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SOBRE A ROTA DAS MONÇÕES Navegação fluvial e sociedade sob o olhar de Sérgio Buarque de Holanda Maria do Carmo Brazil e Omar Daniel 1 O presente artigo, sob o título Sobre a Rota da Monções, foi gerado a partir de um esforço imaginativo empenhado por nós na interpretação dos dados e na análise do farto manancial informativo presentes em Monções, obra produzida em 1945 por Sérgio Buarque de Holanda. Da análise de documentos, traçados geográficos, crônicas, relatos e reminiscências esboçados nessa obra apresentamos algumas impressões sobre as rotas dos sertanistas dos seiscentos e setecentos com o objetivo de aguçar o sentido do pesquisador para a necessidade de se preencher as inúmeras lacunas interpretativas ainda existentes sobre o passado colonial mato-grossense. A interpretação das distâncias fluviais sulcadas pelas monções ensejou o georreferenciamento da prancha apresentada na página 126 da primeira edição de Monções. Revisitar esta magnífica produção, como fonte basilar para aqueles que se aventuram a estudar a navegação fluvial e a sociedade brasileira na aurora da história mato-grossense, permite esclarecer velhas dúvidas sobre as mais antigas trilhas percorridas por viajantes sertanejos. Na verdade esta releitura da obra nos propiciou destacar o relevante papel do movimento migratório rumo ao extremo oeste brasileiro, refletir sobre a ampliação territorial da América portuguesa e ressaltar o momento da projeção de Mato Grosso na história do Brasil. Esta iniciativa traduz-se como uma contribuição para o avanço do conhecimento histórico sobre Mato Grosso do Sul, em especial, e mais em particular sobre as regiões dos vales do Rio Ivinhema e dos 1 Maria do Carmo Brazil é doutora em Ciências: História Social pela FFLCH/USP. Professora Titular em História do Brasil, docente do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de Pos-Graduação em Educação da Universidade Fede- ral da Grande Dourados (UFGD). Autora, entre outros, de Fronteira Negra: domina- ção, violência e resistência escrava em Mato Grosso 1718-1888. Passo Fundo: UPF Editora, 2002. E-mail: [email protected]; Omar Daniel é doutor em Ciência Florestal pela UFV, Professor Titular em Silvicultura e atua na área de Geoproces- samento, fazendo parte do Programa de Pós-Graduação em Agronomia (Mestrado e Doutorado) da UFGD. E-mail: [email protected] R IHGB, Rio de Janeiro, a. 169 (438):209-226, jan./mar. 2008 209

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SOBRE A ROTA DAS MONÇÕES Navegação fluvial e sociedade sob o olhar de Sérgio Buarque de

Holanda

Maria do Carmo Brazil e Omar Daniel1

O presente artigo, sob o título Sobre a Rota da Monções, foi gerado a partir de um esforço imaginativo empenhado por nós na interpretação dos dados e na análise do farto manancial informativo presentes em Monções, obra produzida em 1945 por Sérgio Buarque de Holanda. Da análise de documentos, traçados geográficos, crônicas, relatos e reminiscências esboçados nessa obra apresentamos algumas impressões sobre as rotas dos sertanistas dos seiscentos e setecentos com o objetivo de aguçar o sentido do pesquisador para a necessidade de se preencher as inúmeras lacunas interpretativas ainda existentes sobre o passado colonial mato-grossense. A interpretação das distâncias fluviais sulcadas pelas monções ensejou o georreferenciamento da prancha apresentada na página 126 da primeira edição de Monções. Revisitar esta magnífica produção, como fonte basilar para aqueles que se aventuram a estudar a navegação fluvial e a sociedade brasileira na aurora da história mato-grossense, permite esclarecer velhas dúvidas sobre as mais antigas trilhas percorridas por viajantes sertanejos. Na verdade esta releitura da obra nos propiciou destacar o relevante papel do movimento migratório rumo ao extremo oeste brasileiro, refletir sobre a ampliação territorial da América portuguesa e ressaltar o momento da projeção de Mato Grosso na história do Brasil. Esta iniciativa traduz-se como uma contribuição para o avanço do conhecimento histórico sobre Mato Grosso do Sul, em especial, e mais em particular sobre as regiões dos vales do Rio Ivinhema e dos

1 Maria do Carmo Brazil é doutora em Ciências: História Social pela FFLCH/USP. Professora Titular em História do Brasil, docente do Programa de Pós-Graduação em História e do Programa de Pos-Graduação em Educação da Universidade Fede-ral da Grande Dourados (UFGD). Autora, entre outros, de Fronteira Negra: domina-ção, violência e resistência escrava em Mato Grosso 1718-1888. Passo Fundo: UPF Editora, 2002. E-mail: [email protected]; Omar Daniel é doutor em Ciência Florestal pela UFV, Professor Titular em Silvicultura e atua na área de Geoproces-samento, fazendo parte do Programa de Pós-Graduação em Agronomia (Mestrado e Doutorado) da UFGD. E-mail: [email protected]

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campos de Vacaria.

Sérgio Buarque de Holanda: formação, trajetóriaI.

Sérgio Buarque de Holanda nasceu na cidade de São Paulo, em 1902, e faleceu às vésperas de completar 80 anos, em 24 de abril de 1982. Começou a escrever ainda no ciclo secundário, no ginásio São Bento, onde foi aluno de Afonso d’Escragnolle Taunay.2 Seu talento literário revelou-se muito cedo, com a publicação do artigo “Originalidade Literária”, no jornal Correio Paulistano, em 1920, por intermédio de Taunay, que iniciou sua trajetória de escritor. Holanda formou-se na Faculdade de Direito no Rio de Janeiro, em 1925, mas jamais exerceu a profissão, enveredando pelo mundo literário, como diretor do jornal O Progresso, em Cachoeira de Itapemirim, e assinando reportagens e entrevistas para a United Press e o Jornal do Brasil. 3

O pendor literário de Sérgio Buarque de Holanda foi reconhecido por Assis Chateaubriand, fundador da Rádio Tupi (1935) e da primeira televisão no Brasil, a TV Tupi, de São Paulo e do Rio de Janeiro, que o convidou para trabalhar na Europa. Em 1929 e 1930, Holanda visitou a Alemanha, a Rússia e a Polônia e atuou como colaborador da Revista Duco, designado pela Embaixada do Brasil, em Berlim, e como correspondente de O Jornal, do Diário de São Paulo e da Agência Internacional de Notícias.4 O jornal foi o primeiro diário editado por Assis Chateuabriand, em 1924, considerado por muitos como a semente de seu grande império de comunicação. No final de 1930, com o fortalecimento do nazismo, Holanda retornou ao Brasil, passando a dedicar-se à escrita da História, área do conhecimento que concebia com elo primordial das ciências humanas.

Um primeiro rebento da produção de Holanda no campo da historiografia foi Raízes do Brasil, cujos dois primeiros capítulos vieram prontos da Europa.5 O livro foi publicado, em outubro de 1936, inaugurando

2 NOGUEIRA, Arlinda Rocha et al. (orgs). Sergio Buarque de Holanda: o homem. In: Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra. São Paulo: SEC /Arquivo Público do Estado de São Paulo; USP/IEB, 1988 pp. 17-26.

3 BARBOSA, Francisco de Assis. Verdes anos de Sergio Buarque de Holanda: ensaio sobre sua formação intelectual até Raízes do Brasil. In: NOGUEIRA, Arlinda Rocha et al. (orgs). Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra, op. cit. pp. 27-54.

4 Ibid.5 Ibid

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a Coleção Documentos Brasileiros, da Livraria José Olympio. O trabalho foi considerado por José Honório Rodrigues como uma das obras definitivas da historiografia brasileira.6 Em 1944, foram aglutinados no livro Cobra de vidro os ensaios e apreciações críticas de Holanda para o Diário de Notícias e Diário Carioca, evidenciando o amadurecimento intelectual de um dos escritores mais aclamados pela crítica autorizada do país. 7

Em matéria intitulada “Um mestre da crítica”, publicada em 28 de janeiro de 1979, na Folha de S. Paulo, o analista Nogueira Moutinho ressaltou o significado de Cobra de vidro para a historiografia e para compreensão da cultura brasileira: “O crítico meramente literário deixa de sê-lo para transformar-se num verdadeiro crítico da cultura: Poesia e Ficção, Sociologia e História são para ele não compartimentos estanques e reclusos, mas vasos comunicantes de um substrato cultural no fundo inseccionável.” 8

Nos anos de 1945 e 1959, veio a lume as mais significativas produções historiográficas sobre o Brasil produzidas por Sérgio Buarque de Holanda, nas quais destacam-se Monções (1945), Caminhos e fronteiras (1957) e Visão do paraíso (1959). Neste último livro, Holanda exibiu um verdadeiro “desfile de Eldorados” 9, vislumbrado por Afonso Taunay10 em torno dos achados auríferos dos Cataguases (Minas Gerais), Cuiabá (Mato Grosso) e Goiás. Na obra, o autor reuniu questões sobre o chamado ciclos de exploração econômica no Brasil, lembrando que “a procissão dos milagres... [havia] de continuar assim através de todo o período colonial”. 11

Sérgio Buarque de Holanda erigiu uma obra magistral que, nas palavras de Gilberto Freyre, autor de Casa Grande & senzala, “traçou com

6 RODRIGUES, José Honório. História e historiadores do Brasil. São Paulo: Fulgor, s/d. p. 27.

7 HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda. Monções. 2ª ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1976, pp. IX e X .

8 MOUTINHO, Nogueira. O crítico literário Buarque de Holanda. Apud BARBO-SA, Francisco de Assis. op. cit., p. 22.

9 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Ao mestre com carinho. In: NOGUEIRA, Arlinda Rocha et. al. (orgs). Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra: op.cit. p. 79.

10 TAUNAY, Afonso de E. Notícias dos primeiros descobridores das primeiras minas de ouro pertencentes a Estas Minas Gerais – Pessoas mais assinaladas nestas em-presas e dos mais memoráveis casos acontecidos dês dos seus princípios. Relatos Sertanistas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1981. pp. 23-62.

11 HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda. Visão do Paraíso. São Paulo: José Olym-po, 1959, p. 323.

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nitidez rara a origens de algumas instituições e de alguns dos complexos da cultura mas característica de nossa gente”12.

Gestação de II. Monções

Monções foi elaborada a partir de uma exaustiva pesquisa realizada em documentos inéditos reunidos no acervo de instituições como o Arquivo da Diretoria de Engenharia do Ministério da Guerra; o Arquivo Histórico Ultramarino; o Arquivo das Cúrias das cidades de São Paulo e Sorocaba; o Arquivo Público do Estado de São Paulo; a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro; o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e o Instituto Nacional do Livro. Dentre os textos mais utilizados por Sérgio Buarque de Holanda para compor Monções, destacam-se os Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, os Anais do Museu Paulista, os Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, Documentos eclesiásticos referentes a Itu e Porto Feliz, além das Revistas do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso e do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.13

Monções foi publicada, em tiragem reduzida, com 255 páginas, em 1945, como terceiro volume da Coleção Estudos Brasileiros da Casa do Estudante do Brasil (CEB). Com o aval do Jornal do Comércio, o principal objetivo da obra, segundo o autor, foi o de “coligir nova documentação sobre navegações fluviais setecentistas e oitocentistas e seus reflexos na vida brasileira”.14

Monções não nasceu como simples quadro cronológico dos fatos que marcaram a ampliação do território brasileiro, mas como esforço interpretativo da vida material dos homens durante a epopéia de conquista de um sertão remoto, desconhecido e de “clima estranho”.15 Seu propósito maior foi examinar aspectos de uma sociedade que o autor chamou de “civilização de raiz adventícia”, cuja circunstância do meio impôs a ela criatividade, assimilação e incorporação de novos valores.

12 FREYRE, Gilberto. Citado na nota do editor de CEB em: HOLANDA, Sérgio Bu-arque de. Monções. Rio de Janeiro: CEB, 1945.

13 HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda. Sobre o autor. Monções. (1976). Op. cit.14 Ibid.15 HOLANDA, Sergio Buarque de Holanda. Prefácio da 1 ª edição de Monções (1945).

op. cit.

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Monções e “o Brasil que luta[va] para vir à luz” III.

As reflexões de Sérgio Buarque de Holanda reunidas, desde 1936, em Raízes do Brasil, já estampavam suas inquietudes em relação aos limites sociais e políticos do país: “Como esperar transformações profundas em país onde eram mantidos os fundamentos tradicionais da situação que se pretendia ultrapassar?” 16 Como vimos, Monções foi avaliada por José Honório Rodrigues como uma das obras definitivas da historiografia brasileira17, na medida em que trouxe discussões inovadoras sobre o passado do país e formas alternativa de pensar o “Brasil que luta[va] para vir à luz”, segundo as palavras do próprio Holanda.18

Em Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia, organizado por Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas19, se reconhece o pioneirismo de Sérgio Buarque no tratamento de temas de nossa história, a partir da penetração das orientações da Nova História nas universidades brasileiras. Como Freyre, Holanda passou a ser valorizado por inúmeros pesquisadores e visto como precursor do estudo do meio, da religiosidade popular, do cotidiano e da política luso-brasileira, no sentido de garantir o domínio para o oeste. Monções expressa o esforço do escritor em interpretar a vida material e a ação dos homens que participaram da tarefa expansionista.

Para discutir suas principais preocupações, Holanda abriu a obra com um pequeno prefácio, de outubro de 1944, onde apresenta seus objetivos, conta a trajetória de produção de Monções e agradece aos amigos e instituições que facilitaram as investigações, cedendo documentos inéditos e livros raros. As 255 páginas Monções foram divididas em seis capítulos, além dos anexos: 1) “Os caminhos do sertão”; 2) “O transporte fluvial”; 3) “Ouro”; 4) “Sertanistas e mareantes”; 5) “Estradas móveis”; 6) “O comércio de Cuiabá”. Os anexos constituem-se de quatro preciosos documentos entre transcrições de manuscritos e registros das ações administrativas coloniais sobre as minas e os caminhos fluviais de São Paulo a Cuiabá.

16 BUARQUE DE HOLANDA, Raízes do Brasil. São Paulo. Companhia das Letras. 1995. p. 46.

17 RODRIGUES, José Honório. História e historiadores do Brasil. São Paulo: Fulgor, s/d., p. 27.

18 Assessoria de Comunicação e Imprensa - Unicamp (Correio Popular – Economia – 1/4/2004).

19 CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p.159.

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Em verdade, todos os capítulos articulam-se entre si. Um exemplo são as páginas do capítulo 5, dedicadas às reflexões sobre “estradas móveis”, onde o autor destaca a tardia navegação de uma parte estratégica do rio Paraguai. No segundo capítulo, ao tratar do “Transporte fluvial”, Holanda acentuou, com base nos relatórios dos presidentes da província de Mato Grosso, a constante preocupação do governo com o problema geopolítico brasileiro, ao criar colônias militares para promover o povoamento e facilitar o trânsito fluvial.

Sobre essa questão, Holanda escreve: “Chegando ao Paraguai, as primeiras frotas paulistas, em vez de tomar a madre, preferiam, ao que parece, entrar por um furo da margem esquerda – o chamado Paraguai-mirim – evitando, dessa forma, a grande volta que dá aqui o rio. [...] Em fins do século XVIII, quando tinha passado o maior perigo de assalto do Paiaguá e do Cavaleiro, fundaram-se nas margens do São Lourenço e mesmo do Paraguai, nos terrenos mais elevados que o pantanal periódico não atinge, algumas fazendas de criar gado e roças de feijão e milho. Foi em um desses sítios privilegiados, assente à margem direita do Paraguai, que se estabeleceu em l778 o povoado de Albuquerque, núcleo primitivo da atual cidade de Corumbá.” 20

Em Monções, Holanda registra parte das peripécias vividas por uma sociedade movediça e singular formada durante as incursões fluviais nos séculos XVIII e XIX.21 Em demanda ao sertão mato-grossense, as expedições desciam e subiam os rios de São Paulo e do Mato Grosso, que ligavam as duas capitanias. Segundo o historiador sul-mato-grossense Marcos Lourenço Amorim22, os empreendimentos dos paulistas rumo aos sertões redundaram na caça ao nativo, na descoberta do segundo “Eldorado brasileiro” (Mato Grosso), na ampliação do território e da navegação terrestre e fluvial e nas raízes do atual contorno geográfico do país. Todo esse movimento migratório e de conquistas encontra-se descrito nas páginas de Monções. 23

20 Ibid., p. 173-421 AMORIM, Marcos Lourenço de. O “Segundo Eldorado” Brasileiro: navegação

fluvial e sociedade no território do ouro. De Araritaguaba a Cuiabá (1719-1838). Dourados, MS: PPG/UFMS, 2004, p. 224.

22 Ibid.23 Cf. HOLANDA. Monções. Op. cit. [1976], p. IX e X .

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Negros escravizados nas páginas de Monções IV.

Os primeiros negros escravizados penetraram no sertão mato-grossense, em número pouco significativo, como parte das bandeiras paulistas do século XVIII. Nessas expedições, os cativos eram encarregados, entre outras tarefas, de transportar provisões e ferramentas. Em 1719, a bandeira apresadora de Pascoal Moreira Cabral Leme, que se dirigia à região do rio Cuiabá, encontrou depósitos auríferos no leito do rio Coxipó-Mirim. As notícias do achado aurífero nas terras de Mato Grosso atraíram centenas de paulistas e adventícios – “frausteiros [vagabundos] ou emboabas” – que chegavam ao arraial cuiabano com a esperança de rápido enriquecimento.

Logo que alcançou as minas, Pascoal Leme levantou o “Arraial de Cuiabá” e apossou-se, em nome da Coroa Portuguesa, do imenso território através de um “termo de certidão”, lavrado e enviado com amostras de ouro a dom Pedro de Almeida Portugal, conde de Assumar e Capitão General Governador da Capitania de São Paulo. Com o termo, o sertanista garantia os direitos de descobridor e explorador das minas de ouro encontradas. O bandeirante paulista solicitou oficialmente o envio de tropas para protegê-lo dos nativos insatisfeitos com a invasão de suas terras, alegando a perda de oito homens brancos, “fora negros”, e os riscos enfrentados a serviço da Real Majestade.

O projeto expansionista, associado ao antigo sonho da Metrópole de encontrar novas minas de metais preciosos, concretizou-se com os achados auríferos de Cuiabá. A partir e então, como prolongamento das bandeiras paulistas, originou-se o chamado “ciclo das monções”, cuja preponderância coube aos “filhos de Sorocaba”.24 As expedições fluviais de povoação e de comércio, conhecidas por monções, supriam os núcleos mineradores de mercadorias – aves, cativos, sal, artigos de luxo, gado eqüino, muar, vacum, etc.

Holanda destaca as dificuldades de acesso às regiões mineiras de Mato Grosso, citando relatório de cronista sobre os tropeços enfrentados por viajantes ao seguirem para o sertão de Cuiabá, nas primeiras décadas do século XVIII: “Eu saí de Sorocaba com quatorze negros e três canoas, perdi duas no caminho e cheguei com uma e com setecentas oitavas de empréstimo

24 Cf. Odilon N. MATOS, 1950:551.

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e gastos de mantimento que comprei pelo caminho: dos negros vendi seis meus, que tinha comprado fiado em Sorocaba, quatro de uns oito que tinha dado ao meu tio e todos dez que me ficaram, morreram três, e só me ficou um único e o mesmo sucedeu a todos os que foram ao Cuiabá. Emfim, de vinte e três canoas que saímos de Sorocaba, chegamos só quatorze ao Cuiabá; as nove perderam-se e o mesmo sucedeu às mais tropas e sucede cada ano nesta viagem.” 25

Mourejando com cangalhas nas costas

No segundo capítulo de Monções, sobre o “Transporte fluvial”, Holanda mostra o papel das embarcações, canoas e jangadas no processo de expansão geográfica do Brasil. Embora recorressem às técnicas rudimentares dos nativos, as ubás e pirogas eram talhadas em casca de árvore ou escavadas a fogo, em um único tronco de madeira, rasa, sem mastro, sem quilha e sem banco. Muitas caracterizavam-se por um pequeno soerguimento na proa, na popa e na bordadura. Holanda refere-se à forma como os paulistas deslocavam-se pelos sertões à pé e em canoas de monções, em fins do século XVIII. No trajeto, erguiam-se taperas, arraiais e pelourinhos.26 Galgavam penhascos e arrostavam cachoeiras, corredeiras e varadouros. Lutavam contra a selva e enfrentavam a ira dos nativos, vítimas do avanço expansionista.

O historiador Marcos Lourenço Amorim lembra da difícil jornada das monções, das quais participavam remadores, índios trilhadores, proeiros, cozinheiros, comerciantes, agentes oficiais e, sobretudo, cativos que “mourejaram com cancalhas nas costas”: “[...] escravos negros seminus e sob a guarda de um fiscal faziam os trabalhos mais pesados, em certos casos, era necessário passar por terra, as canoas eram arrastadas com cordas, no que se gastava muito tempo e trabalho. Nas cachoeiras medianas os barcos não precisavam sair do rio, mas era necessário deixá-lo com meia carga e com menos passageiros. Alguns pilotos mais temerários não hesitavam em tudo arriscar e freqüentemente tudo perdiam.”27

Entre os homens dedicados à faina de navegar havia alguns brancos contratados ou negociantes. Mas, na maioria, eram trabalhadores pardos,

25 Cf. HOLANDA,. Monções, op. cit. [1945]. pp. 202-203. 26 Id. ibib. 8327 AMORIM, op.cit. p. 77

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nativos remeiros e negros escravizados.28 Submetidos às galés e aos serviços estafantes, tripulantes tentavam a fuga. Holanda lembra que, em determinadas campanhas, recorria-se a agrupamentos de soldados ou guardas encarregados da vigilância junto aos pousos e varadouros, para evitar as deserções : “[...] havia o cuidado de contar os homens sempre que entrassem ou saíssem das canoas. Quem pretendesse deixar o porto devia esperar que se fizesse o sinal, a fim de acompanhar o guia.”29 Mareantes, remeiros, nativos ou negros cativos, untavam o corpo com gordura para não serem aprisionados no momento da fuga. 30

Rotas Sertanistas: atualização da prancha apresentada emV. Monções – 1945

Roteiros tradicionais das monções paulistas

O movimento monçoeiro decorreu das descobertas auríferas do Coxipó-mirim e outras jazidas encontradas nas margens dos rios da região que se transformou na Capitania de Mato Grosso, a partir de 1748. Os sertanistas monçoeiros saíam do porto de Araritaguaba, Freguesia de Itu, hoje Porto Feliz, município do Estado de São Paulo. De forma genérica, a historiografia brasileira destaca dois roteiros tradicionais das monções paulistas.

O primeiro roteiro envolvia um conjunto de caminhos fluviais: rio Tietê (antigamente, Anhembi), rio Grande (rio Paraná), rio Anhanduí, rio Pardo, cuja travessia era feita por terra através dos Campos das Vacarias, rio Emboteteu (Miranda), rio Paraguai e rio Cuiabá. O segundo, os seguintes trechos fluviais: rio Tietê, rio Grande (Paraná), rio Pardo, rio Sanguessuga, com uma travessia por terra pelo Varadouro de Camapuã, riacho Camapuã, rio Coxim, rio Taquari, para então alcançar o rio Paraguai, o rio Porrudos (São Lourenço) e rio Cuiabá.

Sérgio Buarque de Holanda referiu-se à segunda rota como “estrada definitiva das monções”. Ele explica como ela tornou-se mais freqüente durante o século XVIII, pois, entre os anos de 1722 e 1728, as expedições fluviais paulistas, para atender às minas de Mato Grosso, ensejaram a fundação da fazenda Camapuã, para facilitar a via de acesso Cuiabá-São

28 HOLANDA, op.cit. [1976], p. 78.29 Ibid, p 71.30 Ibid.

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Paulo. O comboio de canoas partia de Araritaguaba ou Porto Feliz, seguia o curso do Tietê, até o rio Paraná, de onde se deslocava até o rio Pardo, para alcançar o varadouro de Camapuã. Com esses movimentos monçoeiros, surgiram os famosos estabelecimentos de pousadas fixas, para abastecer as expedições e os povoados extrativos.

Os estabelecimentos de pouso instalavam-se nos varadouros dos rios, para aliviar o cansaço dos viajantes que enfrentavam as distantes caminhadas e os transportes pesados, com instalações capazes de atender às necessidades das comitivas. Do varadouro de Camapuã, as expedições transportavam as canoas e as cargas para o rio Coxim, afluente do Taquari, e desciam até o Paso do Paraguai, na proximidade de Corumbá, onde comumente os mareantes faziam pouso. A partir daí, ao arrepio das águas, as flotilhas de canoas tomavam o rio Cuiabá ou o Jauru para chegar às minas mato-grossenses. No século XVIII, segundo as informações contidas em Monções, essa rota era regularmente freqüentada e a partir da efetiva estabilidade do varadouro de Camapuã, transformou-se no mais significativo entreposto de suporte às monções oriundas de São Paulo.31

31 BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai: O “mar interno brasileiro” – uma contri-buição para o estudo dos caminhos fluviais. São Paulo: FFLCH/USP, 1999, p 123. (Tese de Doutoramento).

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Sobre a Rota das Monções.Navegação fluvial e sociedade sob o olhar de Sérgio Buarque de Holanda

A prancha de Monções georrefenciada

Nas páginas 126 e 127 de Monções, Holanda esboçou ligeira descrição geográfica sobre os caminhos sertanistas que passamos a chamar de “prancha”(Figura 1).32

A seguir, propomos realizar a atualização geográfica da prancha apresentada nas páginas de Monções (1945) e, a partir daí, resolvemos transformá-la em mapa, constituído de coordenadas e escala. Longe da pretensão de corrigir informações descritas em textos de autores consagrados, nossos objetivos cruciais foram no sentido de facilitar o acesso, a compreensão e oferecer informações mais precisas sobre os territórios transpostos por monçoeiros e bandeirantes seiscentistas. A prancha das rotas das monções, que também contempla as rotas das bandeiras seiscentistas, elaborada por Sérgio Buarque de Holanda, em 1945, embora ilustrativa da penetração para o interior do Brasil, apresenta-se sem o devido referenciamento geográfico, trabalho que, na época, não era simples.

Nos moldes apresentados por Holanda em 1945, o traçado da rota das monções baseou-se nas informações confirmadas, em 1725, pelos irmãos João Leme e Lourenço Leme que, segundo o historiador mato-grossense Virgílio Correa Filho, instalaram-se no varadouro de Camapuã com o fito de

32 Prancha porque se trata de um desenho manual sem georreferenciamento.

Figura 1 – Prancha original das rotas das monções e das bandeiras seiscentistas, de Sérgio Buar-que de Holanda, em 1945.

Omar Daniel
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Esta figura encontra-se com melhor resolução ao final do texto

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apoiar os viajantes que por ali passavam.33 Isto significa que, apenas a partir de 1725, tornou-se mais rápido e relativamente mais confortável o caminho das águas que ligava São Paulo a Cuiabá. Ressalte-se que qualquer viagem de ou para Cuiabá representava um verdadeiro desafio.

Um simples olhar ao mapa que ora georreferenciamos já enseja dúvidas sobre algumas descrições apresentadas na obra. Para a elaboração do georreferenciamento do mapa que acompanha o presente texto (Figura 2), nos baseamos nos mapas dos estados de São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná, utilizando-se o programa Spring, versão 4.0, do Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE). Sobre ele, foram traçadas as antigas rotas.

Francisco José de Lacerda e Almeida, expedicionário luso-brasileiro evocado por Corrêa Filho como um dos “predecessores de Rondon”34, participou do trabalho de reconhecimento dos caminhos fluviais do Extremo Oeste e coligiu dados essenciais para o dimensionamento do espaço físico mato-grossense. Com base nos cálculos fornecidos pelo comissário de limites Lacerda e Almeida, Taunay salientou as distâncias fluviais sulcadas pelas monções, as quais atingiam 531 léguas ou seja 3.504,600 km.

Taunay descreveu o quadro de distribuição das distâncias calculadas por Lacerda e Almeida: “[...] 152 no Tietê, 29 no Paraná, 75 no Pardo, 17 no Camapuã, 40 no Coxim, 90 no Taquari, 39 no Paraguai, 25 no Porrudos [São Lourenço] e 64 no Cuiabá”. A esse enorme percurso, Taunay lembra que era preciso adicionar os 14 km do varadouro de Camapuã e os 155 km que mediavam de São Paulo a Araraitaguaba. Assim, segundo ele, o total da jornada de São Paulo às minas cuiabanas passava a ser de 3.664 km. Na verdade, a soma resulta em 3.673,6 km, considerando-se o valor da légua brasileira de 6,6 km. De Cuiabá às minas guaporeanas, era preciso somar mais noventa e três léguas a percorrer o que, segundo Taunay, totaliza 613,800 léguas35. Mais uma vez há uma divergência, pois a soma fornece o resultado de 649,606 léguas.

Anteriormente, segundo Lacerda e Almeida, outros desvios eram

33 CORREA FILHO, Virgílio. Formação Histórica: lutas pertinazes. In: Fazendas de Gado no Pantanal. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura/Serviço de Informação Agrícola, 1955, p. 55, nota 15. (Documentário da Vida Rural, 10)

34 Ibid., p. 4.35 LACERDA e ALMEIDA, In: TAUNAY. História das bandeiras paulistas. São Pau-

lo: Melhoramentos/INL/MEC, 1975. Tomo 3, p. 59.

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utilizados. A partir de 1725, no entanto, o traçado monçoeiro inferido pelos irmãos Leme nos parece o mais bem definido, comparativamente com os descritos pelos seiscentistas.

Holanda apontou vários problemas para o uso de vias alternativas nas marchas para oeste, especialmente pelos viandantes que passavam pelos campos de Vacaria: primeiro, os castelhanos freqüentavam essas paragens e, em caso de guerra, poderiam paralisar o trânsito; segundo, havia a oposição dos guaicuru a intrusões nos seus domínios; terceiro, o uso dessa passagem suscitava os descaminhos do ouro, em prejuízo do Erário Público, passível de ser detectado pela Casa de Registro, instalada acima da barra do Rio Pardo. A principal, senão única, vantagem da rota da Vacaria, era a utilização do transporte animal na região. Ela desapareceu após a plantação das primeiras roças na região de Camapuã, que se transformou em rota sedimentada por mais de um século.

O mapa atualizado mostra as rotas seiscentistas e as monçoeiras. Primeiramente, nossa atenção voltou-se à rota monçoeira, para facilitar a observação mais precisa das distâncias citadas nos documentos de referência. O georreferenciamento permitiu-nos maior aproximação das distâncias rompidas pelos viajantes. Entretanto, apesar de procurarmos acompanhar rigorosamente as curvas dos cursos d’água, isso só foi realizado à medida que a

Figura 2 – Mapa das rotas das monções e das bandeiras seiscentistas, atualizada por georreferen-ciamento, a partir da prancha de Sérgio Buarque de Holanda, em 1945.

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escala permitiu (1:7000000). Cabe destacar que, na Tabela 1, se encontram as distâncias tomadas por nós para cada trecho de rio e, na Tabela 2, as distâncias registradas em Afonso Taunay, em História geral das bandeiras paulistas.36 Saliente-se que Taunay realizou uma colossal contribuição para os estudos brasileiros durante 26 anos de trabalho (1924-1950) de pesquisa constante, arrolando e organizando materiais, até trazer à lume, os onze volumes da História geral das bandeiras paulistas, obra considerada uma das maiores revisões factuais da historiografia brasileira e de análise documental.

O mapa permitiu-nos empreender também algumas atualizações dos dados oferecidos por Taunay37: a) distância de Porto Feliz a Cuiabá, incluindo aproximadamente quatorze quilômetros km do varadouro de Camapuã, é de 2.232 km e não de 3.518,6 km; b) Taunay registrou 3664 km de São Paulo a Cuiabá, mas, se utilizarmos as distâncias parciais citadas por ele próprio na Tabela 2, o valor seria de 3.673,6 km38.

Para o georreferenciamento da rota foram consideradas as dificuldades enfrentadas, à época, na realização de cálculos dessa natureza. Há, entretanto, equívocos que saltam aos olhos. É o caso da distância singrada no rio Tietê, destacada na Tabela 2, com um total de 1.003,2 km. O valor aproximado que melhor coaduna com o trecho é de 620 km. Uma simples comparação com a distância de Campo Grande a São Paulo, nos dias atuais, revela que o valor da Tabela 1 é mais sensato. Por rodovia, as duas capitais distam entre si 992 km. Como poderia a distância de Porto Feliz à foz do rio Tietê apresentar valor maior que este?

Holanda pode ter também cometido equívocos de cálculos, dando mostras da imprecisão das distâncias citadas pelos autores da época, pelo menos em dois pontos de Monções 39: 1) quando aponta a distância de varação de Camapuã como sendo de 2,5 léguas, cuja conversão para quilômetros (16,5 km) não se equipara aos 13,706 km apresentados pelo historiador Virgilio Corrêa Filho40; 2) quando considera que quatorze léguas resultam em 81,5 km, sendo o correto 92,4 km, utilizando-se a légua brasileira, que

36 TAUNAY, Afonso d’ Escragnolle. História das bandeiras paulistas. São Paulo: Me-lhoramentos/INL/MEC, 1975. T. II, p. 139.

37 Ibid.38 Ibid. 39 HOLANDA, op.cit. [1945], pp. 96 e 128. 40 CORREA FILHO, Virgílio. Formação Histórica: lutas pertinazes. In: Fazendas de

gado no pantanal.....op. cit.

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corresponde a 6,6 km. Sequer a utilização das medida portuguesa – (6,2 km) e marítima (5,555 km) dão os resultados citados pelos autores.

Tabela 1 – Trechos dos rios navegados pelos monçoeiros, segundo a rota traçada por Holanda (1945), estimada por georreferenciamentoTrechos Distâncias

(km)R. Tietê (Porto Feliz/Foz do R. Tietê 620R. Paraná (Foz do R. Tietê/Foz do R. Pardo) 155R. Pardo (Foz do R. Pardo/Camapuã) 365R. Coxim e Taquari (Nascente do R. Coxim/Foz do R. Taquari) 483R. Paraguai (Foz do R. Taquari/Foz do R. Cuiabá) 208R. Cuiabá (Foz do R. Cuiabá/Cidade de Cuiabá) 387Distância de Porto Feliz a Cuiabá por via hídrica 2.218Distância hipotética à esquerda no varadouro de Camapuã 34Distância total de Porto Feliz a Cuiabá 2.232

Tabela 2 – Trechos dos rios navegados pelos monçoeiros, segundo a rota traçada por Holanda (1945), com cálculos feitos por Lacerda e Almeida referido por Taunay (1975)41

Trechos Distâncias

Léguas km**R. Tietê 152 1003,2R. Paraná 29 191,4R. Pardo 75 495R. Camapuã 17 112,2R. Coxim 40 264R. Taquari 90 594R. Paraguai 39 257,4R. dos Porrudos 25 165R. Cuiabá 64 422,4Distância de Porto Feliz a Cuiabá por hidrovia 531 3504,6Distância de São Paulo a Cuiabá, incluindo o percurso ter-restre dos varadouros de Camapuã (14 km) e São Paulo a Porto Feliz (155 km)

- 3673,6*

* Taunay apresenta um valor de 3,664 km. ** conversão pela légua brasileira: 6,6 km.

41 Os seis primeiros tomos de História das bandeiras paulistas foram publica-dos entre 1924 e 1930. TAUNAY, Afonso. As distâncias do percurso mon-çoeiro. Depoimentos diversos. In: História das bandeiras paulistas. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p.139.

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Outros pontos de conflitos observados entre a prancha de Sérgio Buarque de Holanda e o mapa que atualizamos relacionam-se a posições geográficas e nomes de alguns cursos d’água: 1) o autor chamou o atual rio Correntes de rio Piquiri, enquanto este é na verdade o afluente daquele; 2) denominou rio Jauru ao rio Corixa Grande, sendo o primeiro localizado mais ao norte, como se vê no mapa atualizado; 3) a disposição geográfica na prancha, dos rios Tibagí e Iapó, em território paranaense, é incompatível com a existência da serra de Paranapiacaba. A nascente do rio Iapó encontra-se na face norte da serra. Comparando-se a prancha e o mapa, nota-se com nitidez que, no primeiro caso, o traçado do curso d’água aproxima-se erroneamente do litoral paulista; 4) em um prolongamento hídrico feito na prancha, acima do rio Paranaíba, o autor induz à interpretação de que a divisa entre Goiás e Minas Gerais era feita por um rio, de forma contínua. Na realidade, um pequeno trecho é de divisa seca, ligando a nascente de um afluente do Paranaíba ao rio São Marcos, que nasce além do atual Distrito Federal.

Considerações gerais

Antes da sedimentação da rota das monções aqui tratada, os bandeirantes utilizaram-se de outras veredas sertanejas, como dissemos. Em ambos, prancha e mapa, os caminhos são marcados com linhas tracejadas. Não encontramos ainda, em nossas pesquisas, nem mesmo em Monções, referências precisas às antigas passagens traçadas por Holanda (1945). Pretendemos tratar a questão sobre essas rotas quando de maior amadurecimento da nossa pesquisa. Porém, avançaremos algumas impressões iniciais a respeito das rotas seiscentistas.

Alguns escritos sobre os movimentos monçoeiros fazem referências aos caminhos utilizados pelos bandeirantes que não constam da prancha de Holanda. Exemplo disso é a existência de documento, pertencente à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, conforme citado em História geral das bandeiras paulistas, em papel de autor anônimo, anterior a 1727. Nele, há referências a vários roteiros, tendo o Tietê e o Paraná como primeiro trecho: 1) os sertanistas subiam o Pardo até onde era possível navegar e seguiam por terra a Cuiabá; 2) outros partiam do Pardo e seguiam para as cabeceiras de rios como o Itiquira, Pajuí e Piquiri, navegando-os até Cuiabá; 3) alguns viajantes abandonavam o trajeto do Pardo e seguiam para o sul, subindo o Ivinhema, para, em seguida, caminharem até alcançar a cabeceira do Mboteteú (atual rio Miranda) e atingir o rio Paraguai; 4) havia quem

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preferisse subir o rio Verde até onde era navegável, seguindo por terra até um porto do Piquiri; 5) outros optavam em subir o Paranaíba, provavelmente seguindo a pé, após determinado trecho para, a seguir, retomarem o caminho fluvial. Taunay aponta outras rotas opcionais, mas sem a importância das referidas até aqui. 42

Nada disso, entretanto, foi traçado na prancha de Holanda, no livro publicado em 1945, o que é de se estranhar, haja vista a existência do documento referido anteriormente, pertencente ao acervo da Biblioteca Nacional. Levantamos duas hipóteses sobre a razão de Holanda não ter inserido esses traçados em sua prancha: ou não tinha conhecimento dessa fonte, que foi revelada a Taunay por Capistrano de Abreu, ou dispunha do documento, porém preferiu limitar-se à rota ordinária das monções. O mestre Capistrano morreu em 1927, o que significa que, no mínimo, naquele ano, o documento que relata outras rotas seiscentistas já se encontrava catalogado na Biblioteca Nacional.

O objetivo destes últimos parágrafos, com impressões iniciais sobre as rotas dos sertanistas seiscentistas, é aguçar o sentido do pesquisador, demonstrando que há ainda inúmeras lacunas relativas ao passado colonial mato-grossense e muito a ser feito para esclarecer as trilhas mais antigas percorridas pelos viajantes sertanejos.

Acreditamos que melhores esclarecimentos a respeito dessas antigas rotas poderão trazer contribuições importantes para o conhecimento histórico, em especial para Mato Grosso do Sul e mais em particular para as regiões dos vales do Rio Ivinhema e dos Campos de Vacaria.

42 TAUNAY. História [...], op. cit. , 21.

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Bibliografia

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