sobre tempos e espaços da escola

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639 Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 639-651, Maio/Ago. 2005 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> SOBRE TEMPOS E ESPAÇOS DA ESCOLA: DO PRINCÍPIO DO CONHECIMENTO AO PRINCÍPIO DA SOCIALIDADE MARÍLIA GOUVEA DE MIRANDA * RESUMO: Este artigo discute as propostas de organização do ensino em ciclos de formação, buscando apreender os pressupostos subjacen- tes à racionalidade das reformas educacionais em curso no Brasil. En- tende que essas propostas implicam uma mudança dos princípios que regem a organização dos espaços e tempos da escola pública: a escola constituída no princípio do conhecimento estaria dando lugar a uma escola orientada pelo princípio da socialidade. Trata-se de uma mudan- ça na maneira de conceber a escola, com importantes implicações para a relação educação e sociedade. É abordada a diversidade de significa- dos atribuídos à idéia de ciclos por parte dessa literatura, bem como a ausência de uma discussão clara sobre seus fundamentos. Conclui que essa inovação deva ser mais debatida, uma vez que se constata que a maior parte das publicações sobre o tema está orientada para a sua jus- tificação. Palavras-chave: Ciclos de formação. Reforma educacional. Racionalida- de. Política educacional. ABOUT THE TIME AND THE SPACE OF THE SCHOOL: FROM THE PRINCIPLE OF KNOWLEDGE TO THE PRINCIPLE OF SOCIABLENESS ABSTRACT: This article discusses the proposals of the education or- ganization in terms of formation cycles. Its aim is to understand the underlying principles related to the rationality of the educational re- forms in course in Brazil. It understands that these proposals imply a change in the principles that conduct the organization of the spaces and times of the public school: the school built on the principle of the knowledge would be giving place to a school guided on the principle * Doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e profes- sora da Universidade Federal de Goiás (UFG) e da Universidade Católica de Goiás (UCG). E-mail: [email protected]

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  • 639Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 639-651, Maio/Ago. 2005Disponvel em

    Marlia Gouvea de Miranda

    SOBRE TEMPOS E ESPAOS DA ESCOLA:DO PRINCPIO DO CONHECIMENTO AO

    PRINCPIO DA SOCIALIDADE

    MARLIA GOUVEA DE MIRANDA*

    RESUMO: Este artigo discute as propostas de organizao do ensinoem ciclos de formao, buscando apreender os pressupostos subjacen-tes racionalidade das reformas educacionais em curso no Brasil. En-tende que essas propostas implicam uma mudana dos princpios queregem a organizao dos espaos e tempos da escola pblica: a escolaconstituda no princpio do conhecimento estaria dando lugar a umaescola orientada pelo princpio da socialidade. Trata-se de uma mudan-a na maneira de conceber a escola, com importantes implicaes paraa relao educao e sociedade. abordada a diversidade de significa-dos atribudos idia de ciclos por parte dessa literatura, bem como aausncia de uma discusso clara sobre seus fundamentos. Conclui queessa inovao deva ser mais debatida, uma vez que se constata que amaior parte das publicaes sobre o tema est orientada para a sua jus-tificao.

    Palavras-chave: Ciclos de formao. Reforma educacional. Racionalida-de. Poltica educacional.

    ABOUT THE TIME AND THE SPACE OF THE SCHOOL:FROM THE PRINCIPLE OF KNOWLEDGE TO THE PRINCIPLE OF SOCIABLENESS

    ABSTRACT: This article discusses the proposals of the education or-ganization in terms of formation cycles. Its aim is to understand theunderlying principles related to the rationality of the educational re-forms in course in Brazil. It understands that these proposals imply achange in the principles that conduct the organization of the spacesand times of the public school: the school built on the principle of theknowledge would be giving place to a school guided on the principle

    * Doutora em educao pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP) e profes-sora da Universidade Federal de Gois (UFG) e da Universidade Catlica de Gois (UCG).E-mail: [email protected]

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    of the sociableness. It deals with a change in the way of conceiving theschool with important implications in the relationship between edu-cation and society. The diversity of meanings attributed to the idea ofcycles as stated in this literature is questioned, as well as the absence ofa clear explanation about its principles. It concludes that this innova-tion must be more debated since most of publications on the subjectare guided by its justification.

    Key words: Formation cycles. Educational reform. Rationality. Edu-cational politics.

    retrica em defesa de reformas na educao, que vai muito almdos documentos oficiais, quer transformar coraes e mentes. Omago das reformas no est nas mudanas objetivas, formais e

    tcnicas das polticas pblicas, mas na consolidao de uma racionalidadeque dever orientar a educao de massas no mundo ocidental globa-lizado. Justifica-se, assim, um grande esforo de concertacin medianteo qual se deve aderir a uma nova concepo de educao. Est em causa,portanto, uma mudana na educao de massas que, se no chega a sernova em seus fundamentos, aparece aos olhos de muitos como absoluta-mente inovadora, atual e necessria.

    A organizao do ensino em ciclos de formao ou ciclos de apren-dizagem exemplar do ponto de vista dessa discusso. Vrios municpi-os e estados brasileiros vm adotando esse modelo de organizao escolarem sua rede de ensino e no tm sido poucos os esforos empreendidospara promover a adeso de professores, pais, alunos e de outros educa-dores a uma inovao dessa magnitude. Afinal, trata-se de uma pro-posta que modifica no s a organizao escolar, mas a compreenso deeducao em seu significado social mais amplo. Essa importante mudan-a no modo de conceber a educao pblica, que define o destino de todauma gerao de crianas e adolescentes, ainda no foi suficientemente dis-cutida, uma vez que os estudos publicados sobre essa questo no Brasilso, em sua quase totalidade, vinculados justificao e fundamentaodas propostas em curso.

    Ao tomar a questo das polticas pblicas voltadas para a organi-zao do ensino por ciclos de formao, pretende-se, neste artigo, apre-ender os pressupostos subjacentes racionalidade do pensamento re-formista na educao contempornea. Busca-se, particularmente, prem causa a mudana que vem se verificando na organizao dos espa-

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    os e dos tempos da escola pblica: a escola constituda sob o princpiodo conhecimento estaria dando lugar a uma escola orientada pelo princ-pio da socialidade. O termo socialidade est sendo adotado aqui pararessaltar que a escola organizada em ciclos se situa como um tempo/espao destinado convivncia dos alunos, experincia de socialidade,distinguindo-se dos conceitos de socializao e de desenvolvimento dasociabilidade tratados pela sociologia e pela psicologia.

    Vista de uma perspectiva liberal clssica, a escola uma instnciasocializadora que tem a incumbncia de preparar as novas geraes paraa vida social. Isso se daria mediante um processo pelo qual as novas gera-es entram em contato com a tradio, com valores e saberes do mundoque as recebe, para, a partir da, imprimirem suas prprias referncias,que podero ser mais adaptativas e conservadoras ou mais independentese autnomas. Essa escola foi orientada para o ensino, sustentando-se emuma didtica sobre a arte de tudo ensinar a todos, atenta s necessidadese vicissitudes psicolgicas de um aluno que desponta como indivduo emuma sociedade que disfara mal, sob o manto da igualdade de direitos,sua realidade injusta e excludente.

    Essa concepo de escola nunca chegou a se efetivar plenamenteporque suas promessas de incluso social sempre foram uma impossi-bilidade para as classes trabalhadoras e mesmo os filhos das elites notiveram como escapar de uma escolarizao que jamais deixou de re-produzir internamente as contradies do mundo burgus, sendo obri-gada a conviver com a violncia, com a desigualdade e com a injustia., assim, impossvel pensar essa escola dissociada das contradies his-tricas nas quais ela se constituiu e se consolidou.

    A sucesso de reformas efetivadas no sculo XX nada mais foi queuma seqncia de tentativas malogradas de explicar e solucionar os pro-blemas da escola moderna, que passa a ser identificada por seusdetratores como tradicional. Novos modelos, propostas, teorias, jus-tificaes apresentam-se e vo, pouco a pouco, consolidando uma mu-dana no modo de conceber a escola e fortalecendo o rechao a tudoque se apresenta como tradicional, o que, afinal, no uma peculia-ridade da educao, mas uma caracterstica da cultura do sculo XX: orepdio tradio (Arendt, 1979; Adorno, 1995).

    O princpio que vem orientando toda a concepo e a organiza-o escolar seriada o conhecimento, porque o que rene os alunos e

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    configura a dinmica do processo ensino-aprendizagem a aquisio dedeterminados conhecimentos e processos mediados pelos professores. Aorganizao escolar , assim, definida pelo pertencimento a uma deter-minada srie fixada arbitrariamente como anual, na qual so agrupadosos alunos que j sabem e os que ainda no sabem determinados con-tedos. Os que no logram essa aprendizagem so retidos, passando aconviver com outro grupo de alunos com aquisies e dificuldades que,em tese, seriam mais parecidas com as suas, ainda que em defasagemcronolgica. H uma preocupao com o desenvolvimento social doaluno, mas esse desenvolvimento subordinado ou decorrente do pro-cesso de ensino e aprendizagem. Como j tem sido muito discutido, osmecanismos de reprovao podem gerar graves danos auto-estima doaluno, promover a discriminao e a excluso definitiva do aluno doprocesso de escolarizao.

    O princpio que se sustenta na organizao escolar em ciclos deformao contrape-se frontalmente ao anterior e acarreta profundas al-teraes. Defende que os alunos sejam agrupados em ciclos e que o cri-trio de incluso se deva operar por faixa etria ou por etapa de desen-volvimento humano. Para assegurar que os alunos permaneam naescola, dever evitar-se que sejam retidos por exigncias externas que seinterponham ao seu desenvolvimento, como ocorre nas escolas subme-tidas ao critrio do conhecimento.

    Assim, o cerne da argumentao em defesa da organizao escolarem ciclos (de aprendizagem, de formao ou de desenvolvimento) umamudana radical no conceito de reprovao. A sustentao dessa reformaadvm da necessidade de se fazer com que os alunos no mais sejam ex-cludos da educao formal, o que se daria mediante a retirada dos meca-nismos de aprovao/promoo ou reprovao/reteno/excluso.

    Isso implica mudar o conceito de escola ou, o que d no mesmo, anoo de socializao mediada pela escola, que deixa de ser orientada porum critrio, digamos iluminista, de que a emancipao dos indivduosdeva ocorrer mediante a aquisio de conhecimentos, saberes, tcnicase valores que lhes permitam viver em uma sociedade mediada por essesconhecimentos, saberes, tcnicas e valores, passando a orientarem-sepor uma noo de socialidade que prescinde da mediao do conheci-mento como sua dimenso fundamental, sendo a socialidade per si oseu critrio. O importante que os alunos permaneam na escola, dis-

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    ponham de tempo e de espao para que possam desfrutar o que ela pos-sa lhes oferecer, inclusive a oportunidade de adquirir conhecimentos,mas no apenas isso ou no fundamentalmente isso: que eles possamviver ali e agora uma experincia de cidadania, de convivncia, de for-mao de valores sociais.

    A proposta de organizao por ciclos seria, assim, uma mudanano modo de conceber o processo de avaliao escolar que se realizariamediante uma profunda alterao no conceito de tempo e de espaona escola. Se um ciclo , segundo nos diz o Dicionrio Aurlio, umasrie de fenmenos que se repetem numa ordem determinada, estsendo proposto que seja dado mais tempo para que, durante a perma-nncia naquele espao, os alunos possam se beneficiar mais da escola,que sejam completados seus ciclos, que os crculos se fechem.

    Se a seqncia dos anos que se sucedem no regime seriado apare-ce como uma cronologia estril e arbitrria, a idia de ciclos contmum misterioso sentido que sugere um certo naturalismo teleolgico: cr-culos que se fecham, processos que naturalmente se completariam, eta-pas que se cumprem seguindo uma finalidade que lhes seria inerente.A racionalidade que sustenta a idia de ciclos no , portanto, clara.Ciclos de qu? De aprendizagem, de formao, de desenvolvimento? Oque faz girar o ciclo? Seria com base em um critrio antropolgico,como etapas naturais do desenvolvimento humano que se cumprem?Ou seria um critrio psicolgico de desenvolvimento, de disposiesetrias para a aprendizagem? Ou seria um princpio tico?

    As respostas a estas questes variam muito de autor para autor.Perrenoud (2004, p. 35) prope uma definio mnima: Um ciclode aprendizagem um ciclo de estudos no qual no h mais reprova-o. J Andra Krug (2002, p. 17), referindo-se reforma da Secreta-ria Municipal de Educao de Porto Alegre, lembra que os ciclos deformao so organizados segundo as fases de formao: infncia (6 a8 anos); pr-adolescncia (9 a 11 anos) e adolescncia (12 a 14 anos).A respeito de um trecho da proposta em que se caracteriza o primeirociclo como uma transio do estgio pr-operacional para operatrioconcreto, numa concepo inspirada em Piaget, ela adverte que no sedeve entender que essas caracterizaes cognitivas se dem naturalmen-te, pois so construdas a partir de atividades pedaggicas diferenciadasproporcionadas pela escola. Ressaltando o conceito de Vigotski (1996)

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    relativo s idades-crise (ps-natal, 1 ano, 3 anos, 7 anos, 13 anos e 17anos), ela considera que existe um desenvolvimento possvel a cada faseda formao da criana e do adolescente. Lembra ainda Wallon e seufamoso plano de reforma da educao francesa aps a Segunda GuerraMundial, elaborado em 1946-1947 (Plano Langevin-Wallon, 2000),que teria sido precursor da escola em ciclos de formao humana ao pre-ver a organizao do ensino em trs ciclos: o primeiro deles refere-se scrianas de 3 a 11 anos (incluindo a escola maternal), sendo fixada aobrigatoriedade a partir de 6 anos; o segundo destinado s crianas de11 a 15 anos e o terceiro, de 15 a 18 anos. Tambm Elvira Souza Lima,fundamentada em Vigotski e Wallon, retoma a proposta deste ltimo,lembrando que o princpio organizativo dos ciclos orientava-se:

    pelas caractersticas do desenvolvimento humano, respeitando cada pero-do de formao sem antecipar formas de atividade e aquisies e sem for-ar o educando a trabalhar com o conhecimento de formas inadequadas,ou por serem precoces (...) ou por terem j sido ultrapassadas no processode desenvolvimento do aluno (...). Lima, 2002, p. 13)

    Miguel Arroyo (1999, p. 158), em uma viso menos ancorada napsicologia, tambm situa sua noo de ciclos nas temporalidades do de-senvolvimento humano, na especificidade de seus tempos ciclos: Asidades da vida, da formao humana passam a ser o eixo estruturante dopensar, planejar, intervir e fazer educativos, da organizao das ativida-des, dos conhecimentos, dos valores, dos tempos e espaos. Ainda queos fundamentos dessa concepo antropolgica de desenvolvimento hu-mano no restem claros, na proposta implementada pela Prefeitura Mu-nicipal de Belo Horizonte, a Escola Plural, os ciclos foram assim organi-zados: 1o ciclo (infncia), para alunos de 6 a 9 anos de idade; 2o. ciclo(pr-adolescncia), de 9 a 12 anos; 3o. ciclo (adolescncia), 12 a 14 anos.

    Mais cauteloso, Luiz Carlos de Freitas (2003) afirma no rejei-tar essa concepo de ciclo com base nas fases de desenvolvimento dascrianas mas busca expandi-la, adicionando um outro modo de con-ceber a dinmica da formao do aluno e que contrarie tanto a lgicada excluso como da submisso (p. 55). Fundamentando-se nopedagogo russo Pistrak (autor tambm muito citado por Krug, 2002),Freitas lembra que, para alm do lado psicolgico do desenvolvimento,h tambm o lado social da formao.

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    Seria engraado negar, claro, que nas diferentes idades a criana reage deformas diferentes aos fenmenos externos, compreende diferentemente.Evidentemente, cada idade tem suas peculiaridades, devemos lev-las emconta, e muito seriamente, na escola. Mas da incontestabilidade dessas ca-ractersticas gerais da criana predefinio dos interesses da criana pelasua idade h uma grande distncia. Essas caractersticas gerais do crebroda criana so apenas a forma na qual se fundem os interesses da criana,preenchida pela vida externa, pela vida do ambiente social da criana, aforma na qual entra um contedo determinado. Esse contedo, em ne-nhum grau, depende das caractersticas fisiolgicas do crebro em desen-volvimento: ele, por inteiro, o reflexo de fenmenos externos da vida.(Pistrak, 1924, apud Freitas, 2003, p. 57-58)

    Os ciclos no devem ser, portanto, uma mera soluo pedaggi-ca, pois seriam compreendidos como instrumentos de desenvolvimen-to de novas relaes sociais que viriam se contrapor s relaes vigentes,como instrumentos de resistncia:

    os tempos e espaos da escola so colocados a servio de novas relaes depoder entre o estudante e o professor, com a tarefa de formar para a vida,na atualidade, propiciando o desenvolvimento de novas relaes entre aspessoas e entre as pessoas e as coisas. (Freitas, 2003, p. 67)

    Haveria, ainda, outras propostas de organizao de ciclos, algumasdelas identificadas como mera proposta de progresso continuada, maispreocupadas com a correo das estatsticas de fluxo escolar, mantendouma aparente estrutura de ciclos, como freqentemente criticada a pro-posta da Secretaria de Educao do Estado de So Paulo. Constata-se naliteratura aqui discutida uma reiterada preocupao em distinguir essasltimas propostas de outras que tambm defendem a organizao escolarem ciclos de formao. Freitas (2003, p. 73-76) apresenta um amploquadro comparativo das propostas, identificando as de progresso conti-nuada como um projeto histrico conservador de otimizao da escolaatual, imediatista e que visa ao alinhamento da escola s necessidades dareestruturao produtiva. J a escola de ciclos reconhecida como umprojeto histrico transformador das bases de organizao da escola e dasociedade, de mdio e longo prazo, que atua como resistncia e fator deconscientizao, articulado aos movimentos sociais (p. 73).

    A necessidade de distinguir essas propostas ainda mais prementequando se trata de discutir a sua implantao como proposta oficial para

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    toda uma rede de ensino. interessante observar que um autor comoPhilippe Perrenoud, cujas concepes tm referendado propostas refor-mistas em vrios lugares do mundo, em um artigo publicado no Brasilem 1999, mostrou-se cauteloso com relao adoo sistemtica da es-cola de ciclos, ao afirmar que at ento nenhum sistema educacional delngua francesa havia adotado a organizao escolar sem sries, que pro-mova apenas ciclos de aprendizagem, revelando seus grandes temorescom relao implantao de uma reforma com essas caractersticas: Nosomos capazes, ainda, de faz-los funcionar promovendo uma rupturaclara e definitiva (...) (Perrenoud, 1999, p. 8). Em obra mais recentesobre o assunto (2004, p. 26), esse autor lembra que, apesar de os ciclosterem sido introduzidos na Frana j em 1989, essa proposta no foi le-vada at o fim. Tambm na Blgica, no Quebec e em vrios cantessuos foram introduzidos ciclos de dois anos, s vezes de maneira preci-pitada, sem bases conceituais slidas e sem um grande questionamentosobre o sentido dessa inovao, provavelmente porque a reforma do cur-rculo os preocupava mais. Para tratar das reformas orientadas para osciclos de aprendizagem, ele distingue trs tipos de reformas educacionais:as de primeiro tipo transformam as estruturas escolares; as de segundotipo, os currculos; e as de terceiro tipo, as verdadeiramente importantes,so aquelas que se dirigem aberta e institucionalmente para o cotidianodos alunos e professores nas classes e nas escolas (1999, p. 11).

    No nos enganemos, a introduo dos ciclos de aprendizagem uma reforma de terceiro tipo, ainda que aparentemente ela se apresen-te como uma reforma de estrutura e de currculo. No final da contas,so as prticas profissionais que preciso transformar. Os valores, asatitudes, as representaes, os contedos, as competncias, a identida-de e os projetos de cada um so, portanto, decisivos. Trata-se daquiloque os tecnocratas chamam de fator humano, que passa pela forma-o (Perrenoud, 1999, p. 11).

    Tambm Freitas (2003, p. 70) revela sua preocupao com a im-plantao sistemtica de organizao das escolas por intermdio dos ci-clos: Em nossa opinio, os ciclos no devem ser implantados como po-ltica pblica que determine em massa sua adoo. (...) No se devefazer experimentos em redes inteiras. Ante essa prudente advertnciade Freitas e lembrando as imensas dificuldades de implantao da edu-cao seriada na escola brasileira (e no na escola europia, lembrandoos cuidados de Perrenoud), deve-se acrescentar o imenso risco de que,

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    ao final de todo um processo, no se distingam as decorrncias e impli-caes dos dois modelos de reforma contrapostos (progresso continuadae ciclos), em que pesem as intenes e os esforos de seus articuladores.O que haveria de comum nos dois projetos? Provavelmente o carter re-formista da proposta, a despeito de todos os limites estruturais que talperspectiva inexoravelmente contm, seja ela de carter liberal ou social-democrata.

    Na maioria dos autores consultados verifica-se uma propenso apromover mudanas na organizao e na cultura da escola, sem alterarseus condicionantes estruturais. Neste sentido importante lembrar umponto freqentemente ignorado quando se trata de reformular a escolae propor uma redefinio dos tempos e espaos escolares, o que tam-bm proposto por Freitas (2003): a escola de tempo integral. Ora, sea questo prover o estudante de mais tempo de tempo para a suapermanncia na escola, de tempo assistido, de tempo de convivncia,de tempo para sua aprendizagem , uma medida necessria no seriaaumentar o tempo dele na escola? Falar em mudar o tempo da escolano sentido de sua democratizao sem ampliar esse tempo no seria umgrande contra-senso?

    A grande aposta da reforma da escola organizada por intermdiodos ciclos incide sobre a mudana da cultura de alunos, professores,gestores e pais dos alunos. Seria fazer que se realize a reforma de terceirotipo citada por Perrenoud, aquela que implica mudanas estruturais, decurrculo e, sobretudo, do cotidiano de alunos e professores. Deve ser poresse motivo que grande parte das publicaes sobre os ciclos de formaoest orientada para promover o convencimento e a adeso dos professores reforma. Os argumentos que sustentam esse exerccio de convencimen-to j foram de certa maneira abordados aqui e no diferem da maioriados que so utilizados para promover outras modalidades de reforma: acrtica aos processos de avaliao; a prevalncia do novo sobre a tradi-o; a emergncia de uma nova noo de temporalidade; a prevalnciada aprendizagem sobre o ensino; a submisso ou completa anulao dateoria diante da prtica; a nfase na ao, na atividade e na experinciaimediata como instncia formadora; alm de uma forte referncia psi-cologia para dar conta dos processos de desenvolvimento do indivduo.

    Pode-se afirmar que a organizao escolar em ciclos prope umaalterao de fundo no modo de conceber a escola: deixa de orientar-sepor uma lgica vinculada aos processos de aquisio do conhecimento

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    (princpio do conhecimento) para orientar-se por uma outra lgica que, nafalta de um nome melhor, est sendo chamada neste artigo de princpioda socialidade, o qual prope que a escola deva ser uma instncia cuja fi-nalidade precpua seja promover a socialidade dos alunos, ou seja, efeti-va-se como um espao/tempo ao qual devam pertencer, constituir um lu-gar no mundo, deixando como secundria a tarefa de instru-los para omundo. O termo socialidade demarca, assim, um espao/tempo deconvivncia representado pela escola.

    Dessa forma, a mudana na maneira de conceber o tempo e o es-pao uma caracterstica muito importante da reforma educacional emcurso. interessante pensar que a escola tradicional tambm investena ampliao do tempo de escolarizao (e conseqentemente do espa-o) quando acredita que, apesar de todos os problemas que isso possaacarretar, a reprovao do aluno possa dar a ele mais tempo para recome-ar e aprender. E tambm o faz a partir de uma leitura psicolgica doprocesso de desenvolvimento e aprendizagem: reprovar dar tempo parao aluno amadurecer, desenvolver-se, exercitar-se, na convivncia com co-legas que esto em nveis prximos dos seus. Como seu princpio ori-entado pelo conhecimento, aposta na ordenao de dificuldades dos con-tedos e acredita que devagar que se vai ao longe e, assim, no sepode queimar etapas. Os problemas que decorrem dessa concepo jforam exaustivamente abordados pela literatura e no sero retomadosaqui, bastando lembrar que, como as condies para o pleno desenvolvi-mento dos processos de ensino-aprendizagem no se efetivam quando setrata da educao das massas, pois no h como incluir todos, so pro-duzidos mecanismos cruis de excluso e discriminao dos alunos dasclasses trabalhadoras. Como se no bastasse, esse modelo exauriu at mes-mo a disposio dos governos em continuar mantendo essa situao, sen-do que, de duas dcadas para c, as agncias multinacionais que engen-dram polticas educacionais em todo o mundo no se cansam de reclamardo dispndio de recursos que representa sustentar o lento fluxo dos alu-nos da rede pblica. Alm disso, no nos esqueamos, o mundo de hoje muito diferente daquele em que essa escola foi pensada e j no se podeperder tempo, porque, afinal, tempo tambm dinheiro.

    A concepo de uma escola organizada em ciclos, por sua vez, mo-difica a noo de tempo na escola de forma inversa: no h formalmenteum ganho no quantum de tempo em que o aluno ir permanecer na esco-la, pois, ao final, o perodo de escolarizao ser o mesmo. O que muda

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    que ele no ter um limite de tempo para avanar de uma etapa a outra,pois est livre das barreiras do princpio do conhecimento. Se o aluno no retido ou excludo pela reprovao nas sries escolares, ele poder perma-necer na escola para usufruir o que essa escola pode lhe oferecer. O princ-pio , portanto, da socialidade, da oportunidade de compartilhar a experi-ncia da escola, de viver o tempo da escola, de conviver com outras crianase adolescentes prximos de sua idade. Assim, diferente do que se diz sobrea organizao escolar em ciclos, talvez a maior transformao resida no gan-ho de um espao, ou de legitimidade e efetividade de acesso a esse espao:permanecer na escola e ali usufruir tudo que ela pode oferecer. E o que essaescola tem a oferecer? A princpio, e isso no pouco, o direito de perma-necer na escola. Mas em que condies esse direito exercido? Retorna-se,ento, questo dos condicionantes estruturais que impedem que a escolase efetive como instncia formadora, agora j dispensada das exigncias doprincpio do conhecimento. Mantm-se o aluno na escola de massas, in-veste-se em sua socializao e em seu desenvolvimento individual: mas nohaveria de pretender mais?

    De imediato, essa poltica tem o efeito de produzir um alvio nastaxas oficiais de fluxo escolar. H, ainda, de se aguardar os efeitos de umcomplicador que vir a seguir sob a forma de avaliao institucional: asmesmas agncias que exigem correo do fluxo a qualquer preo instau-ram procedimentos de avaliao que iro corrigir as distores do siste-ma, propondo mecanismos ainda mais sofisticados e eficientes de discri-minao e excluso dos que escaparam do princpio do conhecimento (ede seu vis excludente) l na escola, mas tero de se defrontar com elequando for a hora de se instalar no tempo e no espao em sua vida adul-ta pessoal e profissional.

    Essas mudanas conceituais estariam na base das justificativas dasreformas por que passa a educao, incluindo especialmente aquelas vol-tadas para as mudanas do cotidiano de alunos e professores ou, comoafirma Popkewitz (2001), para o controle da alma. Expressam um con-junto de supostos que constituem uma racionalidade que vem calar, jus-tificar, amparar, sustentar as reformas educacionais (Miranda, 1997).Mais do que efetivamente transformar a educao, talvez esteja em causamudar a maneira de compreend-la, principalmente por parte daquelesque a realizam na prtica.

    Por que mesmo que a escola deve passar a se organizar por ciclos?A resposta a esta pergunta no foi ainda suficientemente tratada e mere-

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    ce ser mais bem discutida. Tambm no se trata de concordar com o ar-gumento de Perrenoud (2004) na introduo de seu livro dedicado aoassunto: Uma vez que os ciclos j existem. Seria, em contrapartida, pr-prio das inovaes que elas se imponham para serem assimiladas e deba-tidas depois? Ou a urgncia da prtica que subtrai a reflexo? A pru-dncia sugere que bem melhor teria sido que o debate ocorresse antes daimplantao das propostas de ciclos nas redes de ensino brasileiras. Odebate poderia contribuir para pr em causa princpios distintos quepresidem a adoo de um modo ou outro de pensar a escola. Isso podeno mudar o rumo das coisas, mas pode e o que mais nos resta? aju-dar a compreender o rumo das coisas.

    Recebido em julho de 2004 e aprovado em dezembro de 2004.

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    Marlia Gouvea de Miranda

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