sobre os trilhos do bonde_cp000287

Upload: estudantesp

Post on 14-Oct-2015

26 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    1/134

    1

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SULINSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    CURSO DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    SOBRE OS TRILHOS DO BONDE, OS CAMINHOS DE UMA CIDADE

    BRASILEIRA

    Mara Regina do Nascimento

    Dissertao apresentada como requisitoparcial e ltimo para a obteno do graude Mestre em Histria do Brasil, sob aorientao da Profa Dra La FreitasPerez.

    Porto Alegre1996

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    2/134

    2

    Curso de Ps-Graduao em Histria

    SOBRE OS TRILHOS DO BONDE, OS CAMINHOS DE UMA CIDADEBRASILEIRA

    Mara Regina do Nascimento

    Porto Alegre1996

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    3/134

    3

    AGRADECIMENTOS

    Este trabalho, realizado com o suporte financeiro do CNPq, tornou-se possvel

    tambm graas a um conjunto de esforos e afetos para os quais gostaria de expressar o

    meu agradecimento.

    A La Freitas Perez que, alm de uma orientao criteriosa e de singular

    competncia, tributou-me sua inestimvel amizade. Devo a ela o reconhecimento da

    importncia de uma nova viso, mais generosa e potica, sobre a Histria do Brasil.

    A Marion Kruse Nunes, pela oportunidade que ofereceu-me em 1992 de

    trabalhar pela primeira vez na pesquisa histrica sobre a Carris, juntamente com a

    equipe sob a sua coordenao no Centro de Pesquisas Histricas da Secretaria

    Municipal de Cultura. A ela agradeo tambm pela prontido com que cedeu-me, nos

    ltimos meses, todo acervo coletado naquela ocasio para que eu pudesse novamente

    consult-los.

    Aos colegas de curso Mozart, Dinah, Centurio, Jussara e Manolo pela amizade

    e pelo saudvel exerccio de troca de idias, realizado ao longo desses dois anos.

    A Sra. Mirian Ribeiro Antonini, pelo emprstimo de seus antigos e valiosos

    cartes postais da cidade de Porto Alegre, que serviram para ilustrar parte desse

    trabalho.

    A Carla Helena Carvalho Pereira e Rosana dos Santos Sanches, pela prontido e

    disponibilidade com que sempre me ajudaram a resolver as antipticas, mas

    necessrias, questes burocrticas que requer a realizao do curso.

    E, em especial, ao Andr que, ao entrar na minha vida, ajudou-me a lembrar o

    que eu, como mestranda, estive sujeita a esquecer: o ato de escrever exige muito mais

    da alma do que da razo.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    4/134

    4

    SUMRIO

    NO TRNSITO E NO MOVIMENTO DA CIDADE BRASILEIRA............... 8

    1. A CIDADE E A MODERNIDADE............................................................. 16

    1.1 OCUPAR PARA CIVILIZAR......................................................... 221.2 MODERNIZAR PARA CIVILIZAR.............................................. 28

    2. OS TRAJETOS DOS BONDES E A TRAJETRIA HISTRICA DACIDADE............................................................................................................... 43

    2.1 DOS CAMINHOS E DOS TRILHOS NUM PORTO ALEGRE........... 502.2 UMA LEBRE DE TRS ANOS CORRE MAIS QUE UM BURRO

    DE CEM................................................................................................................. 56

    3. A URBANIDADE E A FESTA ......................................................................... 873.1 O LUGARDO CARNAVAL.................................................................. 943.2 NO ANDAR DO BONDE, A VIVNCIA DA CIDADE....................... 105

    A SOCIEDADE BRASILEIRA TOMA O BONDE............................................... 126

    LINHA DE TEMPO............................................................................................... 131

    BIBLIOGRAFIA.................................................................................................... 136

    FONTES PRIMRIAS.......................................................................................... 143

    LISTA DE ILUSTRAES ................................................................................. 147

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    5/134

    NO TRNSITO E NO MOVIMENTO DA CIDADE BRASILEIRA

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    6/134

    149

    H, na historiografia brasileira, um certo consenso terico que insiste em

    enquadrar o desenvolvimento das nossas cidades em um processo de evoluo

    capenga, incompleta ou s avessas. A cidade brasileira dificilmente encarada como

    um fenmeno que passou a existir em funo do desencadeamento de outros; ao

    contrrio, sempre vista como coisa autnoma e independente, como um corpo

    estranho ou artificial, que chega para interromper um curso, cujo fim no se sabe muitobem qual seria. como se a sociedade brasileira, historicamente representada pelos

    senhores de engenho e seus escravos, ou pelos bares do caf e os imigrantes ou os

    donos das primeiras indstrias e a classe operria emergente do sculo XIX, no

    estivesse pronta ainda para a selvagem vida no meio urbano.

    Essa idia traz como centro um equvoco terico-metodolgico, que procura,

    nos fatos histricos relativos ao urbanismo, a parcialidade e a linearidade, e despreza o

    relativismo, a rede de inter-relaes e a simultaneidade que tais fatos comportam.Tomadas como desordenadas, improvisadas e apressadas, nossas cidades no

    so at hoje perdoadas, ou melhor, bem assimiladas, naquilo que tiveram de mais rico e

    peculiar: a mistura de cdigos, a miscigenao entre o tradicional e o moderno, a

    convivncia cotidiana, por exemplo, entre a escravido e o surgimento das mquinas

    industriais, dos projetos cientificistas de higienizao com a vivncia concreta da

    distribuio de gua populao pelos carros-pipa ou do despejo das fezes humanas no

    rio mais prximo, do desejo circunspeto progressista e modernizante na implantao

    dos componentes materiais urbanos, que so os meios de transporte, a luz eltrica, a

    canalizao de gua com a transgresso, a plasticidade, o riso e a falta de prudncia da

    atividade carnavalesca...

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    7/134

    150

    Tomando como ponto de partida uma estrada de via nica que leva somente

    histria e ao tempo europeus, historiadores que tm a cidade brasileira como tema

    esqueceram-se de relativizar ou olhar com cuidado o tempo e a histria brasileiros

    como processos que, partindo de uma forte ligao com o iderio moderno europeu,no fizeram desse iderio um fim em si mesmo, mas misturando-se a ele, tornaram o

    cotidiano do espao urbano algo original, gerando uma nova configurao que permitiu

    o aparecimento de uma estrada de mltiplas vias.

    Edgar Morin diz que, ao tratarmos da relao de interdependncia entre o

    passado, o futuro e o presente, deveramos levar em conta que a realidade social

    multidimensional. A dialtica no anda nem sobre os ps nem na cabea; ela gira

    porque, antes de tudo, jogo de inter-reaes, isto , circuito em perptuo movimento.Tudo o que evolutivo obedece a um princpio policausal.E at mesmo os processos

    que chamamos de evolutivos no so nem eles mecnicos ou lineares. As invenes,

    inovaes, criaes, tcnicas culturais, ideolgicas modificam a evoluo e at a

    revolucionam, e fazem, da em diante, com que os princpios de evoluo evoluam1.

    Quanto mais a ao do homem der existncia a desvios ou imprevistos nos processos

    histricos, mais rico em complexidades eles tornar-se-o; justamente por isso que a

    histria, por um lado feita de rupturas e de crises, tambm, ao mesmo tempo, repletade criaes e de inovaes. Morin diz, por analogia, que: ao procurar a ndia, o

    homem foi parar [na]Amrica2.

    Ao pensar a cidade brasileira, que foi gerada no momento em que nosso pas

    passou a integrar-se na chamada era planetria3, inaugurada com os grandes

    descobrimentos martimos, a percebo como um fenmeno rico e complexo que se

    frutificou a partir do projeto moderno europeu, e inesperadamente deu novo destino a

    ele as cidades do Novo Mundo foram inventadas com a modernidade e, por causa

    delas e dentro delas, a modernidade foi reinventada.

    1MORIN, Edgar. Para sair do sculo XX. 1986, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 311.2MORIN, Edgar. O paradigma perdido. A natureza humana.1973, Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 5 ed.,p. 23.3MORIN, Edgar e KERN, Anne Brigitte. Terra-Ptria.1995, Porto Alegre: Editora Sulina, p. 19.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    8/134

    151

    Dentro da cidade, as edificaes, as melhorias tecnolgicas, os equipamentos

    materiais, como os meios de transporte coletivos, so o reflexo desta complexidade. As

    grandes invenes como os trilhos de ferro, a tcnica da macadamizao (calamento

    com brita aglutinada e comprimida, com 30 cm de espessura, que antecedeu as tcnicasatuais de calamento de ruas), o uso de animais primeiro, e depois dos cabos eltricos

    para a movimentao dos bondes, a construo de casas assobradadas e frontalmente

    ajardinadas, o surgimento dos cortios, o uso de cores sbrias nas roupas dos homens e

    das mulheres, os projetos urbansticos de organizao moral e espacial da cidade so

    todos exemplos de mudanas ocorridas em concomitncia temporal com a Europa e

    tambm com os Estados Unidos.

    clara a cumplicidade de factodo Brasil com o restante do mundo ocidental noplano dos ideais urbanos; a diferena esteve na maneira como aqui se propagaram ou

    se concretizaram tais ideais, que tiveram de se moldarem ao contexto social,

    geogrfico, poltico e econmico brasileiros, e por isso perderam as formas que

    possuam originalmente, para aqui adquirir outras e a isso grande parte dos

    historiadores apressadamente chamou de tentativa frustada ou atrapalhada de copiar o

    que vem de fora.

    Perdeu-se muito tempo tentando provar a inferioridade tecnolgica, econmicaou poltica do Brasil em relao ao Primeiro Mundo, desde que este nos conquistou, e

    deixamos de enriquecer nossas pesquisas, pois no levamos em conta a rede de

    complexidades e reciprocidades, surgidas a partir do momento em que o mundo

    tornou-se efetivamente redondo, sobretudo no que diz respeito compreenso das

    diversidades culturais que um projeto que, mesmo pretendendo ser uno e evolutivo,

    no conseguiu sufocar completamente.

    Foi no meio urbano, sob a forma de uma harmonia conflitual4, que se

    desenrolaram ao mesmo tempo, o anseio do esquadrinhamento moderno como idia

    e a improvisao como coisa no projetada.

    4Termo que tomo emprestado de Michel Maffesoli, em O Tempo das Tribos. O Declnio do Individualismo nassociedades de massa, ao ver a vitalidade do interior da cidade ligada a um equilbrio entre elementos

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    9/134

    152

    Perceber a cidade brasileira a partir desse prisma lanar um novo olhar sobre

    ela, seguindo o que sugere Peter Burke: Cada vez mais historiadores esto comeando

    a perceber que seu trabalho no reproduz o que realmente aconteceu, tanto quanto

    o representa de um ponto de vista particular.

    5

    tambm ressaltar que, como dizHayde White, o historiador poderia ser visto como algum que, a exemplo do artista e

    do cientista[procuraria enfatizar a importncia de se perceber] o carter singular das

    coisas comuns.6

    A partir de reflexes como estas que me proponho a analisar a relao da

    cidade brasileira com a modernidade, desde a ltima metade sculo XIX s primeiras

    dcadas do XX, sob o prisma dos seus meios de transporte coletivos urbanos, tendo

    como caso privilegiado a cidade de Porto Alegre.No primeiro captulo, procuro conceituar duas idias-chave que permeiam e

    norteiam a linha terica do trabalho. Essas idias so o conceito de civilizao de

    Norbert Elias, cuja definio considero mais adequada, e a de modernidade, que, dentre

    as concepes existentes, optei por aquela elaborada por Jean Baudrillard; ambas

    contextualizadas no lugar onde se concretizaram: a cidade ocidental. Para tal, utilizo as

    tipologias de Max Weber sobre a cidade e sua inerente delimitao territorial ligada s

    demarcaes administrativa, afetiva e religiosa, categorias essas que esto sempre emrelao umas com as outras.

    Julgando que a cidade o territrio da modernidade, procuro situ-la

    historicamente, num primeiro momento, a partir do movimento europeu das

    descobertas martimas e a conseqente fundao das cidades no Novo Mundo. Essas

    cidades nasceram sob o signo do pensamento moderno e sob os dogmas do capitalismo

    comercial, que so a secularizao, a racionalidade e a homogeneizao. A urbanizao

    heterogneos. Tambm Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala. Formao da Famlia Brasileira sob oRegime da Economia Patriarcal, utiliza-se dessa idia ao falar de equilbrio de antagonismos para caracterizar asociedade brasileira. (Ver captulo I).5BURKE, Peter (org.) A Escrita da Histria, novas perspectivas.1992, So Paulo: Editora UNESP, 2. ed., p.337.6WHITE, Hayde. Apud: KRAMER, Lloyd. Literatura, Crtica e Imaginao Histrica: o desafio literrio deHayden White e Dominick LaCapra. In: HUNT, Lynn. A Nova Histria Cultural. 1995, So Paulo: MartinsFontes Editora Ltda., pp. 131-173, p. 160.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    10/134

    153

    era o instrumento que possibilitava a realizao do processo civilizador, de carter

    messinico e redentor, que precisava sair da Europa e espalhar-se pelo mundo tal

    como a modernidade.

    No Brasil dos sculos XVI, XVII e XVIII, o moderno traduziu-se pelas atitudesque os colonizadores tomaram para possuir o territrio que lhes pertencia: as medidas

    poltico-administrativas da coroa portuguesa, o uso da mo-de-obra escrava, a

    monocultura agrcola e pecuarista, a implantao de freguesias e feitorias (os embries

    de nossas cidades) e o estabelecimento da estrutura social patriarcal e familiar. O

    resultado de tais atitudes criaram, dentro das cidades brasileiras, uma ordem social

    complexa e peculiar, ancorada em antagonismos miscveis, de uma riqueza hbrida

    incomparvel, conforme interpretou Gilberto Freyre7

    .Procuro, ainda, desenvolver a idia de que no sculo XIX o moderno das

    cidades brasileiras expressou-se pela via das transformaes modernizantes em

    concomitncia com a industrializao inglesa e francesa. A higienizao, a

    preocupao com o desenvolvimento tecnolgico, o desejo do devir e o

    desencantamento marcaram de maneira singular a cidade desse perodo. Se, por um

    lado, a cidade do sculo XIX vivia o momento de uma tendncia a enobrecer as

    necessidades tcnicas, fazendo delas objetos artsticos e agentes da implantao donovo, sob o ritmo efmero da moda (como disse Walter Benjamin8) por outro, a

    modernidade tomou a forma da modernizao, tout court, ligando-se busca do

    progresso como o elemento fundamental para, concretamente, melhorar a infra-

    estrutura urbana, incrementar a industrializao e disciplinar as formas de produo e

    de trabalho. Para Alain Touraine, no sculo XIX, era preciso trabalhar, organizar-se e

    investir para criar uma sociedade tcnica geradora de abundncia e de liberdade. A

    modernidade era uma idia, ela se torna por acrscimo uma vontade, [pois no sculo

    7A miscigenao como caracterizao do processo da formao urbana brasileira conceito-chave em duas obrasfundamentais de Gilberto Freyre, utilizadas aqui. So elas: Casa-Grande & Senzala. Formao da FamliaBrasileira sob o Regime da Economia Patriarcale Sobrados e Mucambos.Decadncia do Patriarcado Rural eDesenvolvimento do Urbano.8 BENJAMIN, Walter. Paris, capital do sculo XIX. In: KOTHE, Flvio. Walter Benjamin. ColeoSociologia, 1991, So Paulo: Editora tica. pp. 30-43, p. 42

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    11/134

    154

    oitocentista] no se tratava mais simplesmente de dar passagem razo afastando os

    obstculos do seu caminho; era preciso querer e amar a modernidade; era preciso

    organizar uma sociedade criadora de modernidade, automotriz9.

    Foi nessa atmosfera que os meios de transporte coletivos, os bondes, passaram ater importncia fundamental dentro do meio urbano, como uma imagem de progresso

    que poderia ser concretizada: mquinas com estruturas de ferro ambulantes, sobre

    trilhos tambm de ferro, que concorreriam com as ingnuas carroas. Era o avano da

    tcnica em oposio estabilidade do tradicional. As carroas, os tlburis, as caleas

    bem mais fceis de pilotar, as cadeirinhas e os palanquins, movidos pela fora do

    homem negro, podiam carregar menos pessoas, como uma famlia ou indivduos

    isoladamente, e ainda ligavam-se idia de cidade pequena, familiar. Mas os bondes,no. Eles anunciavam, pelos seus itinerrios, que a cidade expandia-se e que as

    necessidades da populao em se locomover aumentavam. Eram sinal de mudanas.

    Viajar, ou passear, por um quarto de hora ou por meia hora ao lado de um

    desconhecido, sem dirigir-lhe a palavra, ou ento trocar conversa formalmente sobre a

    poltica ou os costumes, com algum que no se sabe exatamente quem , era o sinal de

    novos tempos que o bonde poderia proporcionar. A eletricidade, fora motriz oculta

    para os olhos, que no podia ser vtima de chacotas ou apelidos como os burros,reforou ainda mais a venerao do progresso industrial e dos avanos da racionalidade

    cientfica, na primeira dcada do sculo XX.

    No segundo captulo, fao uma anlise mais especfica sobre a cidade de Porto

    Alegre, retomando as concepes acerca da modernidade, tratadas no captulo anterior.

    A modernidade como um modo de civilizao, que no se restringiu apenas ao Velho

    Mundo, tambm fez parte do iderio do cidado porto-alegrense na relao que ele

    mantm com a sua urbe.

    Como no Brasil o hibridismo e a plasticidade so princpios fundamentais de

    organizao social, nossas cidades propiciaram a atmosfera da festa espao plural,

    9TOURAINE, Alain. Crtica da Modernidade. 1994, Petrpolis: Editora Vozes, p. 68.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    12/134

    155

    onde as diferenas se congregam e a rigidez amolecida; onde a atitude coletiva est

    ancorada na sensibilidade.

    Para alm de uma concepo histrica unidimensional, que ignora a

    complexidade e a multiplicidade da realidade humana com seu cosmos de sonhos e defantasmas, considero a perspectiva carnavalesca da histria uma excelente pista para

    auxiliar o historiador a escrever sobre o mundo. Segundo Dominick LaCapra, parceiro

    terico de Hayde White, o carnaval testa e contesta todos os aspectos da sociedade e

    da cultura atravs do riso festivo: os que so questionveis podem ser preparados

    para a mudana; os que so considerados legtimos podem ser consolidados.10

    Por essa razo, reservo o terceiro captulo para tratar, com base nas concepes

    da Escola de Chicago, a cidade como um estado de esprito, que, no Brasil, se revelaatravs da festa religiosa e do carnaval. Fazendo uso das idias de Roberto DaMatta,

    Gilberto Freyre, Mikhail Bakhtin e Jean Duvignaud, discuto a festa brasileira no

    somente na sua forma institucional e etnogrfica, mas tambm como um modo cultural

    que est entranhado na viso de mundo, na sensibilidade sobre as coisas e na relao

    que o brasileiro tem com o meio urbano. Fundada com o aval dos princpios ticos,

    religiosos, cientficos e arquitetnicos da modernidade, a festa no Brasil (que est

    visceralmente ligada cidade) carnavalizou esses princpios e deu-lhes uma cara nova,sem aniquil-los, mas enriquecendo-os e aumentando-lhes a complexidade.

    10LACAPRA, Dominick. Apud: KRAMER. Literatura, Crtica e Imaginao Histrica. In: HUNT. A NovaHistria Cultural.Op. cit., p. 163.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    13/134

    156

    1. A CIDADE E A MODERNIDADE

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    14/134

    157

    Na cultura ocidental, desde o sculo XV, civilizao e posse do espao no seseparam. E onde a conquista territorial se efetivou, um empreendimento organizador do

    espao foi arquitetado. Em nome do ideal civilizador, o mundo ganhou uma nova

    configurao a de mundo moderno e tanto para a Europa como para a Amrica, a

    sia e a frica, novos elementos foram adicionados sua antiga estrutura social,

    poltica e econmica. Depois das descobertas martimas, o mundo nunca mais foi o

    mesmo. Assim, simultaneamente existia para os europeus a preocupao com a

    ocupao espacial e a percepo de que o mundo havia se alargado. A aldeia globalaumentava seu dimetro num mesmo projeto de civilizao. E a Amrica passou a

    fazer parte do jogo de inter-relaes a que o homem europeu e o asitico j haviam

    iniciado, timidamente, na Idade Mdia. Edgar Morin diz:

    Durante a Idade Mdia ocidental, e embora suas Histrias no se comuniquem,

    embora suas civilizaes permaneam hermticas umas s outras, frutas, legumes,

    animais domsticos so transportados e aclimatados do Oriente ao Ocidente, da sia

    Europa, assim como seda, pedras preciosas, especiarias. A cereja parte do mar

    Cspio para o Japo e a Europa. O damasco vai da China at a Prsia, da Prsia ao

    Ocidente. A galinha se espalha da ndia para toda a Eursia. A atrelagem de tiro,

    depois o uso da plvora, da bssola, do papel, da impressa chegam da China Europa

    e fornecem os conhecimentos e instrumentos necessrios para seu progresso e em

    particular para o descobrimento da Amrica. As civilizaes rabes introduzem o zero

    indiano no Ocidente. Antes dos tempos modernos, os navegadores chineses, fencios,

    gregos, rabes, vikings descobrem largos espaos do que eles no sabem ainda ser um

    planeta, e cartografam ingenuamente o fragmento que conhecem como sendo a

    totalidade do mundo. Em suma, o Ocidente europeu, essa pequena extremidade da

    Eursia, durante a sua longa Idade Mdia, recebeu do vasto Extremo Oriente as

    tcnicas que lhe permitiro reunir os conhecimentos e os meios de descobrir e de

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    15/134

    158

    chamar razo a Amrica.11Para esse autor, a era moderna, preparada lentamente em

    diversos pontos do Globo e inaugurada a partir dos descobrimentos martimos,

    inaugurou tambm a era planetria, e a sua concepo de que ideais de civilizao

    podem ser exportados.As palavras moderno ou modernidade, quando utilizadas aqui, tm a conotao

    dada por Jean Braudrillard e Alain Touraine.

    Jean Baudrillard diz: A modernidade no um conceito sociolgico, nem um

    conceito poltico, nem propriamente um conceito histrico. A modernidade um modo

    de civilizao caracterstico que se ope ao modo da tradio, isto , a todas as outras

    culturas anteriores ou tradicionais: face diversidade geogrfica e simblica destas

    outras culturas, a modernidade se impe como una, homognea, se irradiandomundialmente a partir do Ocidente. [Ela] uma estrutura histrica e polmica de

    mudana e crise. Sob esta forma, a modernidade localizvel somente na Europa a

    partir do sculo XVI e no toma seu sentido seno a partir do sculo XIX.

    Para Jean Baudrillard, a modernidade , por isso, o jogo de signos, de costumes

    e de cultura que resultaram das mudanas tcnicas, cientficas e polticas ocorridas

    desde o sculo XVI12. Historicamente, segundo o autor, ela tem se desenrolado desde a

    chegada de Colombo Amrica, no sculo XV, passando pela descoberta da tipografiae das descobertas de Galileu, que inauguraram o humanismo do Renascimento; aparece

    tambm nas intenes da Reforma Luterana e sua repercusso no mundo catlico; nos

    fundamentos filosficos de Descartes e na filosofia do Iluminismo, que originaram o

    pensamento individualista e racionalista do mundo ocidental. Ela tambm esteve

    presente nas tcnicas administrativas do Estado monrquico centralizado, que

    substituiu o sistema feudal; e, culturalmente, a modernidade relaciona-se com a

    secularizao total das artes e das cincias. [A modernidade] tomou uma tonalidade

    burguesa liberal que no cessar depois de marc-la ideologicamente 13.

    11MORIN e KERN. Terra-Ptria. Op. cit., p. 18-19.12BAUDRILLARD, Jean. Modernit. In: Biennale de Paris. La modernit ou lesprit du temps. 1982, Paris:Editions LEquerre, pp. 28-31, p. 28.13BAUDRILLARD. Modernit. Op. cit., p. 28.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    16/134

    159

    Alain Touraine tambm a define: A modernidade no mais pura mudana,

    sucesso de acontecimentos; ela difuso de produtos da atividade racional,

    cientfica, tecnolgica, administrativa.

    A modernidade exclui todo o finalismo. A secularizao e o desencanto de quenos fala Weber, que definiu a modernidade pela intelectualizao, manifesta a ruptura

    necessria com o finalismo religioso que exige sempre um fim da histria, realizao

    completa do projeto divino ou desaparecimento de uma humanidade pervertida e infiel

    sua misso.

    A idia de modernidade substitui Deus no centro da sociedade pela cincia,

    deixando crenas religiosas para a vida privada.14

    A palavra civilizao designa, aqui, o objetivo que o homem ocidental seprops a perseguir, para a realizao do seu modo de vida e de comportamento e que

    terminou por constituir-se em um processo, encarado como evolutivo, que deve ser

    prosseguido. Aliado razo, o processo de civilizao tem carter de instrumento til

    que serve para aperfeioarem-se os governos, as leis, a educao, as instituies, o

    conhecimento cientfico e os costumes ocidentais, no importando as fronteiras

    territoriais, j que o homem moderno julga-se capacitado de levar a civilizao a

    qualquer lugar que considere ainda no suficientemente civilizado. Encarada comouma propriedade e obra acabada, a civilizao o trunfo do homem ocidental sobre os

    outros povos.

    Sobre o nascimento do conceito de civilizao at a sua transformao em

    processo progressivo, Norbert Elias diz:Ao contrrio do que acontecia no momento da

    gnese do conceito, a partir de agora o processo de civilizao considerado pelos

    povos como acabado, no interior das suas prprias sociedades: eles sentem-se

    essencialmente portadores de uma civilizao existente ou acabada, que tm de

    transmitir a outros, como porta-estandartes da civilizao para o exterior. Do

    processo que fica para atrs, de todo processo civilizacional, a conscincia guarda

    apenas uma vaga lembrana. Aceita-se o resultado desse processo como manifestao

    14TOURAINE. Crtica da modernidade. Op. cit., p. 17.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    17/134

    160

    do fato de ser superiormente dotado. Que esse comportamento civilizado tenha levado

    sculos a atingir no interessa, como no interessa saber de que maneira se atingiu. A

    partir de agora, pelo menos para as naes que se fizeram conquistadoras e

    colonizadoras, e por isso se tornaram uma espcie de camada superior para vastasextenses do mundo extra-europeu, a conscincia da sua superioridade, a conscincia

    dessa civilizao, serve para justificar o seu domnio, tal como outrora politesse

    e civilit, os antepassados do conceito de civilizao, haviam servido camada

    superior aristocrtica da corte para justificar o seu.

    Conclui-se, efetivamente, uma fase essencial do processo civilizacional no

    momento em que a conscincia da civilizao, isto , a conscincia da superioridade

    do comportamento prprio e das suas substancializaes em cincia, tcnica ou arte,comea a alastrar-se por naes inteiras do Ocidente.15

    Conceitualmente, modernidade e civilizao entram em comunho quando

    expressam, juntas, a idia de que existem padres tcnicos, cientficos e culturais que

    devem ser disseminados, por serem tomados como verdade absoluta. Num processo de

    dentro para fora, iniciado na Europa, o Ocidente, sente-se capaz e responsvel por

    transmitir tais padres aos outros povos.

    No que concerne questo urbana, a modernidade, como o modo da civilizaoocidental, ps-se em marcha, num primeiro momento, como expanso territorial pelo

    mundo do alm-mar, tendo na fundao das cidades e na busca da globalizao do

    formato econmico e social destas, os elementos fundamentais deste processo16, e,

    depois, mais tarde, a partir do sculo XIX, sob um aspecto mais particular, que foi o da

    15ELIAS, Norbert. O Processo Civilizacional.1989, Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1ovol., (primeira edioem 1939), p. 100.16Para La Perez, este momento da histria ocidental se situa num contexto em que as relaes da economiaurbana e o processo de urbanizao ultrapassam as fronteiras das naes para assumirem um carterinternacional. A autora coloca: A economia europia se abre a novos horizontes, as inovaes tecnolgicastransformam o ciclo da vida. A expanso territorial d organizao do espao uma nova configurao emescala global.Neste sentido,a configurao urbana brasileira contempornea desse processo e, ainda maisparticularmente, ela tributria do desenvolvimento do capitalismo comercial europeu. Ver: PEREZ, LaFreitas. A Constituio da Rede Urbana Brasileira nos Quadros da Formao do Mundo Ocidental Moderno .In: Estudos Ibero-Americanos. 1993,Porto Alegre: PUCRS, v. XIX, n. 2, pp. 117-138, p. 117.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    18/134

    161

    crena na modernizao do meio urbano como caminho nico que levaria ao

    desenvolvimento pleno.

    no sculo XIX que a modernidade concentra-se mais nos espaos internos da

    cidade, nos seus projetos arquitetnicos e avanos tecnolgicos. A modernizao, viaindustrializao, prepara o triunfo da modernidade. A racionalidade componente

    indispensvel da modernidade, se torna alm disso, um mecanismo espontneo e

    necessrio de modernizao.17 A modernizao endgena da modernidade e no o

    contrrio.

    sabido que diferentes, variados e sinuosos caminhos foram percorridos pela

    sociedade ocidental entre os sculos XVI, XVII, XVIII e XIX, no entanto, parece ter

    havido um consenso das sociedades desses perodos de que o ato de civilizar se realizanum movimento progressivo, linear, messinico e redentor. Foi na cidade que esse

    fenmeno se deu, inicialmente, na busca da padronizao ideal de comportamentos e, a

    posteriori, pela sua realizao plena, utilizando-se para isso, como se fez no sculo

    XIX, a racionalizao intimamente ligada melhoria tecnolgica e crena quase cega

    nos modelos cientficos.

    17TOURAINE. Crtica da modernidade.Op. cit., p. 19.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    19/134

    162

    1.1 OCUPAR PARA CIVILIZAR

    A concepo da importncia de se ocupar espacialmente uma regio varia

    conforme a poca e as necessidades poltico-administrativa, econmica e

    psicossociolgica de uma sociedade. Ocupar e civilizar at o sculo XVIII teve, naEuropa, por um lado, devido s descobertas de um mundo novo, praticamente virgem e

    possuidor de uma natureza bruta dominante, um carter quase pico, com legado

    renascentista, que via homem e natureza como duas extremidades opostas e

    conflitantes. Preparados militarmente e imbudos de mentalidade redentora, os

    europeus partem para a Amrica convencidos da necessidade de levar a civilizao,

    que se traduzia na evangelizao, ao homem primitivo. Nessa concepo, o ato de

    Civilizao consistia em provar a superioridade do branco sobre a gente selvagem dostrpicos.

    No Brasil, particularmente, o europeu no encontrou, como na ndia, nenhuma

    riqueza comercial imediata; aqui o ato civilizatrio, para dominar o homem e a

    natureza foi o de, primeiramente, organizar, sob o arrimo religioso, a empresa agrcola

    e a sociedade escravocrata, possibilitando o sedentarismo e a ocupao efetiva18.

    Com a formao das cidades, a metrpole garantia a sua continuidade na

    ocupao colonial, e depois, mais tarde, a partir do sculo XIX, momento em que o

    sistema colonial se desfez, as cidades, mais aperfeioadas tecnicamente, passaram a

    servir como termmetro da auto-suficincia e do progresso material alcanados.

    18FREYRE. Casa-Grande & Senzala.Formao da Famlia Brasileira sob o Rregime da Economia Patriarcal.1992, Rio de Janeiro: Record, 29. ed., (primeira edio em 1933), p. 24.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    20/134

    163

    Segundo La Perez, o processo de colonizao do Brasil foi um

    empreendimento moderno que combinou aes comerciais e militares e cruzada

    civilizadora. A terra foi consolidada nas mos portuguesas pela via da fora armada,

    uma conquista militar. O prprio empreendimento ultramarino foi feito sob as graaspapais, como uma cruzada moderna, cujas bulas reconheciam e aprovavam os

    primeiros passos.19 Aqui, o portugus encontrou o elemento de objetivao da ao

    civilizadora e colonizadora: as almas para Jesus Cristo20, como disse Gilberto Freyre.

    A permanncia no territrio, e o ato de conquist-lo espacialmente, uma

    faanha do esforo civilizatrio do homem moderno; e temos na constituio das

    cidades brasileiras, um modelo dessa preocupao, como analisou Gilberto Freyre ao

    tratar do perodo colonial brasileiro, mostrando-nos como a posse e a demarcao doterritrio caracterizam uma das faces da modernidade. Ele diz: De qualquer modo o

    certo que os portugueses triunfaram onde outros europeus falharam: de formao

    portuguesa [o Brasil] a primeira sociedade moderna constituda nos trpicos com

    caractersticas nacionais e qualidades de permanncia. Qualidades que no Brasil

    madrugaram, em vez de se retardarem como nas possesses tropicais de ingleses,

    franceses e holandeses.21

    Para novos desafios que se traduziam no desejo de conquistar e dominar oque as novas terras reservavam , foram aproveitadas pragmaticamente velhas

    frmulas. Os europeus do sculo XVI eram h muito homens citadinos 22 e desde o

    medievo vinham ampliando e aperfeioando-se nas relaes capitalistas de tipo urbano

    e comercial; sabiam, por experincia, que a cidade, como instituio, era a geradora da

    nova ordem. Por que, ento, no implant-las no Novo Mundo?

    19 PEREZ, La Freitas. Para alm do bem e do mal: um novo mundo nos trpicos. In: Estudos Ibero-Americanos.1995, Porto Alegre: PUCRS, v. XXI, n. 1, pp. 49-59, p. 52.20FREYRE. Casa-Grande & Senzala. Op. cit., p. 242.21FREYRE. Casa-Grande & Senzala.Op. cit., p. 12.22 importante lembrar que em Portugal os elementos caracterizadores da urbanidade madrugaram em relao aoresto da Europa; l o esprito poltico e de realismo econmico e jurdico foram elementos decisivos da formaonacional. A burguesia martima portuguesa desde o sculo XIV predominou fortemente sobre a nobreza rural.FREYRE. Casa-Grande & Senzala. Op. cit., p. 54.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    21/134

    164

    No Brasil, assim foi feito. A implantao de estabelecimentos comerciais ou de

    instituies poltico-administrativas no obedeceu mesma ordem cronolgica pela

    qual passaram as cidades europias desde o medievo, mas nossas cidades foram criadas

    a partir do modelo destas, mesmo que inicialmente mais rudimentares tecnicamente; eao longo da sua formao, sofreram adaptaes exigidas pelo clima, pela gente que

    aqui se misturou e pelas situaes histricas particulares.

    Iniciando pelas feitorias23, que serviam como mercados regulares, passando pela

    construes de fortificaes ou muros, seguido da implantao da instituio religiosa

    e do aparato poltico-administrativo local, nossas cidades nasceram sob o feitio

    moderno, de feio comercial, tpica dos sculos XVI, XVII e XVIII, num processo

    rpido e desimpedido dos entraves feudais. Muitas delas, entre os primeiros 20 ou 30anos de existncia, j tinham o seu traado urbano desenvolvido, eram sede de governo

    ou possuam mais de uma praa de comrcio elementos que, para Max Weber,

    caracterizam o local como cidade.

    Sob o prisma da anlise weberiana, observamos que a categoria tamanho ou

    nvel de avano material por si s no torna uma cidade mais moderna que a outra, mas

    sim outras classificaes mais complexas e indissociveis.24

    Segundo Ruben Oliven, o enquadramento conceitual que Max Weber (e tambmKarl Marx) d para a cidade a classifica como uma Varivel Dependente, ou seja, uma

    organizao social que no se auto-explica; que no uma totalidade sozinha, mas uma

    objetivao de uma totalidade na qual se insere. Ela uma Varivel Dependente de um

    complexo entrelaamento de fatores econmicos, polticos, militares, religiosos.

    Para Ruben Oliven, em Max Weber, a cidade o primeiro pressuposto do

    capitalismo moderno, mas posteriormente o seu desenvolvimento resultado dele. A

    cidade se originou na comunidade relativamente autnoma de burgueses livres que

    23Sobre o nascimento das cidades brasileiras e a sua relao com a implantao das feitorias, Aroldo de Azevedoafirma: as feitorias foram, sem dvida, os primeiros povoados surgidos no pas, os mais remotos embries dasnossas cidades.AZEVEDO, Aroldo de. Embries das Cidades Brasileiras. In: Boletim Paulista de Geografia,1957, So Paulo: Departamento de Geografia da Universidade de So Paulo, n. 25, pp. 31-69, p. 37.24WEBER, Max. La dominacin no legtima (Tipologa de las ciudades). In: Economia y Sociedad. Esbozo desociologia comprensiva. 1944, Mxico: Fondo de Cultura Econmica, pp. 938-1024.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    22/134

    165

    existiu no perodo de transio do feudalismo para o capitalismo, mas estas

    comunidades rapidamente perderam sua independncia e tornaram-se o alicerce do

    Estado-nao. 25 Por isso uma estrutura social muito alm da rea urbana; ao

    mesmo tempo um modo de habitar (civismo, civitas) e uma forma de participar(poltica, plis).

    Em Max Weber, a cidade o lugar onde a relao de vizinhana entre os seus

    habitantes, que formam uma comunidade regida por interesses comuns, est sob uma

    ordem poltico-administrativa que se preocupa com a demarcao do territrio e com o

    controle poltico das relaes sociais urbanas. O nvel poltico-administrativo,

    essencial, somado atividade produtiva e existncia de um mercado local regular e

    variado quesitos obrigatrios para caracterizar economicamente o lugar comocidade formam os trs elementos essenciais da cidade ocidental moderna.

    importante chamar a ateno que, na anlise weberiana, a categoria poltico-

    administrativa para a caracterizao da cidade mais importante que a econmica. 26

    A partir desses critrios que Max Weber situa as cidades medievais, que, sob

    ponto de vista poltico-administrativo, nasceram como fortalezas e postos de guarnio,

    onde havia a preocupao com a regulamentao da propriedade fundiria e com a

    organizao do poder que regia a comunidade. Em volta dessa estrutura se encontravao mercado local de trocas, que reunia sob o mesmo interesse os habitantes do lugar.27

    necessrio, ainda, observar que Max Weber considera importante, alm dos

    fatores j citados, caracterizar a cidade como sendo uma associao fraternal, que se

    realiza em nvel religioso, quando a unio de seus habitantes promovida pela crena

    em um deus ou santos comuns, tornados oficiais pela presena de uma igreja ou capela

    do lugar. 28

    25OLIVEN, Ruben George. Urbanizao e Mudana Social no Brasil.1984, Petrpolis, Editora Vozes, 3. ed.,pp. 14 e ss.26 Apud. PEREZ, La Freitas. Dois olhares sobre o urbano: Max Weber a Escola de Chicago . In: RevistaVritas, 1994, Porto Alegre: PUCRS, v. 39, n. 156, pp. 621-637, p. 623.27PEREZ.Dois olhares sobre o urbano. Op. cit.,p. 622-623.28PEREZ. Dois olhares sobre o urbano.Op. cit.,p. 264.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    23/134

    166

    Assim, a cidade ocidental moderna, que nasceu da medieval, um espao que,

    orquestrado por uma lgica racional de organizao, rene em seu interior elementos

    poltico-administrativos, juridicamente concebidos, aliados a uma dinmica economia

    de troca, em forma de um mercado local variado e regular, marcado pela especializaopermanente da produo econmica; e tambm o lugar em que as pessoas, ligadas por

    laos de fraternidade e de culto, formam uma comunidade.

    Sob este aspecto Max Weber e Michel Maffesoli comungam da idia de que a

    cidade um somatrio entre o espao geogrfico de dimenso demarcada

    concretamente pelo poder do Estado e o espao social delineado, este sim sem limites e

    fronteiras, por mltiplos grupos fortemente unidos em um sentimento comum que

    estrutura e assegura, na diversidade, a unidade da cidade. Para Michel Maffesoli, adinmica prpria da urbe propicia uma relao afetiva com o territrio.

    As fronteiras administrativas e jurdicas da cidade esto, para este autor,

    preenchidas e demarcadas tambm por outras entidades do mesmo gnero, como

    bairros, grupos tnicos, corporaes, tribos diversas que vo se organizar em torno de

    territrios (reais e simblicos) e de mitos comuns. (...) Assim, a experincia do vivido

    em comum que fundamenta a grandeza de uma cidade.29

    Outrossim, para explicar conceitualmente a cidade sob o prisma da sua potnciasocial como pulsaes vitais, a Escola de Chicago, que inaugurou a Sociologia Urbana

    nos Estados Unidos, entre as dcadas de 1920 e 1930, o recorte mais adequado.

    Para esta corrente, a cidade capaz de gerar, com sua influncia, os mais

    variados efeitos na vida social. o que Ruben Oliven classifica como uma Varivel

    Independente30, ou seja, a cidade, sem importar muito como se formou historicamente,

    vale mais pelo o que j . Robert Erza Park e Louis Wirth, principais representantes da

    Escola de Chicago, encararam a cidade como um organismo social, vivo, e portanto

    sujeito a patologias ou estado de esprito.

    29MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos. O Declnio do Individualismo nas sociedades de massa. 1987, Riode Janeiro:Forense Universitria, p. 171.30OLIVEN. Urbanizao e Mudana Social no Brasil. Op. cit., p. 19.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    24/134

    167

    Robert Erza Park formulou a idia de que a cidade um corpo de costumes, de

    tradies e de sentimentos e atitudes organizados. Para este autor, a cidade algo mais

    do que um amontoado de homens individuais e de convenincias sociais, ruas

    edifcios, luz eltrica, linhas de bonde, telefone, etc.: algo mais tambm que uma meraconstelao de instituies e dispositivos administrativos tribunais, hospitais,

    escolas, polcia e funcionrios civis de vrios tipos. Antes, a cidade um estado de

    esprito, um corpo de costumes e tradies e dos sentimentos e atitudes organizados,

    inerentes a estes costumes e transmitidos por essa tradio.

    A cidade est envolvida nos processos vitais das pessoas que a compem; um

    produto da natureza, e particularmente, da natureza humana.31

    Para Louis Wirth, discpulo de Robert Park, a densidade demogrfica comocritrio para caracterizar o lugar como cidade s serve se for associada ao contexto

    cultural geral. Dever-se-a levar em conta, alm das diferenas e variaes entre as

    cidades (existem as comerciais, as de minerao, as pesqueiras, as industriais, as

    universitrias, as capitais), a idia de que a cidade uma associao humana, mesmo

    que heterognea.32

    Estas duas orientaes conceituais a weberiana e a da Escola de Chicago

    sobre o que trazem de mais caracterstico, cada uma a seu tempo, servem para analisaras cidades brasileiras, desde a sua fundao, sob a orientao poltico-administrativa e

    religiosa portuguesa, no incio da chamada era planetria at a sua cumplicidade

    industrializante com a Europa oitocentista.

    31PARK, Robert Erza: A cidade: sugestes para a investigao do comportamento humano no meio urbano.1916. In: VELHO, Otvio Guilherme. (org.) O Fenmeno Urbano. 1987, Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 4.ed., pp. 26-67, p. 26.32WIRTH, Louis. O Urbanismo como Modo de Vida. 1938. In: VELHO. O Fenmeno Urbano. Op. cit., pp.90-113, p. 92-95.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    25/134

    168

    1.2 MODERNIZAR PARA CIVILIZAR

    Se nos sculos XVI, XVII e XVIII a modernidade se traduziu no ato evanglicode dominao territorial, que inclua o esforo desbravador de implantao de ruas,

    regimentos, normas de conduta e traados urbanos, no sculo XIX, ela realizou-se pela

    via da modernizao, que tambm no deixou de ser encarada como um dogma. As

    cidades ganharam a atribuio de serem tambm palcos da industrializao e, por isso,

    civilizar, no sculo XIX, foi intencionar prover com mais rapidez a urbe, dotando-a de

    equipamentos mais requintados e industrializados.

    no sculo XIX que a sociedade moderna, segundo Jean Baudrillard, se pensaem si mesma enquanto tal, em termos de modernidade; miticamente. A modernidade se

    torna ento um valor transcendente, um modelo cultural, uma moral um mito de

    referncia presente em todo o lugar, em parte mascarando as estruturas e as

    contradies histricas que lhe deram nascimento. [ neste momento que a

    modernidade marcada como] a era da produtividade: intensificao do trabalho

    humano e da dominao humana sobre a natureza, um e outro reduzidos ao estatuto

    de foras produtivas e aos esquemas de eficcia e de rendimento mximo33.

    Dada a ausncia de uma revoluo poltica e industrial nos pases do Terceiro

    Mundo, a industrializao dos pases do Primeiro Mundo tornou exportveis os

    aspectos mais tcnicos da modernidade: os objetos de produo e de consumo

    33BAUDRILLARD. Modernit. Op. cit., p. 28.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    26/134

    169

    industrial. em sua materialidade tcnica e como espetculo que a modernidade as

    investiu em primeiro lugar e no segundo o longo processo de racionalizao

    econmica e poltica que se operou no Ocidente.34

    A modernizao um mito da modernidade, por isso no foi por acaso quesurgiram, entre as dcadas de 1950 e 1970, as teses da modernizao que postulavam

    um modelo a-histrico e linear de mudana social e de evoluo. Essas teorias, como

    explicou Ruben Oliven, sustentavam que, dadas certas condies, todas as sociedades

    poderiam mover-se do extremo tradicional ao moderno. Todas as sociedades estariam

    em algum ponto do continuum (da barbrie civilizao), e poderiam avanar ou

    recuar nele. O que faria uma sociedade avanar ou recuar seria o seu nvel de

    modernizao.35

    Estas teorias do sculo XX, to modernas quanto as que surgiram no sculo XIX

    como o marxismo e o positivismo, criaram postulados que faziam crer na

    modernizao como via nica para levar uma sociedade para o grau ideal de

    civilizao.

    Sou tributria da idia de que o que ocorreu neste perodo da industrializao e

    da modernizao no foi uma mudana radical no percurso do projeto civilizador, mas

    sim, sobretudo na tcnica de produo; foi institudo um novo ritmo, mais veloz, nainsistente tentativa de homogeneizao da vida social.

    Uma idia anloga a esta que construo pode ser a de Norbert Elias a respeito do

    desenvolvimento da padronizao dos modos e dos costumes sociais civilizadores,

    como, por exemplo, o comportamento mesa. O autor diz que a prtica de usar-se o

    garfo e a faca nas refeies foi lentamente, atravs de sculos, tornando-se fundamental

    nos rituais cotidianos da sociedade ocidental, at o momento de esse costume ser

    considerado natural. A partir da, no sculo XIX, verifica-se que se alteram ainda

    alguns pormenores; acrescentam-se novas normas e, das antigas, algumas tornam-se

    mais permissivas; surge uma quantidade de variaes nacionais e sociais sobre as

    34BAUDRILLARD. Modernit. Op. cit., p. 30.35OLIVEN. Urbanizao e Mudana Social no Brasil.Op. cit., p. 30-31.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    27/134

    170

    maneiras mesa; entre as massas populares, as camadas mdias, o operariado e o

    campesinato, diverso o grau de penetrao do uniforme da civilizao e da

    regulao dos impulsos exigida pelo manejo desse ritual. Mas os aspectos

    fundamentais daquilo que o trato social numa sociedade civilizada requer e daquiloque considerado interdito o padro da tcnica de comer, a maneira de usar a

    faca, o garfo, a colher, o prato, o guardanapo e restantes utenslios permaneceram

    inalterados no essencial. H apenas a diferenciao e disposio dos utenslios na

    mesa, conforme a classe social ou o costume do pas garfos para a entrada, para o

    peixe e para a carne; garfos, facas e colheres para doces; alguns talheres mais

    pontiagudos, outros mais arredondados ... Tratam-se de variaes sobre o mesmo tema,

    diferenciao dentro do mesmo padro36

    .Assim tambm vejo a industrializao do sculo XIX: uma nova roupagem para

    um modo de civilizao que se calcou em algo maior: a modernidade.

    Como observou Max Weber emA tica Protestante e o Esprito do Capitalismo

    caracterstica da civilizao ocidental moderna sistematizar e racionalizar todas as

    reas do saber e do fazer humano: a geometria, o Direito, a Arte, a Arquitetura, as

    Universidades. Esse fenmenos culturais j faziam parte da cultura de outras

    civilizaes, mas o aspecto do tratamento racionalizado, sistemtico e de utilidadeprtica essencialmente ocidental37. A produo de bens atravs do trabalho humano

    foi, com a industrializao, tornada mais eficaz no sentido de acelerao, de

    velocidade; mas no racionalizada por ela.

    Ao tratar do nascimento do capitalismo moderno, Max Weber busca exemplos

    da dinmica econmica do sculo XVI, nos monoplios e nos privilgios concedidos

    ao comrcio ultramarino. E quando o autor trata tambm do momento de iniciao da

    industrializao no sculo XIX, antes do fenmeno tomar dimenses mundiais, ele diz:

    A forma de organizao era, em todos os aspectos, capitalistas; a atividade do

    empreendedor era de carter puramente comercial; o uso do capital, em giro, no

    36ELIAS. O Processo Civilizacional. Op. cit., pp. 152-154.37 NASCIMENTO, Mara Regina do. A Moderna Maxambomba. In: Revista Porto e Vrgula. 1994, PortoAlegre: Secretaria Municipal de Cultura, n. 19, ano 3, pp. 10-12, p. 10.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    28/134

    171

    negcio era indispensvel; e finalmente, o aspecto objetivo do processo econmico, a

    contabilidade, era racional. Era, todavia, se se considerar o esprito que animava o

    empreendedor, um negcio de cunho tradicionalista: o modo de vida tradicional, a

    taxa tradicional do lucro, a quantidade tradicional do trabalho, a maneira tradicionalde regular as relaes com o trabalho, o crculo essencialmente tradicional de

    fregueses e a maneira de atrair os novos. (...) Ora, em determinada poca esta vida de

    lazer foi subitamente convulsionada, e freqentemente sem nenhuma mudana

    essencial na forma da organizao, tais como a transio para uma fbrica unificada,

    para a tecelagem, apenas isto: um jovem qualquer, de uma das famlias produtoras sai

    para o campo, escolhe cuidadosamente teceles para empregados, aumenta

    grandemente o rigor de sua superviso sobre seu trabalho e transforma-os, assim, decamponeses em operrios. Por outro lado, comea a mudar seu mtodo de mercado,

    buscando tanto quanto possvel o consumidor final, toma em suas mos os mnimos

    detalhes, cuida pessoalmente dos fregueses, visitando-os anualmente, e,

    principalmente, ajusta diretamente a qualidade do produto s necessidades e desejos

    destes fregueses38.

    No foi o investimento econmico da indstria que ocasionou tais mudanas,

    mas sim a instalao de um novo esprito, j instaurado anteriormente: aquele a queMax Weber chamou de o esprito do capitalismo moderno. Quando a

    industrializao chegou, o esprito moderno no era novo, mas, ao contrrio, j estava

    h muito interiorizado pelo homem moderno.

    A industrializao e a forma como ela prov a cidade oitocentista no , pois, o

    que podemos chamar de nascimento da modernidade, mas sim uma forma de

    transformar pensamentos racionais, nascidos em outra poca, em fins sociais e polticos

    mais concretos. Por isso a urbanizao ligada industrializao, como disse Alain

    Touraine, a obra da prpria razo e, portanto, principalmente da cincia, da

    38WEBER, Max. A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo. 1985, So Paulo: Livraria Pioneira Editora,4. ed., pp. 43-44.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    29/134

    172

    tecnologia e da educao39. E que: A modernidade era uma idia, ela se torna por

    acrscimo uma vontade, mas sem que seja rompido o vnculo entre a ao dos homens

    e as leis da natureza e da histria, o que assegura uma continuao fundamental entre

    o sculo das luzes e a era do progresso. (...) A modernidade, portanto, no estseparada da modernizao, o que j era o caso na filosofia do Iluminismo, mas ela

    reveste de muito mais importncia num sculo em que o progresso no mais

    unicamente o das idias, mas torna-se o das formas de produo e de trabalho, onde a

    industrializao, a urbanizao e a extenso da administrao pblica transtornam a

    vida da maioria.40

    nessa atmosfera que as Exposies Universais, promovidas pelas indstrias

    europias do sculo XIX, tornaram-se o centro de peregrinao ao fetiche mercadoria,como disse Walter Benjamin; elas transfiguraram o valor de troca das mercadorias.

    Criaram uma moldura em que o valor de uso da mercadoria passa para segundo

    plano. Inauguraram uma fantasmagoria a que o homem se entregava para se distrair.

    As exposies universais construam o universo das mercadorias.41 Atravs delas o

    mundo planejava e imaginava a industrializao para todo o planeta.

    Paris e Londres comandaram as exposies em 1851, 1855, 1862 e 1867; em

    1873 foi a ustria a promover outra exposio (e desta, o Brasil tambm participou42).A industrializao, alm de proporcionar o espetculo a que me referi, tambm

    ps em xeque antigas crenas e vivncias urbanas, fazendo a cidade olhar-se e sentir-se

    enferma, com necessidade de cura. Nesse sentido, pode-se dizer que o processo

    industrial trouxe para dentro da cidade a crise, que se refletiu no drama de reconhecer

    que precisava reorganizar-se e melhorar, como se fosse possvel e preciso fazer a

    cidade passar por um processo de refino. Assim, a cidade concentrava, ao mesmo

    39TOURAINE. Crtica da Modernidade. Op. cit., pp. 18-19.40TOURAINE. Crtica da Modernidade. Op. cit., pp. 68-71.41BENJAMIN. Paris, capital do sculo XIX. In: KOTHE. Walter Benjamin.Op. cit., p. 35 e ss.42Em Porto Alegre tambm tivemos Exposies Universais significativas: entre elas aBrasileiro-alem, de 1881,ocorrida em local onde hoje encontra-se a av. Lima e Silva e a de 1901 intitulada Grande Exposio, onde havia,alm dos pavilhes especficos dos municpios do Rio Grande do Sul, os pavilhes dos motores a vento Berta,dos tecidos Rheingantz, das fotografias Ferrari e o Pavilho das Machinas. MACEDO, Francisco Riopardense de.Porto Alegre, Histria e Vida da Cidade.1973, Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 105.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    30/134

    173

    tempo, a idia de doena, representada pela crise, e de cura, materializada pelo

    progresso industrial.

    Quando utilizo a palavra crise, no quero referir-me morte ou esquizofrenia

    de um determinado processo, mas, ao contrrio, tomo o sentido dado por Edgar Morin,que v a crise como elemento que configura e d formato sociedade moderna,

    sociedade esta que se submete constantemente a um fluxo complexo de

    transformaes. Nela, desenvolvimento e crise so inseparveis, porque o primeiro

    dependente da segunda para existir.

    Sobre a crise na sociedade ocidental, Edgar Morin diz: Assim, no que diz

    respeito s sociedades ocidentais, a crise de civilizao, a crise cultural, a crise dos

    valores, a crise da famlia, a crise do Estado, a crise da vida urbana, a crise da vidarural, etc. so outros tantos aspectos do ser das nossas sociedades, que esto

    evidentemente ameaadas pela crise mas tambm vivem da crise43.

    Para cada projeto, mudana ou idia tem havido uma ruptura, um rumo que no

    se esperava e assim a histria do Ocidente tem sido caracterizada e moldada pelas suas

    incertezas, crises e desvios. E justamente essa configurao, essa dinmica, que d

    vida evoluo e forma do desenvolvimento. Sem perturbaes ou crises a

    modernidade, tout court, no se concretizaria, j que a busca do futuro cessaria. Asincertezas do devir que provocam a incessante busca da realizao do que foi

    planejado; a evoluo s evoluo apenas quando ela no seguiu um processo

    provvel44.

    Neste sentido, a modernidade nas suas idias de progresso e de projeo para

    o futuro necessita, infinitamente, de atos inaugurais para ser autntica e aquilo que

    foi inaugurado precisa de um segundo ato, para que o anterior seja considerado o

    primeiro: como o alvo o futuro, necessrio que o primeiro seja seguido pelo

    segundo para ser realmente o primeiro.

    43MORIN. Para Sair do Sculo XX.Op. cit., p. 318.44MORIN. Para Sair do Sculo XX. Op. cit., p. 313.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    31/134

    174

    Francisco Coelho dos Santos, ao referir-se s idias de linearidade e de

    universalidade da evoluo histrica na modernidade, com sua busca de causas

    primeiras e de finalidades, diz: O primeiro no o primeiro se no seguido por um

    segundo.Em conseqncia, o segundo no simplesmente uma espcie de retardatrioque vem depois do primeiro, pois ele que permite ao primeiro ser o primeiro. Assim,

    o primeiro no consegue ser o primeiro sozinho, por suas prprias foras. Ele precisa

    que o segundo, pela fora de seu retardo, o ajude a s-lo.45

    Por isso, o pensamento do homem urbano se divide entre fascnio e tristeza, pois

    a modernidade deixa irresolvel o vcuo existente entre as intenes e a realidade;

    entre a soluo de uma crise e o desejo de que haja um fluxo contnuo do progresso.

    Max Weber, secundado por Julien Freund, explica esse fenmeno da seguinteforma: O homem racionalizado sabe que vive no provisrio, no incerto; sofre, porque

    a felicidade para amanh, ou para depois de amanh, e porque se encontra situado

    em um movimento que no cessa de maravilh-lo e de decepcion-lo com novas

    promessas. A racionalizao tem pois um carter utopista: deixa acreditar que a

    felicidade para os filhos, para os netos e assim por diante.46Mas, por outro lado, este

    sentimento de desencantamento e hesitao, ligado certeza de que o presente lhe

    pertence, o que move os habitantes da cidade.Para Max Weber, o emprego dos mtodos cientficos e a intelectualizao, que

    geraram os progressos da tcnica, trouxeram como conseqncia a descrena do

    homem nos poderes mgicos, nos espritos e nos demnios, ficando perdidos os

    sentidos proftico e sagrado das coisas. Ele observa que assim como a racionalizao

    ocidental exprime um desencanto do mundo, traduz tambm uma espcie de confiana

    por assim dizer desarrazoada do homem em suas obras e criaes. Neste sentido ela

    correlata da importncia crescente que assumem a tcnica e o artifcio que somos os

    45SANTOS, Francisco Coelho dos. O Acaso das Origens e o Ocaso das Finalidades.1995. Em palestra proferidana disciplina de Teorias da Histria, no Mestrado em Histria, da PUCRS, pp. 1-11, p. 9.46FREUND, Julien.Sociologia de Max Weber.1987, Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 4.. ed., p. 22.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    32/134

    175

    donos, diferentemente dos fenmenos naturais47.A modernidade produz e produto do

    desencantamento.

    A doena, que no sculo XIX, passa a ter um tratamento de fundamentao

    racional e no mais uma correlao com a magia, estendeu-se cidade

    48

    . Pensou-se, nosculo XIX, que a crise urbana poderia ser sanada atravs da higienizao, por isso,

    Pierre Lavedan, especialista em urbanismo, observou que a histria da cidade

    oitocentista foi a histria de uma enfermidade49. Por sentir-se doente, essa cidade

    depositou na tecnologia industrial as expectativas para curar-se e, assim, razo e

    tcnica passaram a ser, paradoxalmente, encaradas, com f, como um caminho para a

    salvao.

    Seguindo os rastros da medicina social e do direito, que uniram-se para impor omesmo padro de comportamento ideal para a sociedade, arquitetos e urbanistas

    trataram de arrumar a cidade para cur-la da desordem, que crescia como uma

    doena viral e, por isso, a idia de civilizao eficiente tornou-se tambm sinnimo de

    profilaxia. A preocupao com o saneamento ou com a higiene pblica atingiu todo o

    meio urbano depois que prises e hospitais foram reconhecidos como focos principais

    de doenas contagiosas, como a peste, a malria, a clera ou a tifide.

    Foi no sculo XIX que ocorreram os primeiros investimentos em relao aoencanamento de gua e a construes arquitetnicas, que previam ambientes com

    47FREUND. Sociologia de Max Weber.Op. cit., p. 109.48 A preocupao com a causa da disseminao das doenas contagiosas, a sua profilaxia e o tratamento maisadequado inquietavam os homens citadinos do sculo XIX. Norbert Elias, em seu estudo sobre os padres decomportamento que a civilizao ocidental adquiriu, ao longo dos sculos, em relao ao controle das funesnaturais como dormir, cuspir, urinar ou comer e o emprego ideal delas no meio urbano, observa que ossentimentos de vergonha e repugnncia, que temos hoje em dia, a cerca de tais necessidades fisiolgicas,deixaram de se concentrar na imagem de deuses ou influncias mgicas, como o era no sculo XVI, para adquirira partir do sculo XIX, atravs do conhecimento cientfico, a imagem de doenas e de seus bacilos. As medidas

    de ordem higinica que foram tomadas na cidade oitocentista revelaram, alm de uma valorizao exacerbada nosdiagnsticos da cincia, a crena na importncia em homogeneizarem-se os comportamentos para poder aplicar-lhes leis mais claramente apreensveis. Ver: ELIAS. O Processo Civilizacional.Op. cit. Alm disso, as cidadespassaram a ser vistas como os principais lugares de irradiao e concentrao das doenas que afetavam acivilizao. No difcil deduzir que a associao de idias como controle de comportamento, profilaxia dedoenas e organizao higinica da cidade afetaram todos os setores organizadores da urbe, como as diretrizespolticas, o padro econmico, o planejamento urbano e arquitetnico, as estratgias da medicina, os projetostecnolgicos e a dinmica das relaes sociais.49Apud. MUMFORD, Lewis.A Cidade na Histria.Suas origens, suas transformaes, sua perspectivas.1965,Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada 12. ed., (2 Vols.), p. 677.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    33/134

    176

    muita ventilao para a entrada do sol, do ar e da luz e a planos urbansticos para

    parques e jardins, que consideravam as reas verdes pblicas os pulmes que toda a

    cidade necessitava ter.50

    Assim, aos poucos, as ruas transformaram-se no palco, onde desenvolver-se-a acena do progresso industrial e do desenvolvimento. Na busca de um aproveitamento

    mais alinhado dos prdios e das ruas da cidade desses tempos, evidenciou-se a opo

    pela profilaxia civilizatria; ela ligou-se ao fato de existir um desejo de que a cidade

    fosse a representao do xito do avano material atingido pela sociedade, mesmo

    reconhecendo-se, concomitantemente, que no seria possvel negar-se que ela era

    tambm o smbolo de desorganizao da aglomerao humana.

    Fig. 01: A cidade como medida de progresso (fonte: Mirian Antonini, acervo pessoal)

    50 No sculo XIX, no esqueamos, Pasteur provou que organismos microscpicos causadores de doenasmultiplicavam-se na sujeira e poderiam ser eliminados, em grande parte, atravs do uso da gua e sabo ou seexpostos ao sol. Seus estudos alteraram a concepo de ambiente externo e preveno de doenas, contribuindopara a padronizao de costumes e medidas profilticas. Sobre o assunto ver: MUMFORD.A Cidade na Histria.Op. cit., p. 604.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    34/134

    177

    interessante notar que, em cidades importantes ou capitais brasileiras, a partir

    do sculo XIX, os cadernos intitulados Comisso de Construo e Melhoramentos do

    Municpio, que reunia o fruto do trabalho de vereadores e urbanistas, ganham a partir

    de 1890, mais um ttulo: Construo, Melhoramentos e Embelezamento doMunicpio.

    O emprego da palavra embelezamento nos relatrios de tais comisses, no

    por acaso: a funo era a de expressar o sentimento no qual estavam mergulhados os

    cidados desse perodo, que viam a cidade tornar-se feia e deformada, apesar de ser

    encarada tambm como pronta e construda. Melhorar e embelezar era crer que o

    progresso, encarado como avassalador, destruiria o primitivo e implantaria o moderno.

    Melhorar e embelezar, que aparentemente revelavam um objetivo libertador,terminaram por aprisionar o homem citadino em perseguir o que jamais se cumpriria

    em sua plenitude.

    Propiciou-se a fcil correlao do primitivo e do moderno com o velho e o novo;

    para a cidade tornar-se bonita e, claro, limpa, era necessrio destruir ou suplantar o

    velho as doenas, os esgotos a cu aberto, as ruelas esburacadas e cheias de poas

    de chuva, os becos desalinhados, o trfego confuso entre carroas, cadeirinhas ou

    tlburis, a trao manual exercida pelos negros, por exemplo. Arrumar tudo isso tornou-se um projeto do devir, mas no concretiz-lo gerou a frustrao. O homem da cidade

    moderna desejava o novo, mas tinha que, obrigatoriamente, de conviver com a

    tradio, muitas vezes irresolvel para a cincia.

    Essa mesma situao processou-se no Brasil. Apenas com uma diferena

    fundamental: em nosso pas, j que nascemos sob o signo da miscigenao, o velho e o

    novo coexistem e no so incoerentes. Aqui o conflito transformou-se em mistura e

    desejar a novidade sem saber se livrar do antigo apenas mais um dos elementos que,

    somados ao nosso processo histrico-social, colaboram para fomentar o que temos de

    especial: o equilbrio de antagonismos, como bem mostrou Gilberto Freyre, em Casa-

    Grande & Senzala, ao analisar a gnese do nosso complexo cdigo de mestiagem que

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    35/134

    178

    se expressa em todos os segmentos da formao nacional, seja na poltica, na

    arquitetura, na urbanizao, na economia, na educao, na sociedade ou na religio. 51

    Nosso hibridismo, alm de estar na congregao de diferentes etnias est

    tambm, para o autor, ligado aos valores da famlia como unidade civilizadora, queestiveram presentes desde o incio da nossa formao social. Para ele, a famlia,

    unidade que em sua origem estabilizadora pelos valores que carrega, aqui teve de ser

    civilizadora e dinmica para ocupar espaos e transform-los. A famlia ocidental o

    ncleo social mais conservador, mas no Brasil ela foi utilizada tambm como elemento

    transformador e implantador de uma nova civilizao. Ela precisava ter esprito

    aventureiro e audacioso, mas sem perder suas caractersticas fundamentais de

    hierarquia rgida.Assim, o brasileiro esteve, desde a sua formao, mergulhado em uma

    hibridizao de cdigos, que no o assusta e nem o intimida. uma mistura que, se

    transportada para outras esferas dos nossos princpios ou padres, desvela o

    comportamento sincrtico que temos diante do novo e do antigo, do tradicional e do

    moderno, da nostalgia e da deciso, da festa e do trabalho, do preconceito de cor e da

    miscigenao, da casa e da rua, da razo e do entusiasmo, da generosidade e da

    perverso. Para o brasileiro, cada um desses lados permite esquecer o outro, comoas duas faces de uma mesma moeda. E no entanto, os dois fazem parte e constituem

    expresses ou reflexes de uma mesma totalidade, de uma mesma coisa52.

    na mistura de oposies, na hibridizao, que caracteriza nossa sociedade, que

    podemos ver o projeto moderno. Sem desprezar a homogeneidade, conseguimos criar

    diferenas culturais e religiosas, que se adaptaram ao projeto moderno dando-lhe uma

    nova configurao, sem anul-lo.

    Roger Bastide, a respeito da nossa uniformidade nas oposies, observou os

    contrastes urbanos existentes entre So Paulo e Rio de Janeiro, e concluiu que, para

    entender o Brasil, seria necessrio, em lugar de conceitos rgidos, descobrir noes de

    51FREYRE. Casa-Grande & Senzala. Op. cit., p. 53.52DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. 1994, Rio de Janeiro: Editora Rocco, 7. ed., (primeira edioem 1984), p. 68.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    36/134

    179

    certo modo lquidas, capazes de descrever fenmenos de fuso, de ebulio, de

    interpenetrao, noes que se modelariam conforme um realidade viva, em perptua

    transformao.53

    Para este autor, os contrastes em que vive o brasileiro podem ser vistos emqualquer lugar; pode ser s ruas, nas construes arquitetnicas, nas paisagens

    marcadas e delineadas, ao mesmo tempo, pelo verde das montanhas e o azul das guas.

    Dentro de um mesmo pas, o autor v duas cidades que se contrastam pela forma at

    como seus habitantes conduzem o seu dia-a-dia. Em So Paulo a cidade que

    endeusa o trabalho e que, dizem, nunca dorme o vagabundear (que raramente

    acontece) d-se numa rpida escapadela s confeitarias para tomar de um s gole, em

    p no balco, uma xcara de cafezinho54

    .Num ritmo frentico, a cidade paulista no chega a reter recordaes ou imagens

    do passado em seus conjuntos arquitetnicos: o cenrio sempre provisrio para que se

    possa acompanhar as mudanas mundiais. Em So Paulo, construir e destruir so

    apenas duas faces da mesma moeda; sem sentimentalismo, o importante estar atual.

    No Rio de Janeiro, o autor diz que espera-se tudo da sorte, do acaso, do

    imprevisto, e a especulao que move a classe mdia na busca da fortuna, o dinheiro

    o novo Deus adorado no Brasil, sentencia. L, nos cafs, depois dos escritrios,grupos sentados s mesinhas buscam um bom negcio, um terreno que se compre para

    vender pelo dobro no dia seguinte, um automvel velho que se remende para faz-lo

    passar por novo...55

    Drstica ou lentamente, com qualidade tcnica ou no, buscar a substituio do

    antigo tem sido o savoir-vivre das cidades brasileiras. Dentro delas experimenta-se

    constantemente o passageiro; se um novo produto ou uma nova inveno aparece, no

    tardar muito para que o seu correspondente citerior seja logo considerado ultrapassado

    ou antiquado sabemos do fato antes mesmo de que ocorra efetivamente o seu

    53BASTIDE, Roger.Brasil, Terra de Contrastes. 1964, So Paulo: Difuso Europia do Livro, 2. ed., (Primeiraedio em 1957), p. 15.54BASTIDE.Brasil, Terra de Contrastes. Op. cit.,p. 136.55BASTIDE.Brasil, Terra de Contrastes.Op. cit., p. 145.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    37/134

    180

    desaparecimento definitivo da paisagem urbana. No entanto, por paradoxal que seja, de

    maneira dinmica, o velho e o novo convivem simultaneamente, numa substituio

    interminvel, em que para o antigo sempre haver a novidade at o momento desta

    ltima logo tornar-se tambm passado.Entre a concepo de Freyre e a de Bastide a respeito do Brasil o primeiro

    mostra o equilbrio de antagonismos e o segundo, a uniformidade nas oposies

    no h discordncia; para eles, os fenmenos sociais brasileiros so originais porque,

    apesar de vivermos sob o mesmo modo de civilizao em que vive o mundo ocidental,

    temos peculiaridades que nos diferenciam e no nos excluem dele. Aqui, desde o

    sculo XVI, a hibridizao de cdigos, a miscigenao, operou naquilo em que o

    Ocidente possui e mais se orgulha de possuir: a racionalizao, o direito, o Estado-nao, a religio monotesta, o cientificismo, a vida urbana...

    Num jogo imbricado, a modernidade brasileira do sculo XIX, que como iderio

    queria realizar-se via modernizao das cidades com os equipamentos ingleses e

    franceses, teve como contrapartida a vivncia urbana concreta, viabilizada pelos

    elementos antigos e tradicionais, com caractersticas luso-brasileiras, que no momento

    se faziam indesejveis. Como peas de um quebra-cabeas, a negao do antigo e a

    inesperada miscigenao do novo com o antigo, foram se encaixando para dar forma aessa modernidade. Aqui a escravido no impossibilitou o desenvolvimento do

    capitalismo industrial.56

    Ao analisar o sculo XIX, Gilberto Freyre tambm tratou de um outro processo

    de hibridizao e chamou-o de reeuropeizao. Foi o momento em que as atitudes

    estiveram sempre voltadas para a recusa do passado e para a apologia do novo: o novo,

    o padro ingls de vida, e o passado, a estrutura moral luso-brasileira. Esta passou a ser

    56 No concordo com alguns autores que vem a abolio da escravatura, no final do sculo XIX, como oprimeiro passo para o Brasil ingressar no capitalismo e modernizar-se de vez, nos anos subseqentes. Taisautores, da vertente materialista, como Paul Singer, por exemplo, colocam que a eliminao da mo-de-obraescrava facilitou a introduo no pas de tcnicas industriais modernas e que, mesmo assim, a abolio daescravatura e a proclamao da Repblica no tiveram uma repercusso marcante sobre o capitalismo mundial,[j que] a nossa integrao na economia internacional era bastante parcial, durante o sculo passado e mesmodurante os trs primeiros decnios deste. SINGER. Paul. O Brasil no Contexto do Capitalismo Internacional.1889-1930. In: BORIS, Fausto (dir.).Histria Geral da Civilizao Brasileira. O Brasil Republicano.Tomo III,10volume, 4. ed., pp. 347-390, p. 350.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    38/134

    181

    rejeitada e negada e aquele, super valorizado. Dentro da cidade, alguns elementos

    foram se tornando essenciais nossa vida, desde as vestimentas moda inglesa e

    francesa como os chapus, os relgios, os vestidos para senhoras com cores sbrias e

    discretas at o uso da carruagem e do bonde de trao animal, este ltimorepresentando a velocidade necessria vida urbana, at ser ultrapassado pelo bonde

    eltrico.

    A modernizao oitocentista reforou a lgica moderna de ignorar-se a mistura e

    desejar-se, infinita e incansavelmente, o devir. Sempre em sintonia com os

    acontecimentos mundiais, o Brasil viveu os efeitos mticos da modernidade, gerados

    pela cincia e pela tcnica. (Jean Baudrillard diz que nem a cincia, nem a tcnica so,

    elas mesmas modernas: so os seus efeitosque o so.57

    )Depois da chegada de Dom Joo VI, o contato entre brasileiros e ingleses se

    acentuou e misturaram-se, novamente, no Brasil o estilo de vida, a arquitetura e a moda

    nacional e estrangeira58. Os servios urbanos, como iluminao, calamento e

    saneamento, se aperfeioaram. Mau e os ingleses modernizaram a tcnica do

    transporte. Os filhos das famlias ricas voltavam doutores formados da Frana, da

    Alemanha ou da Inglaterra e peras italianas eram cantadas nos teatros. Os bares do

    caf cresciam em importncia social. Era tambm a poca da abertura dos bancos, dacriao das companhias de navegao, das discusses abolicionistas, do engrossamento

    das levas de imigrantes, da inaugurao das fbricas de cerveja, chapu, sabo,

    57BAUDRILLARD. Modernit. Op. cit., p.31.58A Corte, impregnada pelas novidades inglesas e francesas, serviu de modelo s outras cidades do pas, no sna moda para os cavalheiros e damas, mas nas construes arquitetnicas ou alinhamentos urbanos, conformeafirmou a arquiteta Clia Ferraz de Souza: (...)Desde o incio do sculo 19, estava no Brasil e, em particular no

    Rio de Janeiro, a Misso Artstica Francesa, que fundou a primeira Escola de Arquitetura - Grandjean deMontigny - expandindo os conhecimentos das tcnicas e arte francesas - cole des Beaux Arts. Mas somente apartir de meados do sculo 19, foi que essa influncia se generalizou por todo o Brasil, atingindo especialmenteprdios pblicos e de uso pblico como a Beneficncia Portuguesa, o Teatro So Pedro, para citar algunsexemplos de estilo neoclssico em Porto Alegre. De maneira geral, o aparecimento das platibandas em todas asconstrues uma das principais respostas dessa influncia, que passou a ser um elemento regulador daarquitetura.SOUZA, Clia Ferraz de. Morfologias e Tipologias Urbanas. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy(coord). O Espetculo da Rua. 1992, Porto Alegre: Editora da Universidade e Prefeitura Municipal de PortoAlegre, pp. 11-12, p. 11.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    39/134

    182

    tecidos..., confeccionados em outros tempos no interior das casas ou mandados vir da

    Europa.

    Juntamente com tantos avanos tcnicos, o movimento, a elasticidade e a

    mistura se perpetuaram; numa congregao cuja a correlao conceitual mais adequada a festa.

    Fig. 02: O estilo neoclssico da BenefIcncia Portuguesa, acompanhado do bonde a burro que percorria,ao longe, o meio da rua. (fonte: Mirian Antonini, acervo pessoal)

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    40/134

    183

    2. OS TRAJETOS DOS BONDES E A TRAJETRIA HISTRICA DA

    CIDADE

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    41/134

    184

    Partindo do que foi tratado no captulo anterior, projetar e planejar os

    itinerrios dos bondes tambm uma atitude que pode ser entendida como

    profiltica, se se levar em conta que esta era uma forma de ordenar o trfego e

    organizar de maneira mais "limpa" o rumo que os habitantes deveriam tomar paracircular dentro do espao urbano. O bonde era associado idia de cidade

    maravilhosa, organizada e asseada. Ao v-lo passar, o habitante citadino podia

    admirar-se com o desenvolvimento tecnolgico que sua cidade alcanara, e quando

    nele andava, era participante e testemunha desse progresso.

    Submeter-se s regras de conduta e comportamento exigidas pelos

    motorneiros e cobradores no o intimidava, pelo contrrio, andar bem trajado, sbrio

    e respeitador dentro do bonde o colocava em harmonia com a inteno maior dacidade. As regras de boa conduta ordenavam: Os conductores de bonds no

    consentiro em seus carros, pessoas vestidas ou trajadas sem a necessaria

    decencia, ou em estado de embriaguez, e nem proferindo palavras ou gestos

    offensivos moral publica.

    Alm disso, das grandes janelas ou aberturas do bonde o passageiro podia

    observar os antigos, mas resistentes, meios de transporte a carroa, o cavalo, as

    carruagens, etc. e sentir-se orgulhoso e superior. No entanto, por outro lado, o

    desconhecido a mquina causava-lhe medo e insegurana.

    Tais consideraes, aqui generalizadas, se enfocadas um pouco mais para

    anlise do Brasil urbano no sculo XIX, mostram que em nosso pas o

    desencantamento, o fascnio e o medo, advindos da modernizao, se traduziram em

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    42/134

    185

    dois aspectos: o primeiro foi o de deixar mostra a diferena entre a tecnologia mais

    antiga a mo-de-obra escrava e a mais recente o uso da mquina industrial.

    O avano da industrializao fez a aristocracia rural e a populao da cidade

    fascinarem-se mas tambm resistirem inicialmente s mquinas e a demorarem-se adeixar de utilizar a conhecida e familiar mo-de-obra escrava para o trabalho. Por

    isso, mesmo impondo a novidade, a industrializao no impossibilitou, a princpio,

    a convivncia simultnea entre o que j poderia ser considerado passado e a

    expectativa do que j era futuro: em nossas cidades, a introduo de tcnicas

    industriais ocorreu, de maneira hbrida, reforo, com a escravido.

    No tocante ao desenvolvimento tecnolgico brasileiro deste perodo, Gilberto

    Freyre, ao comentar a impactante substituio do escravo pelas mquinas nascidades brasileiras, conta que durante as primeiras dcadas do sculo passado, na

    poca em que na Europa ocidental e nos Estados Unidos j comeava o declnio do

    cavalo, do burro e do boi como animais de trao e sua substituio pela trao a

    vapor, na antiga capital do Brasil cidade da maior importncia comercial, e no

    apenas poltica, entre as do Imprio a trao humana no s no fora ainda

    superada pela animal como continuava quase a nica. No se enxergavam cavalos

    nem burros. Nem carruagens nem carroas. S palanquins.Mas, por outro lado, embasbacados com os produtos ingleses, sempre em

    hibridizao, os brasileiros passaram a valorizar a velocidade, a mquina, a fora

    mecnica, o "antinatural". Segundo Gilberto Freyre, no Rio de Janeiro, as prprias

    carruagens foram se distanciando, em estrutura e forma de palanquins e liteiras

    para se tornarem, cada dia mais "trens", "mquinas", obras de mecnica ou de

    engenharia que ao conforto e s vezes ao luxo dos forros de veludo e das lanternas

    de prata juntavam capacidade de rodarem com extrema velocidade pelas ruas e

    pelas estradas.

    O gosto pela velocidade apoderou-se de no raros brasileiros, como um

    demnio, fazendo de alguns quase uns endemoniados.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    43/134

    186

    Ao confiar cegamente na eficcia dos produtos ingleses e franceses, a

    populao urbana deste perodo, se viu envolvida concretamente em uma fase de

    transio, que evidenciou ainda mais a mistura entre o novo e o antigo.

    Fig. 03 : Bondes: elementos modernizadores e modernizados. A legenda diz: "Essa comparao

    mostra claramente o tempo economizado pelos moradores da Tijuca graas aos transportes modernos e esse

    tempo ganho em todas as linhas modificou sensivelmente o rythimo da vida e da cidade. (anncio da revista

    Ligth de 1932, fonte: STIEL. Histria do Transporte Urbano no Brasil.1984, Braslia: Editora Pini Ltda, p. 312)

    Neste cenrio surgiu na Corte a maxambomba, primeira diligncia sobre

    carris, sob a responsabilidade da Companhia de Ferro da Tijuca.

    Como uma promessa de algo novo, este meio de transporte serviria para

    superar os outros, que passaram a ser considerados inferiores a ela e, portanto,

    inadequados para o desenho modernizador que se pretendia alcanar poca.

    Quando a maxambomba foi substituda pelos bondes puxados a burro, ou quando

    estes mais tarde foram colocados em escala de comparao aos de trao eltrica, odiscurso sobre o novo repetiu-se. A cada tentativa ou experincia de um meio de

    transporte diferente vivia-se a sensao da entrada em uma nova era. O desejo,

    sempre implcito, era o de sepultar a tradio e avivar a novidade.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    44/134

    187

    Com sensibilidade, um escritor, ao tratar da chegada do bonde em sua cidade,

    soube expressar bem essa mistura de fascnio e medo que os novos inventos traziam:

    Uma febre de curiosidade tomou as famlias, as casas, os grupos. Como seriam os

    novos bondes que andavam magicamente, sem impulso exterior? Eu tinha notciapelo pretinho Lzaro, filho da cozinheira de minha tia, vinda do Rio de Janeiro, que

    era muito perigoso esse negcio de eletricidade. Quem pusesse os ps nos trilhos

    ficava ali grudado e seria fatalmente esmagado pelo bonde. Precisava pular. (...)

    Um amigo de casa informava: O bonde pode andar at a velocidade de nove

    pontos. Mas, a uma disparada dos diabos. Ningum agenta. capaz de saltar

    dos trilhos e matar todo mundo...

    No entanto, nas dcadas seguintes, lentamente, um novo ritmo de trabalho ede produo imps-se com a substituio definitiva do negro pelo animal e pela

    mquina a vapor, das cadeirinhas, tlburis, carroas e carruagens pelo bonde, do

    modelo de vida portugus pelo ingls e francs. Mas por quase um sculo a

    admirao e a avidez do brasileiro pelo produto estrangeiro conviveram lado a lado

    com o seu conservadorismo escravista. Nas cidades brasileiras, negros, carregadores

    dos fedorentos tigres, dividiam a rua com o bonde, de modelo ingls, puxado por

    mulas; enquanto elegantes e velozes carruagens eram pilotadas por escravoscastigados e estafados.

    A crena exacerbada nos poderes da cincia, do direito, ou dos plantas

    urbansticas, como elementos redentores do nus da civilizao, transformou a

    cidade do sculo XIX no espao da racionalizao e da tcnica; e tais elementos

    passaram a ser entendidos como elementos possibilitadores das melhorias urbanas

    em relao infra-estrutura; mas essa mesma razo e essa mesma tcnica

    terminaram por trazer tambm, para o habitante da cidade, um amargo e nostlgico

    sentimento de ingenuidade perdida, ou da infncia que se vai e no pode mais

    retornar. O ritmo frentico da mquina era, ao mesmo tempo admirado e temido e

    trazia uma sensao de perda e de desencantamento.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    45/134

    188

    Existiam, nestas intenes modernizadoras, alguns propsitos que sempre

    foram buscados e desejados, mas que nem sempre foram atingidos. No Brasil, em

    especial, os ventos da modernizao e da tecnologia, associadas aos modelos ingls

    e francs de vida, fizeram soprar uma rejeio drstica ao antigo ou ultrapassado, oudaquilo que estivesse materialmente associado energia animal ou manual, como no

    caso dos meios de transporte; e fez, por outro lado, acender um desejo de viver

    intensamente a venerao pelo progresso, corporificado no produto novo, vindo do

    exterior. Foi o desvio (no sentido dado por Edgar Morin) desse momento as

    formas tradicionais de meio de transporte, como a cadeirinha ou as carruagens

    que gerou a possibilidade de se buscar o melhor para a cidade o bonde. Assim, se

    evidenciou a complexidade das relaes entre a tradio e a modernidade, nas quaisesta ltima fez com que a primeira fosse reconhecida, apercebida, mas negada.

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    46/134

    189

    Fig. 04 e 05: Entrecruzamento: charretes, postes eltricos, trilhos de bonde e prdios de estilo

    arquitetnico conforme a tendncia da poca, no mundo ocidental. (fonte: Mirian Antonini, acervo pessoal)

  • 5/24/2018 Sobre Os Trilhos Do Bonde_cp000287

    47/134

    190

    2.1 DOS CAMINHOS E DOS TRILHOS NUM PORTO ALEGRE

    a partir desse contexto que a histria da cidade de Porto Alegre tambm

    pode ser estudada. Analisando, em linhas gerais, a formao e o desenvolvimento da

    nossa cidade, observamos que ela no fugiu ao tipo de organizao e da lgica em

    que se fundaram as outras cidades ocidentais, no contexto histrico dos sculos XVI

    e XVII. Ela j nasceu moderna, em seu esquadrinhamento urbano e nos seus ideaisurbansticos: as defesas, assentadas em fortificaes ou trincheiras, mesmo que

    feitas de pau-a-pique, reservavam dentro de si a sua base institucional que regulava

    as decises polticas, econmicas e sociais da urbe as igrejas, ou as capelas, e as

    cmaras municipais, ou as intendncias.

    A ponta da pennsula foi cercada, distncia, na beira do Jacu, pelo Forte de

    Santo Amaro, a sudeste pelo presdio Jesus-Maria-Jos, criado em 1737, em Rio

    Grande e mais ao norte pela fortificao de Rio Pardo. Tais fortalezas serviram paracombater ou evitar o avano espanhol. Alguns anos mais tarde, Jos Marcelino, a

    quem coube organizar o povoamento, tambm mandou erguer trincheiras elevadas,

    em torno do que acabaria por ser o permetro urbano de Porto Alegre.

    Devido preocupao de possuir politicamente, de forma definitiva, o

    extremo-sul do Brasil, houve o envio de famlias de aorianos, em 1752, para povoar

    o que anteriormente pertencia aos espanhi