sobre casamento civil - fd.unl.pt · digamos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... custa...

15
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE 0 CASAMENTO CIVIL - CARSPA DIRIGID1 A0 EXCELLENTISSllYIO SENHOR ALEXANDRE HERCULANO PEL0 ACADEMIC0 a. e. a gi, COIMBRA IMPRENSA LITTERARIA I806

Upload: trinhkien

Post on 27-Nov-2018

222 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: SOBRE CASAMENTO CIVIL - fd.unl.pt · DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares,

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE 0

C A S A M E N T O C I V I L -

CARSPA DIRIGID1

A 0 EXCELLENTISSllYIO SENHOR

A L E X A N D R E H E R C U L A N O PEL0 ACADEMIC0

a. e. a g i ,

COIMBRA IMPRENSA LITTERARIA

I806

Page 2: SOBRE CASAMENTO CIVIL - fd.unl.pt · DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares,

Ex IT'" s r .

Vou dizer duas palavras sobre o casamento civil, V. Ex." vindo ti imprerisa defender o contracto conju- gal, conf~ssou que motivos bern estranhos a interesses purnn~ente scus o obrigavarn a escrever sobre este obje- cto; e n'uma defeza do contracto, magistralmente elabo- rada, pnsmou da opposiplo, que encontrava o projecto nits pracas, nos cafhs, na religigo do clero, na religi'ao do ~ ~ o v o , emfirn na consciencia da napgo, que 6 o san- ctuario da opinilo publica.

bdrnirou-se de que o povo se nlo ajuntasse em massa em volta da Cornmissao revisora do Codigo para agra- decer-lhe, de joelhos no chlo, os esfor~os d'ella para o progress0 e civilisa@o da patria. 0 desprezo dos trabalhos da CommissZio era s6 digno

d'um paiz de selvagens, disse V. Ex." Chegdmos, pois, B razlo que me levou 6 escripta.

Esla, porque do fundo de meu corap?io fui seinpre contra tal projecto, e outra radio d'orgulho foi estimulo para isso.

Page 3: SOBRE CASAMENTO CIVIL - fd.unl.pt · DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares,

Pediram-me que assignasse contra o projecto; nsscnti ao pedido, mas n"a queria que rne lcssern o nome, corno escripto automaticamcntc; aqui vac, pois, um protest0 solemne de minha consciencin.

Sou um cidadlo portuguez, e se sou rapaz ainda, se nlao posso regenerar o paiz corn ideias de tanto alcance como V. Ex.a, n3o pr6zo por isso menos o engrandeci- mento da pntria.

Tinha dcsde a appari~iio do projecto, bem no fundo da alma, um brado contra a profanas30 d'uma crenc;n do povo, toda de poesia, que n8o estorva o marchar do seculo.

Mas desde o momento em que cu li que V. EX.^ chd- mava selvagens aos que nlao aceitavam de born rosto o projecto, quiz repelir o epithet0 que V. EX.^ assentava sobre mim.

Nao dasconhec,~ os immensns servi~os de V. EX.^ e de seus collegas na revislo do Codigo ; mas permitta-me V. Ex.a que diga com a franqueza da mocidade e sem faltnr 5. decencla, que foi dcmasiadamente injusto para com seus adversaries na quest30 do casamento. 0 apanagio dos tempos n~odel-nos 15 a liberdade de

consciencia, 6 a liberdade de crenga, Q a liberdade de pensar, que 6 , como V. EX.^ diz, o artigo mais sancto do credo liberal.

Muito bem I se V. EX.^ assim pensa, porque n lo per- doa 5, direccao da intelligcncia dos outros, e para que ha de amarrar uns ao obscurantismo do passado, e col- locar sobre a sua fronte o diadema dos apostolos illu- minados do futuro?

Perdoe dc exigir-lhe uma resposta ; dirijo-me a V. EX.^ por que o venero como um dos pensadores mais profun-

Page 4: SOBRE CASAMENTO CIVIL - fd.unl.pt · DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares,

dos (la minha patria, e urn dos poetas mais inspirados; t4 intclligcncia do philosopho, ao cora~ao do poeta se di- rigcm estas poucas linhas.

Mas escrever na actualidade, em que a palavra li- berdade 6 para todos um nome, que encanta, levan- tar a voz contra o delirio irreflectido, f6ra do dever e do born senso, bem sci que 6 loucura que reclama desprezo, e lido serA ludo com escarneo e commisera- $'lo talvez.

Mas que importa? Console-se-nos a olma do erpandir-se tal corno pensa,

e scr livre em manifestar-se corno ~aciocina. Para iirna alrna encrgica, para um espirito altivo, a

mnldic~lo de todos 6 menos que a voz da consciencial A crenqa, a religilao, a poesia do dogma, a philosophia da sanctiGcac,"a do amor, 6 o sentimento, que acho no fundo da consciencia, ondc tem vindo echoar a voz de grandes escriptores, que profundi~m o yoder do estado e o poder de Roma.

Que nos acompanhe pelo mcnos a nobreza do senti- mentos.

Antes de entrar, porBm, na analyse d'esta questRo, debatida na imprensa em face da nii@o toda, a voz da consciencia imp6e-me o dever de prestar homenagem B liberdade universal, aos doces vinculos, que tern preso ao seu culto ;, mundo civilisado.

DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- nos inimigo das ideias do seculo, que sejam a virtude da civilisa~lo moderna.

0 s concilios da Igreja, os Aposlolos da re1ig;Bo de Christo, os enthusiastas da razao pura, assemelhasse- nos um parlamcnto sonoro e publico, onde tern dis-

Page 5: SOBRE CASAMENTO CIVIL - fd.unl.pt · DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares,

cutido, uns com os olhos fitos 110 c6u, outros com a mlo sobre a consciencia nervosa do seculo, este importante act0 da vida humana, que se chama uniho conjngal.

Ap6s a lucta, deve a lei regularisar a victoria. Eis o que se espera com anciedade, sem se saber

ainda se o golpe cahe sobre a direita ou esquerda da balanqa.

Tenho pensado, se a uni'lo do homem B mulher deve ser a traducqiio irnmediata do instinelo, da attracqso re- ciproca dos dous seres, ou se se deve legitimar essa ten- dencia, esse primeiro elemento das naqties, com formu- las mais sublimes e venerandas. 0 sentimento responde; o nosso coraqao, que turn

uma tendencia para tudo quanto 6 infinito e grande, para tudo o que tern o cunho de mysterioso e divino, exulta na sanctificaqBo d'essa lendencia dos dous seres, tendo Deus por ultimatum de sua aspiragiio 1

Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares, na harmonia das estrellas, na mudez do chu, na profundeza do infinito, alguma cousa superior ao tempo, Bs leis physicas e a nossa natureza material, que nos eleva 4 nossa immor- talidade, B tendencia para o Ser Supremo, descesse hoje a prestar homenagem a uma philosophia austera, arida, sem nenhuma vantagem social, e demais om desharmo- nia com uma crenqa innocente do povo.

NBo se receie a profana@o do catholicismo, porque alguem possa contrahir o matrin~onio s6 como uma for- mula imposta pela lei, sew f6, nem crcnqa no sacra- menlo.

SerB, por ventura, o espirito religioso, o grande esmero que ha em V. EX.^ pela dignidude da religih,

Page 6: SOBRE CASAMENTO CIVIL - fd.unl.pt · DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares,

que o tenha em sobresalto pela possibilidade de haver um sacrilegio?

Se assim 6, V. EX.^ veja se evangslisa a humanidade, se a vincula toda ao martyrio do Golgotha, e entao terh em nada a dificuldade que receia.

Pois hAo de fechar-se os ternplos B devoqko dos cren- tes, 56 porque heja o facto sacrilego de se ajoelhar pe- rante a hostia sagrada, o que despreze a intenq8o de piedade, e seja religioso s6 aos olhos do publico?

Absurdo. IIa dc pdrtir-se a haste da cruz, levantada no ern;o,

porque o viajeiro, que passa, ri e escarnece d'este sym- bolo triste da redempsiio universal?

Absurdo e profanagao. Se 6 certo que se pbde obrigar a contr a h' ir o sacra-

mento do malrimonio a algurn portuguez, que n lo pro- fesse o catholicismo; se 1.5 certu que para a lei lhe reco- nheccr o casarnento 6 preciso, que clle force a conscien- cia, sujeitando-se ao rigor das formulas, nem porisso se estorva a c;ivilisa~bo, ou se coarzta a liberdade bem entendida.

V. EX.^ sabe muito bem que qualql~er membro d'uma corporaqlo political para ser cidadao pacifico, tern de renunciar a parte da sua liberdade, e sacrifical-a B ordem e exigehcias sociaes. E senko, para que se n5o brada contra a obrigac,So imposta pela lei de todo o mancebo srrvir a patria por um certo tempo? nko serB elld uma ohrigs$io tyrannica?

Pois bern. Se 6 f o r ~ a r a consciencia do que quer con- trahir o casamento o impor-lhe a obrigaqko do sacra- mento do matrimonio, en150 risquem-se de toda a legis- lac50 todas as obrigac,Ges, que prendarn a maxima ex-

Page 7: SOBRE CASAMENTO CIVIL - fd.unl.pt · DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares,

pansiio da liberdade individual. Sejamos ao menos cohe- rentes.

Mas perguntar-se-ha, que interessa a religiio, que dous individuos v"a ss6 por formalidade aos pQs do sa- cerdote, sem crenqa alguma no mysterio do acto?

Nlo 6 forqal-os a um sacrilegio? pergunta V. EX.^ Ainda bem que chegilmos a um ponto, em que esta-

mos de mlos dadas. V. EX.^ teme que se obriguem esses individuos a urn

crime aos olhos de Deus; e para livral-os d'essa infeli- cidade vae abrir-lhes a porta para outro crime. V. EX.^ manifesta uma dedicaqlao pel0 catholicismo, n8o que- rendo que se commetta o crime do sacrilegiol E como catholico, esquece-se que as leis da Igreja reconhecem, como um peccado mortal, o que viver com mulher sem a interven~80 religiosa?

De duas uma, ou havemos de ser catholicos sinceros, ou nlo.

Na primeira hypothese, n8o se envergonhe de cur- var-se, e dizer que o project0 era absurdo e irreligioso.

Na segunda, para que havemos de temer pela digni- dade da religilo, offendida no act0 sacrilego? n'este cilso esta solemnidade na igreja n8o tem nada que ver corn o mysterioso; n5o 8 mais que uma formalidade, pela qua1 a lei legitima a unilo dos esposos. Por tanto, n lo v%riamos dc lei, mudamos as formulas, mas o acto na essencia 6 o mesmo.

Ora, pcrgunto eu, t! vista d'isto que eoipenho teln V. Ex.a. em que seja rcconhecido pela lei o contract0 ci- vil?

Nlo se cornprehende. Mas pergunta V. Ex.a , que interessa il religigo, que

Page 8: SOBRE CASAMENTO CIVIL - fd.unl.pt · DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares,

contrdia o Sacramento do matrimonio, aquelle que no intimo da consciencia despreza a religilo que o sancti- fica? a lei que ligitima esta uniilo sera blasphema.

k facil responder d pergunta; intuitiva 15 tambem a falsidade da conclusilo, que V. EX.^ tira da lei ser geral para todos sem distinc~$o de crenpa.

A religi8o de certo que nada interessa, sen80 no culto externo; mas o que interessa 6 que a lei, querendo re- mediar uma profanac,lo d'um dogma, n lo seja t lo absur- da, que aggrave ainda o crime religioso.

NBo chame V. EX.^ intolerancia religiosa a uma crenqa intima, que me g l o r i ~ de manifestar publicamente. 0 pensar assim n l o quer dizer que eu considere o

padre e o algoz como os dous elementos essenciaes da sociedade. 0 que penso, 6 que a religilo, 6 t"a neces- saria ao progress0 social, que era urgente imp81-a como lei, se n l o f6ra uma crenpa do povo.

NBo se entenda que eu sou apostolo da tyrannia de consciencia, dictada pclo zelo desvairado da Inqiiisiq50 ; ou pela ambiplo perigosa do alto clero.

Espero ao njenos de V. Ex.a, que assim o entenda; ficarei de todo satisfeito se consiiltnr a srra consciencia, sem resentimento de ninguem, pondo de parte o amor proprio, e verd que n5o anda ma1 avisado, o que nBo desejn, qrie ao povo so facilite uma violaqlo d'um sacrp- mento da Igreja. . Se estas ideias minhas o fazem rir, especinln~ente de atrever-me a escrever-lhe ilma carta, fnparnos entilo urn dueto; porque 6 para rir o ver um sexagcnnrio dar gar- galhadas pelas miserias da humanidade 1

Espero, por6rn, benevolencia, que dc mim n2o park neu~ nfronta riem ameaqa.

Page 9: SOBRE CASAMENTO CIVIL - fd.unl.pt · DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares,

Permitta-se-me que eu diga, que niio B a f o r ~ a impe- rativa d'uma educac,Zio religiosa, escrupnlosa em dema- sia, que me leva para este lado; glorifico-me, sim, de receber de minha familla as ideias religiosas, qua t lo bem quadram 4 paz da aldeia, e que mt: inclinaram de crianga A religijo do christianismo; mas sinto-me seln preon- ceitos religiosos, a nlo ser a crenc,a sincera. para ajui- zar d'esta questlo o mais razoavel, e mais conforme a0 bom senso.

Sou rapaz e sinto no coraqiio este sancto enthusiasm0 pela expansao expontanea de nossa alma em tudo o que tem de mais terno, risonho e arrrhatador.

N'esta idade sente-se uma aspira~iio infinita, uma ten- dencia indizivel para tudo o que B grande; sentitnos em n6s uma elevac,tio para o~infinito, enla~ando-nos corn a existencia d'um Ser, que s6 pbde satisfazer a esta aspi- rac,ZIo de nossa alma corn sua magestosa grandezn I

De todos os ssntimentos o que mais nos prende ao mysterioso 6 o arnor I Sentimos urn calor, que cercn todo o nosso ser: o coraqho parece querer desprender-se do peito, otcupar o infinite, c nem o amor da mulher, que ama, pbde n~edir este sentir inco~nmensuravel de si mesmo! E que aspirdmos a uma felicidade eterna, que se ngo limita d felicidade do mundol

fi certo que a sanctificaq80 do amor vem da uniiio de duas almas por uma dedicaqao expontanea e reciproca dos dous seres.

Sei bem que B esta a philosophia e natureza do amor. No romance, no poema e na consciencia do poeta, o arnor 6 s6 isto; e a unilo, a identifica~ao dos dous seres 6 legitima desde entlo.

Mas n6s que vivemos na sociedade, havenlos de modi-

Page 10: SOBRE CASAMENTO CIVIL - fd.unl.pt · DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares,

ficar nossa CI-enqa, nosso pensar As convct~iencias d'ella; de contrnrio esla sublime rnanifesta~f~o dr nossa alrna, cahiria no desprezo, na immoralidade e na prostitui~io.

Era pois urgente que a lci legit~rnasse a unilo dos esposos.

Mas qlle caracter deve ter esta lei 4 Eis aqui a questso. O primeiro progredir do hon~em 6 o ronhccimento da

moralidade, e a practica de todos os deveres, quc mais Ihr asseguram a sua dignidade rational.

Sem a religilo o homem sacode de si, q~iebra esta ca- deia divina de deveres, que Ihe imp6e a sua naturoza intelllgente, e social; e para esse a ideia de Deus B urn prcjuizo reaccionario, que apaga todo o progresso e toda a crenqa no futuro. 0 homem que cumpre os deveres sociaes, s6 porque

s3o impostos pela lei, nlo passa d'um escravo t~rnido. ((A lei nada 6 quando 6 apenas a express50 da von-

tnde humana. $ precis0 para a tornar sanctn, que seja ella a expressao da vontade divina. 0 que a const~tue dever B o sentimento, que fnz elevar a obediencia a Deus. ))

Estas pnucas paginas d 'un~ (10s pensadores do seculo, Mr. de Lamartine, n~ostram ben~ que urn estado ,n lo pGde moralisar-se sem ter urna religiso, protegida pcla lei, onde assente a moral e n virtude.

56 a ~deia de Deus p6de dar um sentido a estas duas piilavras no pensar do grande poeta, do grande histciria- dor c do grande philosopho.

Aqui tem V. Ex." uma auctoridade insuspeita, n ~ d n inferior a todos os que trabalharam na revis30 do Codigo, e quc tem fti no progresso intellectual da humnnitlade; 6 urn dos nposlolos das ideitis novas.

Page 11: SOBRE CASAMENTO CIVIL - fd.unl.pt · DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares,

Ora n8o d difficil conceber qne um estado sem religi8o nZo tem existencia; n8o passa d'uma abstracqlo do espi- rito, bem desenhada no campo iifeal, mas absurda e ri- dicula no mundo exterior.

Felizmente gloriamo-nos de ver sanccionada a reli- gi3o catholica no art. 6 . O de nossa Carta Constitucional, como a religi5o do Eslado.

V. Ex.', como christzo, e nbs todos confessAmos a su- perioridade d'esta religiiio sobre todns as outras, que sc venerarn em torlos os cantos do globo.

Agora sejdmos coherentcs em tudo. 0 casamento 6 o mais importante act0 da vida do ho-

mem. Vae este incetar uma carreira nova, unido a sua esposa, que defende at6 B morte, tomando cada um sohrc si a maior das responsnbilidades sociaes.

0 homctu, conlo chefe unico da familia. tem a tor- nar-se cligno da soa miss50 augiisra, amar sun esposa, educnr os filhos, dar-!he5 umn direcc30 para a virtude, ensinar-lhes a comprehendor a ideia de Deuc, e n obc- diencin e respeito, que esta idein inspira.

A mulher pelo seu lado prende-se at6 4 morte ao seu destino e ao destino de sell csposo. Tern de crear em sru seio uma al~na immortal, a quc tcm de instruir, con) a ternlira e afago de mge, nos deveres sociaes, na gractica do bcm e em tudo o quc constitue a relig~Bo do cora~3oI 0 pae tem de ensinar no Glho, que eriste Deus e todos

os attributes da Divindadc: a m8e a resignaqlo, a oracgo e a esperanp.

Esla educa~ jo religiosa ten) a insinuar-se na almn dn c r ian~a logo que comeqa a pronuncinr as primeiras pa- lavras.

E se n lo veem da familia as pr~meiras impressdes reli-

Page 12: SOBRE CASAMENTO CIVIL - fd.unl.pt · DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares,

giosas, tarde on nunca serd em nossa alma o nome de Deus; e a obediencia d Divindade jdmais sera aceita em nosso'cora~ao.

Mas como pode ra os filhos receber as irnpressdes re, ligiosas da farnilia, se a nniiio dos paes niio tern a digni- dade sacramental, se n&o tern o elo sublime que os prendi~ a Deus?

0 casamcnto n&o 6 urn act0 vulgar da vida humane. 0 s esposos ao ouvirem as palavras sacramentaes, a ben- CBO solernne do christianismo para a harlnonia e felici- dade perpetna, como que ouvem uma voz superior a ditar-lhes a miss% grandiosa, que lhe imptie a religizo de Christo.

Se o paganismo, nlao solernnisava o hymeneu como urn acto tao grave, t&o magestoso, como o espirito do christiauismo, se o festejavam com folias e folguedos pro- fanos, n8o desconhecia a Rorna antiga, que o espirito re- ligioso devia firmar a uniao porpetua dos conjuges.

Sabe V. EX.^ como o direito roman0 definia o casa- mento. LA se encontra na L. 1 .a, Dig. de ritu nupt.- Conjunctio maris et foeminae, consortium omnis aitae, di- oini et humuni juris communicatio.

Diz V. EX.^, que o casamento 6 a base das sociedadtls, e que aos poderes civis pertence legislar sobre elle.

Muito bem. Se a nossa 1egisla~'to civ~l 6 muda sobre o casamento n'to nos envergonhemos de seguir o exem- plo do Codigo da Sardanha no art. 108, que incorpora no direito civil a disposi~80 do direito canonico na san- ctificaqao do acto mais importante da vida humana.

Assim temos alcan~ado o que queremos - a interven- q"a da lei civil na uni'to conjugal.

Parecerh exagerada esta accusaqao contra o Projecto

Page 13: SOBRE CASAMENTO CIVIL - fd.unl.pt · DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares,

do Codigo n'esta partc; pois que a lei n lo desconhecerh a uniiio corno sacrn~nento, apesar de a reconhecer corno sirnples contracto, firmado legalmente.

Mas se d facto asscntado. quo tal contracto 6 sacri- lego, e amaId~(;oi~~lo pelas leis da Igreja, se nSo tern rnesmo consequericlas tio salutares, corno o matrimonio, para quc tla de a Ici civil legalisar urn acto, que offende a prolwia religiiio garantida pelas Leis patrias?

NBo 6 evidente que a lei G contradictoria comsigo mesmo.

De duas uma, ou ha de vigorar o art. 6.O da C ~ r t a Constitucional, e n'esse caso risque-se essa lei irrefle- ctida do Projecto da Comrnisslo revisora, ou para vigo- rar. esta disposiqlo 6 urgente apagar o arteO 6 . O da Carta, e entoar hymnos B liberdade de cultos.

V. EX.^ para provar a grande utilidade da disposi~So do Projecto em questlo, leva-nos para a abstrac~So da philosophia, levanta-nos o v6u, que nos encobria o eden ~romettido, e mostra-nos urn ceu novo, puro, sem nu- vens, na liberdade de consciencia I

Mas pergunto, V. EX.^ para quem falla? pensart4 V. Ex.a que ha em Portugal perto de quatro milhBes de philosophos ?

0 s que sabem a sciencia, conhecerlo a nenhuma uti- lidade practica d'essa bella idealidade.

0 s que a nSo sahem, pasmam diante d'essa abstra- cqSo da sciencia. arregalam os olhos para melhor verem o que significa essa felicidade promettida, mas emfm riem-se d'essas disserta~hes philosophlcas, que n io corn- prehenitem.

lie mais, n6s n5o temos a liberdade de consciencia hoje-a lei alguma que nos forqe B crenGa intinla?

Page 14: SOBRE CASAMENTO CIVIL - fd.unl.pt · DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares,

Temos sim obrigac,Bes de respeitar exteriormente a religilo do estado, para a boa moralidade e bom erem- plo de todos; esta 6 a obrigac'lo que nos impBe a lei. E que rpaus resi~ltados nos veem d'isto?

Demais n'lo 6 preciso pensar muito para ver os incon- venientes practicos da lei em projeclo. Ha certamente ministros da religi'lo, que G o escrupulosos em objecto de dogma, mas que s8o sinceros na crenqa.

A religilo impds aos pastores da Igreja a obrigaclo de negar a sagrada hostia ao que viver err1 escandalo e pec- cado publico. Ora em que circumstancias collocar30 elles os casados civilmente, sem o l a ~ o religiose, que os una? De certo como a Igreja os considera, amanceba- dos na verdadeira significaqgo d'esta palavra.

Isto n io B fanatismo, B a uerdade, e digamol-a. V. EX.^ sabe bem que Pio MI, quando veio a F r a n ~ a

coroar o grande Napolego I, n8o o intimidou o poderio do primeiro homem do seculo, e em nome da sua misslo augusta Ihe mostrou. que o consorcio com Jesephina era um verdadeiro concubinato; e que em materia de f6 era inflexivel.

Ora, B vista d'isto, o parocho, que encontrar 6 meza da communhlo um casado civilrnente. est4 certamente entre Scylla e Carybdes. Se lhe concede a sagrada Pu- charistia, transgride os seus deveres de ministro da Igreja, se Ihe negar estc Sacramento do calholicismo evidentemente ngo reconhece, despreza mesmo uma lei nossa, legalmente constituida. E que ha a fazer-se a um cidadao portuguez que niio prestar obediencia a uma lei portugueza? 0 remedio 6 evidente, 15 processal-o.

Eis aqui o que resulta da lei:-a perseguiq80 do clero,

Page 15: SOBRE CASAMENTO CIVIL - fd.unl.pt · DigAmos isto bem alto. para que ninguern ouse olhar- ... Custa a crer que V. Ex.a, que tem lido na face bella da natureza, na magestade dos mares,

muitas vezes o mais sincero, o mais convict0 e o mais virtuoso.

Aqui estao expostas muito por alto todas as razijes, que me inclinam a manifestar o quanto acho absurda e inconvenientc urna lei, que nem nos civilisa ner$ nos traz essa promettida felicidade no pensar dos racionalis- tas s6rnente; e termina transcrevendo de Joiio Jaques Rousseau algumas palavras bem sensatas:

((0 espirlto raciocinador e philosophico prende 4 vida, effemina, envilece as almas, concentra todas as paixijes na abjec~ao do egoismo, na baixeza do eu hurnano, e de- mole assim surdamente os verdadeiros interesses da so- cledade; por quanto o que os interesses particulares tern de corninurn B t5o pouco, que sera impossivel equilibrar o quc elles teem de prejudicial.))

Creio que tern isto bastante applicagiio.

Coimbra 22 de Janeiro de 1866.

Manuel Cardoso de Girdo