sociologia do direito
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XIII CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA
29 de maio a 01 de junho de 2007, Recife (PE)
GT10: Estado, Cidadania e Identidade
Grupo 4: Estado, Democracia e Sociedade Civil
REFUNDAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
PELA SOCIEDADE CIVIL
Luciana Cristina de Souza
Faculdade Arnaldo Janssen
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REFUNDAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
PELA SOCIEDADE CIVIL
RESUMO
Esta pesquisa teve início durante o mestrado, sendo parte dela tema da dissertação.
Contempla o fenômeno social do pluralismo jurídico, que contrapõe à legislação estatal, as
normas próprias elaboradas por grupos excluídos e socialmente organizados. Focaliza, em
grau de relevância, conforme já destacado também em artigo sobre o tema publicado na
Revista Sociologia Jurídica recentemente, a formação dos "sistemas sociais plurais", que
negam o reconhecimento ao modelo de Estado Democrático de Direito herdado do
liberalismo francês e ainda fortemente estruturado nas sociedades atuais. Estes sistemas
propõem a "refundação" desse modelo político estatal, a partir da aceitação da
multiplicidade de expressões que compõem a sociedade, assim como pela inclusão da
vontade política desses grupos excluídos em um grau de representatividade maior e melhor
exercido. O conflito entre direito estatal e direito extra-estatal é analisado tendo por
instrumento metodológico a teoria da "geometria da lei", cunhada pelo sociólogo norte-
americano Donald Black, que fornece ao pesquisador o uso de variáveis para mensuração
objetiva do modo como a lei, ou o direito - em sentido amplo -, comporta-se em um cenário
social.
Palavras-chave: norma; Estado; sociedade
Sociedade civil e movimentos populares
Para iniciar, cumpre esclarecer-se sobre os conceitos que são atribuídos neste ensaio à
sociedade civil e aos movimentos sociais. A extensão dos termos é analisada a partir de seu
grau de reconhecimento pelo Estado, posto que se considerou não possuírem a mesma
amplitude perante o poder estatal. que aqui se atribui aos conceitos de sociedade civil e de
"movimentos populares". As referências ao primeiro serão feitas focando sua existência
enquanto organização política, lato sensu, que origina o poder do Estado e com este
mantém uma relação simbiótica, cujo intuito é o equilíbrio entre os espaços público e
privado. Nasceria da Constituição, norma fundamental que contém os desejos e valores do
povo, assim como a forma de se partilhar o poder entre o governante e os cidadãos. A
sociedade civil construiria, ainda os valores éticos e morais que regem a convivência dentro
do corpo social.
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Os movimentos sociais são identificados, muito comumente, com a sociedade civil,
representando um momento de sua atuação, no sentido de reivindicar do Estado os direitos
pactuados que estariam sendo descumpridos. Outras vezes, para incluir novos direitos no
contrato social. Seriam, então, modos de articulação da sociedade civil para empreender
mudanças sociais no contexto vigente e, desse modo, propiciar a inclusão de novos sujeitos
como cidadãos. Regra geral, são parcelas da sociedade civil que se organizam para pleitear
demandas específicas de certos segmentos, assumindo um comportamento político voltado
a romper obstáculos no acesso aos bens desta mesma sociedade, cuja falta impossibilita-
lhes o pleno exercício da cidadania.
Há, na verdade, dois conceitos de sociedade civil em vigor, hoje, no Brasil. Um formulado
pelo Estado, no qual ela consiste em uma estrutura da vida privada, com a qual mantém
relações políticas de representatividade e de cidadania. A sociedade civil, sob o foco do
poder estatal, representa o espaço privado da vida social, que interage com o poder
instituído através de mecanismos legítimos. Seriam exemplos de atuação dessa sociedade
civil associações de pais e mestres, sindicatos, grupos de defesa dos consumidores,
organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP), associações de moradores, e
outros segmentos, desde que se utilizem instrumentos legítimos e se constituam de acordo
com os parâmetros da legalidade instituída pelo ordenamento jurídico. Sob esse enfoque, a
sociedade civil não é um ser próprio, mas uma definição legal. Ainda que de forma não
explícita, o Estado define quem ele reconhece como sociedade civil através de suas
normas, representadas pelo direito. Todavia, essa perspectiva estatal de sociedade civil
despreza os grupos sociais que não atendem ao critério legal do Estado e que, como
leciona Merton (SABADELL, 2002, p. 82-86), pretendem alcançar as metas culturais
existentes, ainda que se valendo de mecanismos não institucionalizados. Há uma outra
sociedade civil, não reconhecida, mas existente e nela atuam diversos movimentos sociais
não amparados pelo paradigma estatal de legitimidade. Não podendo se inserir, tais
segmentos reformulam o conceito de sociedade civil, questionam o tipo de cidadania (ou
falsa cidadania) que lhes é conferida dentro do Estado Democrático de Direito e, algumas
vezes, desafiam o sistema jurídico e político existente. Este caminho já fora antes descrito
pelo jurista Rudolf Von Ihering, em seu livro "A Luta pelo Direito":
A vida do direito é a luta, a luta dos povos, de governos, de classes, de indivíduos. Todo o direito do mundo foi assim conquistado, todo ordenamento jurídico que se lhe contrapôs teve de ser eliminado e todo direito, assim como o direito de um povo ou o de um indivíduo, teve de ser conquistado com luta. O direito não é mero pensamento, mas sim força viva. (IHERING, 2001, p. 27)
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Como a concessão de direitos, com vistas à cidadania, tem sido realizada sem o
estabelecimento de um diálogo efetivo entre Estado e sociedade civil, amplamente
considerada, os projetos implementados terminam por serem insuficientes para suprir as
necessidades básicas dos seus cidadãos. Por exemplo, cita-se a criação dos Centros de
Integração da Cidadania, em São Paulo. Inicialmente, o que se pretendia era organizar a
comunidade, aqui como parte da sociedade civil, para elaboração de práticas de solução de
conflitos e assessoria para o planejamento de ações de melhoria da vida local. A proposta
incluía descentralização de poder, recursos para investimentos em políticas sociais e
facilitação do acesso a serviços públicos essenciais, em geral distantes das populações de
baixa renda. À medida em que o projeto foi sendo implementado, esta perspectiva se
alterou, e o poder público passou a direcionar as ações e investimentos em atividades que
visassem diminuir a violência. A justificativa para essa postura do Estado se encontrava na
pressuposição de que os ataques à cidade cometidos pelos jovens dessas comunidades –
aqui sociedade civil são as vítimas dos assaltos, furtos e outros crimes – precisavam ser
contidos e, por isso, a gestão do projeto migrou da Secretaria de Justiça e Defesa da
Cidadania para o Plano de Integração e Acompanhamento dos Programas Sociais de
Prevenção da Violência (Piaps), do governo federal: "A educação ou a justiça passam a ser
justificadas, não como direitos fundamentais, mas como estratégias de controle do crime"
(HADDAD, 2004).
Vimos no caso acima, como o conceito de sociedade civil se diferencia , conforme a postura
política e social adotada pelo Estado. No momento em que a segurança pública dos
"cidadãos" se tornou imprescindível para o poder público, restringiu-se, ainda que não
explicitamente, a extensão do termo sociedade civil. Naquele momento de construção de
normas da vida moral e, em seguida, de normas jurídicas que regessem os fatos sociais
contemplados, a comunidade – espaço social dos moradores de baixa renda, no caso – teve
que se submeter a uma nova proposta de intervenção estatal cujo intuito era adequar o
comportamento dos seus moradores para não causar danos à sociedade civil. Em seu
estudo sobre a migração de trabalhadores para a favela do bairro Lagoinha, em Uberlândia,
Rosângela Petuba também descreve essa dicotomia no modo como se vê a sociedade civil
e explica-a através dos termos marginalidade e integração. Para o Estado, aqueles que não
se adequam ao paradigma criado pelo direito estatal, estão na "marginalidade", pois se
recusam a interagir com o modelo oficialmente determinado. Petuba também ressaltar esse
caráter inovador, com outras palavras, explicando como os migrantes são esquecidos como
parte dos que constroem a sociedade. Uma vez que sua história acontece às margens da
"história oficial", seus relatos não fazem parte da pauta de discussão política. Eles não
fazem parte da sociedade civil de Uberlândia (PETUBA, 2002, p. 54).
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Os diversos movimentos sociais servem para expor a fragilidade do Estado em reconhecer a
sociedade como um todo, sem excluir cidadãos, assim como em proteger direitos
fundamentais. Serve também para demonstrar o quanto o termo sociedade civil também tem
sido empregado , notadamente no contexto neoliberal, para atribuir responsabilidades aos
indivíduos, originalmente constantes entre as funções estatais. Sociedade civil passa a ser
sinônimo de políticas públicas, posto que muitas demandas sociais somente se realizam por
esta via.
Na esteira da desresponsabilização do Estado e do desmanche das políticas públicas e dos direitos sociais em curso no país ao longo dos anos 1990, o discurso de autonomia popular em relação ao poder público revela alguns impasses... As práticas e experiências de autonomia e de solidariedade dos movimentos sociais encontram, depois de duas décadas, sua face perversa e seu avesso... têm como preço a impossibilidade da emergência legítima de conflitos no interior das próprias experiências em curso, já que disputas são silenciadas sob o manto da autonomia, bem como a impossibilidade de configuração de uma cena pública na qual as necessidades possam ser discutidas como algo pertinente ao conjunto da sociedade e à esfera política." (RIZEK, 2006, p. 399-400)
Esse impasse apontado pela autora no trecho acima resulta do conceito de sociedade civil
formulado pelo Estado, tão distinto, na maioria das vezes, daquele construído pela vivência
dessa mesma sociedade. O texto de Rizek é uma análise dos programas de mutirões
autogeridos. A autora observa como a idéia de autonomia da sociedade civil é um
importante argumento nas políticas públicas, embora ressalte que esta experiência
prosseguiu após os primeiros mutirões, dadas as dificuldades de se esperar que a
população fizesse tudo por si mesma.
Tendo em conta que, para o Estado, o termo sociedade civil nem sempre corresponde ao
que esta mesma se atribui, mormente por falta de reconhecimento de alguns grupos, os
movimentos sociais (pró-moradia, sem terra, mulheres, indígenas, negros, homossexuais,
trabalhadores informais - camelôs, toureiros, etc.) se articulam para conquistar essa
cidadania que somente é concedida, ao menos plenamente, aos que estão vinculados ao
poder estatal nos termos da lei. Sem esse critério de legalidade, é claro, o próprio Estado
não poderia se constituir. Mas seu o atraso em dialogar mais freqüentemente e com melhor
oitiva da sociedade civil, amplamente considerada, as discrepâncias entre as necessidades
atendidas pelo poder público e as que são demandadas pelos indivíduos promoverá um
apartamento maior entre o paradigma formal, representado pelo direito do Estado, e o
paradigma social dos sistemas plurais, grupos que se organizam particularmente para
garantir a satisfação de suas necessidades primordiais: "...tudo aquilo que interfere, de
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forma direta ou indireta, no plano de vida da pessoa ou do grupo em relação às suas
atividades essenciais, inviabilizando-as ou tornando-as insuficientes" (GUSTIN, 1999, p. 27).
Autonomia e fragmentariedade da sociedade(s) civil(is)
Uma vez que não são supridas as necessidades dos indivíduos, ou ao menos daqueles cuja
abrangência estatal do termo sociedade civil não os inclui, estes adotam algumas posturas
para sua concretização: a) formam uma organização com estrutura própria, de modo a
fortalecer o grupo e orientar suas atividades ao fim almejado; b) elaboram normas
especificas de convivência e solução de conflitos; c) articulam esforços de integração com o
modelo vigente, visando abandonar sua posição marginal, quando nela possam se
encontrar, e verem reconhecidos seus direitos fundamentais (salvo algumas exceções,
como o tráfico de drogas). De fato, tais grupos sociais intentam assumir uma autonomia
verdadeira, como preceitua Gustin (1999, p. 31-31), querem adquirir capacidade de ação e
de intervenção em relação à sua forma de vida e em relação a outrem, no caso, o Estado. A
alteridade é contraponto da autonomia, pois através dela se firmam acordos de convivência
que respeitem ambos os lados em sua liberdade e direitos. A perda de autonomia por
parcelas da sociedade civil propicia o surgimento de novos espaços em que se tenta buscar
essa emancipação da cidadania e os movimentos sociais são a forma de articulação mais
comum da sociedade civil para tanto.
Essa autonomia dos grupos sociais excluídos é uma conquista desses, mais do que uma
concessão do Estado e tem tido forças para motivar a reformulação de políticas públicas e
do próprio sistema estatal para facilitar sua inclusão. Os estudos que foram escritos nos
últimos anos sobre a emancipação de comunidades em favelas mostram inúmeros
exemplos disso, como no caso abaixo, em que a autora desenvolveu uma pesquisa de
campo no Rio de Janeiro, no bairro de Vila Isabel, em que há um conjunto de favelas
denominado Complexo do Morro dos Macacos.
...com o uso da palavra comunidade é inaugurado um processo de positivação desse espaço e de seus moradores, já que foi a favela (e não a comunidade) que proliferou como chaga, trazendo muitos problemas, dentre eles a ilegalidade (...) A associação de moradores assume o papel de administradora de diversos serviços, como limpeza pública – com o "gari comunitário" –, entrega e redistribuição de correspondências e mercadorias compradas em supermercados ou lojas e que chegam na associação. (PICCOLO, 2006, p. 332; 343)
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Esta aquisição de autonomia, porém, não é um processo uniforme da sociedade civil.
Existem disputas internas entre segmentos distintos da sociedade que almejam, por
exemplo, os mesmos bens públicos como projetos sociais, infra-estrutura e investimentos
(COSTA, 2006, p. 165-168). A experiência do orçamento participativo reflete um pouco
dessa concorrência entre grupos sociais por parcelas dos recursos públicos. Em Belo
Horizonte, este modelo é aplicado há alguns anos, agora também no formato digital. O
morador de cada região vota por meio eletrônico para decidir entre quatro propostas da
Prefeitura, aquela que melhor atenderá às necessidades locais. Esse processo tem atingido
alto índice de mobilização popular. É também o cenário ideal para que as disputas por
espaço social e de negociação de demandas com o Estado apareçam. A comunidade ou
bairro que mais se articular na região decide por todos. Isto não significa dizer que a maioria
das pessoas da região seleciona as necessidades a serem atendidas. Apenas que a maioria
dos votos computados seleciona a obra em nome do coletivo, o que indica a relevância do
grau de organização dos grupos para influenciar o processo de escolha. Os bairros com
menor habilidade de organização ficam condicionados à decisão tomada pelos moradores
de outros bairros. Destarte, o acesso aos direitos sociais fica vinculado ao fato de pertencer
a algum movimento bem estruturado e politicamente fortalecido.
O orçamento participativo (OP) visa incluir na gestão pública a participação da sociedade
civil, numa tentativa de torná-la mais ampla (computadores foram colocados nas escolas e
órgãos administrativos da Prefeitura, com a presença de monitores, para que os votantes
pudessem receber auxílio, se necessário). No modelo criado em Belo Horizonte, há espaço
para que grupos normalmente marginalizados nas questões das cidades possam discutir
obras de seu interesse, como ocorre na participação das vilas e favelas no OP e, com os
sem-casa, no OP Habitação. Tais movimentos populares são contemplados com outros
programas do poder público, mas é a sua participação efetiva na escolha do tipo de
investimento que deve ser feito que democratiza, realmente, o processo de gestão dos
recursos públicos e da política social local. Sua inclusão na sociedade civil seria incompleta
se não pudessem opinar, agir, decidir juntamente com os outros segmentos sociais mais
reconhecidos e, normalmente, de melhor renda. A democracia se efetiva somente da
cidadania participativa, não do recebimento de benefícios por meio do Estado. Se os
indivíduos vêem suas necessidades, sem contudo intermediarem o processo de escolha do
que será feito na polis, não se pode, então alcunhar o Brasil como Estado Democrático de
Direito. É inviável o exercício da democracia sem a concomitante prática da cidadania, de
forma autônoma. E esta, autonomia depende do reconhecimento, pelo Estado, dos
indivíduos que a exercem, assim como da concessão por este de espaço para a atuação de
todas as parcelas da sociedade civil na esfera pública.
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Os sistemas plurais de direito
Se alguma parcela da sociedade civil não alcança essa autonomia, bem como um espaço
respeitado para as atividades privadas que considera necessárias, a tendência é que uma
microssociedade se origine a partir disso. Novos paradigmas de organização social são
estruturados por esses grupos que, de alguma maneira, estejam excluídos do exercício da
cidadania dentro do paradigma oficial. Esses indivíduos redigem um código próprio de
conduta moral, valores éticos e, até mesmo, dotam-se de um direito criado por eles,
formando um outro sistema normativo coexistente com o sistema estatal. Essa outra
sociedade civil, fora dos limites definidos pelo Estado, ressignifica o conceito de
legitimidade, inclusive. Dentro dos novos espaços de discussão são legítimos os meios
institucionalizados pelo grupo, muito embora possam, com isso, permanecer alheios ao
critério de legalidade estatal. Elementos como autoridade, norma e sanção ordenam-se
segundo uma lógica própria do microssistema ao qual pertencem. Outro ponto a destacar-
se é a ausência de vinculação a território, algumas vezes. Se a autoridade do Estado se
exerce dentro de suas fronteiras sobre as pessoas que à sua lei estão submetidas, no caso
de sistemas normativos plurais, ou extra-estatais, a territorialidade nem sempre faz parte do
quadro de composição dessa nova estrutura. Por exemplo, em um movimento de luta pela
terra, a questão das fronteiras é menos importante do que a identidade de valores do grupo,
verdadeiro motivador de sua unidade. Esses grupos podem se deslocar de ambiente sem se
desconstituírem. Já em uma favela ou comunidade, o território se torna fator importante,
especialmente quando existem conflitos sobre sua posse, seja entre os próprios moradores
ou entre estes e facções criminosas.
A existência de sistemas plurais de direito, como forma de luta pela cidadania em um
modelo falho de democratização, faz com que a fragmentariedade da sociedade civil se
torne mais clara. Sem autonomia dentro do paradigma oficial de participação política, esses
atores sociais procuram alcançá-la em um espaço não formal. Entretanto, essa
reestruturação social não garante, por si só, a democracia. Muitos grupos extra-estatais
impõem as suas normas por meio da violência, física ou psicológica, sobre os indivíduos sob
o seu poder. Nem todos exercem uma autoridade efetivamente legítima, ainda que
considerando-se esse conceito em sua acepção interna ao grupo. Em razão dessas
diferenças, conforme defendido em dissertação de mestrado defendida perante a banca da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, em 2005, enumera-se três tipos de
extra-estatalidade que possam representar essa fragmentação da sociedade civil perante o
Estado e sua forma monista de direito:
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I – Extra-estatalidade positiva Esta modalidade é abordada por Max Weber em seu trecho de Economia e Sociedade a respeito da sociologia do Direito. Refere-se aos grupos que, não obstante erijam microssistemas sociais além da ordem jurídica estatal, são por esta recepcionados. Configuram uma sociedade inserida dentro da sociedade macro e possuem regras próprias que os unem por meio de um Direito legítimo por eles formulado. Sua legitimidade advém do seu reconhecimento pelos indivíduos que integram essa realidade e se submetem às suas regras. Mas, neste caso particular de extra-estatalidade a ação normativa desses grupos é autorizada pelo poder estatal. É o caso dos condomínios, das regras disciplinares militares, dos estatutos de associações civis e profissionais e, dos códigos de condutas dos clubes. Há um espaço para a atuação da norma pública e outro para a norma particular. Ambas dentro dos limites propostos pela burocracia do Estado para o exercício do Direito. (...) II – Extra-estatalidade não negativa
(...) Esses grupos criam um conjunto específico de normas para a sua organização, chefiados por algum de seus integrantes, o qual possua maior conhecimento. Como leciona Cárcova, dessa forma evitam a anomia de sua pequena “sociedade particular”, mantendo a coesão importante à sua sobrevivência no meio social macro (CÁRCOVA, 1998. p. 59). Apesar de criarem normas sem a permissão do Estado, o reconhecimento destas pelo grupo, que as obedece e aceita suas sanções, confere-lhes legitimidade interna. Portanto, nesse espaço social os dois sistemas jurídicos são utilizáveis: a) o Direito legítimo racional-legal do Estado, que abrange todo o seu território, inclusive o espaço extra-estatal e possibilita a interação desses indivíduos com a sociedade formal; b) o Direito internamente legítimo, extra-estatal, formulado pelos membros daquele microssistema e à parte daquela mesma realidade. (...) E há, ainda, uma proposital passividade dos mecanismos oficiais em combater esse pluralismo, porque o líder comunitário exerce a útil função de ser o canal de integração entre os habitantes de Pasárgada e a cidade da qual estão formalmente excluídos. Esse autor denomina esse modo de atuação como um exercício não profissional do Direito, contrariando o modelo burocrático em que a presença dos especialistas é imprescindível. (...)
III – Extra-estatalidade negativa
Contudo, alguns grupos exercem um controle violento sobre as comunidades, como no caso do tráfico de drogas, e sobre outros segmentos sociais. Ou mesmo aqueles responsáveis pelo exercício de um poder paralelo dentro das prisões. Existe, nestes casos, um conjunto de normas próprias dessas facções coexistente com o Direito oficial, mas cujo sistema obriga de modo mais violento à sua obediência, embora tais normas possuam reconhecimento interno de sua autoridade. De modo diferente da extra-estatalidade não negativa, o poder aqui se assegura pelo uso de ameaças e violência. Os indivíduos não se sujeitam espontaneamente à obediências a regras por eles também acordadas. São reprimidos e impedidos de recorrerem ao Direito estatal ou de participarem da elaboração dessas normas extra-estatais de modo mais amplo, como ocorre nos movimentos sociais e políticos. (SOUZA, 2005, p. 45-47)
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Esses sistemas fragmentam a sociedade civil também porque: a) falta cientificidade ao
processo de elaboração de suas normas, inexistindo ritos especificados ou técnicas
legislativas que atribuíssem universalidade, ou ao menos generalidade, às suas normas; b)
sua organização não burocrática dificulta o estabelecimento de limites claros para os que
exercem a autoridade, além de muitas vezes ocuparem esse posto dentro do grupo em
razão da força de uma dominação carismática, e não de conhecimento ou qualificação para
administrar a vida desse microssistema; c) as sanções previstas baseiam-se em valores
comuns do grupo, em um entendimento particularizado do que seria "justiça", assim como,
às vezes, as penas podem vir a serem gravosas, considerando-se o delito, e desiguais,
conforme o papel social do indivíduo dentro desta "pequena sociedade".
Nesta análise, portanto se percebe que falta uma real autonomia dos grupos dentro do
modelo oficial e, também, que a fragmentariedade da sociedade civil, seja por haver graus
de participação distintos para os vários estratos ou porque a concessão das prerrogativas
inerentes à cidadania não se efetiva, cria uma dicotomia entre o conceito atribuído a esse
termo pelo Estado e aquele conferido pelos indivíduos dos diversos microssistemas que
compõem o cenário brasileiro atual. Sente-se que há uma pressão sendo exercida por esses
grupos para sua inclusão, como outras parcelas da sociedade se empenham em reformular
o modelo de participação existente, ao invés de tentarem dele fazer parte. É o modo de
adaptação social designado por Merton como rebelião (SABADELL, 2002, p. 85). A
sociedade propõe um novo modelo, nas palavras de Merton, novas metas culturais que
serão alcançadas por outros meios institucionalizados, distintos dos hoje existentes. Na
Brasil atual essa é uma realidade: existem grupos que utilizam meios inadequados e cujo
intuito é propiciar sua inclusão e, até a adequação dos meios empregados, incorporando-os
aos que o Estado oferece (Ex.: justiça comunitária, orçamento participativo, mutirão
autogerido, escolas indígenas bilíngües). Porém, alguns segmentos desejam transformar as
próprias metas estabelecidas pelo modelo oficial por outras que representem os valores
culturais por eles defendidos, como a ação dos curdos em relação à política iraquiana, no
presente momento. De qualquer modo, os diferentes espaços sociais passaram a se tocar,
notadamente no final do séc. XX, e, apesar desta proximidade geográfica, persiste uma
considerável distância relacional que ainda precisa ser vencida.
A teoria de Donald Black e o conceito de distância relacional
Em sua teoria sociológica sobre a epistemologia pura, o sociólogo norte-americano, Donald
Black constrói um modelo de análise que, por meio de cinco variáveis, pretende identificar a
distância relacional dos grupos ou indivíduos de uma sociedade. São elas: controle social,
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estratificação, morfologia, cultura e organização. Assim, com o seu uso se há de determinar
os grupos que mais distanciam do parâmetro estatal e as possíveis causas desse
afastamento. No que concerne ao controle social a que esses grupos ou indivíduos se
submetem, Black discorre sobre a possibilidade de coexistência de dois estilos distintos em
uma mesma sociedade e propõem uma metodologia pela qual seria possível aferir-se,
inclusive quantitativamente, qual desses estilos prevaleceria em determinadas
circunstâncias. Para representar o controle social do Estado, Black escolhe como parâmetro
a lei (law, lei, de modo amplo; direito positivo elaborado pela estrutura estatal). Esta será a
base de comparação com qualquer outro estilo de controle, segundo o autor, observando-se
que: “Law is stronger where other social control is weaker” (BLACK, 1980. p. 107 – A lei é
forte onde outro controle social é fraco. Trad. nossa).
A variável estratificação não perquire se o Estado trata melhor quem possui maior riqueza.
Outrossim, avalia se a ausência dessa riqueza influencia o acesso aos bens e serviços
públicos, como a justiça. Por exemplo, Black afirma que a incidência de maior quantidade de
lei ocorre, como qualquer outro acesso, conforme o estrato social. Os estratos menores
receberiam menor incidência de normas – possibilidade de invocar a lei – por carecerem de
recursos para pagar a defesa, contratar peritos, e outras necessidades jurídicas, provocando
o seu distanciamento em relação ao direito estatal. Isso explicaria, em nossa opinião,
porque o pluralismo jurídico surge tão forte no séc. XX, período histórico em que a
sociedade civil, ainda que fragmentária, investe na luta por suas demandas. Se o acesso a
um bem ou serviço público é obstaculizado, cria-se "novo caminho" (como no caso visto
acima do gari comunitário).
A variável morfológica ou horizontal é empregada por Black para indicar o grau de
diferenciação entre as pessoas de um mesmo patamar na estratificação social, tendo em
vista os valores comuns determinados para aquela sociedade. Assim, mensura a quantidade
de respeitabilidade que um grupo ou indivíduo alcança dentro desse espaço social. Quanto
maior o nível de intimidade/proximidade em relação ao modelo oficial instituído, mais
respeitabilidade o grupo obtém quanto às suas ações. Em relação aos movimentos sociais
isto nos permite inferir que, quanto maior será o grau de reconhecimento perante o Estado,
mais demandas serão consideradas válidas e, portanto, atendidas.
O conteúdo da variável cultural é a distância relacional em relação aos valores comuns
produzidos pela sociedade civil, no caso, a parcela desta apta a defini-los. Observa o grau
de afastamento entre a periferia e o centro, sendo este o produtor dos parâmetros culturais
legítimos, no modelo oficial. O pluralismo, em suas múltiplas faces, nasce exatamente dessa
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tentativa de reconhecimento cultural da periferia pelo centro (Ex: a aceitação do funk como
parte do acervo musical brasileiro). Esta variável mensura a quantidade de cultura formal
adquirida, bem como a freqüência dos grupos ou indivíduos a esta, indicando o grau de
convencionalidade do comportamento social e, em sentido contrário, de marginalidade. Em
diversas situações, o que ocorre não é a negação da cultura institucionalizada, mas a
dificuldade de acessá-la (custo, preconceito social, vestuário, localização dos bens culturais,
etc.). Já quanto à variável organizacional ou corporativa, Black afirma que a capacidade de
articulação e integração dos grupos é determinante para fortalece o poder de defesa destes
em sua relação com o corpo social. No caso dos movimentos sociais, esta habilidade é
essencial para se pleitear as demandas necessárias e exigir respostas do poder público.
Vimos acima o caso do orçamento participativo.
Conclusão
Herdamos do Estado de Direito moderno um paradigma segundo o qual todas as mudanças
sociais somente ocorreriam por meio da mudança das leis, por isso durante tantos decênios
se valorizava o atendimento das necessidades básicas através do poder público. Por isso o
direito possuía o papel social de garantir a legitimidade do Estado por meio das leis. O
século XX, no entanto corroeu esta idéia com seus dilemas e contradições, demonstrando a
distância relacional que marcava as relações entre o modelo estatal e os diversos grupos
que formavam, ainda que fragmentariamente, a sociedade civil. Percebeu-se que a norma
jurídica não possuía o condão de conformar o comportamento humano aos seus
parâmetros, mas que a ausência do Estado em questões cruciais e a deficiente democracia,
exercida de cima para baixo, poderiam estimular o aparecimento de microssociedades
dentro de seu território. A cidadania "concedida" não é autônoma nem participativa,
prejudicando o processo de integração dentro da sociedade civil. Se no Estado monista a lei
apenas emanava de uma estrutura legal burocrática, hoje existem sistemas extra-estatais
não burocráticos coexistindo com o Estado, estabelecendo novas "fronteiras" sociais e,
somando-se a isso, instaurando um novo controle social por meio de suas normas
particulares.
No último século o pluralismo veio demonstrar que a sociedade civil "não oficial" pretendia
empenhar-se em transformar o estado das coisas para incluir-se definitivamente. A fé na
capacidade política do Estado de representar politicamente seus cidadãos sofreu duro abalo
ao não conseguir concretizar as necessidades primordiais dos indivíduos que haviam cedido
sua liberdade por maio do pacto social. A princípio, essa incapacidade de oferecer respostas
foi simbolicamente suprida pelo aumento quantitativo do número de normas jurídicas e de
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instrumentos de controle social dos comportamentos desviantes – aqueles que utilizassem
meios considerados ilegítimos para alcançar as metas da sociedade (LOPES, 1997, p. 98-
99). Posteriormente, acreditou-se no Estado Provedor, responsável por suprir as
necessidades básicas sem consulta à sociedade, mas agindo por ela (não com ela). Com o
tempo e o insucesso dessas medidas, foi preciso redescobrir qual a função do Estado, e
conseqüentemente do direito, na sociedade atual, posto que este lhe serve como
instrumento de efetivação da democracia e para assegurar as prerrogativas básicas da
cidadania. Há para os excluídos a necessidade de cidadania, de recuperar direitos
fundamentais e propiciar a criação de novos espaços de emancipação do indivíduo.
Frustrados no acesso aos bens coletivos (educação, saneamento, trabalho, alimentação,
etc.) ou por não serem reconhecidos no modelo oficial (minorias, por exemplo) esses grupos
agem no sentido de garantir, enquanto parcela da sociedade civil, a sobrevivência do
microssistema ao qual pertencem. Desse modo, pretendem reverter o quadro danoso em
que se encontram, substituindo-o por outro mais benéfico. Isto faz parte do empowerment,
que lhes é possível por meio da autonomia que alcançam enquanto sociedade civil,
amplamente considerada, e lhes atribui poder para participar decidir da vida política e para
decidir assuntos relevantes para seu cotidiano. Todavia, sem que a isto corresponda o
afastamento do Estado de suas funções, como ocorreu no neoliberalismo.
Seja qual for o caminho a ser adotado, o Estado precisará dialogar com todas as parcelas
da sociedade civil fragmentada para conseguir manter a unidade de poder. Esta própria tem
estabelecido novas metas para o destino político do país e se esforçado por inseri-las na
política do estatal. O incremento da participação popular nos últimos anos é, sem dúvida
alguma, uma conquista desses segmentos mais distantes do centro de poder e cultura.
Urge, agora, que o Estado desenvolva instrumentos hábeis que permitam a inserção das
idéias e valores advindos dos microssistemas específicos, já que estes possuem autoridade
e legitimidade significativas perante a sociedade em geral para impor alguns de seus
valores. Ambos os lados deverão ceder em parte nesse processo de negociação do acesso
democrático. E a proposta final pode tanto ser a inclusão dos movimentos sociais,
integrando-os ao modelo oficial, como o surgimento de um novo paradigma estatal no qual
esta inclusão e a participação dos indivíduos se realize sobre uma estrutura inteiramente
nova, fundada pela sociedade civil.
Referências bibliográficas
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