sobe mesmo à cabeça? · 2018-01-22 · perversamente o discernimento de inúmeros lideres...

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Meio: Imprensa País: Portugal Period.: Semanal Âmbito: Lazer Pág: 50 Cores: Cor Área: 23,50 x 29,70 cm² Corte: 1 de 6 ID: 73203493 20-01-2018 | Revista E sobe mesmo à cabeça? Chama-se húbris e é a prova de que, quando exercido durante períodos longos e sem o freio de contrapesos, o poder causa alterações cerebrais que conduzem à soberba e a perdas de discernimento TEXTO ARMÉNIOREGO* E MIGUEL PINAE CUNHA**

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Page 1: sobe mesmo à cabeça? · 2018-01-22 · perversamente o discernimento de inúmeros lideres políticos. Aí se debruça sobre a soberba desenvolvi-da por lideres como Tony Blair e

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sobe mesmo à cabeça? Chama-se húbris e é a prova de que, quando exercido durante períodos longos e sem o freio de contrapesos, o poder causa alterações cerebrais que conduzem à soberba e a perdas de discernimento TEXTO ARMÉNIOREGO* E MIGUEL PINAE CUNHA**

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ntes de Paula Brito (e) Costa ter caído em desgraça, foram-lhe tecidos encómios que importa recordar. Aquando da visita da primeira- dama de Moçambi-que, Isaura Nyusi, à Raríssimas, em 2015, uma res-ponsável da instituição fez uma intervenção que merece destaque. Eis um excerto: "Foi em 1988 que urna mãe, que hoje é presidente da Raríssimas, tivera o seu primeiro filho com 21 anos. Era uma criança, bem sabemos, mas confrontada com a adversida-de mudou o inundo, tendo resultado na construção desta magnífica obra, única no mundo, a pedido do seu mais que tudo, a quem chamou Marco. De um luto penoso à inauguração da Casa dos Mar-cos passaram apenas sete anos. Sete anos de muito trabalho mas muita esperança! Sete anos em que o seu lema foi também o meu: <Simplicidade, nunca desista, acredite no que está fazendo, goste do que está fazendo, mesmo que os outros não entendam'. [Di Isaura Nyusi] , creia que poderá contar connos-co e com a mãe do Marco em particular." Já depois do tombo da agora ex-presidente da Raríssimas, o elogio à sua integridade foi assim enfatizado, em entrevista à RTP: "O dr. Manuel Delgado, quem o conhece, é um homem muito íntegro, como a Paula Brito e Costa, são pessoas muito íntegras e põem o país acima de tudo."

A autora destas duas intervenções é sobejamen-te conhecida: Paula Brito e Costa. A tendência para falar de si própria na terceira pessoa não é inédi-ta. Em entrevista ao "Sol" em 31 de agosto de 2011, quando indagada sobre se "há pessoas que procu-ram a Raríssimas para conhecer um diagnóstico", Paula respondeu: "Durante muitos anos era a Paula que respondia às famílias e que, pela sua experiên-cia, as encanúnhava." Aparentemente anedótica, a tendência é um dos indicadores usados para medir

a húbris, urna desordem da person21idade pro-vavelmente desenvolvida pelo longo exercício do poder. A síndromes que podemos traduzir por soberba, apresenta diversos sintomas: procura de glória pessoal, preocupação ex-trema com a imagem, tendências messiâ-nicas (como "mudar o mundo"), convic-ção de que "eu sou a organização", auto-confiança extrema, perda de contacto com a realidade (Paula Brito e Costa afirmou ao Expresso que "merecia um pedido de desculpas do país"), imprudência, e ten-dência para desvalorizar "minudências" como a necessidade de fazer gestão cri-teriosa de recursos. Segundo relatos de imprensa, Paula Brito e Costa ter-se-á deslumbrado com o sucesso da Casa dos Marcos. Tendo lutado arduamen-te com enorme garra em prol da meri-tória missão, terá tomado a instituição como sua e terá perdido a noção dos li-mites à sua ação. A h.úbris terá levado a "senhora do quiosque" a transformar-- se numa "senhora da sociedade" com ar altiVo e sobranceiro perante os seus "inferiores".

A húbris é o sintoma de expressões populares como "o poder corrompe" ou "o poder subiu-lhe à cabeça". O poder, de facto, pode subir literal-mente à cabeça. Evidência científica sugere que, quando exercido durante períodos longos e sem o freio de con-trapesos, o poder traduz-se em alte-rações cerebrais que conduzem à so-berba e a perdas de discernimento. Ao estudo do tema tem-se dedicado David Owen, médico, que foi ministro dos Ne-gócios Estrangeiros e da Saúde de governos trabalhistas do Reino Unido, nos anos 70. Owen é autor de "Na Doença e no Poder" (D. Quixote), uma obra reveladora de como a doença dos lideres, inclusive a doença mental, tem afetado perversamente o discernimento de inúmeros lideres políticos. Aí se debruça sobre a soberba desenvolvi-da por lideres como Tony Blair e George W. Bush. O trabalhista Owen não hesita em apontar diversos pecados da soberba ao trabalhista Blair, pelo qual a imprensa se havia enamorado.

Segundo Owen, Blair desenvolveu a doença do "apresentadorismo" — uma preocupação extrema com a sua imagem e uma enorme sede de posar para os outros. Em visita a campos de refugiados, no Kosovo, Blair foi recebido como um herói. Clinton ter-lhe- á dito para "parar de se exibir". Auxiliares de Clinton terão feito troça do tom ch.urchillíano do

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Na Roma Antiga, os generais vitoriosos celebravam a vitória numa parada. Na mesma

carruagem, ia um escravo com uma única incumbência: lembrar o general da sua mortalidade.

Soprava-lhe ao ouvido: "Memento maior

então primeiro-ministro do Reino Unido. Um desses auxiliares terá mesmo sugerido que Blair "estava a deitar demasiada adrenali-

na nos cornflakes". Tanto Bla ir como Bush terão sido tomados pela excessiva auto-confiança, pela ousadia desrespeitadora

das opiniões de especialistas, pelo de-sassossego e pela falta de atenção aos pormenores.

A soberba de ambos foi, segundo Owen, combustível de sobra para a invasão do Iraque, uma decisão assente em desrespeito pelos fac-tos. O próprio Owen escreveu que presenciou a incompetên-cia presunçosa de Blair numa conversa com ele tida durante um jantar. Blair ignorou quem o avisou dos riscos associa-dos à invasão do Iraque e aos eventos que se lhe seguiriam. Segundo Owen, "Blair estava a ficar imune a todos os ar-gumentos sobre as dificulda-des práticas que se poderiam seguir, argumentos esses que muitas pessoas defenderam perante ele. Um funcionário sénior recorda que quando aconselhou Blair sobre as dificuldades que se levan-tavam, Blair disse: <Você é Neville Chamberlain, eu sou Winston Churchill e Sad-dam é Hitler.'" Owen con-cluiu: «É difícil ter um diá-

logo sério com um líder que pensa desta forma emocional

e simplista."

M ENOS RARAS DO QUE PARECE O desenvolvimento da húbris na vida

política não nos surpreende tanto quan-to o que alegadamente ocorreu com Paula

Brito e Costa. Mas o 'caso Raríssimas é me-nos raro do que possa supor-se. O ocorrido

no início dos anos 90 com a United Way of America, uma enorme organização sem fins lu-

crativos que apoia populações carenciadas nos EUA, é ilustrativo. Os norte-americanos ficaram

incrédulos quando descobriram que o presidente da instituição, WilliamAramony, era altamente cor-rupto. Aramony foi forçado a resignar 22 anos após ter assumido a presidência. Três anos depois, foi condenado por dezenas de crimes, vários denature-za fiscal. Barbara Kellerman, professora na Harvard

Business School e autora do livro "Bad Leadership" , escreveu que o caso Aramony "confirmou que os li-deres que trabalham para organizações caritativas não são necessariamente diferentes dos que traba-lham para outros tipos de organizações. Também são capazes de serem corruptos".

O caso de Camila Batmanghelidjh, a exótica e extravagante líder e fundadora da Kids Company, é igualmente emblemático. A instituição , fundada em 1996, apoiava crianças e jovens marnalizados. Ao longo de duas décadas, Camila desenvolveu relações privilegiadas com políticos e governantes do Reino Unido, ao mais alto nível. Assim obteve mais de 46 milhões de libras (mais de 50 milhões de euros). Foi agraciada com inúmeros prémios e reconhecimen-tos, incluindo diversos doutoramentos honoris cau-sa. Acabou por ser acusada de ter usado verbas para financiar despesas luxuosas de empregados e de mi-mar os seus jovens "favoritos" com milhares de li-bras. Admitiu pagar propinas numa escola privada frequentada pela filha do seu alegado motorista. O "Daily Mail" escreveu sobre ela: "Corrupção; incom-petência; nepotismo; consumo de drogas; um pu-nhado dos seus favoritos recebendo envelopes com dinheiro; o seu estilo ditatorial e marúpulador." Em 2015, Camila foi forçada a resignar. A instituiç ão en-cerrou poucos (-I ias depois de ter recebido um fundo de emergência de 3 milhões de libras, com o apoio de David Cameron. Num texto publicado no jornal "lhe Gua rdian" (numa coluna onde nomes famosos refletem sobre a sua aparência), em 28 de setembro de 2013, Camila, escreveu: "Quando olho para o es-pelho, digo a mim própria, bom-dia, qual das mi-nhas peculiaridades médicas veio visitar-me? Ah, ah, glândulas linfáticas, inchadas novamente, vejo. Seis vezes maiores do que quando me deitei. Saúdo as proporções de hoje com serenidade."

As lideranças que temos vindo a retratar pare-cem ter sucumbido aos vícios do poder e ignorado a lição do mito de Dédalo e do seu filho ícaro. Para escaparem da prisão, Dédalo e ícaro construíram asas com penas de pássaro, as quais juntaram com cera. Deslumbrado com a sua capacidade de voar alto, ícaro ignorou os avisos do pai para que não se aproximasse do sol. As suas asas de cera derreteram. E acabou por se estatelar. Foi neste mito que Da-vid Owen se inspirou para fundar à Daedalus Trust (http: / /www..daedalustrust.com/ about-hubrisI) . A missão primeira da instituição é suscitar a conscien-cialização para os perigos da húbris na vida pública e na empresarial. Visa também encorajar a investi-gação sobre o fenómeno.

O deslumbramento com o poder e a incapacida-de para escutar os avisos de Dédalo não escolhem sectores. O domínio empresarial não é exceção. En-quanto o desastre da Deepwater Horizon, no Golfo

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Tanto Blair corno Bush terão sido tomados pela excessiva autoconfiança, pela ousadia desrespeitadora das opiniões de especialistas, peto desassossego, e pela falta de atenção aos pormenores

do México, causava danos humanos, comunitários e ambientais gigantes, Tony Hayward, o então CEO da BP, queixava-se da "chatice" e afirmava "quero a minha vida de volta". A Wells Fargo, uma grande instituição financeira norte- americana, tambémpa-deceu da húbris dos seus líderes, designadamente Caule Tolstedt, vice-presidente. Enquanto eram de-mitidos milhares de empregados por fraude, Carrie fruía de bónus de milhões e ignorava avisos dando conta de que o problema resid ia no sistema agressi-vo de gestão por objetivos.

Carly Fiorina foi entronizada corno CEO da HP, e o seu estatuto atingiu o de uma estrela de rock no mundo da informática. Mas deslumbrou-se. Igno-rou conselhos de que deveria abandonar o seu esti-lo confrontacional. Enquanto a sua oposição como CEO sela desmoronando, Fiorina entrou em estado de denegação. Quando a administração lhe indicou a porta de saída, ficou aturdida. Tinha desenvolvi-do húbris. O jornal "lhe New York Times" escreveu que "o culto da personalidade de Fiorina era visí-vel mesmo para um visitante casual da empresa. Na entrada da sede da empresa, o retrato dela aparecia enfaticamente ao lado dos retratos dos lendários e respeitados fundadores, -William Hewlett e David Packard". Numa demonstração de como os sinto-mas da maleita são transversais, eis o que foi escrito pelo "DN/Lusa", em 14 de dezembro último, acerca de Paula Brito e Costa: "Apesar de já não ser presi-dente da instituição, a sua figura está bem marcada na entrada da Casa dos Marcos, com uma fotografia gigante a cobrir uma porta dupla e nas paredes, ima-gens emolduradas de Paula Brito Costa com o Papa Francisco, Paula Brito Costa com a rainha espanho-la, Letízia, e Paula Brito e Costa com Letícia e Maria Cavaco Silva, madrinha da instituição."

PORQUE SE DESENVOLVE A HÚBRIS? A húbris desenvolve-se porque o poder, se não for exercido com humildade e consciência dos limi-tes próprios, muda quem o exerce — sobretudo se for exercido por longos períodos de tempo. O poder confere mais margem de manobra a quem exerce. Aumenta os níveis de desinibição. Estudos efetuados em laboratório colocaram participantes numa situa-ção temporária de poder, incumbindo-os de tarefas de avaliação e decisão relativa a outros participan-tes. De seguida> os participantes fizeram um teste de sabores e tiveram oportunidade de comer chocolates ou rabanetes. Os "poderosos", em comparação com os "subordinados", comeram mais chocolates eme-nos rabanetes. Noutro estudo, três participantes (um deles escolhido como decisor, logo com poder) dis-cutiram um tópico em grupo. A certo momento, al-guém entrou na sala e apresentou-lhes uma bande-ja com quatro biscoitos. Naturalmente, esperava-se

que, por razões de cortesia, ninguém tomasse para si o último biscoito. Mas o que ocorreu com o quárto biscoito é ilustrativo: na maioria das experiênci-as, os participantes com "poder" toma-ram a liberdade de comer a guloseima. Além disso, comeram com alguma alti-vez, com a boca aberta e deixando cair mais migalhas. Comeram o biscoito com "ar de poderosos".

Os mais poderosos também vi-vem em ambientes sociais, organiza-cionais e institucionais mais ricos em recursos. Esta riqueza envolve recursos materiais como dinheiro, mas também recursos sociais e psicológicos como o estatuto, a atração e a lisonja. Com o de-curso do tempo, esta "riqueza" sobe à ca-beça, mesmo entre os lideres que prosse-guem missões valorosas. Estes estão, aliás, mais propensos a um perigo: a aquisição do sentimento de "licença para prevaricar" (tra-dução livre de morai licensing). Franz-Peter Te-bar tz-van Elst, bispo alemão descrito pela "lhe Economist" como o bishop of Ming ("bispo do luxo", ostentatório) vivia uma vida faustosa, usan-do esplêndidas joias e voando em classe executiva para ajudar crianças pobres na índia. É possível que lideres como Lula da Silva e outros que se destaca-ram no domínio social e político tenham sido toma-dos pela maleita. O reverendo lesse Jackson, que foi durante muitos anos o lider indisputado da comu-nidade negra nos EUA, caiu em desgraça quando veio a público a paternidade de uma criança nas-cida de uma relação extraconjugal. A credibilidade dele caiu abruptamente. Há anos que a sua presen-ça na política e na opinião pública norte-americana se desvaneceu.

A "licença para prevaricar" é a tendência para nos sentirmos mais livres para agirmos menos cor-retamente depois de termos adotado ações moral-mente elevadas. Após termos adotado atosgenerosos ou moralmente elevados, formamos uma identidade, perantenós próprios e os outros, de pessoa boa, éti-ca e com carácter. Sentimo -nos depois mais livres, menos constrangidos, para fazermos o que queremos realmente fazer. Por um lado, ficamos convictos de que, com a nossa autoridade moral, ninguém des-confiará. Por outro lado, sentimos que essa presumi-da autoridademoral legitima que adotemos determi-nadas ações. Sendo nós moralmente superiores, não senos aplicam os códigos que é necessário aplicar às pessoas menos honestas do que nós.

Diversas investigações ilustram o fenómeno. Um estudo mostrou que as pessoas que tiveram a opor-tunidade de mostrar que não eram preconceituosas

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denotaram, subsequentemente, mais propen- são para adotar atitudes... preconceituosas. Ou- tra investigação mostrou que, quando escrevem

uma história acerca de si próprias usando pala-vras que refletem qualidades positivas, as pessoas

fazem seguidamente um donativo menor do que as pessoas que escrevem histórias MA is negativas. "Sou bom, não preciso de fazer mais o bem." Em suma,

as boas ações do passado libertam o líder para adotar comportamentos imorais, não éticos e ou problemáticos.

Esta evidência ajuda a compreender por-que ficamos, por vezes, desiludidos com os

nossos heróis. Após adquirirem uma aura de bons líderes, perante si próprios e os observa-

dores, esses heróis ficam menos vigilantes aos seus próprios comportamentos subsequentes.

Após terem dado provas da sua moralidade, sen-tem-se livres para não mais precisarem de apre-

sentar novas provas. Acabam por confundir as suas preleções com as suas ações — e sentem que aquelas podem substituir estas. Tal como referiu Jeffrey Pfeffer, professor na Universidade de Stan-ford: "Talvez não seja surpreendente que alguns dos lideres mais hipócritas e mais prejudiciais se-jam. precisamente os que gozam da mais elevada reputação e, por isso, se fartam de ensinar e escre-ver sobre liderança — ações estas que lhes propor-cionam margem de manobra para não atuarem de acordo com as suas reputações."

MEDIDAS PREVENTIVAS Como prevenir a húbris? A capacidade para aban-donar a cadeira do poder em devido tempo é a pri-meira recomendação. Importa que o poderoso seja igualmente capaz de se rodear de quem lhe trans-mite a verdade, e não apenas de yes -(wo)men. Em janeiro de 1917, em plena convulsão socioeconómi-ca e política na Rússia, o embaixador dos EUA na Rússia disse, preocupado, a Nicolau II: "Vossa Ma-jestade, se me permite dizê-lo, tem apenas um ca-minho a seguir — nomeadamente quebrar a barreira que o separa do seu povo e reconquistar a sua con-fiança." O czar, irritado, retorquiu: "Quer dizer que tenho de reconquistar a confiança do meu povo ou que eles precisam de ganhar a minha?" Nicolau II tinha perdido o contacto com a realidade. Decorri-do pouco tempo, o regime caiu nas mãos de Lenine. O czar e a sua família foram depois barbaramente assassinados.

Nem sempre o fim é tão dramático. Mas o inun-do, seja ele o empresarial, o político ou o das orga-nizações do terceiro sector, está repleto depodero - sos que tombaram porque não escutaram a realida-de. Sair da redoma, falar com as pessoas simples, contratar (em vez de matar) mensageiros das más

notícias — eis possíveis antídotos para a húbris. Memento mori é uma expressão latina que signifi-ca "lembra-te de que és mortal". Na Roma Antiga, os generais vitoriosos celebravam a vitória numa parada, entre as massas. Para mitigar os riscos de deslumbramento, era adotada uma sábia medida. Atrás do general, na mesma carruagem, ia um es-cravo com uma única incumbência: lembrar o ge-neral da sua mortalidade. Soprava-lhe ao ouvido: "Memento rriori!"A liturgia católica da quarta-feira de cinzas incorpora uma cerimónia em que o sacer-dote assinala a testa de cada crente com urn pou-co de cinza. O gesto é acompanhado da expressão "Memento humo quinpulvis es et in pulverem reverte -ris. "Ou seja: "Lembra-te homem que és pó e ao pó hás de voltar." Os poderosos, qualquer que seja o sector em que atuam, são menos atreitos à.húbris se contratarem alguém, que convém não seja escrava, para lhe soprar ao ouvido: memento mori.

A húbris também pode desenvolver-se devido à conivência, ativa oupassiva, dos liderados. Quan-do alguém ganha poder, os outros alteram o seu comportamento para com essa pessoa. Podem en-tão desprender -se do seu espírito crítico para com o poderoso, seja porque têm medo de represálias, porque simplesmente não querem ser incomoda-dos ou porque pretendem obter benesses. Algumas vítimas dos poderosos lamentam-se. Mas conviria que todos nos lembrássemos de que, parafrasean-do Barbara Kellerman, os "crimes de liderança" são frequentemente facilitados pelos "crimes de obediência".

É preciso reconhecer que, por vezes, os lidera-dos, ou outro s observadores, não cometem crimes de obediência. Mas desprendem-se da sua responsabi-lidade de avaliadores críticos ou deixam- se inebriar pela tenacidade e pela capacidade de persuasão do líder. Alguns caem mesmo na ratoeira do desaco-plamento moral, estabelecendo uma fronteira en-tre a faceta heroica do poderoso e os seus pecadi-lhos éticos: "Não é lá muito sério. Mas tem obra. Há quem seja muito sério mas não faz nada." Em suma: às pessoas com os pergaminhos dos nossos heróis, desculpamos as "malandrices"! Que estes tipos de problemas possam ocorrer tanto no primeiro como no segundo ou no terceiro sectores — eis algo que não nos deveria surpreender. A confiança vigilante, e não a confiança cega, deve imperar — entre os li-derados, os observadores e até mesmo os regulado-res, qualquer que seja a organização. •

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LEAD.lab, Católica Porto Business School

*"' Professor Fundação Amélia de Mello

de Liderança — Nova..SBE