flamengo Heironymus Bosch. Um clima deinsegurança e instabilidade perpassa a todos nessa época de profunda transição.

A retomada do espírito especulativo

De qualquer maneira, o Renascimento marca uma nova postura do homem ocidentaldiante da natureza e do conhecimento. Juntamente com o descrédito na Igreja comoinstituição e o conseqüente aparecimento de novos credos e seitas - que conclamavam osfiéis a uma leitura interpretativa das escrituras -, o homem renascentista retoma a crença no pensamento especulativo. O conhecimento deixa de ser revelado, como resultado de umaatividade de contemplação e fé, para voltar a ser o que era antes entre gregos e romanos - oresultado de uma bem conduzida atividade mental.

Assim como a ciência, a arte também se volta para a realidade concreta, Para o mundo

terreno, numa ânsia por conhecê-lo, descrevendo-o, analisando-o, medindo-o, quer commedidas precisas, quer por meio de uma perspectiva geométrica e plana."O visível é também inteligível", afirmava Leonardo da Vinci, encantado com as

 possibilidades de conhecimento pelo do uso dos sentidos.Por outro lado, a vida terrena adquire cada vez mais importância e com ela a própria

historia, que

“O renascimento se caracteriza por uma nova postura do homem ocidental diante danatureza e do conhecimento.”

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 passa a ter uma dimensão eminentemente humana. Estimulado pelo individualismo e libertodos valores que o prendiam irremediavelmente à família e ao clã, o homem já concebe seu papel na história como agente dos acontecimentos. Ele vai aos poucos abandonando aconcepção que o tomava por pecador e decaído, um ser em permanente dívida para comDeus, para se tornar, na nova perspectiva, o agente da história.

Shakespeare evoca constantemente em suas peças a tragédia do homem diante desuas opções e sentimentos, enquanto Michelângelo faz quase se encontrarem os dedos deDeus e Adão na cena da Criação.

É nesse ambiente de renovação que o pensamento científico tomará novo fôlego e,com ele, o pensamento acerca da vida social,

Um novo pensamento social

 Num mundo que se torna cada vez mais laico e livre da tutela da Igreja Católica, o homemse sente livre para pensar e criticar a realidade que vê e vivencia. Sente-se livre paraanalisar essa realidade como algo em si mesmo e não como um castigo que Deus lhereservou. E, assim como os pintores que se debruçaram nas minúcias das paisagens, nadisposição das figuras numa perspectiva geométrica, os filósofos também passam a

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questionar e dissecar a realidade, social. A vida dos homens passa a ser fruto de suas açõese escolhas, e não dos desígnios da justiça divina.

 Novas instituições políticas e sociais, estados nacionais, exércitos, levam os homensa repensar a vida social e a historia.

21Ao mesmo tempo, emerge uma nova classe social- a burguesia comercial-, com novas

aspirações e interesses, que renova o pensamento social. Nessa visão humana e especulativa da vida social está o germe do pensamento social

moderno que vai se expressar na literatura, na pintura, na filosofia e, em especial, naliteratura utópica de Thomas Morus (A Utopia), Tommaso Campanella (A cidade do Sol) eFrancis Bacon (Nova Atlântida).

As utopias

Como Platão, os filósofos renascentistas tentaram imaginar uma sociedade perfeita.Assim como a Atlântida, surge através da pena de Thomas Morus uma comunidade ondetodas as soluções foram encontradas: a Utopia. Uma ilha cujo nome significa "nenhumlugar", onde existe harmonia, equilíbrio e virtude.

Desse modo, o pensamento social no Renascimento se expressa na criação imagináriade mundos ideais que mostrariam como a realidade deveria ser, sugerindo entretanto que talsociedade seria construída pelos homens com sua ação e não pela crença ou pela fé.

Utopia é uma ilha onde reina a igualdade e a concórdia. Todos têm sob as mesmascondições de vida e executam em rodízio os mesmos trabalhos. A igualdade e os ideaiscomunitários são garantidos por uma monarquia constitucional. Cada grupo de 30 famíliasescolhe um representante para o conselho que elege o imperador; este permanece até o fim

da vida como soberano, sob o olhar vigilante do conselho, que opina sobre cada ato real e pode consultar previamente as famílias, quando considerar necessário.Além da igualdade quanto ao estilo de vida e ao trabalho, também a distribuição de

alimentos se dá de forma comunitária. Não há necessidade de pagar por nada, porque há detudo em profusão, uma vez que a vida é simples, sem luxo e todos trabalham.

Em A Utopia, Thomas Morus expressa os ideais de vida moderada, igualitária elaboriosa, semelhantes aos praticados pelos monges nos mosteiros pré-renascentistas, assimcomo defende, em termos políticos, a monarquia absoluta.

“Utopia vem dos termos gregos óu (não) e topos (lugar). Significaria literalmente"nenhum lugar". Corresponde na história do conhecimento a essa evocação, através de umaaspiração, sonho ou desejo manifesto, de um  estado de perfeição sempre imaginário. Namedida, entretanto, em que a utopia enfoca um estado de perfeição, ela realiza, por oposição, um exercício de análise, crítica e denúncia da Sociedade vigente. O estado de perfeição ensejado na utopia é necessariamente aquele no qual se tornam evidentes asimperfeições da realidade em que se vive.

Mas, apesar de seu caráter de evasão da realidade, a utopia revela um apurada crítica àordem social, podendo inclusive se transformar em autêntica força revolucionaria comoindicam os grandes movimentos messiânicos vividos pela humanidade seja, aquelesmovimentos que têm por meta a redução da humanidade ou a salvação do mundo.”

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“Thomas Morus (1478-1535)

 Nasceu em Londres. Foi pensador, estadista, advogado e membro da Câmara s Comuns.Como bom humanista, desenvolveu estudos sobre o grego antigo. Em 1518, foi nomeadomembro do Conselho Secreto de Henrique VIII e chegou em 1529 a ocupar o mais altocargo do reino. Opôs-se à anulação do casamento de Henrique VIII, recusando-se a jurar fidelidade à Igreja Anglicana fundada pelo rei, em parte por ser católico e em parte por ser contrário aos desmandos da autoridade real. Foi preso, condenado e executado. Em 1935foi canonizado pela Igreja Católica e sua festa é celebrada em 6 de julho, dia de sua morte.Sua grande obra é A Utopia.”

Seria   A Utopia uma obra sociológica? Não no sentido moderno ou científico doconceito, mas como expressão das preocupações do filósofo com a vida social e com os

 problemas de sua época. Toda a vida ou, como o próprio autor chama, o "regime social"dos utopienses demonstra claramente a preocupação com o estabelecimento de regrassociais mais justas e humanas como resposta às críticas que o autor fez em relação àInglaterra de seu tempo.

Analisar a sociedade em suas contradições e visualizar uma maneira de resolvê-las,acreditar que da organização das relações políticas, econômicas e sociais derivam afelicidade do homem e seu bem-estar é, seguramente, o germe do pensamento sociológico.

E, refletindo basicamente os anseios de sua época, Thomas Morus considera essemundo ideal possível, graças ao plano sábio de um monarca absoluto: Utopos, fundador daUtopia.

O monarca esclarecido, justo e sábio é o ideal político do Renascimento, organizador 

das sociedades perfeitas criadas pela literatura de Thomas Morus e de outros.“Analisar as contradições sociais e procurar resolve-las, acreditar que o bem estar dohomem depende das condições sociais é o germe do pensamento sociológico.”

Maquiavel: O criador da ciência política

 Nicolau Maquiavel, pensador florentino, escreveu um livro, O  príncipe, dedicado aLourenço de Médici (1449-1492), governador de Florença, protetor das artes e das letras,ele mesmo um ditador. Nesse livro, Maquiavel se propõe a explorar as condições pelasquais um monarca absoluto é capaz de fazer conquistas, reinar e manter seu poder.

Como Thomas Morus, Maquiavel acredita que o poder depende das características pessoais do príncipe - suas virtudes -, das circunstâncias históricas e de fatos que ocorremindependentemente de sua vontade – as oportunidades. Acredita também que do bomexercício da vida política depende a felicidade do homem e da sociedade. Mas, sendo maisrealista do que seus companheiros utopistas, Maquiavel faz de O  príncipe um manual deação política, cujo ideal é a conquista e a manutenção do poder. Disserta

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a respeito das relações que o monarca deve manter com a nobreza, o clero, o povo eseu ministério. Mostra como deve agir o soberano para alcançar e preservar o poder, comomanipular a vontade popular e usufruir seus poderes e aliados. Faz uma análise clara das bases em que se assenta o poder político: como conseguir exércitos fiéis e corajosos, comocastigar os inimigos, como recompensar os aliados, como destruir, na memória do povo, a

imagem dos antigos líderes.“Nicolau Maquiavel(1469-1527)

 Nasceu em Florença, mas fez sua carreira diplomática em diversos países da Europa. De1502 a 1512 esteve a serviço de Soderini, presidente perpétuo de Florença. Ajudava-o nasdecisões políticas, escrevia-lhe discursos e reorganizou o exército florentino. Foi exilado eafastado da vida pública quando Soderini foi destronado por Lourenço de Médici. A partir de então, limitou-se a ensinar e a escrever sobre a arte de governar e guerrear. Éconsiderado o  fundador da ciência política e, segundo alguns, nesse campo jamais foi

superado. Suas principais obras são: O  príncipe e  Discursos sobre a  primeira década deTito Lívio.”

A Visão Laica da Sociedade e do Poder

Em relação ao desenvolvimento do pensamento sociológico, Maquiavel teve mais êxitodo que Thomas Morus, na medida em que seu objetivo foi conhecer a realidade tal como selhe apresentava, em vez de imaginar como ela deveria ser.

De qualquer maneira, nas obras de Thomas Morus e de Maquiavel percebemos comoas relações sociais passam a constituir objeto de estudo dotado de atributos próprios edeixam de ser, como no passado, conseqüência do acaso ou das qualidades pessoais dos

sujeitos. A vida dos homens já aparece, nessas obras, como resultado das condiçõeseconômicas e políticas e não de Sua fé ou de sua consciência individual.Além disso, esses filósofos expressam os novos valores burgueses ao colocar os

destinos da sociedade e de sua boa organização nas mãos de um indivíduo que se distingue por características pessoais. A monarquia proposta no Renascimento não se assenta nalegitimidade do sangue ou da linhagem, na herança ou na tradição, mas na capacidade  pessoal do governante e Sua sabedoria. A história, tanto como ciência quanto comoconhecimento dos fatos, passa a ter um papel relevante nesse novo contexto. Desconhecer ahistória é desconhecer a evolução e as leis que regem a sociedade onde se

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vive. Nessa idéia de monarquia se baseia a aliança que a burguesia estabelece com os reis para o surgimento dos estados nacionais, onde a ordem social será tanto mais atingívelquanto mais o soberano agir como estadista, pondo em marcha as forças econômicas docapitalismo em formação.

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2 - A Ilustração e a sociedade contratual

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Introdução: uma nova etapa no pensamento burguês

O Renascimento desenvolveu nos homens novos valores, diferentes daqueles vigentesna Idade Média. Os valores renascentistas estavam mais adequados ao espírito docapitalismo, um sistema econômico voltado para a produção e a troca, para a expansãocomercial, para a circulação crescente de mercadorias e para o consumo de bens materiais.Instalava-se uma sociedade baseada na distinção pela posse de riqueza e não pela origem,nome e propriedade fundiária.

Essa mudança radical no mundo ocidental exigia uma nova ordem social, dirigida por  pessoas dispostas a buscar um espaço no mundo, a competir por mercados e a responder deforma produtiva à ampliação do consumo. Pessoas cuja vida estivesse direcionada para aexistência terrena e suas conquistas, e não para a vida após a morte e para os valorestranscendentais.

Todas essas mudanças se anunciavam no Renascimento e se tomavam cada vez maisradicais à medida que se adentrava a Idade Moderna e a Revolução Industrial se tomavarealidade.

A nova concepção de lucro, elaborada e praticada pelo comerciante burguêsrenascentista, e a marca decisiva da ruptura com os valores e as idéias do mundo medieval.O lucro não é mais apenas o valor que se paga ao comerciante pelo trabalho realizado. Olucro expressa a premissa da acumulação, da ostentação, da diferenciação individual eassim realiza a idéia de que tenho o direito de cobrar o máximo que uma pessoa pode pagar.A idéia e a realização do lucro não eram de forma alguma novas. Eram conhecidas desde aAntigüidade, a partir do momento em que surgiu o comércio usando o dinheiro comoequivalente de troca e, em decorrência, a acumulação de riqueza. No entanto, a forma de pensar e praticar o lucro era distinta. Enquanto no Império Romano o comércio realizadocom a prática de preços considerados abusivos era considerado ilegal e pouco nobre, e aIgreja Católica considerava pecaminosa a atividade lucrativa, no capitalismo, o lucro

tomou-se a finalidade de qualquer atividade econômica. Vejamos esta situação hipotética:na Grécia, um armador vivia da compra, do transporte e da venda de azeitonas à Europa. O preço final do produto remunerava o comerciante por seu trabalho de intermediação. Nesse preço estavam embutidas a reposição dos navios e dos escravos e a viagem de volta. Muitoscomerciantes enriqueceram, porque agora também se cobrava o máximo possível pelamercadoria. Essa forma de entender 

“O pensamento burguês representou uma ruptura com relação ao mundo medieval.”

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o lucro era nova na história e foi instaurada pela burguesia a partir do Renascimento.Se um comerciante pode auferir numa troca comercial o maior preço possível que a si-

tuação permite - resultante da relação entre oferta e procura e de outras condições pro-dutivas e de mercado -, então é preciso que a produção seja organizada de forma mais,racional e em larga escala. O fato de a concorrência ser cada vez maior também exige mai-or racionalidade e previsão. A procura por novas técnicas mais eficientes se torna umaconstante. Muitos prêmios são oferecidos aos inventores, e projetos como os de Leonardoda Vinci , que ficaram apenas no papel, passam a fazer enorme sucesso. Desenvolvem-se a

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ciência e a tecnologia, enquanto filosofia cada vez mais se procuram as raízes das formasde pensar.

O Renascimento introduziu e desenvolveu o antropocentrismo, a laicidade, oindividualismo e o racionalismo. Com relação à vida social, passou a concebê-la como umarealidade própria sobre a qual os homens atuam; percebeu-se também a existência de

diferentes modelos - a República, a Monarquia - e passou-se a visá-los e a defender um ououtro modelo.

Conseguiu-se vislumbrar a oposição entre indivíduo e sociedade, entre vontadeindividual e regras sociais.

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A  Ilustração, movimento filosófico que sucedeu o Renascimento, deu um passo a além.Concebeu novas idéias de vida social e entende a coletividade como um organismo próprio.Começou a discernir aspectos e áreas da vida social com diferentes características enecessidades - a agricultura, a indústria, a cidade, o campo. O conceito de nação, como

forma de organização política pela qual as populações estabelecem relaçõesintersocietárias, já se cristalizara na Ilustração. O nacionalismo emergente doRenascimento, identificado ainda com o monarca e preso ao sentimento de fidelidade esujeição, dá lugar à noção de organismo representativo da coletividade, independentementede quem ocupa, por certo tem o os cargos disponíveis.

O princípio de representatividade política revelando um aprofundamento noentendimento da vida social, assim como o aparecimento de teorias capazes de explicar aorigem do valor das mercadorias e outros mecanismos sociais, mostram o grau dedesenvolvimento do pensamento social. Já era possível identificar fenômenos sociais econcebê-los em sua natureza própria diferenciada. O surgimento de conceitos, como Valor e Estado, revela a existência e uma metodologia e a emergência de uma nova forma de

conhecer a realidade social.O Renascimento correspondeu a uma primeira fase da sistematização do pensamento

 burguês, na medida em que procurava trazer de volta à Europa os valores laicos, o gosto pela vida e o racionalismo, e atribuía ao indivíduo valores pessoais que não provinham dasua origem.

Embora ainda tivesse um certo caráter religioso, o Renascimento exaltava a natureza eos prazeres da vida terrena, fossem o êxtase religioso ou o simples prazer dos sentidos, quese consegue junto à natureza.

 Nos séculos XVII e XVIII, entretanto, a burguesia avança na concepção de uma formade pensar própria, capaz de transformar o conhecimento não só numa exaltação da vida edos feitos de seus heróis, mas também num processo que frutificasse em termos de

utilidade prática. Afinal, o desenvolvimento industrial se anunciava em toda sua potencialidade; os empreendimentos, quando bem dirigidos, prometiam lucros miraculosos.Portanto, era preciso preparar a sociedade para receber os resultados desse trabalho. Os próprios sábios deveriam se interessar em desenvolver conhecimentos de aplicação prática.A sociedade apresentava necessidades urgentes ao desenvolvimento, científico: melhorar ascondições de vida; ampliar a expectativa de sobrevivência humana a fim de engrossar asfileiras de consumidores e, principalmente, de mão-de-obra disponível; mudar os hábitossociais e formar uma mentalidade receptiva as inovações técnicas. A pratica de elaboração

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dos projetos científicos para o desenvolvimento da indústria passa a ser aplicada à sociedade, pois sem um planejamento racional dos meios de transporte terrestres emarítimos, da distribuição e armazenamento dos produtos, da melhoria da infra-estrutura,todo o esforço produtivo estaria perdido. O planejar e o projetar o futuro trouxeram consigotambém o conceito de nação, correspondendo à extensão territorial onde a burguesia de

determinado pais teria total controle sobre o mercado. A nação deveria se submeter a uma

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organização política que pudesse favorecer o desenvolvimento econômico e estimulá-lo.Dentro dessa nova organização política da sociedade deveria privilegiar-se o indivíduo, principal motor do progresso econômico. Este deveria estar livre das amarras impostas atéentão pela sociedade feudal, pois, de posse de sua total liberdade de agir, mover-se eestabelecer-se, o indivíduo poderia promover o progresso econômico.

 Novos valores guiando a vida social para sua modernização, maior empenho das

 pesquisas e do saber em conquistar avanços técnicos, melhora nas condições de vida, tudoisso somado levou a esse surto de idéias, conhecido pelo nome de Ilustração.Após um primeiro momento em que a existência de um poder central garantia a

emergência e a organização dessa nova ordem social, o mercado exigia liberdade deexpansão. As novas formas de pensar e agir aliavam-se à necessidade de a burguesialibertar-se das amarras estabelecidas pelas monarquias absolutas, que não permitiam a livreiniciativa, a liberdade de comércio e a livre concorrência de salários, preços e produtos.

Assim, a Ilustração foi essencialmente pragmática e liberal, uma vez que a burguesiaqueria uma ordem econômica, política e social em que tivesse participação no poder e pudesse realizar seus negócios sem entraves.

Podemos dizer que a burguesia já se sentia suficientemente forte e confiante em seus

  próprios objetivos de vida para dispensar a figura do rei como seu aliado contra os privilégios feudais, tal como sucedera durante a época mercantilista, em que o Estadonacional favoreceu uma política de acumulação de capital por meio de monopólios,fiscalização, manufaturas e colonialismo. Fortalecida, a burguesia propunha agora formasde governo baseadas na legitimidade popular, até mesmo governos republicanos.Conclamava o povo a aderir à defesa da igualdade jurídica e do sufrágio universal.

A filosofia social dos séculos XVII e XVIII

O pensamento da Ilustração, apoiado principalmente na contribuição dos fisiocratas (escolaeconômica da época), defendia a idéia de que a economia era regida por leis naturais deoferta e procura que tendiam a estabelecer, de maneira mais eficiente do que os decretosreais, o melhor preço, o melhor produto e o melhor contrato, pela livre concorrência. Alémdesse apreço pelo livre curso das relações econômicas, os fisiocratas, opondo-se ao usoocioso que a nobreza fazia de suas propriedades agrárias, propunham melhor aproveitamento da agricultura, atividade que consideravam a principal fonte de riqueza dasnações.

Segundo esse ponto de vista, as relações econômicas e sociais eram regidas por leisfísicas e naturais que funcionariam de maneira racional, desde que não prejudicadas pelaintervenção do Estado absolutista. O controle das relações humanas surgia, portanto, da

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 própria dinâmica da vida econômica e social, dotada de uma racionalidade intrínseca, cujadescoberta era a principal meta dos estudos científicos.

“O desenvolvimento do capitalismo estimulou a sistematização do pensamentosociológico.”

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A racionalidade estava na origem natural e física das leis de organização da sociedadehumana e na base da própria atividade humana e do conhecimento, tal como defendiam os pensadores franceses René Descartes e Denis Diderot. O racionalismo cartesiano - termoderivado de Cartesius, nome latino de Descartes - se expressava pela frase "penso, logoexisto", na qual mostrava que a razão era a essência do ser humano.

Reconhecia-se no homem, portanto, a capacidade de pensar e escolher, de opinar eresolver sem que leis rígidas perturbassem sua conduta. No plano econômico, essa idéia setraduzia na ânsia por liberdade de ação, empreendimento e contratação. Traduzia-se ainda

na concepção de que as relações entre os homens resultariam na livre contraposição devontades, na liberdade contratual. No plano político, expressava-se no objetivo de livreescolha dos governantes, segundo o ideal de um Estado representativo da vontade popular.Finalmente, no plano social, manifestava-se na noção de que as sociedades se baseavam emacordos mútuos entre os indivíduos que as compunham.

Um dos pensadores que mais desenvolveu essa idéia de um pacto social originário foiJean-Jacques Rousseau. Em sua obra Contrato social, Rousseau afirmava que a base dasociedade estava no interesse comum pela vida social, no consentimento unânime doshomens em renunciar as suas vontades particulares em favor de toda a comunidade.

Para alicerçar suas idéias a respeito da legitimidade do Estado a serviço dos interessescomuns e dos direitos naturais do homem, Rousseau procurou traçar a trajetória da

humanidade a partir do igualitarismo primitivo até a sociedade diferenciada. Para ele, aorigem dessa diferenciação estava no aparecimento da propriedade privada. Justamente por essa crítica à propriedade, distingue-se dos demais filósofos da Ilustração.

“Jean-Jacques Rousseau(1712-1778)

 Nascido em Génebra, filho de burgueses protestantes, Rousseau teve uma vida erranteque o levou continuamente da Suíça à França, à Itália e à Inglaterra. Foi aprendiz deseminarista. Dedicou-se também ao desenho, à pintura e à música. Na França, foicontemporâneo de filósofos da Ilustração, como Diderot. Suas principais obras foram,Emilio , Contrato social, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre

os homens e   Discurso sobre as ciências e as artes. Foi alvo de críticas severas e  perseguições, mas na época da Revolução Francesa suas idéias foram intensamentedivulgadas.”

John Locke, pensador inglês, também defendeu a idéia de que a sociedade resultava da livreassociação entre indivíduos dotados de razão e vontade. Para Locke, essa contrataçãoestabelecia, entre outras coisas, as formas de poder, as garantias de liberdade individual e orespeito à propriedade. Seus Princípios deveriam ser redigidos sob a forma de uma

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constituição.Entre os filósofos da Ilustração, ganhavam adeptos a idéia de que toda matéria tinha

uma origem natural, não-divina, e que todo processo vital não

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era senão o movimento dessa matéria, obedecendo a leis naturais. Esses princípios guiavamo conhecimento racional da sociedade, na busca das leis naturais da organização social.

Podemos afirmar que a filosofia social da Ilustração levaria à descoberta das basesmateriais das relações sociais. Percebe-se claramente que os filósofos dessa época jádesenvolviam a consciência da diferença entre indivíduo e coletividade. Já percebiam queesta possuía regras próprias que regulavam a vida coletiva, como as regras naturais regiamo surgimento, o desenvolvimento e as relações entre as espécies. Mas, presos ainda à idéiade indivíduos, esses filósofos entendiam a vida coletiva como a fusão de individualidades.O comportamento social decorreria da manifestação explícita das vontades individuais.

“A filosofia social da Ilustração levou à descoberta das bases materiais das relaçõessociais.”

“John Locke (1632-1704)

Era inglês de Wrington. Formado em Oxford, ingressou na carreira diplomática. Durante o  período em que residiu na França, tomou contato com o método cartesiano. Sofreu perseguições políticas na Inglaterra que o obrigaram a se refugiar na Holanda. Em sua obra Dois tratados sobre o governo civil, d efende o liberalismo político, os direitos naturais dohomem e da propriedade privada. Suas idéias políticas tiveram grande repercussão assimcomo sua contribuição ao problema do conhecimento, expressa na obra  Ensaio sobre o

entendimento humano, na qual repudia a proposição cartesiana de que o homem possuaidéias inatas e defende o conhecimento como resultado da experiência, da percepção e dasensibilidade. Publicou, ainda,   Epístola sobre a tolerância, Alguns pensamentos sobreeducação e Raciona/idade do cristianismo.”

Adam Smith: O nascimento da ciência econômica

Foi Adam Smith, considerado fundador da ciência econômica, quem demonstrou quea análise científica podia ir além do que era expressamente manifesto nas vontadesindividuais. Em sua analise sobre a riqueza das nações descobriu no trabalho, ou seja, na produtividade, a grande fonte de riqueza. Não era somente a agricultura, como queriam osfisiocratas, a principal fonte de bens; mas o trabalho capaz de transformar matéria bruta em produtos com valor de mercado. Veremos adiante como essa idéia será retomada ereelaborada no século XIX por Karl Marx.

Adam Smith revelara a importância do trabalho ao pensar a sociedade não como umconjunto abstrato de indivíduos dotados de vontade e liberdade, tal como fizeram Rousseaue Locke, mas ao aprender e perceber a natureza própria da vida social segundo a qual ocomportamento social obedece regras diferentes daquelas que regem a ação individual. Acoletividade deixava de ser a soma dos indivíduos que a compõem. A Revolução Industrialestava em pleno andamento e seus frutos se anunciavam.

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“Adam Smith (1723-1790)  Nasceu na Escócia. Foi professor da Universidade de Glasgow. É considerado o

fundador da ciência econômica. Sua principal obra foi Investigação sobre a natureza e ascausas da riqueza das nações (A riqueza das nações). Desenvolveu idéias a respeito dadivisão do trabalho, da função da moeda e da ação dos bancos na economia. Continuouseus estudos no livro Teoria dos sentimentos morais, no qual afirma que a vida socialhumana está fundada em sentimentos de benevolência e simpatia. Foi o grande defensor doliberalismo econômico.”

Legitimidade e liberalismo

As teorias sociais da Ilustração no século XVIII foram ainda o início do pensar científico sobre a sociedade. Tiveram o poder de orientar a ação política e lançar as bases

do que viria a ser o Estado capitalista, desenvolvido no século XIX, constitucional edemocrático. Lançaram também as bases para o movimento político pela legitimação poder, fosse de caráter monárquico, como na Revolução Gloriosa da Inglaterra, fosse decaráter republicano, como na Revolução Francesa, ou ainda do tipo ditatorial, como noimpério napoleônico. Tão importante quanto seu valor como forma de entendimento davida social e política foi sua repercussão prática na sociedade.

A filosofia social desse período teve, em relação à renascentista, a vantagem de nãoconstituir apenas uma crítica social baseada no que a sociedade poderia idealmente vir aser, mas de criar projetos concretos de realização política para a sociedade burguesaemergente.

A idéia de Estado como uma entidade cuja legitimidade se baseia na pretensa

representatividade da sociedade é um avanço em relação à idéia de monarquia absoluta. OEstado já não é a pessoa que governa, mas uma instituição abstrata com relações precisascom a coletividade. Além da circulação de leis e de riquezas, o Estado criava o princípio dacirculação do poder. O confronto de interesses também está subjacente às idéias propostas pelos políticos iluministas.

A idéias de Locke e de Montesquieu, outro importante pensador da Ilustração, foram a base da Constituição norte-americana de 1787. Ambos pregaram a divisão do Estado emtrês poderes: legislativo, incumbido da colaboração e da discussão das leis; executivo,encarregado da execução das leis, tendo em vista a proteção dos direitos naturais àliberdade, à igualdade e a propriedade; e  judiciário, responsável pela fiscalização àobservância das leis que asseguravam os direitos individuais e seus limites. Essa divisãoestabelecia a distribuição das tarefas governamentais e a mútua fiscalização entre os poderes do Estado. Locke defendia, ainda, a idéia de que a origem do poder não estava nos privilégios da tradição, da herança ou da concessão divina, mas no contrato expresso pelalivre manifestação das vontades individuais.

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A legislação norte-americana, instituindo a divisão do Estado nos três poderes eestabelecendo mecanismos para garantir a eleição legítima dos governantes e os direitos do

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cidadão, pôs em prática os ideais políticos liberais e democráticos modernos. Os EstadosUnidos da América constituíram a primeira república liberal-democrática burguesa.

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3 - A crise das explicações religiosas e o triunfo da ciênciaIntrodução: o milagre da ciência

Vários aspectos da filosofia da ilustração prepararam o surgimento das ciências sociaisno século XIX. O primeiro deles foi a sistematização do pensamento científico. Os efeitosde novos inventos, como o pára-raios e as vacinas, o desenvolvimento da mecânica, daquímica e da farmácia, eram amplamente verificáveis e pareciam coroar de êxitos asatividades científicas. Claro está que a sociedade européia da época não se dava conta dasnefastas conseqüências que a Revolução Industrial do século XVIII traria para o mundo tra-dicional agrário e manufatureiro. Aos olhos dos homens da época, eram vitoriosas as

conquistas do conhecimento humano, no sentido de abrir caminho para o controle sobre asleis da natureza.As idéias de progresso, racionalismo cientificismo exerceram todo um encanto 80 re a

mentalidade da época. A vida parecia submeter-se aos ditames do homem esclarecido.Preparava-se o caminho para o amplo progresso científico que aflorou no final do séculoXIX.

“Se a ciência tinha sucesso na explicação da natureza, poderia também explicar asociedade, como elemento da natureza.”

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Se esse pensamento racional e científico parecia válido para explicar a natureza,intervir sobre ela e transformá-la, ele poderia também explicar a sociedade vista como umelemento da natureza. E a sociedade, da mesma forma que a natureza, poderia ser conhecida e transformada.

As questões de método

O filósofo da ilustração, além de preocupar-se com a descoberta das leis que regiam o próprio conhecimento, queria conhecer a natureza e intervir sobre ela. Dessa preocupação provieram as discussões em tomo do método científico. A indução, método que concebia oconhecimento como resultado da experimentação contínua e do aprofundamento damanipulação empírica, havia sido desenvolvida por Bacon desde o fim do Renascimento.Em contraposição, Descartes defendia a validade do método dedutivo, ou seja, aquele que possibilitava descobertas pelo encadeamento lógico de hipóteses elaboradas exclusivamentea partir da razão.A ciência se fundava, portanto, como um conjunto de idéias que diziam respeito à naturezados fatos e aos métodos para compreendê-los. Por isso, as primeiras questões que ossociólogos do século XIX tentarão responder serão relativas a definição dos fatos sociais eao método de investigação. Tanto o método indutivo de Bacon como o dedutivo de

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Descartes serão traduzidos em procedimentos válidos para as pesquisas sobre a natureza dasociedade.

O anticlericalismo

Um aspecto de especial importância no pensamento desse período, sobretudo aquelede origem francesa, foi o anticlericalismo. Entre os filósofos e os literatos que se insurgiramcontra a religião, em particular contra a Igreja Católica, destaca-se Voltaire, que, não seatendo somente à propagação de idéias anticlericais, também moveu processos judiciaiscontra a Igreja Católica, a fim de rever antigas condenações da Inquisição. Voltaire chegoua comprovar a injustiça de alguns veredictos eclesiais e a obter indenizações para asfamílias dos condenados.

Dessa forma, a Igreja foi questionada como fonte de poder secular, político eeconômico, na medida em que se imiscuía em questões civis e de Estado. Talquestionamento levou a uma descrença na doutrina e na infalibilidade eclesiásticas, assimcomo ao repúdio à secular atuação do clero.

Esse processo, denominado por alguns historiadores "laicização da sociedade", por outros, "descristianização", atingiu seu apogeu no século XIX. Nesse períododesenvolveram-se filosofias materialistas e o próprio estudo da religião como instituiçãosocial, em suas origens e funções.

A igreja como objeto de pesquisa

A existência da Igreja como instituição social foi discutida por alguns pensadores esociólogos do século XIX. Émile Durkheim a considerava um

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meio de integrar os homens em tomo de idéias comuns. Karl Marx a julgava responsável  por uma falsa imagem dos problemas humanos, ligada à acomodação e à submissão pregadas por sua doutrina.Defendida por uns, repudiada por outros, a Igreja perdia, de qualquer maneira, o importante papel de explicar o mundo dos homens; passava, ao contrário, a ser explicada por eles. Areligião começou a ser encarada como um dos aspectos da cultura humana, como algocriado pelos homens com finalidades praticas relativas a vida terrena, e não apenas a vidafutura. Assim, a igreja e sua doutrina sofreram um processo de dessacralização, em que seeliminou muito de seu aspecto sobrenatural e transcendente. Toda religião - em especial ocatolicismo - era agora vista de maneira favorável ou desfavorável, conforme sua inserçãona vida concreta e material dos homens, como promotora de valores sociais importantes para a orientação da conduta humana. Na filosofia, grandes pensadores sistematizaram o pensamento laico e antic1erical. Feuerbach, filósofo alemão, atacou a concepção segundo aqual o homem criara Deus a sua imagem e semelhança. Nietzsche chega a anunciar a mortede Deus e a necessidade de o homem assumir a plena responsabilidade sobre sua existênciano mundo.A nova maneira de encarar a doutrina religiosa auxiliou o desenvolvimento das ciênciashumanas, em particular das ciências sociais, na medida em que a própria sociedade perdeua sacralidade, isto é, deixou de ser vista como obra de Deus. Para o pensamento cientificista

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do século XIX, são os homens que criam os deuses e não ao contrario. A vida humana emsociedade deixa de ser mero estagio para a vida após a morte e passa agora a buscar explicações para a existência das crenças religiosas na própria sociedade.“O pensamento laico - cientifico permitiu pensar a sociedade como obra humana e nãodivina.”

A Sacralização da ciência

A sociologia se desenvolveu no século XIX quando a racionalidade das ciênciasnaturais e de seu método havia obtido o reconhecimento necessário para substituir areligião na explicação da origem do desenvolvimento e da finalidade do mundo.

 Nesse momento, a ciência, com sua possibilidade de desvendar as leis naturais domundo físico e social, por meio de procedimentos adequados e controlados, haviaconquistado parte da sacralidade que antes pertencia às explicações religiosas: a dedescobrir e apontar aos homens o caminho em direção à verdade.

A ciência já não parecia mais uma forma particular de saber, mas a única capaz deexplicar a vida, abolir e suplantar as crenças religiosas e até mesmo as discussões éticas.Supunha-se que, utilizando-se adequadamente os métodos de investigação, a verdade sedescortinaria diante dos cientistas – os novos “magos” da civilização -, quaisquer quefossem suas opiniões pessoais, seus valores sobre o bem e o mal, o certo e o errado.

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Com a mesma proposta de isenção de valores com que se descobriria a lei dagravitação dos corpos celestes no universo, julgava-se possível descobrir as leis queregulavam as relações entre os homens na sociedade, leis naturais que existiriam

independentemente do credo, da opinião e do julgamento humano. O poder do métodocientífico assim se assemelhava ao poder das antigas práticas mágicas: bem usado, revelariaao homem a essência da vida e suas formas de controle.

Toda essa nova mentalidade, reforçando a crença na materialidade da vida e no  poder da ciência, orientou a formação da primeira escola cientifica do pensamentosociológico, o positivismo, que estudaremos no próximo capitulo.

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4 - Positivismo: uma primeira forma de pensamento social

Introdução: cientificismo e organicismo

A primeira corrente teórica sistematizada de pensamento sociológico foi o positivismo, a primeira a definir precisamente o objeto e estabelecer conceitos e umametodologia de investigação. Além disso o positivismo, ao definir a especificidade doestudo científico da sociedade, conseguiu distinguir-se de outras ciências estabelecendo umespaço próprio à ciência da sociedade. Seu primeiro representante e principalsistematizador foi o pensador francês Auguste Comte.

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O positivismo derivou do "cientificismo", isto é, da crença no poder exclusivo eabsoluto da razão humana em conhecer a realidade e traduzi-Ia sob a forma de leis naturais.Essas leis seriam a base da regulamentação da vida do homem, da natureza como um todo edo próprio universo. Seu conhecimento pretendia substituir as explicações teológicas,filosóficas e de senso comum por meio das quais - até então - o homem explicava a

realidade.O positivismo reconhecia que os princípios reguladores do mundo físico e domundo social diferiam quanto à sua essência: os primeiros diziam respeito aacontecimentos exteriores aos homens; os outros, a questões humanas. Entretanto, a crençana origem natural de ambos teve o poder de aproximá-los. Além disso, a rápida evoluçãodos conhecimentos das ciências

“O positivismo reconheceu a existência de princípios reguladores do mundo físico e domundo social.”

“Auguste Comte ( 1798-1857)

 Nasceu em Montpellier, França, de uma família católica e monarquista. Viveu a infânciana França napoleônica. Estudou no colégio de sua cidade e depois em Paris, na EscolaPolitécnica. Tornou-se discípulo de Saint-Simon, de quem sofreu enorme influência.Devotou seus estudos à filosofia positivista, considerada por ele uma religião, da qual era o pregador. Segundo sua filosofia política, existiam na história três estados: um teológico,outro metafísico e finalmente o positivo. Este último representava o coroamento do progresso da humanidade. Sobre as ciências, distinguia as abstratas das concretas, sendoque a ciência mais complexa e profunda seria a sociologia, ciência que batizou em sua obraCurso de  filosofia  po sitiva, em seis volumes, publicada entre 1830 e 1842. Publicoutambém: Discurso sobre o conjunto do positivismo, Sistema de política positiva, Catecismo positivista e Síntese subjetiva.”

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naturais – física, química, biologia – e o visível sucesso de suas descobertas no incrementoda produção material e no controle das forças da natureza atraíram os primeiros cientistassociais para o seu método de investigação.

Essa tentativa de derivar as ciências sociais das ciências físicas é patente nas obras dos primeiros estudiosos da realidade social. O próprio Comte deu inicialmente o nome de"física social" às suas análises da sociedade, antes de criar o termo  sociologia.

Essa filosofia social positivista se inspirava no método de investigação das ciências danatureza, assim como procurava identificar na vida social as mesmas relações e princípioscom os quais os cientistas explicavam a vida natural. A própria sociedade foi concebidacomo um organismo constituído de partes integradas e coesas que funcionavamharmonicamente, segundo um modelo físico mecânico. Por isso o positivismo foi chamadotambém de organicismo.

Podemos apontar, portanto, como primeiro princípio teórico dessa escola a tentativa deconstituir seu objeto, pautar seus métodos e elaborar seus conceitos à luz das ciênciasnaturais, procurando dessa maneira chegar à mesma objetividade e ao mesmo êxito nasformas de controle sobre os fenômenos estudados.

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O darwinismo social

É importante situar o desenvolvimento do pensamento positivista no contextohistórico do século XIX.

A expansão da Revolução Industrial pela Europa, obtida pelas revoluções burguesas

que atingiram todos os países europeus até 1870, trouxe consigo a destruição da velhaordem feudal e a consolidação da nova sociedade - a capitalista -, estruturada sobre aindústria. Já no final do século, a livre concorrência, que era a regra geral de funcionamentoda sociedade capitalista européia, passa por profundas transformações com a crescentesubstituição da concorrência entre inúmeros produtores de cada ramo industrial por umaconcorrência limitada a um pequeno número de produtores de cada ramo. Surgia a épocados monopólios e dos oligopólios, que, associados ao capital dos grandes bancos, dãoorigem ao capital financeiro. Esta reestruturação do capitalismo estava associada àssucessivas crises de superprodução na Europa, que traziam consigo a morte de milhares de pequenas indústrias e negócios, para dar espaço apenas às maiores e mais estruturadasindústrias. Estas, por sua vez, tiveram de se unir ao capital bancário para sustentar e

financiar a sua própria expansão. Crescer para fora dos limites da Europa era, portanto, aúnica saída para garantir a continuidade dessas indústrias.

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Da mesma forma, o capital financeiro necessitava de novos mercados para poder crescer, pois era perigoso continuar investindo na indústria européia sem causar novas emais profundas crises de superprodução. Desencadeava-se, assim, a corrida para aconquista de impérios além-mar; os alvos eram a África e a Ásia. Nesses continentes podia-se obter matéria-prima bruta a baixíssimo custo, bem como mão-de-obra barata; eramtambém pequenos mercados consumidores, bem como locais ideais para investimentos em

obras de infra-estrutura. Porém, a exploração eficaz dessas novas colônias encontravaresistência nas estruturas sociais e produtivas vigentes nesses continentes que, de formaalguma, atendiam às necessidades do capitalismo europeu.

A Europa deparou com civilizações organizadas sob princípios tais como o politeísmo, a poligamia, formas de poder tradicionais, castas sociais sem qualquer tipo demobilidade, economia agrária de subsistência, em sua grande maioria, ou voltada para um  pequeno comércio local e artesanato doméstico. Assim, o europeu teve primeiro deorganizar, sob novos moldes, as nações que conquistava, estruturando-as segundo os  princípios que regiam o capitalismo. De outra forma seria impossível racionalizar aexploração da matéria-prima e da mão-de-obra, de modo a permitir o consumo de produtosindustrializados europeus e a aplicação rentável dos capitais excedentes na Europa, nesses

territórios.Transformar esse mundo conquistado em colônias que se submetessem aos valorescapitalistas requeria uma empresa de grande envergadura, pois dessa transformaçãodependiam a expansão e a sobrevivência do capitalismo industrial. Assim a conquista, adominação e a transformação da África e da Ásia pela Europa precisavam apresentar uma justificativa que ultrapassasse os interesses econômicos imediatos. Isso explica o fato daconquista européia estar revestida de um manto humanitário que ocultava a violência daação colonizadora. Assim, a conquista e a dominação foram transformadas em "missão

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civilizadora". Países como Inglaterra, França, Holanda, Alemanha, Itália se apoderavam deregiões do mundo cujo modo de vida era totalmente diferente do capitalismo europeu. A"civilização" era oferecida, mesmo contra a vontade dos dominados, como forma de"elevar" essas nações do seu estado primitivo a um nível mais desenvolvido.

A atuação dos europeus sobre os demais continentes foi intensa, no sentido de

transformar suas formas tradicionais de vida e neles introduzir os valores do colonizador.Como foi dito, essa nova forma de colonialismo se assentava na justificativa de que aEuropa tinha, diante dessas sociedades, a obrigação moral de civilizá-las, de retirá-las doatraso em que viviam. Nesse sentido, entendia-se que o ápice da humanidade - o mais altograu de civilização a que o homem poderia chegar - seria a sociedade industrial européia doséculo XIX.

Em consonância com essa forma de pensar desenvolveram-se as idéias do cientistainglês Charles Darwin a respeito da evolução biológica das espécies animais. Para Darwin,as diversas

“Acreditando na superioridade de sua cultura, os europeus intervieram nas formas

tradicionais de vida existentes nos outros continentes, procurando transformá-las.”49

versas espécies de seres vivos se transformam continuamente com a finalidade de seaperfeiçoar e garantir a sobrevivência. Em conseqüência, os organismos tendem a seadaptar cada vez melhor ao ambiente, criando formas mais complexas e avançadas deexistência, que possibilitam, pela competição natural, a sobrevivência dos seres mais aptose evoluídos.

Tais idéias, transpostas para a análise da sociedade, resultaram no darwinismo social, istoé, o princípio de que as sociedades se modificam e se desenvolvem num mesmo sentido e

que tais transformações representariam sempre a passagem de um estágio inferior paraoutro superior, em que o organismo social se mostraria mais evoluído, mais adaptado emais complexo. Esse tipo de mudança garantiria a sobrevivência dos organismos - so-ciedades e indivíduos - mais fortes e mais evoluídos.

Os principais cientistas sociais positivistas, combinando as concepções organicistas eevolucionistas inspiradas na perspectiva de Darwin, entendiam que as sociedadestradicionais encontradas na África, na Ásia, na América e na Oceania não eram senão"fósseis vivos", exemplares de estágios anteriores, "primitivos", do passado da humanidade.Assim, as sociedades mais simples e de tecnologia menos avançada deveriam evoluir emdireção a níveis de maior complexidade e progresso na escala da evolução social, até atingir o "topo": a sociedade industrial européia. Porém essa explicação aparentemente "científica" para justificar a intervenção européia nesses continentes era, por Sua vez, incapaz deexplicar o que ocorria na própria Europa. Lá, os frutos do progresso não eram igualmentedistribuídos, nem todos participavam igualmente das conquistas da civilização. Como o positivismo explicava essa distorção?

Uma visão crítica do darwinismo social - ontem e hoje

Essa transposição de conceitos físicos e biológicos para o estudo das sociedades e dasrelações entre essas trouxe, ao darwinismo social, desvios importantes. O fundamento do

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conceito de espécie em Darwin dificilmente pode ser transposto para o estudo dasdiferentes sociedades e etnias.

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Se o homem constitui sociologicamente uma espécie, o mesmo não se pode dizer dasdiferentes culturas que ele desenvolveu. Além disso, como vimos no início deste livro, ocaráter cultural da vida humana imprime, no desenvolvimento das suas formas de vida, princípios diferentes daqueles existentes na natureza. Os princípios da seleção natural sãoaplicáveis às espécies cujo comportamento é expressão das leis imperativas da natureza.

Hoje, sente-se que a complexidade da cultura humana tem concorrido para limitar aação da lei de seleção natural. A adaptabilidade do homem e a sua dependência cada vezmenor em relação ao meio têm transformado o ser humano numa espécie à qual a seleçãonatural se aplica de maneira especial e relativa.

Essa transposição serviu entretanto como justificativa de uma ação política eeconômica que nem sequer avaliava efetivamente aquilo que representaria o "mais forte" ou

mais evoluído.Identificar a especificidade das regras que regem as sociedades é fundamental para ouso de conceitos de outras ciências. Ainda hoje se tenta essa transposição para justificar determinadas realidades sociais. A regra darwinista da competição e da sobrevivência domais forte é aplicada às leis de mercado, principalmente pela doutrina do liberalismoeconômico.

Pressupõe-se que competitividade seja o princípio natural- e portanto universal eexterior ao homem - que assegura a sobrevivência do melhor, do mais forte e do maisadaptado. É preciso lembrar que o mercado, como outros elementos da cultura humana,obedece a leis de organização social essencialmente humanas - e, portanto, históricas -,resultantes do desenvolvimento das relações entre os homens e entre as sociedades.

Duas formas de avaliar as mudanças sociais

O darwinismo social, além de justificar o colonialismo da Europa no resto do mundo,refletia o grande otimismo com que o progresso material da industrialização era recebido pelo europeu.

Entretanto, apesar desse otimismo em relação ao caráter apto e evoluído da sociedadeeuropéia, o desenvolvimento industrial gerava a todo momento novos conflitos sociais. Osempobrecidos e explorados - camponeses e operários - organizavam-se exigindo mudanças políticas e econômicas. Os primeiros pensadores sociais positivistas responderam com asidéias de ordem e progresso.

Haveria, então, dois tipos característicos de movimento na sociedade. Um levaria àevolução transformando as sociedades, segundo a lei universal, da mais simples à maiscomplexa, da menos avançada à mais evoluída. Outro procuraria ajustar todos os indivíduosàs condições estabelecidas, garantindo o melhor funcionamento da sociedade, o bemcomum e os anseios da maioria da população. Esses dois movimentos revelariam ser aordem o principio que rege as transformações sociais,

“O darwinismo social justificava o colonialismo europeu e refletia o otimismo dos europeusem relação a sua cultura.”

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  princípio necessário para a evolução social ou o progresso. Essa ordem implicaria oajustamento e a integração dos componentes da sociedade a um objetivo comum.

Os movimentos reivindicatórios, os conflitos, as revoltas deveriam ser contidossempre que pusessem em risco a ordem estabelecida ou o funcionamento da sociedade, ouainda quando inibissem o progresso.

Auguste Comte identificou na sociedade esses dois movimentos vitais: chamou dedinâmico o que representava a passagem para formas mais complexas de existência, como aindustrialização; e de estático o responsável pela preservação dos elementos permanentesde toda organização social. As instituições que mantêm a coesão e garantem ofuncionamento da sociedade, por exemplo, família, religião, propriedade, linguagem,direito etc. seriam responsáveis pelo movimento estático da sociedade. Comte relacionavaos dois movimentos vitais de modo a privilegiar o estático sobre o dinâmico, a conservaçãosobre a mudança. Isso significava que, para ele, o progresso deveria -., aperfeiçoar os

elementos da ordem e não destruí-los.Assim se justificava a intervenção na sociedade sempre que fosse necessário assegurar a ordem ou promover o progresso. A existência da sociedade burguesa industrial eradefendida tanto em face dos movimentos reivindicativos que aconteciam em seu própriointerior quanto em face da resistência das sociedades agrárias e pré-mercantis em aceitar omodelo industrial e urbano.

Organicismo

 Não podemos deixar de nos referir, num capítulo que trata do positivismo e do darwinismosocial, a outra escola que se desenvolveu no rastro das conquistas das ciências biológicas e

naturais e da teoria evolucionista de Charles Darwin. Essa outra escola foi o organicismo,que teve como seguidores cientistas que procuraram aplicar seus princípios na explicaçãoda vida social.

Um deles foi o alemão Albert Schaffle, que se dedicou ao estudo dos "tecidos sociais",conceito com o qual identificava as diferentes sociedades existentes, numa nítida alusão à  biologia. Ninguém, entretanto, se destacou como Herbert Spencer, filósofo inglês que procurou estudar a evolução da espécie humana de acordo com leis que explicariam odesenvolvimento de todos os seres vivos, entre os quais o homem. Seu seguidor, o francêsAlfred Espinas, afirma que os princípios da biologia são aplicáveis a todo ser vivo, razão  pela qual propõe uma "ciência da sociedade", cujas leis estariam expressas na vidacomunitária de todos os seres vivos, desde as espécies mais simples até o homem.

Todos esses cientistas partem do princípio de que existem caracteres universais presentes nos mais diversos organismos vivos, dispostos sob a forma de órgãos e sistemas –  partes interdependentes cuja função primordial é a preservação do todo social.

“Os organicistas procuravam características universais da espécie humana, deixando delado suas particulariedades.”

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Procuravam assim criar uma identidade entre leis biológicas e leis sociais, hereditariedade ehistória. Essas teorias entendem as análises sociais da espécie humana como integradas aosestudos universais das espécies vivas. Ignoram a especificidade do homem, enquantoespécie predominantemente histórica e cultural. Por fim estabelecem leis de evolução emque as diversas sociedades humanas são tratadas como espécies.

Da filosofia social à sociologia

O positivismo foi o pensamento que glorificou a sociedade européia do século XIX,em franca expansão. Procurava resolver os conflitos sociais por meio da exaltação à coesão,à harmonia natural entre os indivíduos, ao bem estar do todo social.

Por mais evidentes que sejam hoje os limites, interesses, ideologias e preconceitosinscritos nos estudos positivistas da sociedade, por mais que eles tenham servido comolemas de uma ação política conservadora, como justificativa para as relações desiguaisentre sociedades, é preciso lembrar que eles representaram um esforço concreto de análisecientífica da sociedade.

A simples postura de que a vida em sociedade era passível de estudo e compreensão;que o homem possuía - além de seu corpo e sentimentos - uma natureza social; que asemoções, os desejos e as formas de vida derivavam de contingências históricas e sociais -,tudo isso foram descobertas de grande importância.

Diante desses estudos, devemos não perder a perspectiva crítica, mas entendê-loscomo as primeiras formulações objetivas sobre a sociabilidade humana. Apenas o fato deque tais formulações não vinham expressas num livro religioso nem se justificavam por inspiração divina é suficiente para merecerem nossa atenção. Foram teorias que abriram as portas para uma nova concepção da realidade social com suas especificidades e regras.

Quase todos os países europeus economicamente desenvolvidos conheceram o positivismo. No entanto, foi na França, por excelência, que floresceu essa escola, a qual,

  partindo de uma interpretação original do legado de Descartes e dos enciclopedistas, buscava na razão e na experimentação seus horizontes teóricos.Entre os filósofos sociais franceses, pode-se destacar Hipolite Taine, cujas idéias

sofreram menor influência de Comte. Formulou uma concepção da realidade históricacomo determinada por três forças primordiais: a "raça", que constituiria o fundamento  biológico; o "meio", que incluiria aspectos físicos e sociais; e o "momento", que seconstitui no resultado das sucessões históricas. Outra figura relevante é Gustave Le Bon,médico e arqueólogo, contemporâneo de Taine, autor de pioneira e controvertida obra sobrea "psicologia das multidões”, na qual reflete sobre as crenças sociais mais geraisformadoras da “mentalidade coletiva” e sua ação em indivíduos agrupados em multidão.Pierre Le Play, outro destes filósofos sociais, tinha uma perspectiva

“O positivismo exaltava a coesão social e a harmoniosa dos indivíduos em sociedade.”

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naturalista bem acentuada, havendo concentrado seus esforços na busca da "menor unidadesocial", comparável ao átomo da física ou às células da biologia. Le Play estabeleceu afamília como essa unidade básica e universal, postulando que as relações sociais seriamdecorrência das relações familiares, em grau variável de complexidade. Fora da França,

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cabe lembrar mais uma vez o trabalho do inglês Herbert Spencer, por suas reflexões nalinha do evolucionismo e do organicismo.

A maioria dos primeiros pensadores sociais positivistas permanece, pois, presa por uma reflexão de natureza filosófica sobre a história e a ação humanas. Procedimentos denatureza científica, análises sociológicas baseadas em fatos observados com maior critério

só serão introduzidos por Émile Durkheim e seu grupo, que estudaremos no próximocapítulo.

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5 - A sociologia de Durkheim

Introdução: o que é fato social

Embora Comte seja considerado o sociologia e tenha-lhe dado esse nome, Durkheim éapontado como um de seus primeiros grandes teóricos. Ele e seus colaboradores seesforçaram por emancipar a sociologia das demais teorias sobre a sociedade e constituí-Ia

como disciplina rigorosamente científica. Em livros e cursos, sua preocupação foi definir com precisão o objeto, o método e as aplicações dessa nova ciência.

Em uma de suas obras fundamentais,  As re gras do método sociológico, publicada em1895, Durkheim definiu com clareza o objeto da sociologia - os fatos sociais.

“Comte deu o nome de sociologia a essa ciência, mas Durkheim foi um dos seus grandesteóricos.”

“Émile Durkheim (1858-1917)

 Nasceu em Epinal, na Alsácia, descendente de uma família de rabinos. Iniciou seus

estudos filosóficos na Escola Normal Superior de Paris, indo depois para a Alemanha.Lecionou sociologia em Bordéus, primeira cátedra dessa ciência criada na França.Transferiu-se em 1902 para Sorbonne, para onde levou inúmeros cientistas, entre eles seusobrinho Mareei Mauss, reunindo-os num grupo que ficou conhecido como escolasociológica francesa. Suas principais obras foram: Da divisão do trabalho social, As regrasdo método sociológico, O suicídio, Formas elementares da vida religiosa, Educação e so-ciologia, Sociologia e filosofia e Lições de sociologia (obra póstuma).”

Distingue três características dos fatos sociais. A primeira delas é a coerção social, ouseja, a força que os fatos exercem sobre os indivíduos, levando-os a conformar-se às regrasda sociedade em que vivem, independentemente de sua vontade e escolha. Essa torça se

manifesta quando o indivíduo adota um determinado idioma, quando se submete a umdeterminado tipo de formação familiar ou quando está subordinado a um determinadocódigo de leis.

O grau de coerção dos fatos sociais se toma evidente pelas  sanções a que o indivíduoestará sujeito quando tenta se rebelar contra elas. As sanções podem ser  legais ouespontâneas. Legais são as sanções prescritas pela sociedade, sob a forma de leis, nas quaisse estabelece a infração e a penalidade subsequente. Espontâneas seriam as que aflorariamcomo decorrência de

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uma conduta não adaptada à estrutura do grupo ou da sociedade à qual o indivíduo pertence. Diz Durkheim, exemplificando este último tipo de sanção:

"Se sou industrial, nada me proíbe de trabalhar utilizando processos e técnicas do século passado; mas, se o fizer, terei a ruína como resultado inevitável" (p. 3)

Do mesmo modo, uma ofensa num grupo social pode não ter penalidade prevista por lei, mas o grupo pode espontaneamente reagir penalizando o agressor. A reação negativa acerta forma de comportamento é, muitas vezes, mais intimidadora do que a lei. Jogar lixono chão ou fumar em espaços particulares - mesmo quando não proibidos por lei nemreprimidos por penalidade explícita - são comportamentos inibidos pela reação espontâneados grupos que a isso se opuserem.

A educação - entendida de forma geral, ou seja, a educação formal e a informal -desempenha, segundo Durkheim, uma importante tarefa nessa conformação dos indivíduosà sociedade em que vivem, a ponto de, apos algum tempo, as regras estarem internalizadase transformadas em hábitos. O uso de uma determinada língua ou o predomínio no uso damão direita são internalizados no indivíduo que passa a agir assim sem sequer pensar arespeito.

A segunda característica dos fatos sociais é que eles existem e atuam sobre osindivíduos independentemente de sua vontade ou de sua adesão consciente, ou seja, sãoexteriores aos indivíduos. As regras sociais, os costumes, as leis, já existem antes donascimento as pessoas, são a elas impostos por mecanismos de coerção social, como aeducação. Portanto, os fatos sociais são ao mesmo tempo coercitivos e dotados deexistência exterior às consciências individuais.

A terceira característica apontada por Durkheim é a generalidade. É social todo fatoque é geral, que se repete em todos os indivíduos ou, pelo menos, na maioria deles. Por essa generalidade, os fatos sociais manifestam sua natureza coletiva ou um estado comumao grupo, como as formas de habitação, de comunicação, os sentimentos e a moral.

A objetividade do fato social

Uma vez identificados e caracterizados os  fatos sociais, Durkheim procurou definir ométodo de conhecimento da sociologia. Para ele, como para os positivistas de maneirageral, a explicação científica exige que o pesquisador mantenha certa distância eneutralidade em relação aos fatos, resguardando a objetividade de sua análise.

Além disso, é preciso, segundo Durkheim, que o sociólogo deixe de lado suas prenoções, isto é, seus valores e sentimentos pessoais em relação ao acontecimento a ser estudado, pois nada têm de científico e podem distorcer a realidade dos fatos. Essa posturaexige o não-envolvimento afetivo ou de qualquer outra espécie entre o cientista e o objeto.A neutralidade exige também a não-interferencia do cientista no fato observado. AssimDurkheim imaginava que, ao estudar, por exemplo, uma briga entre gangues, o cientistanão deveria

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envolver-se nem permitir que seus valores interferissem na objetividade de sua análise.Para ele, o trabalho científico exigia, portanto, a eliminação de quaisquer traços desubjetividade, além de uma atitude de distanciamento.

Procurando garantir à sociologia um método tão eficiente quanto o desenvolvido pelasciências naturais, Durkheim aconselhava o sociólogo a encarar os fatos sociais comocoisas, isto é, objetos que, lhe sendo exteriores, deveriam ser medidos, observados ecomparados independentemente do que os indivíduos envolvidos pensassem oudeclarassem a seu respeito. Tais formulações seriam apenas opiniões, juízos de valor individuais que podem servir de indicadores dos fatos sociais, mas mascaram as leis deorganização social, cuja racionalidade só é acessível ao cientista.

Imbuído dos princípios positivistas, Durkheim queria com esse rigor, à maneira dométodo que garantia o sucesso das ciências exatas, definir a sociologia como ciência,rompendo com as idéias e o senso comum "achismos" - que interpretavam de maneiravulgar a realidade social.

Para apoderar-se dos fatos sociais, o cientista deve identificar, dentre osacontecimentos gerais e repetitivos, aqueles que apresentam características exteriorescomuns. Assim, por exemplo, o conjunto de atos que suscitam na sociedade reaçõesconcretas classificadas como "penalidades" constituem os fatos sociais identificáveis como"crime". Vemos que os fenômenos devem ser sempre considerados em suas manifestaçõescoletivas, distinguindo-se dos acontecimentos individuais ou acidentais. A generalidadedistingue o essencial do fortuito e especifica a natureza sociológica dos fenômenos.

O suicídio, amplamente estudado por Durkheim, constituía-se, nesse sentido, em fatosocial por corresponder a todas essas características: é geral, existindo em todas associedades; e, embora sendo fortuito e resultando de razões particulares, apresenta em todaselas certa regularidade, recrudesce ou diminui de intensidade em certas condições

históricas, expressando assim sua natureza social.“Durkheim aconselhava o cientista a estudar os fatos sociais como coisas, fenômenos quelhe são exteriores e podem ser observados e medidos de forma objetiva.”

Sociedade: um organismo em adaptação

Para Durkheim, a sociologia tinha por finalidade não só explicar a sociedade comotambém encontrar soluções para a vida social. A sociedade,  como todo organismo,apresentaria estados normais e patológicos, isto é, saudáveis e doentios.

Durkheim considera um fato social como normal quando se encontra generalizado pelasociedade ou quando desempenha alguma função importante para sua adaptação ou suaevolução. Assim, afirma que o crime por exemplo, é normal não apenas por ser encontradoem toda e qualquer sociedade e em todos os tempos, mas também por representar um fatosocial que integra as pessoas em torno de uma conduta valorativa, que pune ocomportamento considerado nocivo.

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“A generalidade de um fato social representava, para Durkheim, o consenso social e avontade coletiva.”

 A generalidade de um fato social, isto é, sua unanimidade, é garantia de normalidadena medida em que representa o consenso social, a vontade coletiva, ou o acordo de um

grupo a respeito de determinada questão. Diz Durkheim:"... para saber se o estado econômico atual dos povos europeus, com sua característicaausência de organização, é normal ou não, procurar-se-á no passado o que lhe deu origem.Se estas condições são ainda aquelas em que atualmente se encontra nossa sociedade, é porque a situação é normal, a despeito dos protestos que desencadeia." (p. 57)

Partindo, pois, do princípio de que o objetivo máximo da vida social é promover aharmonia da sociedade consigo mesma e com as demais sociedades, e que essa harmonia éconseguida por meio do consenso social, a "saúde" do organismo social se confunde com ageneralidade dos acontecimentos. Quando um fato põe em risco a harmonia, o acordo, o

consenso e, portanto, a adaptação e a evolução da sociedade, estamos diante de umacontecimento de caráter mórbido e de uma sociedade doente.Portanto, normal é aquele fato que não extrapola os limites dos acontecimentos mais

gerais de uma determinada sociedade e que reflete os valores e as condutas aceitas pelamaior parte da população.  Patológico é aquele que se encontra fora dos limites permitidos  pela ordem social e pela moral vigente. Os fatos patológicos, como as doenças, sãoconsiderados transitórios e excepcionais.

“Aquilo que põe em risco a harmonia e o consenso representa um estado mórbido dasociedade.”

A consciência coletiva

Toda a teoria sociológica de Durkheim pretende demonstrar que os fatos sociais têmexistência própria e independem daquilo que pensa e faz cada indivíduo em particular.Embora todos possuam sua "consciência individual", seu modo próprio de se comportar einterpretar a vida, podem-se notar, no interior de qualquer grupo ou sociedade, formas padronizadas de conduta e pensamento. Essa constatação está na base do que Durkheimchamou de consciência coletiva.

A definição de consciência coletiva aparece pela primeira vez na obra  Da divisãodo trabalho social: trata-se do "conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média

dos membros de uma mesma sociedade" que "forma um sistema determinado com vida própria" (p. 342).

A consciência coletiva não se baseia na consciência de indivíduos singulares ou degrupos específicos, mas está espalhada por toda a sociedade. Ela revelaria, segundoDurkheim, o “tipo psíquico da sociedade", que não seria apenas o produto das consciênciasindividuais, mas algo diferente, que se imporia aos indivíduos e perduraria através degerações.

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A consciência coletiva é, em certo sentido, a forma moral vigente na sociedade. Elaaparece como um conjunto de regras fortes e estabelecidas que atribuem valor e delimitamos atos individuais. E a consciência coletiva que define o que, numa sociedade, é

considerado "imoral", "reprovável" ou "criminoso".Morfologia social: as espécies sociais

Para Durkheim, a sociologia deveria ter ainda por objetivo comparar as diversassociedades. Constituiu assim o campo da morfologia social, ou seja, a classificação dasespécies sociais numa nítida referência às espécies estuda das em biologia. Essa referência,utilizada também em outros estudos teóricos, tem sido considerada errônea uma vez quetodo comportamento humano, por mais diferente que se apresente, resulta da expressão decaracterísticas universais de uma mesma espécie.

Durkheim considerava que todas as sociedades haviam evoluído a partir da horda, a

forma social mais simples, igualitária, reduzida a um único segmento onde os indivíduos seassemelhavam aos átomos, isto é, se apresentavam justapostos e iguais. Desse ponto de partida, foi possível uma série de combinações das quais originaram-se outras espécies sociais identificáveis no passado e no presente, tais como os clãs e as tribos.

Para Durkheim, o trabalho de classificação das sociedades - como tudo o mais -deveria ser efetuado com base em apurada observação experimental. Guiado por esse procedimento, estabeleceu a passagem da   solidariedade mecânica  para a  solidariedadeorgânica como o motor de transformação de toda e qualquer sociedade.

“Durkheim acreditava numa evolução geral das espécies sociais a partir da horda.”

64Dado o fato de que as sociedades variam de estágio, apresentando formas diferentes

de organização social que tornam possível defini-Ias como "inferiores" ou "superiores",como o cientista classifica os fatos normais e os anormais em cada sociedade? ParaDurkheim a normalidade só pode ser entendida em função do estágio social da sociedadeem questão:

"... do ponto de vista puramente biológico, o que é normal para o selvagem não o é sempre para o civilizado, e vice-versa." (As regras do método sociológico, p. 52.)

E continua:

"Um fato social não pode, pois, ser acoimado de normal para uma espécie socialdeterminada senão em relação com uma fase, igualmente determinada, de seudesenvolvimento." (p. 52)

“Solidariedade mecânica,  para Durkheim, era aquela que predominava nas sociedades pré-ca alistas, onde os indivíduos se identificam por meio da família, da religião, datradição e dos costumes, permanecendo em geral independentes e autônomos em relação à

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divisão do trabalho social. A consciência coletiva exerce aqui todo seu poder de coerçãosobre os indivíduos.

Solidariedade orgânica é aquela típica das sociedades capitalistas, onde, pela aceleradadivisão do trabalho social, os indivíduos se tornavam interdependentes. Essainterdependência garante a união social, em lugar dos costumes, das tradições ou das

relações sociais estreitas. Nas sociedades capitalistas, a consciência coletiva se afrouxa.Assim, ao mesmo tempo que os indivíduos são mutuamente dependentes, cada qual seespecializa numa atividade e tende a desenvolver maior autonomia pessoal.”

Durkheim e a sociologia científica

Durkheim se distingue dos demais positivistas porque suas idéias ultrapassaram areflexão filosófica e chegaram a constituir um todo organizado e sistemático de pressupostos teóricos e metodológicos sobre a sociedade.

O empirismo positivista, que pusera os filósofos diante de uma realidade social a ser especulada, transformou-se, em Durkheim, numa rigorosa postura empírica, centrada na

verificação dos fatos que poderiam ser observados, mensurados e relacionados através dedados coletados diretamente pelo cientista. Encontramos em seus estudos um inovador efecundo uso da

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matemática estatística e uma integrada utilização das análises qualitativa e quantitativa.Observação, mensuração e interpretação eram aspectos com complementares do métododurkheimiano.

Para isso, Durkheim procurou estabelecer os limites e as diferenças entre a  particularidade e a natureza dos acontecimentos filosóficos, históricos, psicológicos e

sociológicos. Elaborou um conjunto coordenado de conceitos e de técnicas de pesquisa que,embora norteado por princípios das ciências naturais, guiava o cientista para odiscernimento de um objeto de estudo próprio e dos meios adequados para interpretá-lo.

Ainda que preocupado com as leis gerais capazes de explicar a evolução dassociedades humanas, Durkheim ateve-se também às particularidades da sociedade em quevivia, aos mecanismos de coesão dos pequenos grupos e à formação de sentimentos comunsresultantes da convivência social. Distinguiu diferentes instâncias da vida social e seu papelna organização social, como a educação, a família e a religião.

Pode-se dizer que já se delineava uma apreensão da sociologia em que se relacionavamharmonicamente o geral e o particular. Havia busca, ainda que não expressa, da noção detotalidade. Essa noção foi desenvolvida particularmente por seu sobrinho e colaborador Marcel Mauss, em seus estudos antropológicos. Em vista de todos esses aspectos tãorelevantes e inéditos, os limites antes impostos pela filosofia positivista perderam suaimportância, fazendo dos estudos de Durkheim um constante objeto de interesse dasociologia contemporânea.

“Aos poucos começa a se desenvolver na sociologia também a preocupação com o particular.”

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6 Sociologia alemã: a contribuição de Max Weber 

Introdução

A França desenvolveu seu pensamento social sob influência da filosofia positivista.Como potência emergente nos séculos XVII e XVIII foi, com a Inglaterra, a sede dodesenvolvimento industrial e da sedimentação do pensamento burguês. O desenvolvimentoda indústria e a expansão marítima e comercial colocaram esses países em contato comoutras culturas e outras sociedades, obrigando seus pensadores a um esforço interpretativoda diversidade social. O sucesso alcançado pelas ciências físicas e  biológicas,impulsionadas pela indústria e pelo desenvolvimento tecnológico, fizeram com que as  primeiras escolas sociológicas fossem fortemente influenciadas pela adaptação dos princípios e da metodologia dessas ciências à realidade social.

 Na Alemanha, entretanto, a realidade é distinta. O pensamento burguês se organizatardiamente e quando o faz, já no século XIX, é sob influencia de outras correntes

filosóficas e da sistematização de outras ciências humanas, como a história e aantropologia.A expansão econômica alemã se dá, por outro lado, numa época de capitalismo

concorrencial, no qual os países disputam com unhas e dentes os mercados mundiais,submetendo a seu imperialismo as mais diferentes culturas, o que torna a especificidade dasformações sociais uma evidência e um conceito da maior importância.

A Alemanha se unifica e se organiza como Estado nacional mais tardiamente que oconjunto das nações européias, o que atrasou seu ingresso na corrida industrial eimperialista da segunda metade do século XIX. Esse descompasso em relação às grandes potências vizinhas fez elevar no país o interesse pela história como ciência da integração,da memória e do nacionalismo. Por tudo isso, o pensamento alemão se volta para a

diversidade, enquanto o francês e o inglês, para a universalidade.Devemos distinguir no pensamento alemão, portanto, a preocupação com o estudo dadiferença, característica de sua formação política e de seu desenvolvimento econômico.Acresce a isso a herança puritana com seu apego à interpretação das escrituras e livrossagrados. Essa associação entre história, esforço interpretativo e facilidade em discernir diversidades caracterizou o pensamento alemão e quase todos seus cientistas, desde GabrielTarde e Ferdinand Tönnies.

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A sociedade sob uma perspectiva histórica

O contraste entre o positivismo e o idealismo se expressa, entre outros elementos, nasmaneiras diferentes como cada uma dessas correntes encara a história.

Para o positivismo, a história é o processo universal da evolução da humanidade, cujosestágios o cientista pode perceber pelo método comparativo, capaz de aproximar sociedadeshumanas de todos os tempos e lugares. A história particular de cada sociedade desaparecediluída nessa lei geral que os pensadores positivistas tentaram reconstruir. Essa forma de pensar faz desaparecer as particularidades históricas, e os indivíduos são dissolvidos emmeio a forças sociais impositivas.

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“Uma das diferenças existentes entre o positivismo e o idealismo é a importância queo segundo dá a historia.”

Ao definir o que é uma espécie social,  Durkheim, em uma nota- e pé de página em"

seu livro  As regras do método sociológico, alerta para que não se confunda uma espéciesocial com as fases históricas pelas quais ela passa. Diz ele:

"Desde suas origens, passou a França por formas de civilização muito diferentes: começou por ser agrícola, passou em seguida pelo artesanato e pelo pequeno comércio, depois pelamanufatura e, finalmente, chegou à grande indústria. Ora, é impossível admitir que umamesma individualidade coletiva possa mudar de espécie três ou quatro vezes. Uma espéciedeve definir-se por caracteres mais constantes. O estado econômico tecnológico etc.apresenta fenômenos por demais instáveis e complexos para fornecer a base para umaclassificação." (p. 82)

Fica claro que essa posição anula a importância dos processos históricos particulares,valorizando apenas a lei da evolução, a generalização e a comparação entre formaçõessociais.

Weber, figura dominante na sociologia alemã, com formação histórica consistente, seoporá a essa concepção. Para ele, a pesquisa histórica é essencial para a compreensão dassociedades. Essa pesquisa, baseada na coleta de documentos e no esforço interpretativo dasfontes, permite o entendimento das diferenças sociais, que seriam, para Weber, de gênese eformação, e não de estágios de evolução.

Portanto, segundo a perspectiva de Weber, o caráter particular e especifico de cadaformação social e histórica contemporânea deve ser respeitado. O conhecimento histórico,entendido como a busca de evidências, torna-se um poderoso instrumento para o cientista

social.“Weber conseguiu desenvolver a perspectiva histórica e sociológica.”

Weber consegue combinar duas perspectivas: a histórica, que respeita as particularidades de cada sociedade, e a sociológica, que ressalta os elementos mais geriasde cada fase do processo histórico. Na obra As Causas Sociais do Declínio da CulturaAntiga, por exemplo, Weber analisou com

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  base em textos e documentos, as transformações da sociedade romana em função dautilização da mão-de-obra escrava e do servo de gleba, mostrando a passagem daAntigüidade para a sociedade medieval.

Weber, entretanto, não achava que uma sucessão de fatos históricos fizessesentido por si mesma. Para ele, todo historiador trabalha com dados esparsos efragmentários. Por isso, propunha para esse trabalho o método compreensivo, isto é, umesforço interpretativo do passado e de sua repercussão nas características peculiares dassociedades contemporâneas. Essa atitude de compreensão é que permite ao cientista atribuir aos fatos esparsos um sentido social e histórico.

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“Max Weber (1864-1920)

Max Weber nasceu na cidade de Erfurt (Alemanha), numa família de burgueses liberais.Desenvolveu estudos de direito, filosofia, história e sociologia, constantemente

interrompidos por uma doença que o acompanhou por toda a vida. Iniciou a carreira de professor em Berlim e, em 1895, foi catedrático na Universidade de Heidelberg. Mantevecontato permanente com intelectuais de sua época, como Simmel Sombart, Tönnies eGeorg Lukács. Na política, defendeu ardorosamente seus pontos de vista liberais e  parlamentaristas e participou da comissão redatora da Constituição da República deWeimar. Sua maior influência nos ramos especializados da sociologia foi no estudo dasreligiões, estabelecendo relações entre formações políticas e crenças religiosas. Suas principais obras foram: Artigos reunidos de teoria da ciência; Economia e sociedade (obra póstuma) e A ética protestante e o espírito do capitalismo.

A ação social: uma ação com sentido

Cada formação social adquiriu, para Weber, especificidade e importância próprias.Mas o ponto de partida da sociologia de Weber não estava nas entidades coletivas, gruposou instituições. Seu objeto de investigação é a ação social, a conduta humana dotada de sentido, isto é, de uma justificativa subjetivamente elaborada. Assim, o homem passou a ter,enquanto indivíduo, na teoria weberiana, significado e especificidade. É ele que dá sentidoà sua ação social: estabelece a conexão entre o motivo da ação, a ação propriamente dita eseus efeitos.

Para a sociologia positivista, a ordem social submete os indivíduos como forçaexterior a eles. Para Weber, ao contrário, não existe oposição entre indivíduo e sociedade:as normas sociais só se tornam concretas quando se manifestam em cada individuo sob a

forma de motivação. Cada sujeito age levado por um motivo que é dado pela tradição, por interesses racionais ou pela emotividade. O motivo que

“Segundo Weber, cada individuo age levado por motivos que resultam da influencia datradição, dos interesses racionais e da emotividade.”

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transparece na ação social permite desvendar o seu sentido, que é social na medida em quecada indivíduo age levando em conta a resposta ou a reação de outros indivíduos.

A tarefa do cientista é descobrir os possíveis sentidos das ações humanas presentes na realidade social que lhe interesse estudar. O sentido, por um lado, é expressãoda motivação individual, formulado expressamente pelo agente ou implícito em suaconduta. O caráter social da ação individual decorre, segundo Weber, da interdependênciados indivíduos. Um ator age sempre em função de sua motivação e da consciência de agir em relação a outros atores. Por outro lado, a ação social gera efeitos sobre a realidade emque ocorre. Tais efeitos escapam ao controle e à previsão do agente.

“A tarefa do cientista, para Weber, era descobrir os possíveis sentidos da açãohumana.”

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Ao cientista compete captar, pois, o sentido produzido pelos diversos agentes em todasas suas conseqüências. As conexões que o cientista estabelece entre motivos e ações-sociaisrevelam as diversas instâncias da ação social políticas, econômicas ou religiosas. Ocientista pode, portanto, descobrir o nexo entre as várias etapas em que se decompõe a ação

social. Por exemplo, o simples ato de enviar uma carta se decompõe em uma série de açõessociais com sentido - escrever, selar, enviar e receber -, que terminam por realizar umobjetivo. Por outro lado, muitos agentes ou atores estão relacionados a essa ação social- oatendente, o carteiro etc. Essa interdependência entre os sentidos das diversas ações -mesmo que orientadas por motivos diversos e que dá a esse conjunto de ações seu caráter social.

É o indivíduo que, por meio dos valores sociais e de sua motivação, produz o sentido daação social. Isso não significa que cada sujeito possa prever com certeza todas asconseqüências de determinada ação. Como dissemos, cabe ao cientista perceber isso. Nãosignifica também que a análise sociológica se confunda com a análise psicológica. Por maisindividual que seja o sentido da minha ação, o fato de agir levando em consideração o outro

dá um caráter social a toda ação humana. Assim, o social só se manifesta em indivíduos,expressando-se sob forma de motivação interna e pessoal.

Por outro lado, Weber distingue a ação da relação social. Para que se estabeleça umarelação social, é preciso que o sentido seja compartilhado. Por exemplo, um sujeito que pede uma informação a outro estabelece uma ação social: ele tem um motivo e age emrelação a outro indivíduo, mas tal motivo não é compartilhado. Numa sala de aula, onde oobjetivo da ação dos vários sujeitos é compartilhado, existe uma relação social.

Pela freqüência com que certas ações sociais se manifestam, o cientista pode conceber as tendências gerais que levam os indivíduos, em dada sociedade, a agir de determinadomodo.

A tarefa do cientista

Weber rejeita a maioria das proposições positivistas: o evolucionismo, a exterioridade docientista social em relação ao objeto de estudo, ou seja,

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as sociedades, e a recusa em aceitar a importância dos indivíduos e dos diferentesmomentos históricos na análise da sociedade. O cientista, como todo indivíduo em ação,também age guiado por seus motivos, sua cultura, sua tradição, sendo impossível descartar-se, como propunha Durkheim, de suas prenoções. Existe sempre certa parcialidade na

análise sociológica, intrínseca à pesquisa, como a toda forma de conhecimento. As preocupações do cientista, orientam a seleção e a relação entre os elementos da realidade aser analisada. Os fatos sociais não são coisas, mas acontecimentos que o cientista percebe ecujas causas procura desvendar. A neutralidade durkheimiana se torna impossível nessavisão.

“Weber dizia que o cientista, como todo individuo em ação, age guiado por seus motivos,sua cultura, sua tradição.”

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Entretanto, uma vez iniciado o estudo, este deve se conduzir pela busca da maior objetividade na análise dos acontecimentos. A realização da tarefa científica não deveria ser dificultada pela defesa das crenças e das idéias pessoais do cientista.

Portanto, para a sociologia weberiana, os acontecimentos que integram o social têm

origem nos indivíduos. O cientista parte de uma preocupação com significado subjetivo,tanto para ele como para os demais indivíduos que compõem a sociedade. Sua meta écompreender, buscar os nexos causais que dêem o sentido da ação social.

Qualquer que seja a perspectiva adotada pelo cientista, ela sempre resultará numaexplicação parcial da realidade. Um mesmo acontecimento pode ter causas econômicas, políticas e religiosas.

“Qualquer que seja a perspectiva adotada por um cientista, ela será sempre parcial.”

 Nenhuma dessas causas é superior a outra em significância. Todas elas compõem umconjunto de aspectos da realidade que se manifesta, necessariamente, nos atos individuais.

O que garante a cientificidade de uma explicação- é o método de reflexão, não aobjetividade pura- dos fatos. Weber relembra que, embora os acontecimentos sociais possam ser quantificáveis, a análise do social envolve sempre uma questão de qualidade,interpretação, subjetividade e compreensão.

Assim, para entender como a ética protestante interferia no desenvolvimento docapitalismo, Weber analisou os livros sagrados e interpretou os dogmas de fé do protestantismo. A compreensão da relação entre valor e ação permitiu-lhe entender arelação entre religião e economia.

O tipo ideal

Para atingir a explicação dos fatos sociais, Weber propôs um instrumento de analise quechamou de tipo ideal. Assim, por exemplo, em As causas sociais do declínio da culturaantiga, ele define o patrício romano no auge do império:

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"o tipo do grande proprietário de terra romano não é o do agricultor que dirige pessoalmente a empresa, mas é o homem que vive na cidade, pratica a política e quer, antesde tudo, perceber rendas em dinheiro. A gestão de suas terras está nas mãos dos servosinspetores (villici)".

Trata-se de uma construção teórica abstrata a partir dos casos particulares analisados.O cientista, pelo estudo sistemático das diversas manifestações particulares, constrói ummodelo acentuando aquilo que lhe pareça característico ou fundante. Nenhum dos exemplosrepresentará de forma perfeita e acabada o tipo ideal, mas manterá com ele uma grandesemelhança e afinidade, permitindo comparações e a percepção de semelhanças ediferenças. Constitui-se em um trabalho teórico indutivo que tem por objetivo sintetizar aquilo que é essencial na diversidade das manifestações da vida social, permitindo aidentificação de exemplares em diferentes tempos e lugares.

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“O tipo ideal de Max Weber corresponde ao que Florestan Fernandes definiu como con-ceitos sociológicos construídos interpretativamente como instrumentos de ordenação darealidade. O conceito, ou tipo ideal, é previamente construído e testado, depois aplicado adiferentes situações em que dado fenômeno possa ter ocorrido. À medida que o fenômeno

se aproxima ou se afasta de sua manifestação típica, o sociólogo pode identificar eselecionar aspectos que tenham interesse à explicação como, por exemplo, os fenômenostípicos "capitalismo" e "feudalismo".”

O tipo ideal não é um modelo perfeito a ser buscado pelas formações sociais históricasnem mesmo qualquer realidade observável. E um instrumento de análise científica, numaconstrução do pensamento que permite conceituar fenômenos e formações sociais eidentificar na realidade observada suas manifestações. Permite ainda comparar taismanifestações.

É preciso deixar claro que o tipo Ideal nada tem a ver com as espécies sociais deDurkheim, que pretendiam ser exemplos de sociedades observadas em diferentes graus de

complexidade num continuum evolutivo.A ética protestante e o espírito do capitalismo

Um dos trabalhos mais conhecidos e importantes de Weber é A ética protestante e o protestante e o espírito do capitalismo, no qual ele relaciona o papel do protestantismo na formação do comportamento 'pico do capitalismo ocidental moderno.

Weber parte de dados estatísticos que lhe mostraram a proeminência de adeptos daReforma Protestante entre os grandes homens de negócios, empresários bem-sucedidos emão-de-obra qualificada. A partir daí, procura estabelecer conexões entre a doutrina e a  pregação protestante, seus efeitos no comportamento dos indivíduos e sobre o

desenvolvimento capitalista.Weber descobre que os valores do protestantismo – como a disciplina ascética, a poupança, a austericidade, a vocação, o dever e a propensão ao

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trabalho - atuavam de maneira decisiva sobre os indivíduos. No seio das famílias protestan-tes, os filhos eram cridos para o ensino especializado e para o trabalho fabril, optandosempre por atividades mais adequadas à obtenção do lucro, preferindo o calculo e osestudos técnicos ao estudo humanístico. Weber mostra a formação de uma novamentalidade, um ethos – valores éticos – propicio ao capitalismo, em flagrante oposição ao“alheamento” e a atitude contemplativa do catolicismo, voltados para a oração, sacrifício erenuncia da vida pratica.

Um dos aspectos importantes desse trabalho, no seu sentido teórico, está em expor asrelações entre religião e sociedade e desvendar particulariedades do capitalismo. Alémdisso, nessa obra, podemos ver de que maneira Weber aplica seus conceitos e posturasmetodológicas.

Alguns dos principais aspectos da analise.1. a relação entre religião e a sociedade não se dá por meios institucionais, mas por intermédio de valores introjetados nos indivíduos e transformados em motivos da ação

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social. A motivação do protestante, segundo Weber, é o trabalho, enquanto dever evocação, como um fim absoluto em si mesmo, e não o ganho material obtido por meio dele.2. o motivo que mobiliza internamente os indivíduos é consciente. Entretanto, os feitos dosatos individuais ultrapassam a meta inicialmente visada. Buscando sair-se bem na profissão, mostrando sua própria virtude e vocação e renunciando aos prazeres materiais, o

 protestante puritano se adéqua facilmente ao mercado de trabalho, acumula capital e oreinveste produtivamente.3. Ao cientista cabe, segundo Weber, estabelecer-conexões entre a motivação dosindivíduos e os efeitos de sua ação no meio social. Procedendo assim, Weber analisa osvalores do catolicismo e do protestantismo, mostrando que os últimos revelam a tendênciaao racionalismo econômico que predominará no capitalismo.4. Para constituir o tipo ideal do capitalismo ocidental moderno, weber estuda as diversascaracterísticas das atividades econômicas em diversas épocas e lugares, antes e após osurgimento das atividades mercantis e da indústria. E, conforme seus preceitos, constrói umtipo gradualmente estruturado a partir de suas manifestações particulares tomadas arealidade histórica. Assim, diz ser o capitalismo, na sua forma típica, uma organização

econômica racional assentada no trabalho livre e orientada para um mercado real, não paraa mera especulação ou rapinagem. O capitalismo promove a separação entre empresa eresidência, a utilização técnica de conhecimentos científicos e o surgimento do direito e daadministração racionalizados.

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Análise histórica e método compreensivo

Weber teve uma contribuição importantíssima para o desenvolvimento da sociologia.Em meio a uma tradição filosófica peculiar, a alemã, e vivendo os problemas de seu país,

diversos dos da França e da Inglaterra na mesma época, pôde trazer uma nova visão, nãoinfluenciada pelos ideais políticos nem pelo racionalismo positivista de origem anglo-francesa.

Sua contribuição para a sociologia tomou-o referência obrigatória. Mostrou, em seusestudos, a fecundidade da análise histórica e da compreensão qualitativa dos processoshistóricos e sociais.

Embora polêmicos, seus trabalhos abriram as portas para a particularidades históricasdas sociedades e para a descoberta do papel da subjetividade na ação e na pesquisa social.Weber desenvolveu suas análises de forma mais independente das ciências exatas enaturais. Foi capaz de compreender a especificidade das ciências humanas como aquelasque estudam o homem como um ser diferente dos demais e, portanto, sujeito a leis de açãoe comportamento próprios.

Outros sociólogos alemães puseram em prática o método compreensivo de Weber,como Sombart, também um estudioso do capitalismo ocidental. Weber desenvolveutambém trabalhos na área de história econômica buscando as leis de desenvolvimento dassociedades. Estudou ainda, com base em fontes históricas, as relações entre o meio urbanoe o agrário e o acúmulo de capital auferido pelas cidades por meio dessas relações.

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7 - Karl Marx e a história da exploração do homem

Introdução

Vimos até agora que o pensamento sociológico, em seu desenvolvimento, abordou

níveis diferentes da realidade. Sabemos que, se iluminarmos uma mesa cheia de objetoscom luzes de diferentes cores, partindo de diversos focos, estaremos produzindo imagensdistintas dos mesmos objetos. Nenhuma delas, entretanto, é desnecessária ou incorreta.Cada uma delas "põe à luz" ou privilegia determinados aspectos. Assim também acontececom as teorias científicas e, entre elas, as sociais.

O método positivista expôs ao pensamento humano a idéia de que uma sociedade émais do que a soma de indivíduos, que há normas, instituições e valores estabelecidos queconstituem o social. Weber, por sua vez, reorganizou os fatos sociais "à luz" da história eda subjetividade do agente social.

Agora falaremos de Karl Marx e do materialismo histórico, a corrente maisrevolucionária do pensamento social nas conseqüências teóricas e na prática social que pro-

 põe. É também um dos pensamentos mais difíceis de compreender, explicar ou sintetizar,  pois Marx produziu muito, suas idéias se desdobraram em várias correntes e foramincorpora das por inúmeros teóricos.

“O materialismo histórico foi a corrente mais revolucionaria do pensamento social, tanto nocampo teórico como no da ação política.”

“Karl Marx (1818-1883) Nasceu na cidade de Treves, na Alemanha. Em 1836., matriculou-se na, Universidade deBerlim, doutorando-se em filosofia em Iena. Foi redator de uma gazeta liberal em Colônia.Mudou-se em 1842 para Paris, onde conheceu Friedrich Engels, seu companheiro de idéias

e publicações por toda a vida. Expulso da França em 1845, foi para Bruxelas, onde  participou da recém-fundada Liga dos Comunistas. Em 1848 escreveu com Engels Omanifesto do Partido Comunista, obra fundadora do "marxismo" enquanto movimento político e social a favor do proletariado. Com o malogro das revoluções sociais de 1848,Marx mudou-se para Londres, onde se dedicou a um grandioso estudo crítico da economia  política. Marx foi um dos fundadores da Associação Internacional dos Operários ouPrimeira Internacional. Morreu em 1883, após intensa vida política e intelectual. Suas  principais obras foram: A ideologia alemã, Miséria da filosofia, Para a crítica daeconomia política, A luta de classes em França, O capital.”

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Com o objetivo de entender o capitalismo Marx produziu obras de filosofia,economia e sociologia. Sua intenção, porém, não era apenas contribuir para odesenvolvimento da ciência mas propor uma ampla transformação política econômica esocial. Sua obra máxima, O capital, destinava-se a todos os homens, não apenas aosestudiosos da economia, da política e da sociedade. Este é um aspecto singular da teoria deMarx. Há um alcance mais amplo nas suas formulações, que adquiriram dimensões de idealrevolucionário e ação política efetiva. As contradições básicas da sociedade capitalista e as possibilidades de superação apontadas pela obra de Marx não puderam, pois, permanecer 

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ignoradas pela sociologia.Podemos apontar algumas influências básicas no desenvolvimento do pensamento

de Marx. Em primeiro lugar, coloca-se a leitura crítica da filosofia de Hegel, de quem Marxabsorveu e aplicou, de modo peculiar, o método dialético. Também significativo foi seucontato com o pensamento socialista francês e inglês do século XIX, de Claude Henri de

Rouvroy, ou conde de Saint-Simon (1760-1825), François-Charles Fourier (1772-1837) eRobert Owen (1771-1858). Marx destacava o pioneirismo desses críticos da sociedade burguesa, mas reprovava o "utopismo" das suas propostas de mudança social. As trêsteorias desenvolvidas tinham como traço comum o desejo de impor de uma só vez umatransformação social total, implantando, assim, o império da razão e da justiça eterna. Nostrês sistemas elaborados havia a eliminação do individualismo, da competição e dainfluência da propriedade privada. Tratava-se, por isso, de descobrir um sistema novo e per-feito de ordem social, vindo de fora, para implantá-lo na sociedade, por meio da propaganda e, sendo possível, com o exemplo, mediante experiências que servissem demodelo. Com esta formulação, os três desconsideravam a necessidade da luta política entreas classes sociais e o papel revolucionário do proletariado na realização dessa transição.

Finalmente, há toda a crítica da obra dos economistas clássicos ingleses, em particular Adam Smith e David Ricardo. Esse trabalho tomou a atenção de Marx até o final da vida eresultou na maior parte de sua obra teórica.

Essa trajetória é marcada pelo desenvolvimento de conceitos importantes comoalienação, classes sociais, valor, mercadoria, trabalho, mais-valia, modo de produção.Vamos examiná-los a seguir.

A idéia de alienação

Marx desenvolve o conceito de alienação mostrando que a industrialização, a propriedade privada e o assalariamento separavam o trabalhador dos

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meios de produção - ferramentas, matéria-prima, terra e máquina -, que se tornaram propriedade privada do capitalista. Separava também, ou alienava, trabalhador do fruto doseu trabalho, que também é apropriado pelo capitalista. Essa é a base da alienaçãoeconômica do homem sob o capital.

Politicamente, também o homem se tornou alienado, pois o princípio darepresentatividade, base do liberalismo, criou a idéia de Estado como um órgão políticoimparcial, capaz de representar toda a sociedade e dirigi-Ia pelo poder delegado pelosindivíduos. Marx mostrou, entretanto, que na sociedade de classes esse Estado representa

apenas a classe dominante e age conforme o interesse desta.Com o desenvolvimento do capitalismo, a filosofia, por sua vez, também passou a criar representações do homem e da sociedade. Diz Marx que a divisão social do trabalho fezcom que a filosofia se tornasse a atividade de um determinado grupo. Ela é, portanto, parcial e reflete o pensamento desse grupo. Essa parcialidade e o fato de que o Estado setorna legítimo a partir dessas reflexões parciais - como, por exemplo, o liberalismo -transformaram a filosofia em "filosofia do Estado". Esse comportamento do filósofo e docientista em face do poder resultou também na alienação do homem.

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Uma vez alienado, separado e mutilado, o homem só pode recuperar sua condiçãohumana pela crítica radical ao sistema econômico, à política e à filosofia que o excluíramda participação efetiva na vida social. Essa crítica radical só se efetiva na  práxis, que é aação política consciente e transformadora.

Com base nesse princípio, os marxistas vinculam a crítica da sociedade à ação política.

Marx propôs não apenas um novo método de abordar e explicar a sociedade mas tambémum projeto para a ação sobre ela.

“Um dos conceitos fundamentais da teoria marxista é o de alienação.”

As classes sociais

As idéias liberais consideravam os homens, por natureza, iguais política e juridicamente. Liberdade e justiça eram direitos inalienáveis de todo cidadão. Marx, por suavez, proclama a inexistência de tal igualdade natural e observa que o liberalismo vê oshomens como átomos, como se estivessem livres das evidentes desigualdades estabelecidas

 pela sociedade. Segundo Marx, as desigualdades sociais observadas no seu tempo eram provocadas pelas relações de produção do sistema capitalista, que dividem os homens em proprietários e não-proprietários dos meios de produção. As desigualdades são a base daformação das classes sociais.

As relações entre os homens se caracterizam por relações de oposição, antagonismo,exploração e complementaridade entre as classes sociais.

Marx identificou relações de exploração da classe dos proprietários – a burguesia – sobre a dos trabalhadores – o proletariado. Isso por que a

“Marx afirmava que as relações entre os homens são relações de oposição, antagonismo eexploração.”

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 posse dos meios de produção, sob a forma legal de propriedade privada, faz com que ostrabalhadores, a fim de assegurar a sobrevivência, tenham de vender  sua/orça de trabalhoao empresário capitalista, o qual se apropria do produto do trabalho de seus operários.

Essas mesmas relações são também de oposição e antagonismo, na medida em que osinteresses de classe são inconciliáveis. O capitalista deseja preservar seu direito à propriedade dos meios de produção e dos produtos e à máxima exploração do trabalho dooperário, seja reduzindo os salários seja ampliando a jornada de trabalho. O trabalhador,  por sua vez, procura diminuir a exploração ao lutar por menor jornada de trabalho,melhores salários e participação nos lucros.

Por outro lado, as relações entre as classes são complementares, pois uma só existe emrelação à outra. Só existem proprietários porque há uma massa de despossuídos cuja única propriedade é sua força de trabalho, que precisam vender para assegurar a sobrevivência.As classes sociais são, pois, apesar de sua oposição intrínseca, complementares einterdependentes.

A história do homem é, segundo Marx, a história da luta de classes, da luta constanteentre interesses opostos, embora esse conflito nem sempre se manifeste socialmente sob aforma de guerra declarada. As divergências, oposições e antagonismos de classes estão

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subjacentes a toda relação social, nos mais diversos níveis da sociedade, em todos ostempos, desde o surgimento da propriedade privada.

A origem histórica do capitalismo

O capitalismo surge na história quando, por circunstâncias diversas, uma enormequantidade de riquezas se concentra nas mãos de uns poucos indivíduos, que têm por objetivo a acumulação de lucros cada vez maiores.

 No início, a acumulação de riquezas se fez por meio da pirataria, do roubo, dosmonopólios e do controle de preços praticados pelos Estados absolutistas. Acomercialização era a grande fonte de rendimentos para 05 Estados e a nascente burguesia.Uma importante mudança aconteceu quando, a partir do século XVI, o artesão e ascorporações de ofício foram substituídas, respectivamente, pelo trabalhador "livre"assalariado - o operário - e pela indústria.

 Na produção artesanal da Idade Média e do Renascimento, o trabalhador mantinha emsua casa os instrumentos de produção. Aos poucos. porém, estes passaram às mãos de

indivíduos enriquecidos, que organizaram oficinas. A Revolução Industrial introduziuinovações técnicas na produção que aceleraram o processo de separação entre o trabalhador e os instrumentos de produção. As máquinas e tudo o mais necessário ao processo produtivo - força motriz, instalações, matérias-primas – ficaram acessíveis somente aosmais ricos. Os artesãos, isolados, não podiam competir com

“Segundo Marx, a revolução industrial acelerou o processo de alienação do trabalhador dosmeios e dos produtos de seu trabalho.”

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O dinamismo dessas nascentes indústrias e do conseqüente crescimento do mercado. Comisso, multiplicou-se o numero de operários, isto é, trabalhadores “livres” expropriados,artesãos que desistiam da produção individual e empregavam-se nas indústrias.

O salário

O operário, como vimos, é aquele indivíduo que, nada possuindo, é obrigado asobreviver da venda de sua força de trabalho. No capitalismo, a força de trabalho se tornauma mercadoria, algo útil, que se pode comprar e vender. Surge assim um contrato entrecapitalista e operário, mediante o qual o primeiro compra ou "aluga por um certo tempo" aforça de trabalho e, em troca, paga ao operário uma quantia em dinheiro, o salário.

O salário é, assim, o valor da força de trabalho, considerada como mercadoria. Comoa força de trabalho não é uma "coisa", mas uma capacidade, inseparável do corpo dooperário, o salário deve corresponder à quantia que permita ao operário alimentar-se, vestir-se, cuidar dos filhos, recuperar as energias e, assim, estar de volta ao serviço no diaseguinte. Em outras palavras, o salário deve garantir a reprodução das condições desubsistência do trabalhador e sua família.

O cálculo do salário depende do preço dos bens necessários à subsistência dotrabalhador. O tipo de bens necessários depende, por sua vez, dos hábitos e dos costumesdos trabalhadores. Isso faz com que o salário varie de lugar para lugar. Além disso, o

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salário depende ainda da natureza do trabalho e da destreza e da habilidade do própriotrabalhador. No cálculo do salário de um operário qualificado deve-se computar o tempoque ele gastou com educação e treinamento para desenvolver suas capacidades.

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Trabalho, valor e lucro

O capitalismo vê a força de trabalho como mercadoria, mas é claro que não se trata deuma mercadoria qualquer. Enquanto os produtos, ao serem usados, simplesmente sedesgastam ou desaparecem, o uso da força de trabalho significa, ao contrário, criação devalor. Os economistas clássicos ingleses, desde Adam Smith, já haviam percebido isso aoreconhecerem o trabalho como a verdadeira fonte de riqueza das sociedades.

Marx foi além. Para ele, o trabalho, ao se exercer sobre determinados objetos, provocanestes uma espécie de "ressurreição". Tudo o que é criado pelo homem, diz Marx, contémem si um trabalho passado, "morto", que só pode ser reanimado por outro trabalho. Assim,

 por exemplo, um pedaço de couro animal curtido, uma faca e fios de linha são, todos, produtos do trabalho humano. Deixados em si mesmos, são coisas mortas; utilizados para produzir um par de sapatos, renascem como meios de produção e se incorporam num novo produto, uma nova mercadoria, um novo valor.

“O capitalismo, segundo o marxismo, transformou o trabalho em mercadoria.”

Os economistas ingleses já haviam postulado que o valor das mercadorias dependia dotempo de trabalho gasto na sua produção. Marx acrescentou que este tempo de trabalho seestabelecia em relação às habilidades individuais médias e às condições técnicas vigentesna sociedade. Por isso, dizia que no valor de uma mercadoria era incorporado o tempo de

trabalho socialmente necessário à sua produção.De modo geral, as mercadorias resultam da colaboração de várias habilidades  profissionais distintas; por isso, seu valor incorpora todos os tempos de trabalhoespecíficos. Por exemplo, o valor de um par de sapatos inclui não só o tempo gasto paraconfeccioná-lo, mas também o dos trabalhadores que curtiram o couro, produziram fios delinha, a máquina de costurar etc. O valor de todos esses trabalhos está embutido no preçoque o capitalista paga ao adquirir essas matérias-primas e instrumentos, os quais, juntamente com a quantia paga a título de salário, serão incorporados ao valor do produto.

Imaginemos um capitalista interessado em produzir sapatos, utilizando para essecálculo uma unidade de moeda qualquer. Pois bem, suponhamos que a produção de um par lhe custe 100 unidades de moeda de matéria-prima, mais 20 com o desgaste dosinstrumentos, mais 30 de salário diário pago a cada trabalhador. Essa soma - 150 unidadesde moeda - representa sua despesa com investimentos. O valor do par de sapatos produzidonessas condições será a soma de todos os valores representados pelas diversas mercadoriasque entraram na produção (matéria-prima, instrumentos, força de trabalho), o que totalizatambém 150 unidades de moeda.

Sabemos que o capitalista produz para obter lucro, isto é, quer ganhar com seus produtos mais do que investiu. No exemplo acima, vemos, porem, que o valor de um produto corresponde exatamente ao que se investe para produzi-lo. Como então se obtém olucro?

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O capitalista poderia lucrar simplesmente aumentando o preço de venda do produto- por exemplo, cobrando 200 pelo par de sapatos. Mas o simples aumento de preços é um

recurso transitório e com o tempo cria problemas. De um lado, uma mercadoria com preçoselevados, ao sugerir possibilidades de ganho imediato, atrai novos capitalistas interessadosem produzi-la. Com isso, porém, corre-se o risco de inundar o mercado com artigos seme-lhantes, cujo preço fatalmente cairá. De outro lado, uma alta arbitrária no preço de umamercadoria qualquer tende a provocar elevação generalizada nos demais preços, pois, nessecaso, todos os capitalistas desejarão ganhar mais com seus produtos. Isso pode ocorrer durante algum tempo, mas, se a disputa se prolongar, poderá levar o sistema econômico àdesorganização.

 Na verdade, de acordo com a análise de Marx, não é no âmbito da compra e da vendade mercadorias que se encontram bases estáveis nem para o lucro dos capitalistasindividuais nem para a manutenção do sistema capitalista. Ao contrário, a valorização da

mercadoria se dá no âmbito de sua produção.A mais-valia

Retomemos o nosso exemplo. Suponhamos que o operário tenha uma jornada diária denove horas e confeccione um par de sapatos a cada três horas. Nestas três horas, ele criauma quantidade de valor correspondente ao seu salário, que é suficiente para obter onecessário à sua subsistência. Como o capitalista lhe paga o valor de um dia de força detrabalho, o restante do tempo, seis horas, o operário produz mais mercadorias, que geramum valor maior do que lhe foi pago na forma de salário. A duração da jornada de trabalhoresulta, portanto, de um cálculo que leva em consideração o quanto interessa ao capitalista

 produzir para obter lucro sem desvalorizar seu produto.Suponhamos uma jornada de nove horas, ao final da qual o sapateiro produza três pares de sapatos. Cada par continua valendo 150 unidades de moeda, mas agora eles custammenos ao capitalista. É que, no cálculo do valor dos três pares, a quantia investida emmeios de produção também foi multiplicada por três, mas a quantia relativa ao salário -correspondente a um dia de trabalho - permaneceu constante. Desse modo, o custo de cada par de sapatos se reduziu a 130 unidades.Custo de um par de sapatos na jornada de trabalho de três horas

meios de produção 120

+

Salário 30

= 150

custo de um par de sapatos na jornada de trabalho de nove horas

meios de produção 120 x 3 = 360

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+salário 30= 390 / 3 = 130

Assim, ao final da jornada de trabalho, o operário recebe 30 unidades de moeda, ainda que

seu trabalho tenha rendido o dobro ao capitalista:90

20 unidades de moeda, em cada um dos três pares de sapatos produzidos. Esse valor a maisnão retoma ao operário: incorpora-se no produto e é apropriado pelo capitalista.

Visualiza-se, portanto, que uma coisa é o valor da força de trabalho, isto é, o salário, eoutra é o quanto esse trabalho rende ao capitalista. Esse valor excedente produzido pelooperário é o que Marx chama de mais-valia.

O capitalista pode obter mais-valia procurando aumentar constantemente a jornada detrabalho, tal como no nosso exemplo. Essa é, segundo Marx a mais-valia absoluta. É claro, porém, que a extensão indefinida da jornada esbarra nos limites físicos do trabalhador e nanecessidade de controlar a própria quantidade de mercadorias que se produz.

Agora, pensemos numa indústria altamente mecanizada. A tecnologia aplicada fazaumentar a produtividade, isto é, as mesmas nove horas de trabalho agora produzem umnúmero maior de mercadorias, digamos, 20 pares de sapatos. A mecanização também fazcom que a qualidade dos produtos dependa menos da habilidade e do conhecimento técnicodo trabalhador individual. Numa situação dessas, portanto, a força de trabalho vale cada vezmenos e, ao mesmo tempo, graças à maquinaria desenvolvida, produz cada vez mais. Esseé, em síntese, o processo de obtenção daquilo que Marx denomina mais-valia relativa.

O processo descrito esclarece a dependência do capitalismo em relação aodesenvolvimento das técnicas de produção. Mostra, ainda, como o trabalho, sob o capital, perde todo o atrativo e faz do operário mero "apêndice da máquina".

As relações políticas

Após essa analise detalhada do modo de produção capitalista, Marx passa ao estudo dasformas políticas produzidas no seu interior. Ele constata que as

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diferenças entre as classes sociais não se reduzem a uma diferença quantitativa de riquezas,mas expressam uma diferença de existência material. Os indivíduos de uma mesma classesocial partilham de uma situação de classe comum, que inclui valores, comportamentos,regras de convivência e interesses.

A essas diferenças econômicas e sociais segue-se uma diferença na distribuição de  poder. Diante da alienação do operariado, as classes economicamente dominantesdesenvolveram formas de dominação políticas que lhes permitem apropriar-se do aparatode poder do Estado e, com ele, legitimar seus interesses sob a forma de leis e planoseconômicos e políticos.

Cada forma assumida pelo Estado na sociedade burguesa, seja sob o regime liberal,

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monárquico, monárquico constitucional ou ditatorial, representa maneiras diferentes pelasquais ele se transforma num "comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia"(K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, in Cartas filosóficas e outrosescritos,   p. 86), seja sob regime liberal, monárquico-constitucional, parlamentar ouditatorial.

Para Marx as condições específicas de trabalho geradas pela industrialização tendem a promover a consciência de que há interesses comuns para o conjunto da classe trabalhadorae, conseqüentemente, tendem a impulsionar a sua organização política para a ação. A classetrabalhadora, portanto, vivendo uma mesma situação de classe e sofrendo progressivoempobrecimento em razão das formas cada vez mais eficientes de exploração dotrabalhador, acaba por se organizar politicamente. Essa organização é que permite a tomadade consciência da classe operária e sua mobilização para a ação política.

“As classes sociais não apresentam apenas uma diferente quantidade de riqueza, mastambém posição, interesse e consciência diversa.”

Materialismo históricoPara entender o capitalismo e explicar a natureza da organização econômica humana,

Marx desenvolveu uma teoria abrangente e universal, que procura dar conta de toda equalquer forma produtiva criada pelo homem em todo o tempo e lugar. Os princípios básicos dessa teoria estão expressos em seu método de análise - o materialismo histórico.

Marx parte do princípio de que a estrutura de uma sociedade qualquer reflete a formacomo os homens organizam a  produção social de bens. A produção social, segundo Marx,engloba dois fatores básicos: as/orças produtivas e as relações de produção.

As forças produtivas constituem as condições materiais de toda a produção. Qualquer  processo de trabalho implica: determinados objetos, isto é, matérias-primas identificadas e

extraídas da natureza; e determinados instrumentos, ou seja, o conjunto de forças naturais játransformadas e adaptadas pelo homem, como ferramentas ou máquinas, utilizadas segundouma orientação técnica especifica. O homem, principal elemento das forças produtivas, é oresponsável por fazer a ligação entre a natureza e a técnica e os instrumentos. O

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desenvolvimento da produção vai determinar a combinação e o uso desses diversoselementos: recursos naturais, mão-de-obra disponível, instrumentos e técnicas produtivas.Essas combinações procuram atingir o máximo de produção em função do mercadoexistente. A cada forma de organização das forças produtivas corresponde uma determinadaforma de relações de produção.

As relações de produção são as formas pelas quais os homens se organizam paraexecutar a atividade produtiva. Essas relações se referem às diversas maneiras pelas quaissão apropriados e distribuídos os elementos envolvidos no processo de trabalho: asmatérias-primas, os instrumentos e a técnica, os próprios trabalhadores e o produto final.Assim, as relações de produção podem ser, num determinado momento, cooperativistas(como num mutirão), escravistas (como na Antigüidade), servis (como na Europa feudal),ou capitalistas (como na indústria moderna).

Forças produtivas e relações de produção são condições naturais e históricas de toda

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atividade produtiva que ocorre em sociedade. A forma pela qual ambas existem e sãoreproduzidas numa determinada sociedade constitui o que Marx denominou modo de produção.

“O estudo do modo de produção é fundamental para se saber como se organiza e

funciona uma sociedade.”Para Marx, o estudo do modo de produção é fundamental para compreender como se

organiza e funciona uma sociedade. As relações de produção, nesse sentido, sãoconsideradas as mais importantes relações sociais. Os modelos de família, as leis, areligião, as idéias políticas, os valores sociais são aspectos cuja explicação depende, em princípio, do estudo do desenvolvimento e do colapso de diferentes modos de produção.Analisando a história, Marx identificou alguns modos de produção específicos:  sistemacomunal primitivo, modo de produção asiático, modo de produção antigo, modo de produção germânico, modo de produção feudal e modo de produção capitalista. Cada qualrepresenta diferentes formas de organização da propriedade privada e da exploração do

homem pelo homem.93

Em cada modo de produção, a desigualdade de propriedade, como fundamento dasrelações de produção, cria contradições básicas com o desenvolvimento das forças produtivas. Essas contradições se acirram até provocar um processo revolucionário, com aderrocada do modo de produção vigente e a ascensão de outro.

“Modo de produção asiático - é a primeira forma que se seguiu à dissolução dacomunidade primitiva. Sua característica fundamental era a organização da agricultura e da

manufatura em unidades comunais autosuficientes. Sobre elas, havia um governo, que  poderia organizar os custos com guerras e obras economicamente necessárias, comoirrigação e vias de comunicação. As aldeias eram centros de comércio exterior, e a  produção agrícola excedente era apropriada em forma de tributo pelo governo. A propriedade era comunal ou tribal. É o tipo característico da China e do Egito antigos,também conhecido por "despotismo oriental". A coesão entre os indivíduos é assegurada pelas comunidades aldeãs.

Modo de produção germânico - neste modo de produção, cada lar ou unidade domésticaisolada constitui um centro independente de produção. A sociedade se organiza emlinhagens, segundo parentesco consangüíneo, que transmite o ofício e a herança da possessão ou do domínio. Eventualmente, esses lares isolados unem-se para atividadesguerreiras, religiosas ou para a solução de disputas legais. A sociedade é essencialmenterural. O isolamento entre os domínios torna-os potencialmente mais "individualistas" que acomunidade aldeã asiática. O Estado como entidade não existe. Este modo de produçãocaracterizaria as populações "bárbaras" da Europa antiga.

Modo de produção antigo - neste as pessoas mantêm relações de localidade e não deconsangüinidade. O trabalho agrícola era considerado atividade própria de cidadãos livres.Dessa relação entre cidadania e trabalho agrícola tem origem a nação, politicamentecentralizada no Estado. A vida é urbana, mas baseada na propriedade da terra, fato queMarx chama de ruralização da cidade. A cidade é o centro da comunidade, havendo

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diferença entre as terras do Estado e a propriedade particular explorada pelos "patrícios"(cidadãos livres proprietários) por meio de seus clientes. As sociedades típicas desse modode produção são a grega e a romana.”

A historicidade e a totalidade

A teoria marxista repercutiu de maneira decisiva não só na Europa objeto primeiro deseus estudos - como nas colônias européias e em movimentos de independência. Organizouos partidos marxistas entre operários - os sindicatos -, levou intelectuais à crítica darealidade e influenciou as atividades científicas de um modo geral e as ciências humanasem particular.

Além de elaborar uma teoria que condenava as bases sociais da espoliação capitalista,conclamando os trabalhadores a construir, por meio de sua  práxis revolucionária, umasociedade assentada na justiça social e igualdade real entre os homens, Marx conseguiu,como nenhum outro, com sua obra, estabelecer relações profundas entre a realidade, afilosofia e a ciência.

Por sua formação filosófica, Marx concebia a realidade social como uma concretudehistórica, isto é,

“Para Marx, a realidade social era uma concretude histórica – um conjunto de relações de produção que caracteriza um momento histórico.”

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como um conjunto de relações de produção que caracteriza cada sociedade num tempo eespaço determinados. Foi assim que analisou, em O 18  Brumário de   Luís Bonaparte, ogolpe de Estado ocorrido na França no século XIX, quando o sobrinho de Napoleão I,

 parodiou o feito do tio que, em 1799, conseguiu substituir a República pela Ditadura.Por outro lado, cada sociedade representava para Marx uma totalidade, isto é, umconjunto único e integrado das diversas formas de organização humana nas suas maisdiversas instâncias - família, poder, religião. Entretanto, apesar de considerar as sociedadesda sua época e do passado como totalidades e como situações históricas concretas, Marxconseguiu, pela profundidade de suas análises, extrair conclusões de caráter geral eaplicáveis a formas sociais diferentes. Assim, ao analisar o golpe de Luís Bonaparte, iden-tifica na estrutura de classes estabelecida na França aspectos universais da dinâmica da lutade classes.

A amplitude da contribuição de MarxO sucesso e a penetração do materialismo histórico, quer no campo da  ciência -

ciência política, econômica e social-, quer no campo da organização política, se deve aouniversalismo de seus princípios e ao caráter  totalizador que imprimiu às suas idéias.

Além desse universalismo da teoria marxista - mérito que a diferencia de todas asteorias subseqüentes - outras questões adquiriram nova dimensão com os princípiossustentados por Karl Marx. Um deles foi a objetividade científica, tão perseguida pelasciências humanas. Para Marx, a questão da objetividade só se coloca enquanto consciênciacrítica. A ciência, assim como a ação política, só pode ser verdadeira e não ideológica serefletir uma situaria realidade. Assim, objetividade não é uma questão de método, mas de

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como o pensamento cientifico se insere no contexto das relações de produção e na historia.

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A idéia de uma sociedade "doente" ou "normal", preocupação dos cientistas sociais

 positivistas, desaparece em Marx. Para ele a sociedade é constituída de relações de conflitoe é de sua dinâmica que surge a mudança social. Fenômenos como luta, conflito, revoluçãoe exploração são constituintes dos diversos momentos históricos e não disfunções sociais.

A partir do conceito de movimento histórico proposto por Hegel, assim como dohistoricismo existente em Weber, Marx redimensiona o estudo da sociedade humana. Suasidéias marcaram de maneira definitiva o pensamento científico e a ação política dessaépoca, assim como das posteriores, formando duas diferentes maneiras de atuação sob a bandeira do marxismo. A primeira é abraçar o ideal comunista, de uma sociedade onde es-tão abolidas as classes sociais e a propriedade privada dos meios de produção. Outra éexercer a crítica à realidade social, procurando suas contradições, desvendando as relaçõesde exploração e expropriação do homem pelo homem, de modo a entender o papel dessas

relações no processo histórico. Não é preciso afirmar a contribuição da teoria marxista para o desenvolvimento dasciências sociais. A abordagem do conflito, da dinâmica histórica, da relação entreconsciência e realidade e da correta inserção do homem e de sua práxis no contexto socialforam conquistas jamais abandonadas pelos sociólogos. Isso sem contar a habilidade comque o método marxista possibilita o constante deslocamento do geral para o particular, dasleis macrossociais para suas manifestações históricas, do movimento estrutural dasociedade para a ação humana individual e coletiva.

“Marx contribuiu para uma nova abordagem do conflito, da relação entre consciência erealidade, e da dinâmica histórica.”

A sociologia, o socialismo e o marxismo

A teoria marxista teve ampla aceitação teórica e metodológica, assim corno política erevolucionária. Já em 1864, em Londres, Karl Marx e Friedrich Engels - companheiro emgrande parte de suas obras estruturaram a Primeira Associação Internacional de Operários,ou Primeira Internacional, promovendo a organização e a defesa dos operários em nívelinternacional. Extinguida em 1873, a difusão das idéias e das propostas marxistas ficou por conta dos sindicatos existentes em diversos países e nos partidos, especialmente os social-democratas.

A Segunda Internacional surgiu na época do centenário da Revolução Francesa (1889),quando diversos congressos socialistas tiveram lugar nas principais capitais européias, comvárias tendências, nem sempre conciliáveis. A Primeira Guerra Mundial pôs fim à SegundaInternacional, em 1914. Em 1917, uma revolução inspirada nas idéias marxistas, aRevolução Bolchevique, na Rússia, criava no mundo o primeiro Estado operário. Em 1919,inaugurava-se a Terceira Internacional ou Comintern, que, como a primeira, procuravadifundir os ideais comunistas e organizar os partidos e a luta dos operários pela tomada do poder. Ela continua atuante ate hoje,

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enfrentando intensa crise provocada pelo fim da União Soviética e pela expansão mundialdo neoliberalismo.

A aceitação dos ideais marxistas não se restringia mais apenas à Europa. Difundia-se pelos quatro continentes, à medida que se desenvolvia o capitalismo internacional. À

formação do operariado no restante do mundo seguia-se o surgimento de sindicatos e partidos marxistas. Os ideais marxistas se adequavam também perfeitamente à luta pelaindependência que surgia nas colônias européias da África e da Ásia, após a Primeira e aSegunda Guerra Mundial, assim como à luta por soberania e autonomia, existente nos paí-ses latino-americanos.

Em 1919, surgiram partidos comunistas na América do Norte, na China e no México.Em 1920, no Uruguai; em 1922, no Brasil e no Chile; e, em 1925, em Cuba. O movimentorevolucionário tomava-se mais forte à medida que os Estados Unidos e a URSS emergiamcomo potências mundiais e passavam a disputar sua influência no mundo. Váriasrevoluções como a chinesa, a cubana, a vietnamita e a coreana instauraram regimesoperários que, apesar das suas diferenças, organizavam um sistema político com algumas

características comuns - forte centralização, economia altamente planejada, coletivizaçãodos meios de produção, fiscalismo e uso intenso de propaganda ideológica e do culto aodirigente.

Intensificava-se, nos anos cinqüenta e sessenta, a oposição entre os dois blocosmundiais - o capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o socialista, liderado pela URSS.A polarização política e ideológica é transferida para o conjunto do método e da teoriamarxista que passam a ser usados, sob o peso da direção do stalinismo na URSS e dos partidos comunistas a ele filiados, como um corpo doutrinário fechado para legitimar a tesedo "socialismo em um só país", preconizada pela liderança soviética, e da gestão burocrática dos estados socialistas. O marxismo deixou de ser um método de análise darealidade social para transformar-se em ideologia, perdendo, assim, parte de sua capacidade

de elucidar os homens em relação ao seu momento histórico e mobilizá-los para umatomada consciente de posição.Entre 1989 e 1991, desfazia-se o bloco soviético após uma crise interna e externa

  bastante intensa - dificuldade em conciliar as diferenças regionais e étnicas, falta derecursos para manter um estado de permanente beligerância, atraso tecnológico, excesso de burocracia, baixa produtividade, escassez de produtos, inflação e corrupção, entre outrosfatores. O fim da União Soviética provocou um abalo nos partidos de esquerda do mundotodo e o redimensionamento das forças internacionais.

Toda essa explicação a respeito do marxismo se faz necessária por diversas razões. Em primeiro lugar porque a sociologia confundiu-se com socialismo em muitos países, emespecial nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento - como são hoje chamados os países dependentes da America Latina e da Ásia, surgidos das antigas colônias européias.  Nesses países, intelectuais e lideres políticos associaram de maneira categórica odesenvolvimento da sociologia ao desenvolvimento da luta política e dos

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  partidos marxistas. Entre eles, a derrocada do império soviético foi sentida como umacondenação e quase como a inviabilidade da própria ciência.

É preciso lembrar que as teorias marxistas, como o próprio Marx propôs, transcendem

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o momento histórico no qual são concebidas e têm uma validade que extrapola qualquer das100clativas concretas que buscam viabilizar a sociedade justa e igualitária proposta por Marx. Nunca será bastante lembrar que a ausência da propriedade privada dos meios de produção é condição necessária mas não suficiente da sociedade comunista teorizada por Marx. Assim, não se devem confundir tentativas de realizações levadas a efeito por 

inspiração das teorias marxistas com as propostas de Marx de superação das contradiçõescapitalistas. Também é improcedente - e de maneira ainda mais rigorosa - confundir aciência com o ideário político de qualquer partido. Pode haver integração entre um e outromas nunca identidade.

Em segundo lugar, é preciso entender que a história não termina em qualquer de suasmanifestações particulares, quer na vitória comunista, quer na capitalista. Como Marxmostrou, o próprio esforço por manter e reproduzir um modo de produção acarretamodificações qualitativas nas forças em oposição. Assim, em termos científicos emarxistas, é preciso voltar o olhar para a compreensão da emergência de novas forçassociais e de novas contradições. Enganam-se os teóricos de direita e de esquerda que vêemem dado momento a realização mítica de um modelo ideal de sociedade.

“A teoria marxista transcende o momento histórico no qual foi concebida e os regimes políticos inspirados por ela.”

Em terceiro lugar, hoje se vive nas ciências, de uma maneira geral, um momento de  particular cautela, pois, após dois ou três séculos de crença absoluta na capacidaderedentora da ciência, em sua possibilidade de explicitar de maneira inequívoca e permanente a realidade, já não se acredita na infalibilidade dos modelos, e o trabalho permanente de discussão, revisão e complementação se coloca como necessário. Não poderia ser diferente com as ciências sociais, que, do contrário, adquiririam um estatuto dereligião e fé, uma vez que se apoiariam em verdades eternas e imutáveis.

Assim, o fim da União Soviética não significou o fim da história ou da Sociologia,nem o esgotamento do marxismo como postura teórica das mais amplas e fecundas, comum poder de explicação não alcançado pelas análises Posteriores. Nem sequer terminoucom a derrubada do Muro de Berlim o ideal de uma sociedade justa e igualitária. O que setoma necessário é rever essa sociedade cujas relações de produção se organizam sob novos  princípios - enfraquecimento dos estados nacionais, mundialização do capitalismo,formação de blocos nacionais e organização política de minorias étnicas, religiosas e atésexuais - entendendo que as contradições não desapareceram mas se expressam em novasinstâncias.

Em seu livro  De volta ao palácio do barba azul. Steiner mostra como a sociedade  pós-classica acabou por desmanchar os antagonismos mais agudos que existiam nasociedade ocidental. Os grupos etários se aproximam, as

“A teoria marxista transcende amamente histórico no qual foi concebida e os regimes políticos inspirados por ela.”

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distinções comportamentais dos sexos desaparecem, o mundo rural e o urbano se integramnuma estrutura única industrial, e assim por diante. É nessa perspectiva que ele propõe uma

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releitura da teoria marxista, tentando encontrar em diferentes conjunturas sociais formas decontradição e exploração como as que Marx distinguiu na realidade francesa e na inglesa.Por mais que pretendesse entender o desenvolvimento universal da sociedade humana,Marx jamais deixou de respeitar cientificamente a especificidade e a historicidade de cadauma de suas manifestações.