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simpósio de 20 a 22 de outubro de 2009 Faculdade de Letras – UFRJ- Projeto Bridges ESTILO E REPETIÇÃO: DELEUZE E ALGUMAS POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS ................... 1 ANNITA COSTA MALUFE WALTER BENJAMIN TRADUTOR DA OBRA DE PROUST .............................................................. 14 GUILHERME IGNÁCIO DA SILVA O SABOR DE PENSAR-SENTIR COM CLARICE LISPECTOR ......................................................... 22 JOSÉ CLÁUDIO DIAS GUIMARÃES AUTO-RECONHECIMENTO EM MAN WALKS INTO A ROOM ......................................................... 33 PATRÍCIA MAROUVO FAGUNDES LITERATURA COMO MODELO PARA A DEMOCRACIA POR VIR .............................................. 37 TIAGO GUILHERME PINHEIRO VIRGINIA WOOLF E GILLES DELEUZE: ALGUNS CONTRAPONTOS ....................................... 44 VERA LIMA CECCON RESUMOS E ABSTRACTS ......................................................................................................................... 62 SOBRE OS AUTORES ................................................................................................................................. 65 ANNITA COSTA MALUFE 65 GUILHERME IGNÁCIO DA SILVA 65 JOSÉ CLÁUDIO DIAS GUIMARÃES 65 PATRÍCIA M. FAGUNDES 65 TIAGO GUILHERME PINHEIRO 65 VERA LIMA CECCON 66

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simpósio

de 20 a 22 de outubro de 2009

Faculdade de Letras – UFRJ- Projeto Bridges

ESTILO E REPETIÇÃO: DELEUZE E ALGUMAS POÉTICAS CONT EMPORÂNEAS ................... 1

ANNITA COSTA MALUFE

WALTER BENJAMIN TRADUTOR DA OBRA DE PROUST ......... ..................................................... 14

GUILHERME IGNÁCIO DA SILVA

O SABOR DE PENSAR-SENTIR COM CLARICE LISPECTOR ......................................................... 22

JOSÉ CLÁUDIO DIAS GUIMARÃES

AUTO-RECONHECIMENTO EM MAN WALKS INTO A ROOM ......................................................... 33

PATRÍCIA MAROUVO FAGUNDES

LITERATURA COMO MODELO PARA A DEMOCRACIA POR VIR ... ........................................... 37

TIAGO GUILHERME PINHEIRO

VIRGINIA WOOLF E GILLES DELEUZE: ALGUNS CONTRAPONT OS ....................................... 44

VERA L IMA CECCON

RESUMOS E ABSTRACTS......................................................................................................................... 62

SOBRE OS AUTORES................................................................................................................................. 65

ANNITA COSTA MALUFE 65

GUILHERME IGNÁCIO DA SILVA 65

JOSÉ CLÁUDIO DIAS GUIMARÃES 65

PATRÍCIA M. FAGUNDES 65

TIAGO GUILHERME PINHEIRO 65

VERA L IMA CECCON 66

Estilo e repetição: Deleuze e algumas poéticas

contemporâneas

Annita Costa Malufe

(Pós-doutoranda PUC-SP)

Há um conceito bastante recorrente nos textos de teoria ou crítica literária que

trazem alguma referência a Gilles Deleuze. Talvez mesmo quem não conheça sua

filosofia já o tenha lido ou ouvido em algum lugar. Trata-se do conceito de “gagueira”. No

ensaio intitulado “Gaguejou...”, no livro Crítica e clínica, Deleuze desenvolve mais

pontualmente a ideia de uma gagueira criadora associada a alguns escritores – mas o

termo aparece em outros lugares de suas obras também. E esses escritores, os tais

“gagos”, são, para ele, alguns dos mais inventivos. Poderíamos estranhar, à primeira

vista, porque e como algo que é considerado um “desvio” no modo correto de falar é a tal

ponto positivado na obra de Deleuze. A gagueira, que seria um “erro” no bem falar, uma

deficiência ou um débito, é revertida ali em um procedimento de linguagem de certo modo

intencional, ou até mesmo técnico, adotado por alguns escritores e poetas. A gagueira

aparece, em Deleuze, como um procedimento de escrita desejado e desejável; um

procedimento extremamente potente em termos criativos.

À primeira vista, é possível este conceito causar um certo incômodo. Ele pode soar

como uma espécie de capricho do filósofo, de exagero, tendo como objetivo “forçar a

mão” para defender uma certa concepção de estilo liberto do peso da tradição – e da

correção. Afinal, sintonizado com as propostas literárias do século XX, para Deleuze é

fundamental que se desloque o conceito de estilo: ter estilo, em literatura, deixa de ser a

qualidade de quem escreve corretamente, segundo as regras da gramática e da sintaxe.

Ter estilo, após todas as experiências das vanguardas, aproxima-se muito mais de uma

criação sintática do que uma obediência à sintaxe da língua mãe. O estilo é antes de tudo

uma subversão, uma transgressão às leis gramaticais, estando mais próximo do erro do

que do acerto, do desvio do que da norma.

Desse modo, a gagueira, enquanto desvio da norma padrão da fala, se agrega ao

coro de quem defende esta outra concepção de estilo a partir de Deleuze. Muitas vezes o

possível incômodo com o termo vem daí, e é corroborado por artigos que se utilizam de

alguns filosofemas deleuzeanos para justificar suas leituras de autores da literatura. E,

neste movimento, a gagueira pode acabar tomada em uma associação quase metafórica.

Acabando, assim, reduzida a um mero tique da fala, ou convertida numa espécie de

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bandeira, de sinônimo de palavras mágicas como o “erro”, o “desvio”, a “abertura”. O que

ocorre, nestes casos, é a perda da força operacional do conceito. Reduzido a uma mera

terminologia, ele perde sua espessura, bem como seu traço singular, ou seja: perde

aquilo que só ele, ao seu criado, pôde tornar pensável em um determinado momento.

Como diz Deleuze, um conceito é criado por força de um encontro violento, com algo

ainda não pensado, não pensável; ele vem à existência por ser, subitamente, necessário.

Cada conceito nasce então enquanto ponto vital em uma determinada malha de relações.

Ele é uma peça de um jogo, uma peça em toda uma rede, da qual ele, ao ser retirado,

corre o risco de perder totalmente o sentido1.

No caso da gagueira, o conceito nasce do encontro do pensamento de Deleuze

com procedimentos presentes em algumas poéticas contemporâneas, especialmente

Samuel Beckett e Ghérasim Luca. Ele nasce nesta rede. Nasce colocando à mostra

mecanismos aí operantes e seus efeitos. É importante frisar que a gagueira não seria

para Deleuze uma metáfora. E muito menos uma metáfora de impacto, tal como muitas

vezes é tratada. Se ele a toma, é literalmente: trata-se de adentrar um determinado

mecanismo da linguagem, o qual está presente também naquilo que denominou-se entre

nós por gagueira.

E o que faz o gago? Ele hesita diante de uma palavra. Ele se esforça para

conseguir falar, pronunciar. E, neste esforço, ele repete, ele retoma, reitera, reforça. Seja

uma letra apenas, o som de uma consoante ou uma vogal, seja uma sílaba, ou seja uma

palavra, uma expressão, ou mesmo uma frase inteira. Ele repete e sua frase acaba

truncada. Há um abalo na linearidade da frase. Há pontos em branco, suspensões. Há

prolongamentos inesperados, durações de sílabas que não são normalmente esperadas,

há lapsos. Gaguejar pode ser então hesitar, procurar os modos de dizer, ou procurar as

palavras mesmo e reiterá-las, repeti-las.

Mas a questão toda neste funcionamento da gagueira, para Deleuze, se coloca

nestes termos: “Será possível fazer a língua gaguejar sem confundi-la com a fala?”

(DELEUZE, 1997: 123). Aqui está seu deslocamento conceitual: como pensar uma

gagueira da língua e não apenas da fala, como pensar em um procedimento, literário

neste caso, que diga respeito a um abalo em toda a língua e não apenas o abalo de uma

fala. Este modo gago então – que repete os fonemas, tateia as palavras, suspende a

frase, quebra a linearidade etc. –, em algumas poéticas, interessaria justamente por este

1 “Um conceito está privado de sentido enquanto não concorda com outros conceitos, e não está

associado a um problema que resolve ou contribui para resolver” (DELUEZE e GUATTARI, 2000:103).

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deslocamento: ele não é uma mimetização de modos de falar, mas é, ao contrário, um

tremor de base, que faz nascer uma nova língua. Talvez isto equivalha a se perguntar:

como construir uma língua a partir da gagueira? Pode uma língua se fazer a partir deste

mecanismo desorganizador e repetidor da linguagem?

O poeta Ghérasim Luca (1913-1994) é um dos que aparecem, no ensaio de Crítica

e clínica, enquanto criador de uma tal língua. Para Deleuze, em Luca, não se trata da

imitação uma fala gaga apenas, mas de um procedimento de gagueira responsável pela

criação de uma língua própria, uma nova língua (não um dialeto) no interior mesmo do

francês (idioma no qual escrevia o poeta romeno radicado na França). O poema citado

por Deleuze, “Passionnément” (publicado em 1973), é um bom exemplo do sistema

linguístico singular criado por Luca. Vejamos o trecho inicial:

pas pas paspaspas pas pasppas ppas pás paspas le pas pas le faux pas le pas paspaspas le pas paspaspas le pas le mau le mauve le mauvais pas paspas pas le pas le papa le mauvais papa le mauve le pas paspas passe paspaspasse passe passe il passe il pas pas il passe le pas du pas du pape (...) (LUCA, 2001: 169)

O poema vai progredindo desta forma: como se as palavras e as orações fossem

aos poucos nascendo desta repetição insistente, seja de uma sílaba, ou de duas ou três

que se alternam, depois se somam, e subitamente montam uma palavra. E então logo se

desmontam, para depois se recombinarem, como descreve Laura Erber em seu artigo:

“Cada vez que uma palavra se compõe ou atinge a sua forma usual, o autor novamente a

desmonta, recombinando-a e relançando-a numa espécie de fluxo metamórfico que

desintegra suas unidades mínimas (fonemas e morfemas)”, de modo que “a língua só

consegue avançar tateando os fragmentos sonoros e suas possibilidades combinatórias

(ERBER, 2008: 3).

Se concordarmos com Deleuze, diremos que não se trata de uma imitação do

modo de falar do gago, mas de um procedimento que se infiltra lá na fonte donde viriam

as palavras. É como se sua poética nascesse do mecanismo da gagueira, tivesse aí seu

ponto de irrupção. Cria-se, com isto, uma língua nova que teria a gagueira como

funcionamento próprio, como “regra” e não desvio. Para se chegar na oração final, para a

qual tende todo o poema, é necessário que façamos todo este percurso, pelo esforço de

dizer, de construir um dizer que dê conta dos muitos sentidos disparáveis pela frase: “Je

t’aime passionnément”. Vejamos como termina o poema:

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(...) je je t’aime je t’aime je t’ai je t’aime aime aime je t’aime passionné é aime je t’aime passioném je t’aime passionnément aimante je t’aime je t’aime passionnément je t’ai je t’aime passionné né je t’aime passionné je t’aime passionnément je t’aime je t’aime passio passionnément (LUCA, 2001 :176)

O último verso vem então como um grito final, construído aos poucos e com um

efeito sensível que depende desta construção, deste percurso de leitura, depende que

passemos por este dizer que se faz diante de nossos olhos e ouvidos. Como diz Deleuze:

“A língua inteira desliza e varia a fim de desprender um bloco sonoro último, um único

sopro no limite do grito Je t’aime passionnément” (DELEUZE, 1997:125). Este movimento

fica ainda mais claro se ouvimos a leitura que o próprio Ghérasim Luca fazia do poema,2

em que sua entonação deixa clara a progressão até este ponto culminante no último

verso. Seu modo de ler enfatiza também o tom de hesitação e de esforço diante da

pronúncia de algumas consoantes e dos fonemas, apesar da velocidade acelerada de

dicção. Esta aceleração no entanto não é simplesmente imposta pela leitura de Luca. Ela

parece fazer parte do próprio arranjo de palavras. Ela vem à tona se lemos

silenciosamente o poema. Trata-se de um tateio aflito das palavras pela voz, dando-se

afoita e aceleradamente; no limite do grito, diz Deleuze, mas também, diríamos, no limite

do fôlego. Como quem corre para dizer algo, mas não consegue dizer tão rápido quanto

gostaria.

Dizer e “como dizer” é também a questão em torno da qual gira o poema de

Samuel Beckett citado por Deleuze. A gagueira de Beckett seria diferente daquela de

Luca, mas manteria em comum com ela o fato de ser uma gagueira da língua e não da

fala. Ou seja, um procedimento criador de um abalo mais profundo, ou estrutural, criando

um sistema linguístico singular:

2 Disponível no CD Ghérasim Luca par Ghérasim Luca (Seuil, 2001).

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comment dire folie – folie que de – que de – comment dire – folie que de ce – depuis – folie depuis ce – donné – folie donné ce que de – vu – folie vu ce – ce – comment dire – ceci – ce ceci – ceci-ci – tout ce ceci-ci – folie donné tout ce – (...) (BECKETT 1978: 26-27)3

Neste trecho inicial do poema já é possível observar o movimento descrito por

Deleuze: trata-se de proceder por acréscimo de palavras, fazendo a frase crescer pelo

meio. Uma palavra é lançada (folie), depois repetida acrescentada a outras (folie que de);

em seguida, repete-se essas novas (que de) e entra o corte (comment dire). A expressão

inicial é então repetida, mas agora com o acréscimo de mais uma palavra (folie que de

ce), e depois outra (depuis); é quando repete-se a primeira palavra mas agora agregada a

estas duas novas (folie depuis ce), e assim por diante. O poema vai se fazendo por

acréscimos paulatinos, pontuados pelo corte do “como dizer” (comment dire). Esses

acréscimos são, assim, uma espécie de procura deste como dizer, um jogo circular em

torno desta busca por palavras. Ou melhor, o poema é esta busca fadada ao fracasso, é o

percurso que se dá até este ponto cego do “bem dizer”. Deleuze cita o título da obra de

Beckett Mal vu mal dit e nos lembra que “dizer bem nunca foi próprio nem a preocupação

dos grandes escritores” (1997: 126). E assim, já que não é o ponto final que importa, uma

vez que não se trata de chegar a ele, o que dá o sentido do poema é o próprio percurso.

Trata-se de percorrer a busca e a hesitação, fazer nascer uma língua desta procura.

Língua que se faz no movimento desta procura: espécie de criação no tempo real da

leitura.

3 “COMO DIZER// loucura –/ loucura isto de –/ isto de –/ como dizer –/ loucura isto de que –/ desde –/ loucura

desde que –/ dado –/ loucura dado que isto de –/ visto –/ loucura visto que –/ este –/ como dizer –/ isto –/ este isto –/ isto aqui –/ todo este isto aqui –/ loucura dado todo este –/ visto –/ loucura visto todo este isto aqui de –/ isto de –/ como dizer –/ ver –/ entrever –/crer entrever –/querer crer entrever –/ loucura isto de querer crer entrever o que –/ o que – / como dizer –/ e onde –/ isto de querer crer entrever o que onde –/ onde –/ como dizer –/ lá –/ acolá –/ longe –/ lá longe acolá –/ quase que –/ lá longe acolá quase o que –/ o que –/ como dizer –/ visto tudo isto –/ todo este isto aqui –/ loucura isto de ver o que –/ entrever –/ crer entrever –/ querer crer entrever –/ lá longe acolá quase o que –/ loucura isto de querer crer entrever aí o que –/ o que – como dizer –// como dizer” (tradução de Marcos Siscar, inédita).

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Como se vê, esta língua estranha não está pronta, ela se dá dentro do idioma

francês, mas ela não é a realização de possibilidades previstas neste idioma. Ela quebra

expectativas de seu uso, opera aí onde o idioma falha. Ela vai nascendo e,

simultaneamente, criando suas regras, suas constantes e variáveis. Para Deleuze, a fala

poética é de um tipo especial, pois ela não se distingue da língua – tal a distinção língua-

fala proposta por Saussure. Ao se efetuar, ela efetua seu próprio sistema linguístico. Uma

compreensão poética da própria língua teria de enxergá-la como um sistema longe do

equilíbrio, heterogêneo, ou seja, composto por vários regimes de signos. Neste ponto,

insere-se a tentativa de Deleuze e Guattari de recusarem a distinção saussuriana língua-

fala, acreditando que ela “foi feita para colocar fora da linguagem todos os tipos de

variáveis que trabalham a expressão ou a enunciação” (1995: 39). Por trás desta

distinção, haveria uma concepção da língua como um sistema homogêneo em equilíbrio –

o que, para eles, estaria muito longe do efetivo funcionamento da linguagem.

Talvez haja em cada fala, em cada discurso, uma língua se criando. Mas certos

poemas radicalizam isto, nos fazem viver esta criação em tempo real, tornam-na não

apenas explícita mas sensível: proporcionam que sua leitura seja a vivência deste

processo de criação. O poema se oferece então como um trajeto a ser percorrido. Não

para atingir um ponto de chegada mas para propiciar uma experiência, a cada vez refeita,

de sua própria constituição. O poema “toma a forma da onda que o pôs em

funcionamento”, como diz Ghérasim Luca na introdução a um recital: o motor de seu

poema seria um “choque entre o tumulto e o silêncio”, choque disparando esta onda, este

fluxo donde nasce a forma do poema. Luca termina aí dizendo: “eu me oralizo”.4 Esta

onda seria, quem sabe, o fluxo da palavra oral, ou vocal; e o poema se torna uma espécie

de massa sonora que carrega os significados das palavras e os faz oscilar.5

Esta experiência é talvez próxima àquela que temos ao estar à escuta de alguém.

Vivemos a constituição de uma massa sonora imprevista, na qual não descolamos os

sons da voz, os timbres e entonações, os ruídos do ambiente, o corpo, os gestos de quem

fala e tantos outros elementos contextuais, daquilo que está sendo dito, dos efetivos

“significados” daquela fala. Não sabemos qual será a próxima palavra e, seja qual for, ela

já nasce colada a todos esses muitos elementos, e nasce colada mesmo às palavras que

a circundam, ao fluxo de linguagem que a carrega. Como separar cada palavra que

4 “Je parcours aujourd'hui une étendue où le vacarme et le silence s'entrechoquent – centre choc –, où le

poème prend la forme de l'onde qui l'a mis en marche. Mieux, le poème s'éclipse devant ses conséquences. En d'autres termes : je m'oralise” (LUCA, 2001: XII-XIII).

5 Na introdução a este volume que reúne três livros de Luca (Héros-limite, Le chant de da carpe e Paralipomènes), André Velter também se refere, ainda que rapidamente, à ideia de massa sonora.

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escutamos de nosso interlocutor deste fluxo sonoro? Experiência próxima também àquela

de ouvir um idioma desconhecido e ficar apenas seguindo a musicalidade desta fala sem

nem ao menos conseguir separar uma palavra de outra. Ouvimos apenas um fio sonoro,

acompanhando um contínuo de modulações, ondulações e tons de voz.

Com o que poderíamos agregar mais uma característica a este procedimento de

gagueira: sua ligação com a palavra vocal, vocalizada. Palavra pronunciada, sonorizada,

dita ou escrita para ser ouvida. Mesmo numa leitura silenciosa, podemos ouvir esta

música vocal, e ser tomados por estes sons. Sobre os últimos textos de Beckett, incluindo

o poema citado, Deleuze afirma haver uma: “Música própria da poesia lida em voz alta e

sem música” (1992: 105), nas peças para televisão e prosas poéticas da última fase.

Estas repetições que vemos em Ghérasim e em Beckett, repetições de fonemas, sílabas,

palavras, e depois expressões, criam então uma sensação de vocalidade. Mesmo lendo

silenciosamente, é como se uma voz soasse, viva, tateante, acelerada, em nossas

cabeças.

Há uma escuta que é colocada em ação na leitura. A prosa beckettiana, segundo

Fabio de Souza Andrade, teria evoluído justamente no sentido de um: “casamento dos

olhos que lêem com a fala, da escrita com a escuta silenciosa” (2001: 159), com um

narrador que “passa a depender mais e mais das metáforas da oralidade, criando uma

escrita que se vale da escuta para se constituir” (IDEM: 160). Nessa prosa poética,

arrastada pela arte dramática, o que se vê é uma: “maior atenção às entonações que as

palavras assumem ao serem proferidas em voz alta” (IDEM: 161).6 A entonação e as

inflexões que a voz assume se tornam fundamentais para o sentido das últimas obras, o

sentido dos textos não se separa das ondulações vocais que o compõem. Textos como

L’Innommable, Comment c’est ou o pequeno Pas moi são verborrágicos, de uma

verborragia no entanto feita por um vocabulário pequeno, em que muitas palavras são

retomadas, ditas e reditas com obsessão, em falas em que impera a repetição, a

gagueira. É aí que Fabio de Souza Andrade enxerga uma “metamorfose do texto em

partitura para uma música verbal”, fosse esta música efetivamente encenada ou não.

Ou seja, para além de uma proximidade com o diálogo dramático, algo tão

marcante e evidente na produção de Beckett, o que começa a ocorrer, muitas vezes até

em textos seus não específicos para teatro, é uma atração pela corrente sintática da fala,

6 Fabio de Souza Andrade salienta ainda que “na obra final Beckett brinca com estes limites entre a escrita

e a fala”, bem como com a relação entre a voz gravada e a voz ao vivo, utilizando-se até mesmo de gravadores em cena ou da voz em off, sem a presença de personagens no palco. Há toda uma relação da voz e da presença do corpo, do dizer e do ver, que se evidencia (IDEM: 161). Neste sentido, podemos lembrar, ainda, de uma de suas últimas obras: Mal vu mal dit (1981).

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pela sonoridade das entonações e inflexões, pelo fluxo vocal. A composição do texto se

torna assim, ao mesmo tempo que dramática, musical, mas de uma música que seria a da

fala – e não uma música para ser cantada, para ser posta em melodias. O material vocal

que lhe interessa é muitas vezes o do monólogo, de uma voz solitária que parece girar

obsessivamente em torno de alguns temas, histórias, memórias, imagens. E a fala é

então uma corrente sonora de inflexões, mudanças de velocidades, paradas, hesitações,

retomadas, criando todo um ritmo peculiar. Um fio sonoro continuado.

Este efeito de vocalização presente em Beckett, mas também em Luca – ainda que

de modos diferentes em cada um –, se liga invariavelmente ao procedimento repetitivo

donde nascem as palavras, à gagueira que cria uma língua. Ele se liga a um movimento

que para nós é tipicamente do registro oral: a reiteração de palavras, bem como o

“tropeçar” nas palavras, a hesitação diante de uma sílaba, de um som inicial de um

fonema, o esforço por dizer algo, o silêncio invadindo o que é dito... – movimentos que, na

escrita, tendem a desaparecer ou a serem vistos como “sobras” desnecessárias, a serem

evitadas. Daí a sensação de vocalidade que parece acompanhar a leitura desses textos.

Ao falar em vocalidade, refiro-me à diferença empírica entre as formas do falado e

do escrito, principalmente naquilo que diz respeito aos modelos cultural e historicamente

consolidados – e não a uma necessidade de distinção, muitas vezes defendida, entre as

linguagens escrita e oral. Refiro-me, antes, àquilo que Barthes chama a atenção no artigo

“Da fala à escrita”, em O grão da voz: ao transcrevermos um texto falado, notamos a

presença de expressões, palavras, modos de dizer que não fazem parte daquilo que

estamos acostumados como sendo o discurso escrito. São reiterações, conectivos,

expressões fáticas, tudo aquilo que usamos como apoio ao falar. Ou seja, há algo que,

para nós, seria típico da comunicação escrita, seria esperado na forma escrita de um

texto. Há modelos que povoam o senso comum e o bom senso do que seria a correta

forma do escrito. De modo que há expressões e movimentos que são típicos da fala e

que, ao lermos, associamos rapidamente à vocalidade, temos uma sensação, no corpo,

de uma voz que soa. Assim, é neste sentido que podemos afirmar que gaguejar é uma

ação que remete à linguagem vocalizada. Quando se diz que fulano é gago, diz-se em

referência a seu modo de falar, e não de escrever. E, ao lermos algo que remete ao

gaguejar, temos rapidamente uma sensação de transcrição de uma voz, mais do que a

sensação de um texto escrito, pertencente ao modo escrito da linguagem.

Não teríamos como entrar em uma discussão mais ampla da opção, para os

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nossos propósitos, pelo termo vocalidade em lugar de oralidade.7 Mas vale ressaltar que,

em Deleuze, o uso do termo oralidade aparece em Lógica do sentido remetendo-nos ao

universo da psicanálise (cf. série “Da oralidade”). A fase oral da criança como aquele

momento em que a boca é um órgão que ainda não tem a linguagem; o comer e o falar

ainda não se separaram. Assim, a oralidade remete à profundidade e mistura dos corpos,

aos ruídos que ainda não se separaram dos sons, os sons que ainda não são articulados,

todo um “sistema sonoro pré-vocal”. Em seguida, ele se refere ao “progresso do vocal

sobre o oral”, o que seria a “passagem do ruído à voz”, a aquisição da linguagem: o

acontecimento, diz ele, que fará da voz uma linguagem.8 De modo que, em Deleuze, seria

mais pertinente a utilização do termo vocalidade, ao buscarmos uma palavra que favoreça

a nossa tentativa de ultrapassar a distinção discurso falado x escrito e, ao mesmo tempo,

possa nos aproximar da idéia de uma presença do som da voz nas linhas aparentemente

silenciosas do papel.

É esta presença do som nas linha silenciosas do papel que parece importante para

Deleuze ao definir o estilo em literatura. Para ele, o estilo seria uma questão intimamente

ligada ao potencial de dar a ouvir de um texto. Em L’Abécédaire de Gilles Deleuze,

podemos encontrar, em diferentes momentos da entrevista, afirmações suas que

relacionam estilo e som – pincemos algumas: “O estilo é algo puramente auditivo”; “Mas o

estilo é sonoro e não visual”; “(...) levar toda a linguagem a uma espécie de limite musical.

Ter um estilo é isso”; e ainda: “(...) faz-se com que se leve toda a linguagem até um tipo

de limite. É o limite que a separa da música. Produz-se uma espécie de música”.

De modo que o estilo se relaciona à qualidade que um texto pode ter de conferir às

palavras escritas – que, em termos empíricos e fenomenológicos, são silenciosas – uma

potência que não é própria do escrito. Há, em Deleuze, uma espécie de contra-

fenomenologia aqui. Trata-se de ultrapassar os órgãos dos sentidos, transversalizá-los. A

literatura e as artes não são uma questão dos sentidos apenas. Se elas passam por eles,

e precisam por eles passar, é para ir além e colocar olhos e ouvidos por todo corpo, por

toda parte.9

7 Paul Zumthor também diz preferir o termo “vocalidade” ao de “oralidade”, por achá-lo mais adequado à

sua investigação da historicidade de uma voz, seu uso, sua performance na leitura em voz alta, ou ainda, o “aspecto corporal dos textos medievais, seu modo de existência enquanto objetos de percepção sensorial” (ZUMTHOR, 1987: 21).

8 “A passagem do ruído à voz, nós a revivemos constantemente em sonho; os observadores notaram muito bem como os ruídos chegando ao dormente se organizam em voz presentes a acordá-lo” (1974: 199).

9 Esta questão é pontualmente tratada por Deleuze em Francis Bacon, Logique de la sensation, em relação à pintura mas com alusões à música. “É certo que a música atravessa profundamente nossos corpos, e nos coloca uma orelha no ventre, nos pulmões etc. (...) Ela livra os corpos de sua inércia, da materialidade de sua presença. Ela desencarna os corpos” (DELEUZE, 2002: 55).

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Ter estilo é propriedade desses escritores que levam a língua a um certo limite, e,

ao fazê-lo, criam uma outra língua. Mas ao conceituar este limite, é preciso enxergar o

esforço de Deleuze em localizar uma extremidade, uma borda, da própria língua: limite

não-linguageiro, não-linguístico. A sintaxe raspa aquilo que não lhe pertence, as palavras

são tomadas por um campo que não é o delas. Limite sonoro: “música ou silêncio”, um

balbuciamento, um sussurro, um grito, uma gagueira. Ter um estilo é tratar a língua de

uma maneira tal, a ponto de “extrair daí gritos, clamores, alturas, durações, timbres,

acentos, intensidades” (DELEUZE e GUATTARI, 1995: 50). É tratar a língua

musicalmente. O que equivale a tratar a língua não apenas como um código linguístico –

que possui um referente e um manifestante (objeto e sujeito de enunciação), um

significado e um significante, expressão e conteúdo – mas tratá-la como um fluxo, que

arrasta todos os regimes de signos, colocando sobre um mesmo plano toda natureza de

coisas; palavras, corpos, reminiscências, fabulações, afectos, conceitos.

O interessante é notar como esta concepção está presente não apenas naquilo que

identificaríamos como as “designações” dos escritos de Deleuze, mas também – e

especialmente – na própria composição da grande maioria de seus textos. Sua escrita

não apenas conceitua o estilo mas experimenta, efetua, o próprio conceito ao longo de

sua construção. Após seus primeiros livros, que eram obras que tendiam mais para uma

história da filosofia, uma certa experimentação da escrita se impôs, diz ele, enquanto

condição para o desenrolar de sua filosofia:

“Comecei então a fazer dois livros nesse sentido vagabundo, Diferença e repetição,

Lógica do sentido. Não tenho ilusões: ainda estão cheios de um aparato universitário, são

pesados, mas tento sacudir algo, fazer com que alguma coisa em mim se mexa, tratar a

escrita como um fluxo, não como um código” (1992: 15).

Este tratamento da língua como um fluxo e não um código é buscado por Deleuze

ao longo de sua obra e, segundo ele, principalmente a partir de Diferença e repetição

(1968) e Lógica do sentido (1969). Poderíamos dizer que obras marcantes no que diz

respeito à constituição daquilo que viria a ser seu pensamento mais próprio, ou seja, a

criação conceitual que vai marcar mais singularmente sua produção. De modo que este

tratamento especial da língua foi algo que surgiu como necessidade de constituição

conceitual. Não se trata de uma ornamentação retórica, mas de uma necessidade

expressiva forçada pela própria trama dos conceitos, a construção daquilo que ele e

Guattari vão definir como o “plano de imanência” da filosofia.10 Ou seja, tal trama não

10 Em diversos momentos de Mil platôs, mas especialmente na obra O que é a filosofia?.

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simpósio LITERATURA E FILOSOFIA – Faculdade de Letras – UFRJ- outubro 2009

existe fora da composição que foi nascendo concomitantemente a ela.

Se escolhi falar aqui da gagueira, foi então porque, dentre alguns procedimentos

utilizados por Deleuze, ela é talvez um dos mais presentes. A gagueira em Deleuze é de

um tipo específico. Certamente não se trata de repetir os fonemas, como o faz Ghérasim

Luca, tampouco de acréscimos paulatinos de palavras, como o faz Beckett. Antes de

tudo, os elementos que se repetem são maiores, mais extensos. Há motivos ou motes

que se repetem, que são, em geral, formulações conceituais. São frases inteiras, que

sofrem pequenas modificações e são repetidas, retomadas, ao longo de um mesmo texto

– ou retomadas de uma obra a outra. A formulação acerca do estilo, por exemplo, é um

destes motes. A mais frequente é uma variação em torno de uma frase de Proust, de

Contra Sainte-Beuve: “Os belos livros são escritos em uma espécie de língua estrangeira”

(PROUST, 1988: 141). Ela é por vezes retomada na íntegra, mas mais frequentemente é

apropriada por Deleuze, em variações diversas, em torno de algo como: “o estilo é como

uma língua estrangeira dentro da língua”, e se faz presente repetidas vezes

principalmente em Kafka por uma literatura menor, em Mil platôs e Crítica e clínica.

A formulação acerca do sentido é outra que se repete bastante. Em Lógica do

sentido ela percorre todas as séries. A cada vez retomada de um modo diferente,

deslocada em relação a que veio anteriormente, ou virá depois, ela é repetida inúmeras

vezes, variando paulatinamente, ritmando a leitura. Por exemplo, referindo-se à

característica incorpórea do sentido, temos ocorrências como: “vapor incorporal que se

desprende dos corpos”; “um impassível, um incorporal, sem existência física nem mental”;

“efeito incorporal distinto das ações e das paixões do corpo”; “acontecimento ideal distinto

de toda sua efetuação presente”; “efeito de superfície, impassível e estéril”; “o brilho, o

esplendor do acontecimento, é o sentido”, e assim por diante. Em Diferença e repetição

ela também estará presente, em outros contextos, bem como a formulação acerca do

não-senso, outro mote presente tanto em uma quanto em outra obra de modos bastante

aproximados.

A ideia de mote ou motivo, um pouco como se diz na música de motivos que

retornam, nos remete ao refrão, ao estribilho, tanto em música quanto em poesia. São

pequenos eixos provisórios, em torno dos quais os elementos do texto vão se ajeitando,

vão criando um certo movimento entre a atração e a repulsa, o conter e o expandir.

Nesses eixos, o que está em jogo é sua própria plasticidade, e não sua camada

designativa; uma existência próxima à de uma notação musical. Uma batida que retorna,

um som que retorna, um timbre. Pequenos eixos que vão, portanto, criando a pulsação do

texto, seus pequenos ritmos localizados e seu ritmo mais amplo, composto por todos os

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simpósio LITERATURA E FILOSOFIA – Faculdade de Letras – UFRJ- outubro 2009

pequenos ritmos locais.

Esses motes vão tramando sua escrita, criando um movimento espiralado que faz

com que um conceito se ligue a outros de modos diversos. A cada vez que eles retornam,

aparecem com uma pequena variação, e a cada vez imantando diferentes elementos,

questões ou conceitos. É como se eles multiplicassem os encaixes conceituais. Mas não

de modo explicativo ou explícito. O que ocorre é que o leitor vai sendo levado por uma

corrente e vai vivendo a constituição de vários conceitos simultaneamente. A matriz

repetida vai se tornando então uma espécie de refrão que percorre o texto, um motivo,

ritmando a leitura, criando ressonâncias internas, pequenos ciclos. Assim, é como se o

leitor fosse incluído no curso temporal em que os conceitos se criam. O texto encena a

criação conceitual, uma vez que, a partir das repetições, inclui o tempo em seu curso.

Simultaneamente, o conceito se torna inseparável desta trama que assistimos, e que o

constitui.

Há uma encenação, no texto, de sua própria constituição. E um convite para que o

leitor experimente este passo a passo, viva este processo. Algo próximo ao que vimos

acontecer nos textos de Beckett e Ghérasim Luca. O fluxo das palavras é também o fluxo

que se cria em nossa leitura, e o sentido depende deste percurso sugerido pelo poema.

Ele não se restringe a uma significação do tipo “isto que dizer aquilo”. Ele depende de

uma vivência, de uma experimentação de seu desenrolar – que só pode ser dar, a cada

vez, em cada leitura.

Não bastaria dizer que tratar a escrita como um fluxo, utilizando-se muitas vezes de

procedimentos próximos aos de alguns escritores, é o resultado de “influências” literárias.

Neste encontro entre a filosofia de Deleuze com Beckett, Luca e com tantos outros

autores, o que se passa é antes da ordem da contaminação e da necessidade. O quanto

alguns escritores (e artistas ou cientistas ou filósofos) indicam, sinalizam, a constituição

de certas linhas de força, a intuição de determinados movimentos, até então inexistentes

ou apenas silenciados nas linhas mais aparentes de uma cultura. O quanto alguns

autores subitamente tornam sensível, em sua composição, uma certa noção de tempo,

por exemplo, uma nova sensibilidade do tempo até então camuflada.11

É o que ocorre com a questão da gagueira. O que Deleuze talvez busque

singularizar com este conceito é um tipo específico de repetição que tem por efeito um ato

criativo e não reiterativo. Encontrar aquele ponto em que repetir não é mais reiterar o

11 O que está em jogo aqui é a terceira síntese do tempo, o tempo da repetição da diferença – tal

concepção é formulada por Deleuze especialmente em Diferença e repetição, mas concerne a toda sua obra.

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simpósio LITERATURA E FILOSOFIA – Faculdade de Letras – UFRJ- outubro 2009

mesmo mas sim proporcionar uma quebra, um salto, em que o diferente emerge. Como

vimos na gagueira poética, surge uma nova língua. Um novo sistema se autonomiza. Há,

na gagueira, portanto, uma repetição que é justamente a condição deste surgimento. O

poema encena o próprio surgimento desta língua, encontra seu sentido nesta encenação,

em tornar sensível este aparecimento de uma língua a partir da repetição. As palavras

parecem brotar desta fonte repetitiva, o dizer não se separa deste movimento e encontra

nele seu próprio fluxo. Assim com os conceitos. Encontrar a repetição fértil, a repetição

que força a criação conceitual. Os conceitos nascem de encontros, mas é preciso, na

repetição que é cada texto, na repetição que é cada esforço de dizer, a repetição

diferenciada, de cada encontro. Para que dizer um conceito não seja simplesmente

relembrar o encontro de origem, para que o conceito não se restrinja à sua faceta

representativa e reiterativa. Que o texto, afinal, não seja apenas a tentativa frustrada de

uma re-apresentação, uma nostalgia das coisas vividas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Andrade, Fábio de Souza. Samuel Beckett, o silêncio possível. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. BARTHES, Roland. O grão da voz. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004 (do original Le

Grain de la voix, 1981). Beckett, Samuel. Poèmes, suivi de Mirlitonnades. Paris: Minuit, 1978. DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997 (do original Critique

et clinique, 1993). ______________. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Graal, 2006 (do

original Différence et répétition, 1968). ______________. Francis Bacon, Logique de la sensation. Paris, Seuil, 2002. ______________. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1974 (do

original Logique du sens, 1969). ______________. “L’Épuisé”. In: Beckett, Samuel. Quad et autres pièces pour la télévision. Paris: Minuit,

1992. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Muñoz. São

Paulo: Editora 34, 2000 (do original Qu’est-ce que la philosophie?, 1991). _______________________________. Mil platôs – vol.2. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão.

São Paulo: Editora 34, 1995 (do original Mille plateaux – Capitalisme et schizophrénie, 1980). ERBER, Laura. “Escrever com a boca: violação da palavra e liberação dos sentidos prisioneiros na poesia

de Ghérasim Luca”. Anais do XI Congresso Internacional da Abralic. São Paulo, 2008. Disponível em <<http://www.abralic.org.br/cong2008/ AnaisOnline/simposios/pdf/005/LAURA_ERBER.pdf>>, acesso em 08/10/2009.

LUCA, Ghérasim. Héros-limite, suivi de La chant de la carpe et de Paralipomènes. Paris: Gallimard/ Poche, 2001.

Proust, Marcel. Contra Sainte-Beuve. Trad. Haroldo Ramansini. São Paulo: Iluminuras, 1988 (do original Contre Sainte-Beuve, s/d).

Zumthor, Paul. La Lettre et la voix. Paris: Seuil, 1987.

Walter Benjamin tradutor da obra de Proust

Guilherme Ignácio da Silva

Prof. Dr. Universidade Federal de São Paulo

Apresentação

Dos volumes de Em Busca do Tempo Perdido traduzidos por Walter Benjamin

para o alemão restam-nos apenas dois, À Sombra das Raparigas em Flor e O Caminho

de Guermantes , ou seja, o segundo e terceiro volume do ciclo proustiano de romances.

Em carta a amigos, Proust afirma ter dedicado todo o terceiro volume à descrição

do contato do herói com membros da família dos Guermantes para tentar entender o

fascínio exercido pelo esprit de uma outra família, a família de Mortemart, retratada pelo

duque de Saint-Simon em suas Memórias . Ou seja, o centro de Em Busca do Tempo

Perdido gira em torno da formulação ficcional (apoiada nos Guermantes) daquele que era

um dos principais traços de distinção no Antigo Regime francês, o esprit.

O presente artigo destaca trechos do trabalho de crítica da obra de Proust e da

tradução de Benjamin para O Caminho de Guermantes , com vistas a mostrar em que

medida certas soluções encontradas pelo tradutor para passagens ligadas à formulação

do esprit sinalizam uma compreensão particular do universo proustiano dos salões

aristocráticos.

O artigo está dividido em três partes. Na primeira, são destacados trechos do texto

de crítica de Benjamin sobre Proust; na segunda, uma contextualização de termos

relacionados à discrição cortês e ao esprit; e na última, um retorno ao trabalho de

tradução de Benjamin buscando verificar nas soluções encontradas pelo tradutor a

compreensão daqueles termos em seu contexto.

I Para iniciar a análise da relação entre o trabalho de crítica e tradução de Walter

Benjamin e o universo de O Caminho de Guermantes seria interessante retomar certas

passagens do texto de crítica que Benjamin dedicou a Proust em 1929.

A certa altura de <<A Imagem de Proust>>, ele nos chama a atenção para uma

“ tagarelice incomensuravelmente ruidosa e vazia que ecoa nos romances de Proust”,

tagarelice que Benjamin associa ao “rugido com que a sociedade se precipita no abismo”

da solidão do romancista (BENJAMIN, 1994: 46).

É provável que os leitores habituais da obra de Benjamin sintam nesse trecho o

tom de certas passagens de <<O Narrador>>, texto em que Benjamin procura diferenciar

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simpósio LITERATURA E FILOSOFIA – Faculdade de Letras – UFRJ- outubro 2009

a postura de um narrador tradicional, ligado à tradição oral, e o narrador de romances.

Ali se associa a origem do romance ao “indivíduo isolado”, indivíduo “que não pode

mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe

conselhos nem sabe dá-los” (BENJAMIN, 1994: 201).

Mais adiante, o tema da solidão aparece novamente, agora associado à própria

experiência de leitura de romances: “o leitor de um romance é solitário.” (Idem).

Eco de uma reflexão mais geral sobre a forma “romance”, a observação sobre a

“tagarelice” que ecoa “no abismo” da solidão do narrador dos romances proustianos é

importante também pela vinculação que ela estabelece, à revelia talvez do crítico, entre

esses romances e a história da conversação cortês na França. Embora não desenvolvido

por Benjamin, o tema da história da conversação aparece de pesquisas mais recentes

quanto à posição da obra de Proust na história da literatura francesa.

Pois a conversação é justamente o traço distintivo do salão do duque e da duquesa

de Guermantes, salão mais sofisticado do “faubourg Saint-Germain”, região parisiense

que abarca os membros da antiga nobreza francesa. Benjamin, tradutor do volume

exclusivamente dedicado ao contato do herói proustiano com o universo da antiga

nobreza, teve necessariamente que pensar soluções de tradução que sinalizassem uma

compreensão das regras que regem aquele universo.

Em outra passagem de seu texto sobre Proust, percebe-se nitidamente que

Benjamin não era alheio à existência dessas regras regendo a conversação. No trecho

abaixo, ele chama justamente a atenção do leitor para as implicações das regras que

conduzem a conversação no ambiente aristocrático freqüentado pelo herói proustiano:

“A quintessência da experiência não é aprender a ouvir explicações prolixas que à

primeira vista poderiam ser resumidas em poucas palavras, e sim aprender que essas

palavras fazem parte de um jargão regulamentado por critérios de casta e de classe e não

são acessíveis a estranhos. Não admira que Proust se apaixonasse pela linguagem

secreta dos salões.” (Idem, p. 42)

Na visão de Benjamin, o narrador proustiano, iniciado nesse “jargão” dos salões

aristocráticos, nos inicia também a essa “linguagem secreta”, que, nesse trecho, deixa de

ser denominada de “tagarelice incomensuravelmente ruidosa e vazia” e passa a integrar a

“quintessência da experiência” que Proust nos transmite.

Antes de prosseguir e de chegar a trechos da tradução de Benjamin para O

Caminho de Guermantes nos parece necessário pelo menos esboçar um

desenvolvimento para idéias que, no texto de Benjamin, permanecem sob a forma de

sugestões que não são desenvolvidas pelo crítico.

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simpósio LITERATURA E FILOSOFIA – Faculdade de Letras – UFRJ- outubro 2009

II

Quando se fala em conversação no Antigo Regime francês, estamos nos referindo

a uma “linguagem secreta”, um tipo de prática discursiva regida por certas leis das quais

tem plena consciência o tipo cortês denominado “discreto”.

O “discreto” é o freqüentador dos salões e das cortes que tem pleno controle de

suas paixões e só toma parte na conversação e na encenação cortês após análise aguda

do contexto em que elas se dão.

“Para o discreto, ao contrário do que pensamos romanticamente, as paixões não

são informais. Ainda quando são paixões excessivas ou obscenas, têm formalização

retórica; por isso, na representação do tipo, é uma racionalidade não-psicológica que

opera os afetos, aplicados segundo uma convenção de esquemas partilhados

coletivamente como verossimilhança.”(HANSEN, 1996: 85-86)

Tomemos como nosso guia de delimitação deste tipo o livro Les Caractères , de La

Bruyère. Uma vez que aquilo se diz na conversação e o que se deixa ver dos afetos

pessoais nunca são elementos espontâneos, “informais” ou naturais, há no livro de La

Bruyère inúmeras variações sobre a questão da discrição associadas a imagens que

tematizam o jogo entre o mundo interno e o externo, entre profundidade e

superficialidade. Como a imagem do cortesão discreto associado a um relógio:

“As polias, as molas, os movimentos estão escondidos; nada de um relógio

aparece com exceção de seu ponteiro, que insensivelmente avança e completa sua volta:

imagem do cortesão (...)” (LA BRUYÈRE, 1965: p.199).

O discreto é aquele que também se exercita para não deixar transparecer mais do

que o “ponteiro” de seu “relógio”. E, é claro, aquele que se exercita para perceber os

detalhes da “maquinaria” que move o “ponteiro” dos outros “relógios”. O discreto estende

sua observação aos mecanismos que movem conjunto de indivíduos, grupos como a

família, por exemplo:

“O interior das famílias é permanentemente abalado por desconfiança, ciúme e

antipatia; enquanto que uma aparência contente, pacífica e divertida nos enganam e nos

fazem supor uma paz que absolutamente não existe: há poucas que valem a pena ser

aprofundadas.” (Idem, 119).

Grupos maiores também são alvos de sua visada observadora:

“Há um país onde as alegrias são visíveis, mas falsas, e as tristezas guardadas,

mas reais.” (Id. Ibidem, p.198).

Ao mesmo tempo, o tipo discreto é aquele que sabe muito bem do poder das

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simpósio LITERATURA E FILOSOFIA – Faculdade de Letras – UFRJ- outubro 2009

aparências, ou seja, ele sabe da necessidade de se fazer por vezes “ponteiro” de um

“relógio” cuja “maquinaria” ele guarda da vista dos vulgares. Aliás, ele caminha com

facilidade por vários campos por ser também um tipo cuja discrição é tamanha, que pode

ser até tomada por dissimulação. E ele é cínico o bastante para conclamar todos a esse

jogo de superfícies:

“Depressa, pegue um livro ou seus papéis, leia, não cumprimente direito os que

passam em suas carruagens; eles vão pensar que você está muito ocupado; eles dirão:

<<Esse sujeito é trabalhador, incansável; ele lê, ele trabalha mesmo na rua ou pelas

estradas.>>” (Id., p.165).

A questão do interior/exterior funciona, assim, como uma espécie de complemento

explicativo das atitudes do tipo discreto, pois só ele percebe o que está para além das

aparências, não se enganando com o aspecto exterior das coisas e atos. Mas a aparência

é parte necessária de sua discrição – o que não quer dizer que o discreto seja um ser de

pura dissimulação, pois assim ele cairia em outro excesso: o de um comportamento

hipócrita. A máscara serve à discrição sinal de distinção, mas, sobretudo, como

instrumento de sobrevivência no mundo dos vulgares, em que a sinceridade raras vezes

dá o tom:

“A fisionomia não é uma regra que nos tenha sido dada para poder julgar os

homens: ela pode nos servir de conjectura.” (p.322).

Ser “discreto” não significa excesso de dissimulação, mero abrigo cínico atrás de

superfícies. Pois o discreto não deve incorrer em excessos. O excesso de dissimulação,

por exemplo, poderia ser nomeado de vício: a falsidade, tão inútil quanto a franqueza, a

sinceridade e a virtude.

“Um homem que conhece a corte é mestre de seus gestos, de seus olhos e de seu

rosto; ele é profundo, impenetrável; ele dissimula as más ações, sorri a seus inimigos,

coage seu humor, mascara suas paixões, desmente seu coração, fala, age contra seus

próprios sentimentos. Todo esse grande requinte pode não ser mais que um vício, que

costuma se chamar falsidade, por vezes tão inútil para a fortuna do cortesão que a

franqueza, a sinceridade e a virtude.” (p.176).

Tudo o que está implicado na encenação da discrição cortês aparece em uma cena

do herói proustiano durante uma de suas visitas mundanas. Já tendo sido aceito pelo

“faubourg Saint-Germain” e tendo assimilado as formas de convívio nesse meio, o herói

vai a uma recepção na casa da duquesa de Montmorency, que, na ocasião, está

oferecendo uma matinê em homenagem à rainha da Inglaterra:

“(...) houve uma espécie de cortejo para ir até o bufê, e na frente caminhava a

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soberana de braços dados com o duque de Guermantes. Cheguei exatamente nesse

instante. Com sua mão livre, o duque me fez há pelo menos quarenta metros de distância

mil sinais de amizade e que pareciam querer dizer que eu podia muito bem me aproximar,

que não seria devorado cru no lugar dos sanduíches. Mas eu que começava a me

aperfeiçoar na linguagem das cortes, em vez de me aproximar de um único passo que

fosse, há quarenta metros de distância me inclinei profundamente, mas sem sorrir, como

teria feito diante de alguém que eu mal conhecesse, depois continuei a caminhar no

sentido oposto. Eu podia ter escrito uma obra-prima, que os Guermantes não teriam me

parabenizado tanto quanto desse comprimento. Ele não passara despercebido aos olhos

do duque, que naquele dia teve de responder, entretanto, a mais de quinhentas pessoas,

mas também aos da duquesa, que, tendo encontrado minha mãe, contou-lhe o ocorrido

evitando lhe dizer que eu agira mal, que eu deveria era ter me aproximado, ela disse que

seu marido tinha ficado maravilhado com minha saudação, que era impossível englobar

tanta coisa. Não cessaram de descobrir nesse comprimento todas as qualidades, sem

mencionar entretanto a que parecera a mais preciosa, a saber, que ele tinha sido discreto,

e não pararam de me cumprimentar por isso e compreendi que era menos uma

recompensa pelo passado do que uma indicação para o futuro (...)” (PROUST, 1988: 62-

63 – grifo meu).

O aprendizado do herói proustiano junto aos Guermantes envolve também o

contato com um elemento essencial na discrição aplicada à conversação, o esprit.

Vejamos exemplos desse elemento que define em grande parte esse que é o principal

salão do “faubourg Saint-Germain”. Comecemos pelas medidas de exclusão da

conversação tomadas pela duquesa e seus convidados.

Uma das características do modelo de conversação praticado no salão do duque e

da duquesa de Guermantes é a exclusão de pessoas meramente “inteligentes”: reino do

esprit Guermantes, tal salão não admite pessoas que queiram brilhar pela exibição

arrogante de erudição e inteligência.

É o que se lê em um trecho de um caderno manuscrito de Proust.Nele, fala-se

inicialmente do que desperta a admiração dos convidados da duquesa: “A duquesa lhes

parecia inteligente por causa de sua ´maldade´, porque, justamente, ela ´podia enfrentar

qualquer um´” Na sequência, delimita-se um pouco melhor o que esses convidados

entendem por “inteligência”: “(...) a inteligência lhes parecia algo diferente em alguém que

não fosse de seu círculo social, pessoas que eles encontravam por exemplo uma vez ao

ano na casa de alguém que as recebia por razões pessoais.”

Desses encontros casuais com pessoas negativamente “inteligentes”, o sr. de

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Agrigente e os Courvoisier sabem muito bem diferenciar a “inteligência” da duquesa de

Guermantes – pois, nos diz o narrador, quando de uma tal pessoa eles diziam que ela era

“inteligente”, isso, no ambiente dos Guermantes, é um código cifrado que desperta,

inicialmente, uma reação negativa: “(...) era o mesmo que dizer que tal pessoa lhes era

soberanamente antipática” e que ela “os entediava”; sua “ inteligência” é sinônimo de

oportunismo e falta de noção de seus méritos: dizer que ela era inteligente, para eles era

o mesmo que dizer “que ela possuía a arte ´de se enfiar em todo canto´”; por isso, a essa

“inteligente” intrusa não se exclui até mesmo a atribuição de crimes gravíssimos: “ela

devia já ter espancado pai e mãe”. (M. Proust, NAF 16682, f.º 35).

Essa delimitação bastante rigorosa da “inteligência” aceita no ambiente dos

Guermantes está ligada ao esprit que ali domina, esprit que, na boca da duquesa, assume

a forma da raillerie – ataque com palavras que fere levemente o interlocutor ou a pessoa

de quem se fala e dá mais sabor à arte da conversação. É por isso que nos é dito acima

que os convidados da duquesa admiravam, sobretudo, sua “maldade” (“méchanceté”) – o

que o Sr. de Agrigente e os Courvoisier apreciam é o exercício ferino do esprit na forma

da raillerie.

Desqualificar os meramente “inteligentes” é uma necessidade da própria

conversação que se quer alimentar no salão da duquesa: exclui-se dela todo pedantismo,

toda erudição e tom muito sério da autoridade em algum assunto. Tais medidas lembram,

por exemplo, passagens do tratado sobre a arte de agradar, de Paradis de Moncrif, um

dos teóricos da conversação no Antigo Regime – em seus Ensaios sobre a necessidade

e sobre os modos de agradar (1738), ele escreve o seguinte:

“É necessário evitar na conversação todo assunto que ultrapasse o alcance dos

esprits comuns, ou aceitar lhes apresentar tal assunto com uma simplicidade, uma

superficialidade que o torne sensível a eles (...).” (MONCRIF, 2002: 37).

III Vejamos como conclusão um trecho de O Caminho de Guermantes e alguns

detalhes da tradução que dele fez Walter Benjamin.

O trecho situa-se na primeira visita do herói ao salão do duque e da duquesa de

Guermantes. Mesmo tendo chegado atrasado para o jantar, ele expressão ao duque o

desejo de poder contemplar quadros de Elstir da coleção particular dele.

“Ao deixar o vestíbulo, havia dito ao sr. de Guermantes o grande desejo que tinha

de ver os seus Elstir. “Estou às suas ordens. Com que então o senhor Elstir é seu amigo?

Estou desolado por não o ter sabido antes, pois me dou um pouco com ele; é um homem

amável, o que os nossos pais chamavam um bom homem; poderia pedir-lhe que tivesse a

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bondade de vir e convidá-lo para jantar. Certamente ficaria encantado de passar a noite

em sua companhia.” (PROUST, 2007: 454).

No original “honnête homme”, o termo acima grifado faz parte de uma leve raillerie

proferida pelo duque diante do herói: com ele, o duque assinala sua discrição

demarcando a diferença entre ele, um Guermantes, e um “homem amável”, ou, para ser

mais preciso, um “honnête homme” – termo praticamente intraduzível em português, ele

designa o mundano que, embora dê provas de muito esprit e distinção, não tem origem

nobre. O termo se opõe ao “gentilhomme” que aparece linhas abaixo:

“Muito pouco Ancien Régime, quando se esforçava assim por sê-lo, o duque

tornava a sê-lo em seguida sem querer. Como me houvesse perguntado se desejava que

me mostrasse seus quadros, conduziu-me, afastando-se graciosamente diante de cada

porta, desculpando-se quando, para mostrar-me o caminho, se via obrigado a passar à

minha frente, pequena cena que (desde o tempo em que Saint-Simon refere que um

antepassado dos Guermantes lhe fez as honras de seu palácio com os mesmos

escrúpulos no cumprimento dos deveres frívolos de fidalgo) devia, antes de chegar até

nós, ter sido representada por muitos outros Guermantes, para muitos outros hóspedes. E

como eu havia dito ao duque que gostaria de ficar a sós um momento diante dos quadros,

retirou-se discretamente, deixando-me à vontade para ir encontrar-me com ele depois no

salão.”

Ridicularizado por Molière em sua peça, o personagem do burguês pretensioso era

o Burguês Fidalgo (Bourgeois Gentilhomme ). Na cena, o duque de Guermantes, um

verdadeiro “gentilhomme”, se esquiva diante das portas, pede desculpas, assinalando

para um mero “honnête homme” traços de distinção de um discreto.

A tradução de Benjamin procura manter a diferença entre os termos que a tradução

em português não consegue abarcar: para “honnête homme” Benjamin emprega o termo

“Ehrenmann” (algo como “homem de honra/honrado”); já para o “gentilhomme” ele

emprega “Edelmann”. Note-se que ele também preserva a raiz do advérbio que alude ao

tipo “discreto”, quando traduz “Il s´était discrètement rétiré” por ,,(hatte) sich darauf diskret

zurückgezogen”(BENJAMIN, 1987: 414).

O “esprit des Guermantes”, expressão tantas vezes repetidas no texto original,

aparece sempre na tradução de Benjamin como “der Geist der Guermantes”. Essa

associação do termo “esprit” com “Geist” acaba impregnando passagens das quais o

próprio termo “esprit” está ausente. Por exemplo, em determinado momento, o narrador

nos diz que temos dificuldade de supor “intenções profundas” para além dos gestos

aparentemente superficiais de um Guermantes. No original “intentions profondes” fica, na

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simpósio LITERATURA E FILOSOFIA – Faculdade de Letras – UFRJ- outubro 2009

tradução de Benjamin, ,,tiefere geistige Richtungen” (Idem, p. 412). As invenções

arbitrárias da “raillerie” da duquesa contra certas pessoas tinha “algo de intelectual”

(“quelque chose d´intellectuel”); nesse algo Benjamin inclui o “esprit”, ao traduzir a

expressão por ,,eine Art Geist”.

A “raillerie”, forma primordial de expressão do “esprit des Guermantes”, aparece, na

tradução de Benjamin como sinônimo de escárnio traduzida como “Spott”.

Conclusão

Embora não recebe desenvolvimento de suas implicações histórico-literárias, a

percepção das particularidades do mundo dos Guermantes aparece no trabalho de

Benjamin com a obra de Proust, seja sob forma de indicação de leitura, seja na escolha

de termos para sua tradução.

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O Sabor de pensar-sentir com Clarice Lispector

José Cláudio Dias Guimarães

Mestrando em Ciência da Literatura, UFRJ

Verdade e Metáfora

A relação ancestral entre Poesia e Filosofia, ou ainda, entre metáfora e conceito,

pautou a longa disputa pelo monopólio da produção da verdade no Ocidente. Desde a

condenação à embriaguez dos poetas trágicos por Sócrates, passando pelo imperativo de

Kant de se acabar com a “promiscuidade imemorial entre literatura e filosofia” e até a

crítica de T.S. Eliot a Nietzsche e seu amalgama poesia e literatura de, como prejudicial a

ambas saberes, pautou-se uma continuada luta na cultura.

Eliot estava se reavivando assim o clamor de “pureza” também por parte da poesia,

discussão na qual Schestow, filósofo da religião também participaria em leitura

comparada sobre o "Bem" em Tolstoi e Nietzsche, fazendo supreendemente uma

comovida defesa do grande ateísta. Mas na avaliação de Schestow, ao "bater atrás de si

a porta da casa dos sábios”, Nietzsche desiludido com os seus ideais de juventude, com o

ascetismo e metafísica racional, teria também se dado conta que os poetas pouco

sabiam_ o que, na verdade, é de todo duvidoso, mesmo porque, e a despeito de advertir

que os poetas mentem muito, Zaratustra também é decididamente um deles.

O certo é as fontes o professor da Basiléia não se restringiram aos estudos

filológicos das letras clássicas, tendo sido também influenciado obviamente pela própria

literatura moderna. Bem bem antes de diagnosticar o niilismo emergente na tradição da

metafísica racional (que teria reduzido Deus à “idéia”, “coisa em si”, “substância”;

substrato, conduzindo-o por fim ao nada), teria sido justo a partir de suas leituras

literárias, particularmente de Stendhal, que Nietzsche atestara o “diktum” que lhe é quase

uma marca: “Deus está morto”. Quando diz invejar o chiste de Stendhal de que “a única

desculpa de Deus, é a de que ele não existe” (EH) em sua solidão, Nietzsche confessa ter

encontrado nesses ateístas (“com quem se entender”) enorme apreço que também

estende a descoberta, de um “parentesco” posterior com Dostoiévski1. O “espírito livre” de

Nietzsche tem sem dúvida muito em comum com a força vital de personagens como o

1 Numa carta a Overbeck de 1887, Nietzsche diz ter lido Dostojewskij entusiasmado pela primeira vez e por

acaso ao ter encontrado uma tradução em francês en Nizza (›l'esprit souterrain‹). Contudo o capitulo „Der Bleichen Verbrechen“ em Zarathustra leva Curt Paul Janz em sua biografia a especular se Nietzsche talvez, mesmo inconsciente, não estivesse já influenciado por artigos ou conversas sobre a recepção do autor. Janz-Nietzsche Bd. 2, S. 505.

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imoralista Julien Sorel; assim, com o marrador-protagonista de Memórias do Subsolo

quando este afirma: “eu, por exemplo, quero viver muito naturalmente, para satisfazer

toda a minha capacidade vital, e não apenas minha capacidade racional”, quando ainda

prossegue: “(...), pois, em todo o caso, [a capacidade vital] conserva-nos o principal, o que

nos é mais caro, a nossa personalidade e a nossa individualidade” 2.

A descoberta dita tardia desse “parentesco” com Dostoievsky (atraso que atribui a

própria ignorância) não é muito distinta do choque de Clarice que ao ler Katherine

Mansfield pela primeira vez, exclamou surpresa: “Mas essa sou eu”. Tais identificações

não são, portanto, apenas intelectuais. Elas revelam afinidades, por vezes secretas, mas

que sendo também emocionais não se constrangem em transpor fronteiras entre saberes

supostamente inconciliáveis. Se a literatura tem muito a lucrar com a filosofia, a recíproca

nunca foi menor. De qualquer forma, como Schestow observara no pensador, em seu o

esforço por uma "Gaia Ciência", onde o metafórico substitui o descritivo, a intuição a

dialética, o subjetivismo o dogma e a filologia e a análise história; Nietzsche inaugura um

"experimento-ruptura" com o qual se arrisca abertamente a possibilidade de "imprecisão"

nascido da "elegância" da escrita_ exatamente o que T.S. Eliot critica-lhe no casamento

entre a literatura a filosofia.

Já para Pierre Macherey não ainda existiriam modelos para dar conta das relações

entre literatura e filosofia, sendo necessário tratá-las caso a caso. Ele ainda atenta que a

discussão entre a verdade e o belo retornando a Grécia antiga, quando Empédocles já

fora acusado pelos pitagóricos de revelar seus segredos ao tomar as formas poéticas de

Homero emprestadas com o intuito de tornar sua filosofia pública. Já a censura de

Sócrates à intuição e aos instintos_ que Nietzsche denuncia como tendo sido o motivo

maior da morte da tragédia_, prossegue ainda com a expulsão dos poetas da República

de Platão que chega a queimar a sua própria teatrologia. Posteriormente Aristóteles

acusa justo a Platão de ter invalidado suas próprias argumentações com excessos

metafóricos, mas nem por isso condena seu uso fora da poesia. O debate resume-se à

questão de até que ponto a metáfora seria apenas uma substituição ornamental e

inadequada, ou a possibilidade de vir a expressar o que de outra forma permaneceria

inaudito.

Por outro lado, o conceito ainda é recriminado pelo seu pendor reducionista e

generalizante, ou melhor, universalizante, delineando-se assim a cisão histórica entre as

correntes Nominalistas e Realistas3. A questão ainda é retomada por Lessing4 e outra vez

2 Dostoiéski Fiódor. Memórias do subsolo. São Paulo: Paulicéia, 1992. 3 Kant recorre também ao vocabulário clássico para a celeuma entre Nominalista e Realista sugerindo

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no século XVIII também por Kant, que exige, então a separação definitiva entre filosofia e

literatura, entre o "belo" e a "verdade"_ imperativo que funda os paradigmas modernos de

filosofia e literatura. As repercussões dessa antiga querela chegam até o Iluminismo

apregoado por um lado como triunfo, por outro como um esclerosante da cultura, dado a

sua incapacidade de esclarecer-se a, dito de auto-criticar-se, ao que Vilém Flüsser a partir

de uma abordagem semiótica contabiliza uma série de catástrofes, de Auschwitz a

Hiroshima.

Menos polêmico, mas nem por isso acanhado, é o aparte que o poeta americano

Wallace Stevens oferece sobre caráter dogmático ou não de saberes sem dúvida

próximos, mas muitas vezes em conflito. “O hábito de formar conceitos une poetas e

filósofos. O uso que dão a suas idéias é que os separaria. (...) O filósofo propõe que sua

integração conceitual seja decisiva, o poeta que a sua seja eficaz”. (Collect of

Philosophy).

Se a proposição realista e kantiana não corresponde à produção real de textos,

Nietzsche, por sua vez, vai ao fulcro da questão ao tratar do “grande estilo” como “a

potência que não tem mais a necessidade de provas, que desdenha agradar, que

dificilmente dá resposta, que não sente testemunhas por perto, que vive sem dar conta

que existe oposição a ela, e, que repousa em si fatalista, uma lei entre leis”. Não bastasse

a auto-suficiência5 do poeta, o também filósofo ainda abaliza a questão psicologicamente,

tratando-a dualmente, ou como transbordamento (vontade de poder), ou ressentimento

(vontade de saber)6; este tido como sintoma da decadência (“consensus sapientium“)

contra a qual também declara guerra aberta em GD. No cerne da discussão está nada

menos que o valor da verdade e a possível contribuição da metáfora, não apenas o

conhecimento per si, mas sim para a saúde como um todo; ou seja, para potencialização

da vida (WM, 418).

nomenclaturas substitutivas tais como “ingenium” e “acumen” respectivamente. 4 Leibniz chega, entretanto a aclamar a beleza de teoremas matemáticos, 5 „Dieser Stil hat das mit der großen Leidenschaft gemein, daß er es verschmäht, zu gefallen; daß er es

vergißt, zu überreden; daß er befiehlt; daß er will...“ Werke und Briefe: [17], S153. 6 Nietzsche ressalta a diferença entre “vontade de poder” (ativa, ávida, transbordante, afirmativa,

dionisíaca) e “vontade de saber” (reativa, ressentida, moralizadora, acética).Maudemaire Clark discute essa diferença, onde Nietzsche reconhece que o ideal acético, “danoso par excellence” (EH III), em dadas circunstâncias serviu, no entanto, como artifício para a preservação da vida, mas de uma determinada forma de vida. A crítica de Nietzsche dirigiu-se, sobretudo à proibição da dúvida e à razão imposta como ideal supremo e corregedor do mundo. Na condenação peremptória da metafísica racional aos instintos, Nietzsche observa em Genealogia da Moral (III) que a “vontade de saber” e o ideal acético expressam um claro ressentimento e má consciência onde o padre, o filósofo e mesmo o cientista parecem demonstrar iguais desafetos e rancor contra o corpo, animalidade, sensualidade e a fantasia_ atributos primordialmente humanos e caluniados em prol do espírito.

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Procura-se a imagem do mundo na filosofia a qual melhor possa nos encorajar o mais livremente possível, ou seja, na qual as nossas pulsões mais poderosas possam sentir-se livre para a sua realização. Assim também será com a minha.

Diferente de seus antecessores, Nietzsche não tem pretensão alguma de renovar

repertório conceitual, mas deixa muito clara a premência de libertar a palavra do pendor

universalizante, o que é ainda uma prioridade professada “à sombra da liberdade infinita

de sua filosofia”, anunciada como fruto de experiências vividas. Essa filosofia, que se

autoproclama poética irá questionar não apenas a vocação dos conceitos, das hierarquias

e da divisão estanque de saberes, mas também os três pilares fundamentais da

metafísica racional_ dita a sua competência quanto ao belo, o bom e a verdade. Ela porá

assim em xeque essa autoridade, expondo genealogicamente a intromissão insidiosa da

moral na ordem epistemológica, o que já se dá subrepticiamente com a linguagem, bem

como clara a inaptidão da razão em julgar a si própria. Já a consideração de que tropo

não é apenas um modo ou mero aspecto da linguagem, mas sim sua natureza e o que a

caracteriza como tal, acerta no cerne da ilusão metafísica também ao confundir o signo

com a coisa. A radicalidade de tal assertiva tem conseqüências óbvias e imediatas já

quanto ao valor da própria verdade. A suspeição refere-se à crença de poder-se formar

conceitos “puros” sem a interferência da moral ou do campo metafórico,_ dito da alegoria,

da metonímia, da sinedóque e da metalese_ o que na argumentação equilibrada de

Nietzsche termina por evidenciar a lógica e sua “falsificação de igualdades”, bem como

que nossa assertiva de mundo seria, sobretudo, uma ficção7. No mais, é impossível burlar

a determinação da linguagem sobre o pensar ou vir a anular seus vícios. Mas se

Nietzsche nos apresenta esse cenário sombrio ele não está de forma alguma

conclamando por uma capitulação. Pois se mesmo o silêncio de Clarice tem que usar de

palavras_ mesmo que onomatopéicas e destituídas de “resíduos de sentido”_ a única

solução da aporia é dada pela própria aporia. Ao considerar o “paradoxo da verdade” na

tensão entre sabedoria e ciência, e ainda o eternamente móvel do dorso do tigre, em seu

experimento filosófico-poético, Nietzsche reivindica referências fluidas, opta pelo relativo e

instável do bom e do belo, assim como pelo perspectivismo de outras possibilidades de

7 Paul de Man acompanha essa discussão em Nietzsche de perto e com todo brilhantismo. Mas após

admitir a linguagem como sendo essencialmente tropo, ele parece recuar propondo-se a resgatar referências dogmáticas e seguras, dito entre “leitura performática” e “leitura constativa”. Se Paul de Man não chega a precisar tal distinção, ele afirma, porém, que a “desconstrução” da metafísica de Nietzsche inviabiliza sua própria filosofia e torna-se uma “impossibilidade” na mediada em que ela é literatura. Com toda erudição, De Man parece não perceber que a sua desconstrução também o é, cabendo, no entanto, a pergunta se boa ou má.

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verdade. Estas afiançadas então, não como “conceitos” cristalizados, e sim como efeitos,

ou ainda “agregados de emoções lúcidas” como Clarice, por sua vez, se propõe.

Contestando toda uma ordem de prioridades, bem como distinções estáticas entre

literatura e filosofia, tal projeto soluciona seu impasse, por fim, como estética e não hesita

em propor justo a ficção e, portanto, a mentira como caminho afirmativo de sua ética. A

verdade não é, segundo Nietzsche, garantidora da vida, muito pelo contrário. Só a arte

seria capaz de enfrentar o absurdo e a dúvida de Hamlet. Nesse contexto, a metáfora

torna-se a vingança contra a dialética. No caso do par Nietzsche-Clarice, a sua função é,

principalmente, amparar um conhecimento que renuncia ser objetivado, permitindo-lhe

sustentar-se por força e ficção próprias. Este é o aporte maior da pluralidade de suas

obras: encorajar a imaginação viva e ingente, alentando assim sentidos infinitos ao

pensar-sentir-se como ato criativo.

Para Nietzsche, o mais sábio dos homens seria justo o mais rico em contradições.

Este exercitaria o pensar-sentir sempre sob a perspectiva poeta forte, entendido, porém,

não como substancialidade de um só indivíduo, e sim como portador da bagagem

coletiva, ou seja, como progressão de um Todo-orgânico de tudo que se lê, pensa,

escreve, esquece e vive8. Quão mais fértil for a ontogênese, quão mais contraditórios os

seis sentidos e os modos de ver (já livres da tutela suprema da razão), maior seria a

possibilidade da “pulsão metafórica” traduzir-se em espanto e franquear uma “verdade de

sentido”.

Nesse contexto acaso e necessidade e no intuito da arte mesmo o erro pode ser

bem vindo. Ele torna-se parte do jogo heraclitiano do devir, o processo cósmico de

construir e destruir ao qual, tanto uma criança como um deus se dedicam como algo

inelutável, prazeroso, cruel e desinteressadamente generoso.

No todo, a metáfora mantém a privilégio da arbitrariedade e do arrojo do paradoxo.

Ela é a (in)consciênia perfomártica do discurso não se destina ao categórico, ao

constativo ou ao simples ato locutório. O que a rege é, sobretudo, o efeito, sem a

necessidade lógica de arrolar-se provas sobre seu patrimônio imaterial. Já para os meros

mortais, a impressão que fica é a de que algumas verdades pareceriam frouxas demais

se ainda viessem a dar explicações sobre si próprias.

8 Todo pensamento e toda escritura são agenciamentos, de modo que importaria antes saber com o que

tal e tal autor ou livro funciona, “em conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua [intensidade]” (Apud Deleuze 1991, pg. 12).

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Uma Cavala Iletrada

Longe de se autoproclamar uma pensadora e muito menos filosofa, Clarice

Lispector pode, perpetrar suas “transgressões” quase que livremente, tendo sido alvo, no

entanto, de duras censuras quanto sua qualidade de romancista. Toda a sua inegável

diferença fora atribuída antes a uma intuição, à excentricidade mística e irracional de uma

subjetividade exacerbada, que classificadas sucintamente como feminina, já lhe

minimizavam a potência intelectual e criativa. Pouco se admitiu que liberdade para

Lispector fosse antes a severa introjeção de regras; que sua alogicidade um claro rebate

ao excesso de razão; que o seu misticismo açambarcasse um profundo conhecimento

dos pré-socráticos, e, que o dito subjetivismo, para alguns até alienante, tendesse na

verdade, para a elisão completa do sujeito_ no caso, não como plataforma de

modernidade, mas como correlato de um sensualismo cósmico que toma o corpo e a terra

como verdades primordiais; patamares para determinação de valores cuja eficácia Clarice

se dispõe a testar já na pré-formação de metáforas pensadas, tateadas e sentidas no

laboratório do próprio corpo.

O simples pressuposto de haver largo consenso quanto à grandeza e diferença

peculiar da obra de Clarice Lispector, logo nos incita a especular sobre suas fontes, ao

que e a quem ela se reporta, onde vai buscar referências; balizas para uma obra que,

sem jamais perder-se de vista, ainda prima pela coerência dentro de uma pluralidade

singular de gêneros e estilos. A aclamada grande escritora brasileira universalista pode no

máximo negar algumas filiações de ocasião (como Joyce, Woolf, Proust, Sartre,...) e

ainda assume uma postura afrontosamente antiintelectual, quando dá asas à desinibição

da personagem Ângela Pralini que diz ser “uma vaca, sou uma cavala livre e que pateia

no chão, sou mulher da rua, sou vagabunda – e não uma letrada. Uma cavala iletrada”.

Logo depois, no entanto, Clarice se explica e ainda nos alerta: “Sei que sou

inteligente e que às vezes escondo isso para não ofender os outros com a minha

inteligência, eu que sou subconsciente” (Onde Estivestes de Noite, pg. 38). Além de mero

desabafo, Pralini encarna uma concepção dionisíaca de mundo antagônica à concepção

teórico-lógica; uma resistência ao aburguesamento do sentimento de vida e à atrofia da

imaginação no racionalismo. Com todo seu “anti-intelectualismo”, dita ainda como aversão

ao "vão e nervoso exercício de inteligência falsa e apressada", Clarice perfaz um intenso

diálogo não apenas com toda uma tradição de romance. Ela também demonstra um

profundo conhecimento de filosofia o que não redunda, contudo, no erudito e sim no

efetivo.

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Com sua inteligência peculiar, além de perfazer um intenso diálogo não apenas

com toda uma tradição literária, Clarice também demonstra um profundo conhecimento de

filosofia. Monista-pluralista, ela faz camufladas ou mesmo abertas citações aos pré-

socráticos que revigoram a “luminosa escuridão”, “lúcida estupidez” de sua arte. Ela ainda

se solidariza com “pirronismo” e até com aspectos do idealismo de Schopenhauer, vindo a

somar-se a algumas vertentes minoritárias da filosofia. Lispector demonstra ainda um

claro afeiçoamento com o nominalismo; com o empirismo de Berkley e suas fórmulas ser

é perceber (“esse est percepere”), ser é ser percebido (“esse est percipi”)9, bem como

com o “ceticismo teórico” de Hume, onde o que conta são as idéias individuais, a

ponderação sem taxionomias, simetrias ou sistemas, podendo ainda vir a expressar-se

quase no tom de manifesto ao tratar de suas suspeitas sobre a linguagem.

A palavra apenas se refere a uma coisa e esta é sempre inacançável por mim. Cada um de nós é um símbolo que lida com outros símbolos_ tudo apenas referência ao real. Procuramos desesperadamente encontrar uma identidade própria e a identidade do real. E se nos entendemos através do símbolo é porque temos os mesmos símbolos e a mesma experiência da coisa em si: mas a realidade não tem sinônimos” (Água Viva, pg. 86).

Com semelhantes conjecturas, Lispector revela algumas simpatias intelectuais com

tons e ênfases próprias, mas também e particularmente, uma profunda identificação com

a crítica cultural de Nietzsche, que foi referência para quase todos os movimentos

modernistas e pós-modernos do século XX. Em meio a grande insurreição irracionalista

do século passado, Clarice demonstra, porém, muito mais do que uma vaga cumplicidade

com o “anti-mestre” e sua “escola de suspeitas”. Trata-se antes de uma clara e

surpreedentemente precose compreensão geral de sua obra, que lhe sendo genuína e,

portanto, mais do que legítima, fica assim à disposição de seus próprios interesses, ainda

demarcando uma reiterada independência de “movimentos”, sejam literários, filosóficos

ou políticos.

Creio ser exatamente esse o teor, o mote da novela Uma Aprendizagem ou O

Livro dos Prazeres, onde Clarice trama um difícil caso de amor entre poesia e filosofia;

relação elaborada alegoricamente com a paixão entre a insegura Loreley e o professor

pouco catedrático Ulisses.

9 Esses Postulados são transversais à obra de Clarice; trapézio de muitos, se não a todos seus

personagens “perceptíveis”. Ele está em ME quando Ermelinda resume que existe para ser vista, ou ainda com Macabéa que atropelada, ganha finalmente “existência” com o aglomerado de curiosos que a “espiavam caída”, como também já desde sempre com Joana que pode se ver só e minúscula das alturas _ perspectiva aérea que será aliás sempre também a de Lispector sobre si mesma e o mundo.

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O Livro dos Prazeres

É através da experiência da criação, celebrada por Clarice como realização

máxima, que a vida adquire plenitude, podendo-se, por fim, suportar a dor e o destino

num mundo, tão justo quanto injusto. Se a dor é dita um subproduto fatal de estar-se

intensamente vivo, para o “pessimismo dos fortes”, além de tônico, ela também é

componente indissociável do prazer ao colher-se a maçã de um saber trágico_ caso do

“hino ao amor” de O Livro dos Prazeres que é quase antípoda do romance O Lustre e

ainda do conto de juventude, intitulado Obsessão. “E, oh meu Deus, como se fosse a

maçã proibida do paraíso, mas ela agora já conhecesse o bem e não só o mal como

antes. Ao contrário de Eva, ao morder a maçã entrava no paraíso” (LP).

Em LP, a protagonista Loreley refere-se freqüentemente à experiência da dor como

próxima ao prazer, aludindo repetidas vezes à morte como companheira fiel de vida.

Nesse aprendizado, que é na verdade recíproco com seu educador, em tons, porém,

muito distintos dos sombrios de Obsessão, vivi-se a sedução de saber-se intensamente

vivo através da descoberta de um amor como consciência maior de si. O professor de

filosofia Ulisses guia-lhe apenas nos exercícios de paciência e de solidão como condição

prévia para poder viver-se inteiramente a dois. Ao ir pondo progressivamente pé em si

mesma, usando da pergunta “se eu fosse eu mesma?”, em sua ardilosa procura Lóri

reencontra não apenas os objetos que já não sabia onde havia posto, mas também o que

por medo não tinha ousado viver até vir a poder dizer, e dizer-se, conseqüentemente:

“Eu”.

Ao reencontrar-se, Lóri segue o caminho (ou descaminhos) de muitos dos

personagens de Clarice, determinados a “tornar-se” para “viver na orla da morte e das

estrelas” (LP, 36). Clarice retorna assim a muitos de seus temas, por vezes en passant,

noutras quase compactando-os. Ela os aborda sucintamente e com rasgos poéticos,

como quando retoma topos como o do “silêncio que se reconhece no próprio coração da

palavra” (37). Imoralista, Lóri reafirma “não haver o bem e o mal como não há cio sem

desejo”. Impessoal e dionisíaca, ela ainda divaga sobre “a eternidade de trilhões de anos

das estrelas e da terra” e celebra seu profundo “não-entender” “como manchas cósmicas

que substituíam o entender” (43). Referindo-se ainda ao amor a Deus “como cair no

nada”, ela mergulha também no desejo reincidente de totalização em sua obra, onde o

caminho possível para um enfrentamento feliz e sem medo da efemeridade é que lhe

permite ultrapassar a individualidade com o sublime da impessoalidade: “Um dia será o

mundo com a sua impessoalidade soberba versus a minha extrema individualidade de

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pessoa mas seremos um só” (76).

“Cosmicamente diferente”, segundo a amiga cartomante, Lóri refere-se a sua

aprendizagem literalmente como “adestramento”10, dizendo-se ser “um bicho acordado”

sobre o qual ainda escreve um texto curto deixando Ulisses pensar ser referência a ela

própria (talvez outra vez o cavalo de Joana-Clarice). Uma “iniciada no mundo”, e que

aprende na feira a tirar sumo mesmo do banal e corriqueiro, ou já as relacionando em sua

importância despercebida, pois “cada coisa tinha importância em si mesma, interligada a

um conjunto, mas qual o conjunto?”_, a professora primária ainda irá ensinar a seu alunos

o básico do nominalismo, ao advertir que duas maçãs nunca serão iguais, assim como

esclarece o modelo relacional entre sujeito e objeto do idealismo; que são indissociáveis

tanto em Schopenhauer quanto em Nietzsche. Loreley usa, então, de sua didática

simplíssima: “o sabor de uma fruta está no contato com o paladar e não na fruta mesmo”

(110).

Em crônicas jornalísticas de 1968 compiladas em A Descoberta do Mundo, já se

pode encontrar esboços de LP11. Com extremo despojamento de linguagem diante “da

simplicidade da chuva” e ainda do inelutável (“O humano é só”), Clarice também poderá

usar da maquiagem de uma banalização propositada, seja em deixar a professora

primária dizer, fora uma cartilha de alfabetização; que “Aquela batata é bonita”, ou mostrar

ainda pouca erudição ao dizer ter dúvidas se a máscara (que é também a sua pintura

carregada) vinha do teatro grego ou romano. Assim, Lóri poderá permitir-se até a uma

“desconstrução” que é quase uma escárnio ao predicado: “Ulisses, nós é original” .

Gotlib atenta justo para o estilo que pode lembrar o de um “almanaque”,

provocando quase um estranhamento pela sua extrema simpleza. Mais do que uma

banalização intencional; Clarice por um lado, está ironizando não apenas a idéia vulgar de

“originalidade”. Na verdade, ela ironiza também a própria iniciativa de aprendizagem;

tanto da professora primária, cuja colega lhe diz ser a que tem mais didática na escola,

assim também como a de Ulisses que acaba dando conselho, mesmo quando não queria

dá-lo. Clarice pode escapar assim da banalização exacerbando-a, mas, sobretudo vendo-

a irônica e como sempre de fora, com total impessoalidade.

No jogo de sedução entre a sereia Loreley e o argonauta Ulisses, Clarice-Lóri

refere-se ainda ao que na influência é marca dos “poetas” e “poetisas fortes”: irritar-se

com suas próprias fontes de inspiração. Se em Água Viva há uma possível, mas vaga

10 Em oposição à “domesticação” e “espírito de rebanho” da moral cristã, Nietzsche também usa

exatamente a palavra “adestramento” (Zucht), proposta como revalidação dos instintos, como naturização do humano e acúmulo de vontade de poder.

11 “Estilo”, pg. 142; “O nascimento do prazer” pg. 155; “Se eu fosse eu”,pg. 156; (apud Clarice, 1999)

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alusão a Nietzsche, quando a narradora diz que ao ouvir as batidas do martelo sente a

necessidade de seguir seus próprios passos; em LP, essa irritação é inicialmente também

uma dúvida: ela “irritou-a porque cada vez que lhe ocorria um pensamento mais agudo ou

mais sensato como esse, ela supusesse que Ulisses era quem o teria” (18). Assim a sua

raiva pode crescer por aquele que também ama e admira. Ainda que por “deformação

profissional ensinasse muito” mas “não tivesse ar doutoral” e “suas palavras não viessem

dos livros mas da vida”, isso “não impedia que fosse sem querer um pouco pedante”. Não,

“ele não ensinava por fórmulas”, mas “algum dia ainda iria cair de seu pedestal”. Com o

rosto enterrado no travesseiro, Lóri “sabia que pensava tudo isso por raiva”. Mas “agora

era ela que sentia a vontade de ficar sozinha durante algum tempo, para aprender

sozinha a ser”.

Por fim, “já iniciada no mundo”, Lóri (a exemplo de Cristina de Obsessão) ainda

irá fazer o balanço da relação quase como um desafio: “Aprendo contigo mas você pensa

que aprendi com as tuas lições, pois não foi, aprendi com o que você nem sonhava em

me ensinar”. Em um desfecho patético e com o aprendizado já “completo”, Lóri conjectura

se teria se tornado uma ameaça “às classes burguesas”. Por sua vez, o professor de

filosofia irá ainda esclarecer com poucas palavras, mas com extrema clareza como se

pode entender a questão do “superhomem”, tão polêmica em Nietzsche: “Lóri você é

agora uma super-mulher no sentido em que eu sou um super-homem, apenas porque

temos a coragem de atravessar a porta aberta”.

Lição de poetisa forte

Nesse aprendizado, que é antes o “adestramento” de não se poder excluir nem

dor, nem solidão ao vir a realizar-se, enquanto Ulisses, que “nada informava” mas que ao

contradizer-se se “tornava muito humano”, por fim acaba perdendo a “voz de professor”.

Lóri, por sua vez, fazia o mar de manhã e com dedo esticado cria o homem dormindo na

cama e ele escrevia seus ensaios como longos poemas em prosa. Mas na verdade, era

ela a poetisa, que além de ter escrito sobre o cavalo como mistério e força, diz do

pássaro, quase a la Mário Quintana “é tão bonito que voa”. Já “podendo falar de igual

para igual”, Lóri que fora a mulher que procurava um modo e uma forma, agora “já tinha o

que era tão mais perfeito: a grande liberdade de não ter modos nem formas”. Já Ulisses

por sua vez,_no único final feliz da obra de Clarice _, agora poderia redigir o seu mais

arrojado ensaio, que escreverá sem estilo: “pois escrever sem estilo é o máximo que

alguém que escreve pode desejar”. Um possível consenso entre poesia e filosofia?

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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1916 DE MAN, Paul.-Allegorien des Lesens. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1988. _ Die Ideologie des Ästhetischen. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1993. MACHERY, P.. A quoi pense la Litératur? Paris, Exercices de Philosophie Littéraire,1990. NIETZSCHE, F., Friedrich Nietzsche Werke, Digitale Bibliothek Band 31, Hsg Karl Schlechta, (c) C. Hanser

Verlag; Berlin: Directmedia • 2000

Auto-reconhecimento em Man Walks into a Room

Patrícia Marouvo Fagundes

(aluna de graduação Português-Inglês)

No início do romance Man Walks into a Room, encontramos Samson Greene

vagando pelo deserto de Nevada, um homem que não mais sabe de seus papéis como

professor na Universidade de Columbia e marido de Anna Greene. Um homem que não

consegue recordar os últimos vinte quatro anos de sua vida, tendo para si somente

lembranças de sua infância. Após um exame médico, é diagnosticado com um tumor

cerebral, cuja remoção lhe garante a sobrevivência e o perfeito funcionamento de suas

faculdades mentais, ainda que isto signifique a perda de sua memória a partir dos doze

anos de idade.

Assim partem do hospital e voltam a suas antigas vidas em Nova York, Anna ainda

com as últimas palavras do médico que operou seu marido reverberando em sua mente:

“He probably won’t remember you” (Krauss, 2002, 14); Samson, totalmente indiferente à

dor de sua mulher, não consegue nem mesmo transmitir um mínimo de arrependimento

pela perda das lembranças de seu casamento, pois, “(...)how can anyone regret what, to

the mind, has never existed?” (Krauss, 2002, 16). Como poder dar algum sentido a essa

nova vida que lhe foi designada? Como poder olhar para uma mulher com quem esteve

casado há dez anos, sendo incapaz, porém, de recordar sequer o perfume de sua pele?

Later, during long afternoons at the library, Samson would read of miraculous cases in which sight is granted to the blind. As the bandages were removed, their families gathered around them waiting the epiphany, so this is how it looks! But it never came because to see is not necessarily to perceive. The shape the newly sighted registered had no currency with their brains, never conditioned to conceive of space. The colors had no bearing on the world they’d constructed out of time and sound (Krauss, 2002, 20).

Assim como é registrado nesses casos miraculosos, Samson Greene consegue

entender o mundo a sua volta: é casado com Anna Greene, ensina na Universidade de

Columbia, mora em Nova York, tem trinta e seis anos. No entanto, nenhum desses dados

e informações parece realmente lhe dizer respeito à medida que nada disso tem o devido

peso de significação para ele, através de associações a suas experiências passadas, à

sua memória – memória vista aqui como algo mais que o conjunto de lembranças de um

passado distante; como algo que é passado, presente e futuro, um tempo que reúne e dá

o senso de unidade ao todo que é nossa vida, cujas ações passadas ainda têm um peso

em nosso presente e, muito provavelmente, se desmembrarão na concretização material

de nosso futuro.

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De certa forma, a memória constitui a possibilidade enquanto possibilidade. E esta assim instituída se apresenta tanto como possibilidade retrospectiva quanto como possibilidade prospectiva. As temporalidades que habitamos são, dessa maneira, diretamente tributárias da memória, pois é com ela e a partir dela que se revelam, velam e se desvelam (Jardim, 2005, 124).

Percebendo o corte abrupto e cerceador de uma continuidade que lhe ajudasse a

unir sua infância à sua vida adulta, Samson não consegue entender a maneira como

determinadas decisões tomadas em seu passado tiveram efeitos específicos no

desenrolar de sua vida, resultando na restrição de inúmeras possibilidades a algumas

poucas certezas. A fim de encontrar um fio condutor que lhe encaminhe um maior

entendimento de sua situação, a personagem busca refletir sua condição insólita para a

partir dela, desse vazio localizado entre sua infância e seu pós-operatório, poder traçar

seu próprio rumo, sua nova forma de existência.

Aos poucos, Samson passa a reconhecer sua própria aparência física, envelhecida

vinte e quatro anos do dia para noite: “His face was slowly beginning to cohere, the

various features coming together to form a recognizable whole that no longer disturbed

him when he saw it flash past in windows and mirrors” (Krauss, 2002, 37). Samson busca

familiarizar-se com o mundo a sua volta: toca e sente as coisas a seu redor, como sua

mãe lhe havia recomendado, a ponto de conhecê-las de vista, de nome e até mesmo de

olhos fechados, “(...) so that when something is gone, it can be recognized by the shape of

its absence. So that you can continue to possess the lost, because absence is the only

constant thing. Because you can get free of everything except the space where things

have been” (Krauss, 2002, 152).

Por insistência de conhecidos e de sua mulher, Samson procura entender e reviver

sua antiga vida e seus antigos hábitos. No entanto, aos poucos, percebe que não

consegue e não pode fazê-lo; não haveria como retomar sua antiga identidade, da qual

tem conhecimento somente através de fragmentos de histórias contadas por sua esposa,

de fotografias ou dos objetos que possui em sua casa – ainda que isso tivesse sido parte

de sua história, não dá conta dela integralmente por serem apenas exemplos de instantes

em que sua vida se fazia vida vivida e não recortes desvitalizados por abrigarem a

existência distante e abstrata de uma outra pessoa. Para Samson, essa existência que

seus conhecidos e familiares lhe contam simplesmente não lhe dize respeito e somente o

frustra, levando-o a um isolamento repleto de angústia.

Desse modo, vemos Samson afundar-se no vazio de sua memória para, a partir de

reflexões, poder entender talvez um pouco mais sobre quem é e também quem não é.

Assim, decide abandonar sua antiga vida nova-iorquina e percorrer o território americano

chegando ao seu extremo oposto, a outro oceano, à costa oeste. É hospedado pelo Dr.

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Ray Malcolm, com quem pretende participar de uma pesquisa científica acerca da

memória humana. Ao chegar à casa de Ray, Samson fica maravilhado com a vista de Los

Angeles, da qual lembrava somente através de filmes hollywoodianos:

“It’s beautiful,” Samson said, feeling he could say such a thing to Ray, feeling it was what the doctor wanted, though he meant it all the same. It was beautiful, the ambition of it, the freehand interpretation of a city. From such a height, the knowledge of the small, simultaneous faraway was comforting: people dialing the operator, swallowing pills, breaking off romances, signing their names (Krauss, 2002, 83).

De um plano mais elevado em relação ao nível do mar, Samson admira Los

Angeles e sua intensa vitalidade e movimentação. Saber que enquanto estava ali olhando

a cidade a seu redor, outros estavam ligando para sua operadora, tomando pílulas,

terminando romances, assinando seus nomes é algo para ele reconfortante. Essa

simultaneidade é inevitável e toma proporções tão gigantescas quando comparada com

nossa ínfima participação nessa teia de realidades que se torna clara nossa

perspectivização do real em movimento. Nenhum de nós é onipresente a ponto de

perceber os mais diversos ângulos de uma mesma situação, inclusive pelo fato de que no

instante em que uma situação fosse entendida por suas mais diversas perspectivas,

outras já teriam ocorrido no passar do tempo a que estamos sujeitos.

Sendo assim, numa tentativa de evitar a sobreposição de uma perspectiva perante

outra, voltamos-nos para a negatividade do pensamento crítico. Este não tenta se

sobrepor à realidade, mas sim, a partir da inapreensibilidade intrínseca da realidade, tenta

questionar o “nada”, a origem do harmonioso e caótico “tudo” em que vivemos. “O que

fica fechado na ‘estância’ da crítica é nada, mas esse nada contém a inapreensibilidade

como seu bem mais precioso”. (Agamben, 2007, 13) É em busca desse inapreensível

“nada” que nos jogamos no abismo do entre e nos afastamos de pensamentos

dicotômicos que acabam por nos acorrentar e sugerir conclusões limitadas.

Após aceitar o convite do cientista Ray Malcolm a tomar parte em sua pesquisa

científica, Samson é levado ao laboratório Clearwater, situado no deserto californiano.

Pode-se entender o deserto como o lugar que se dá de uma forma originária em seu

movimento de desvelar, resguardando sua negatividade que nunca se mostra para nós.

Nestes específicos espaços físico e temporal, tudo parece ser o mesmo. No entanto, não

o é: não há um grão de areia que seja exatamente igual a outro e o vento delineia essa

superfície distinta e singularmente; e por essa mesma concretude singular de cada coisa

podemos perceber esta diferença, apesar de termos certa dificuldade em fazê-lo já que

esta mesma diferença não se dar de modo tão aparente.

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Ainda devemos habituar-nos a pensar o “lugar” não como algo espacial, mas como algo mais originário que o espaço; talvez, de acordo com a sugestão de Platão, como pura diferença, a que corresponde o poder de fazer com que “algo que não é, de certa maneira seja, e aquilo que é, por sua vez, de algum modo não seja” (Agamben, 2007, 15).

O deserto não seria somente o lugar em que a identidade se dá a partir da

diferença, pois ele mesmo já está inserido nesse jogo de mudanças; ele mesmo tem sua

singularidade configurada no que é e no que não é. Diferentemente do que propõe a

tradição ocidental, “diferença” não é caracterizada aqui com um valor negativo, como algo

“errado” e nocivo que deve ser eliminado. O deserto é caracterizado, enfim, por uma

unidade singular que comporta a identidade e sua alteridade.

O sentido de individualidade como algo solidificado, pronto e acabado é assim

obliterado e, em seu lugar, se instaura uma forma mais maleável. A identidade poderia,

desse modo, ser repensada como uma reinvenção diária. “The sun rises in glory as if it

had yet to invent the desert” (Krauss, 2002, 5). O amanhecer traz consigo a claridade,

mas uma claridade que convive com a remanescente escuridão da noite anterior. É nessa

penumbra que se nos aclara, desvela o deserto ainda escuro, velado e, assim, a cada dia,

sua identidade se reconfigura no movimento do real no qual estamos todos inseridos e,

portanto, sujeitos à mudança, à reinvenção que nos acomete e nos lança em busca de

auto-reconhecimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AGAMBEN, Giorgio. Estâncias, a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Tradução de Sérgio José Assman. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007, pp 9-15.

JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. KRAUSS, Nicole. Man walks into a room. Estados Unidos: Ed. Anchor Books, 2002.

Literatura como modelo para a democracia por vir

Tiago Guilherme Pinheiro

mestrando Universidade de São Paulo

Voltar a discutir a importância da literatura no projeto intelectual de Jacques Derrida

pode ser uma tarefa inglória: depois de toda a recepção desse pensador nesse campo –

principalmente, na academia norte-americana –, talvez a minha proposta ressoe como

redundância. No entanto, devemos lembrar que não estamos nos EUA e que Derrida –

pelo menos da onde eu venho, da Universidade de São Paulo – esta longe de ser uma

referência teórica hegemônica. É isso, no entanto, que nos abre a possibilidade de abrir

um outro campo de reflexão a partir de sua obra. Pensar em um conceito como a

democracia por vir num Estado como o nosso – que eu não chamo de semi-democrático,

porque o considero como sintomática do nosso atual modelo de democracia - me parece

no mínimo proveitoso: menos por causa de algum nacionalismo de minha parte do que

pelo modos de governabilidade consagrado em nosso país, i.e., a corrupção e a

cordialidade. Da mesma forma, pensar no modo como esse, que é o conceito político

central de Derrida, tem por modelo a chamada Instituição Literária pode ser fundamental

não só para situarmos nossa área de pesquisa no interior desse regime político, mas de

apontar uma mútua dependência que pode ser mais profunda – e mais problemática – do

que imaginávamos.

São essas as diretrizes desse esboço que vou apresentar aqui hoje.

Para Derrida, literatura e democracia são duas instituições literárias que são

extremamente próximas, tendo entre si uma ligação que vai para além da mera

semelhança. Ambas, em sua versão moderna, estão ligadas não só historicamente e

localmente – as duas têm sua origem na Europa dos séculos XVIII e XIX, e Derrida faz

questão de frisar isso -, mas pelos próprios valores que partilham, do modo pelo qual

operam esses valores.

O primeiro ponto dessa relação é que ambas estão ligadas à possibilidade do dizer.

Em mais de uma oportunidade (lembro aqui da longa entrevista concedida a Derek

Attridge em Acts of Literature, e em Paixões), a própria ideia de literatura esta, desde o

seu início, atrelada ao tout dire, a possibilidade de dizer tudo, de todas as formas. Assim,

a relação entre literatura e lei, literatura e política já está dada em seu princípio. Como ele

escreve:

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A literatura é uma invenção moderna, inscreve-se em convenções e instituições que, retendo apenas esse traço, asseguram-lhe em princípio o direito a dizer tudo. A literatura liga, assim, seu destino a uma determinada não-censura, ao espaço de liberdade democrática (liberdade de imprensa, liberdade de opinião, etc.). Não há democracia sem literatura, não há literatura sem democracia. Sempre é possível não querer saber nem de uma nem de outra, mas ninguém deixa de passar sem elas sob qualquer regime; é possível não as considerar, nem uma nem a outra, como bens incondicionais e direitos indispensáveis. Mas não é possível, em caso algum, dissociá-las uma da outra. Nenhuma análise seria capaz disso. Cada vez que uma obra literária é censurada, a democracia corre perigo, e todo mundo está de acordo quanto a isso. A possibilidade da literatura, a autorização que uma sociedade lhe dá, o fato de levantar suspeitas ou terror a seu respeito, tudo isso vai junto – politicamente – com o direito ilimitado de fazer todas as perguntas, de suspeitar de todos os dogmatismos, de analisar todas as pressuposições, quer as da ética, quer as da política de responsabilidade. (Derrida, 1992. p.47-48)

E se pensarmos bem na história da literatura moderna (que é a única que Derrida

de fato reconhece como literatura – ele exclui as escrituras sagradas e a poesia, p. ex.),

podemos lê-la toda nessa chave. Aquelas relações extremamente problemáticas - entre

obra e autor, entre obra e mundo -, relações que guiam nossas leituras dos textos

literários, por manter-lhes o segredo, não seriam elas fruto justamente de um longo

processo legal? Pensem, por exemplo, no processo de Madame Bovary, na absolvição

desse livro e de seu autor. Ou, para lembrarmos um exemplo local, pensem na relação de

Machado de Assis e seus narradores (o autor-defunto ou o defunto-autor Brás Cubas tem

mais de uma eficácia simbólica).

A partir dessas quebras epistêmicas, a literatura passa a ser um campo discursivo

que é reconhecido pela Lei (e, mais tarde, será garantida por Lei), mas que se encontra

para além dela. Não é à toa que tão frequentemente vejamos na possibilidade do literário

a promessa de uma sociedade justa. Também Derrida assume essa visão e a expande:

no momento mesmo em que a Lei reconhece dentro de si a possibilidade de um dizer-

outro , de um tudo-dizer, ela não estaria reconhecendo sua própria contingência? È dessa

forma que ele lê “Diante da Lei” de Franz Kafka (Derrida, 1987): a literatura estabelecer

uma relação problemática com o Direito, fazendo inclusive que a Lei exiba sua diferença

consigo mesmo, mostrado a possibilidade de sua desconstrução, ou seja, na própria

possibilidade daquilo que Derrida chama de Justiça.

Mais: não só a literatura estabelece esse problema com instituições distintas dela,

mas inclusive com ela mesma. Não é como a literatura viesse propor uma nova lei – suas

próprias regras possuem uma dinâmica especial, na qual elas estão sempre erodindo,

restabelecendo-se pelo próprio movimento dessa erosão contínua. Nas palavras de

Derrida, quando falamos de fim da literatura, estamos falando de seu início. Sua história é

construída como ruína de um monumento que basicamente nunca existiu (1992. p.42). E

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é curioso que aqui, como em Força de Lei, Derrida evoque as ruínas históricas de

Benjamin... Seria preciso pensar mais nesse paralelo...

Desse modo, a literatura estabelece uma dupla relação com a democracia por vir:

não só abre caminho para que ela seja possível, como também lhe serve como modelo.

Ainda que não concorde plenamente com Paul de Man (1979), Derrida concorda com ele

sobre sua tese na qual toda a retórica literária já aponta, de antemão, para sua

desconstrutibilidade. E que de Man chama – e é preciso pensar em toda a problemática

da escolha desse termo – de ironia.

Por isso ambas – literatura e democracia por vir – são, como chama Derrida,

instituição in-institucionalizável. Isso que dizer que elas se pautam por certos

procedimentos universais, mas que funcionariam apenas de forma “disruptiva”: a Justiça,

a desconstrução, a différance, etc. O que não quer dizer que elas não tenham estruturas

positivas – mas sim que essas seriam marcadas pela consciência de sua própria

contingência, de uma contingência radical, aberta a possibilidade de disputa por

modificações. Eis o porquê da acusação de que Derrida seria um relativista, um adepto ao

livre jogo retórico da linguagem, é, no mínimo, equivocada.

Contudo, Derrida esboça algumas ressalvas com relação à própria capacidade que

a literatura teria de realizar ou permitir uma mudança. É desses pequenos “poréns” que

eu parto, porque vejo neles um modo de realização do poder que me parece profunda

(superficialmente profundas, como veremos) nas sociedades democráticas ocidentais, ao

mesmo tempo em que representam um problema para nossa própria área de saber.

Quando questionado sobre a função crítica da literatura, Derrida hesita em

responder, dizendo que tal característica é bastante ambivalente:

...the reference to a critical function of literature belongs to a language which makes no sense outside what in the West links politics, censorship, to the origin and institution of literature. In the end, the critical-political function of literature, in the West, remains very ambiguous. The freedom to say everything is a power political weapon, but one which might immediately let itself be neutralized as a fiction. This revolutionary power can become very conservative. (p.38)

Devemos lembrar que essa relação da literatura com a ficção não é evidente. Ainda

que eu não foque aqui especificamente o funcionamento da neutralização como

ficcionalidade – estou mais preocupado em esboçar sua ligação com outros processos

sociais – é preciso ter consciência de que essa relação parece se tornar cada vez mais

uma equivalência a medida que a democracia vai se tornando o modelo político

hegemônico do século XX. Ainda que não possamos ver nisso uma motivação, podemos

ver traços comuns nos dois processos.

Gostaria de dar um exemplo que está pressuposto na resposta de Derrida, mas

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que ele não explora. Estou me referindo ao caso do escritor indiano Salman Rushdie que,

em 1989, recebeu a condenação à perseguição e à morte por meio de um fatwa emitido

pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, devido ao seu livro Versos Satânicos, no qual figuras

como Maomé (e mesmo o próprio Khomeini!) aparecem de forma pouco elogiosa.

Houve uma onda de protestos em defesa ao escritor, principalmente no Ocidente.

A grande parte dos argumentos (como, por exemplo, aqueles que apareceram na New

York Review of Books) invocavam a liberdade de expressão, termo que em geral vem

intercalado com o poder, com o dever crítico concedido ao literário. Mas não poderíamos

ver aí mesmo uma espécie de perigo? Algo como “isso pode ser dito já que é literatura”,

“na literatura podemos dizer tais coisas”, etc. O que talvez essa defesa deixa escapar é

que o livro de Rushdie não é um livro sobre a defesa da liberdade de expressão – ele é de

fato um livro contra muitos aspectos da religião muçulmana.

O filósofo esloveno Slavoj Zizek (2004) também mostra uma preocupação

semelhante com essa neutralização, ao pensar na centralidade política dada atualmente

ao conceito de cultura. Cita, por exemplo, a defesa às estátuas budistas de Bamiyam,

destruídas pelo Talibã em 1999: o argumento do valor “cultural” indica uma distância que

invalida a função religiosa daqueles monumentos.

O problema que quero expor talvez esteja mais visível no caso de Rushdie devido

ao duplo lugar de enunciação desse livro. Contudo, como quero mostrar, é um processo

que estabelece relação com todos os regimes discursivos – literários, políticos, sociais,

etc – em sociedades que possuem um projeto democrático.

A democracia, assim como a literatura, não possui como forma de legitimação a

própria defesa da pluralidade, a somatória de uma série de indivíduos, de instituições, de

grupos que podem se manter devido a um mesmo sistema “liberal”? A questão então é

saber se nossa capacidade de fala não se tornou um direito à mera voz, à distinção das

vozes, já que – numa espécie de suborno que substitui o contrato social – perde-se a

(abdica-se da) capacidade de afetar a Lei, porque é justamente essa Lei que lhes

concede a possibilidade de se dizer. O que torna a atual democracia um modo de

governabilidade único é a sua capacidade de reconhecimento das diversas vozes que

estão sob o seu julgo (que são possíveis, que existem por causa da própria democracia),

transformando assim a reivindicação por uma modificação do (sobre o) direito, no direito à

reivindicação de um direito.

Precisamos ver aqui os limites da negatividade da literatura em relação a outras

ordens discursivas, inclusive com a Lei. Se para o discurso democrático neoliberal, a

“inclusão” e a “pluralidade” se tornam necessidades constitutivas, se tornam direitos,

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então a literatura já não é um espaço “vazio”, que permanece para além da lei - ela é um

espaço legitimador da lei.

Por isso, discordo de Gayatri Chakravorty Spivak, que no seu livro Death of a

Discipline, desvincula (e mesmo satiriza) a limitação histórica da instituição que

conhecemos como literatura. Na visão de Spivak, tal limitação anularia a virtude desse

espaço discursivo em ser o espaço possível para o reconhecimento das vozes e dos

silêncios daqueles que estão supostamente aquém da possibilidade do dizer. Isso me

parece discutível: um espaço de enunciação (qualquer que seja, mesmo quando

pensamos especificamente na literatura) não deve ser apenas um espaço de expressão

(mesmo que essa expressão esteja para além da ideia de indivíduo – aqui seria

interessante retomar as primeiras obras de Derrida, principalmente La Voix et le

phénomène, para imaginarmos as consequências de uma subjetivação absoluta da fala e

também da escritura – uma subjetivação sem sujeito). Esse lugar enunciativo deve ser um

lugar de disputa, inclusive, um lugar de disputa sobre o lugar, sobre a possibilidade do

lugar a partir do qual se enuncia. Por isso, tentar encontrar na literatura um lugar no qual

qualquer cultura, qualquer grupo, e mesmo qualquer tipo de interesse social pode ser

enunciado, sem ter em conta o próprio lugar discursivo que ela ocupa com relação a

outros tipos de discurso pode dar margem a uma manutenção da Lei, submetendo nosso

dizer àquele processo que chamamos de neutralização. Se não tivermos isso em

consideração, passamos a reivindicar eternamente o direito à voz, direito que,

perversamente, já nos foi dado de de antemão, tanto pela democracia como pela

literatura.

A contribuição dos estudos subalternos, dos estudos pós-coloniais, para

continuarmos dentro da área de interesse de Spivak, deve ir para além da modificação ou

inclusão de novos valores no interior da instituição literária – ela deve apontar para a

disputa necessária que se faz sobre o que significa falar a partir do espaço literário, do

que significa falar a partir do regime democrático (ou de qualquer regime). Essa disputa

não deve ser vista como a inclusão de mais um grupo, de mais um indivíduo, de mais

uma forma de valor simbólico em nosso sistema, mas como uma disputa sobre esse

sistema, que, inclusive, pode apontar para o abandono desse.

Assim, ao contrário das leituras que vem em Derrida, que veem, em seus objetivos

últimos, uma sociedade anti-essencialista plural, devemos enfatizar a principal

conseqüência da contingência radical por ele defendida : a de que devemos tomar uma

posição, mesmo e principalmente porque não temos qualquer garantia. A desconstrução

não é a Justiça – é a possibilidade dela.

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Devo lembrar que em Força de Lei, Derrida reflete sobre o próprio uso constante

que ele mesmo faz da palavra força em sua obra, mostrando que uma pura força

enunciativa leva ao pior tipo de sociedade totalitária, onde a fala (a fala de um, do

soberano) torna-se imediatamente lei. Porém, não haveria uma contrapartida perversa

numa sociedade em que toda a fala careça de força, deixando entrever uma ordem pura,

que se mantém independente das vozes que dela participam, inclusive da seus

soberanos?

A neutralização do discurso pode ser encontrado para muito além da literatura. Eu

diria que a neutralização marca mesmo o modo como a Lei, a nossa Lei democrática,

legitima-se, legitimando a dita liberdade de expressão. Para citar mais dois exemplos, a

princípio, “não-literários”, pensem em dois dispositivos que são característicos de nossa

época, e que, de uma forma ou de outra, também neutralizam discursos, que retiram toda

a força perlocutiva deles, e, por causa disso, possuem uma enorme eficácia simbólica: o

cinismo (tal como descrito por Peter Sloterdijk, 1988) e o estado de exceção como

paradigma dos Estados Democráticos atuais (tal como descreve Giorgio Agamben, 2005).

O que esses três fatores deixam entrever é uma ordem que cada vez se torna mais pura,

uma outra espécie de poder diversa daquela Justiça Divina que descreve Derrida, mas

que com ela se aparenta.

Talvez, o exemplo maior que condensa o funcionamento da neutralização em

nossa sociedade seja aquele velho refrão cínico que diz que “você pode dizer isso, pode

fazer essa crítica, pode escrever este livro, porque você se encontra justamente numa

sociedade democrática”. Nesse sentido, nossa democracia é, no pior sentido possível,

bastante literária.

Por isso, a literatura não deve(ria) ser um direito à representar nem à re-

apresentar; sequer deveria ser um direito à “liberdade de expressão”: ela deve ser um dos

espaços de/em disputa pelo próprio significado de “falar” a/em nossa sociedade.

A possibilidade do abandono da literatura como categoria discursiva específica não

deve nunca ser deixada de lado (Derrida e Foucault confessaram ter optado pela filosofia

devida a uma impossibilidade de fazer algo a partir da literatura). No momento mesmo em

que ela (e a democracia) estão garantidas, a força de seu enunciação já está

enfraquecida.

Penso que como esse processo – a neutralização - que quis apresentar aqui é

abertamente pressuposto na literatura, talvez se justifique, por enquanto, sua

permanência como objeto de pesquisa sintomático.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Virginia Woolf e Gilles Deleuze: alguns contrapontos

Vera Lima Ceccon

Profa. Adjunto de Literatura Inglesa, FL, UFRJ

Antes de apresentar meu trabalho, gostaria de falar um pouco sobre a proposta

que o motivou e que se refere à fotomontagem que fiz para divulgar este simpósio. A

proposta em si é muito simples, o que não quer dizer que seja “fácil”. E poderíamos até

designá-la como uma fantasia, se esta palavra já não estivesse carregada de tantas

conotações.

Seja como for, minha proposta se enuncia da seguinte maneira:

Se eu pudesse escapar das constrições da materialidade empírica, gostaria de

convidar Virginia Woolf e Gilles Deleuze para um “bate-papo” informal ao som de bossa-

nova à beira-mar.

Pois certamente um contexto informal e amigável entre estes dois gigantes do

pensamento, produziria um acontecimento inspirador.

Portanto, eu não tomaria como impedimento o fato de Virginia Woolf ter nascido e

vivido na Inglaterra entre 1882 e 1941 e Gilles Deleuze na França entre 1925 e 1995. O

que importaria para a proposta é que tal encontro produziria um acontecimento marcante

para quem estivesse presente. Afinal, os pensamentos desses dois gigantes, apesar de

guardarem grandes diferenças entre si, se debruçaram sobre inúmeras questões afins.

a vastidão e a procura de uma imagem para o pensamento

Se me refiro a Virginia Woolf e Gilles Deleuze como dois gigantes é porque vejo na

“imensidão” de seus pensamentos uma qualidade que os aproxima.

Na verdade, “imensidão” não é uma palavra muito precisa.

Vastidão dá conta melhor desta qualidade de espalhamento por grandes

superfícies que estou querendo realçar aqui.

Ou seja, há algo implícito e de natureza cartográfica, que aproxima estes dois

pensadores e que facilmente nos faria comparar seus pensamentos a mapas extensos,

como mapas de vastas planícies, florestas ou cordilheiras.

Mas, por serem pensamentos colados à vida - com tudo o que ela tem de

complexo e móvel, imprevisível e contraditório - , eles são arredios a imagens estáticas ou

a modelos esquemáticos.

Apesar disso, eu insistiria, pois não consigo me conter em detectar uma imagem

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que dá conta das qualidades tão visivelmente topológicas destes dois pensares, naquilo

em que se aproximam.

A imagem a que recorro é a imagem do oceano.

Pois o oceano é , ao mesmo tempo, móvel e imóvel, fluido e viscoso. Com suas

correntezas velozes e seus lençóis flutuantes que se interceptam e irrompem à superfície,

o oceano vive numa permanente transmutação de si próprio. Vive sem que sua vida seja

humana, animal ou vegetal ou sequer orgânica. Ainda assim, a vida do oceano é

perfeitamente capaz de se agenciar ao humano, ao animal e ao vegetal.

E é essa qualidade oceânica que aproxima Virginia Woolf e Gilles Deleuze: não é

à toa que o mar e as ondas estão sempre presentes na obra de Virginia Woolf.

Os pensamentos de Virginia Woolf e Gilles Deleuze pulsam como ondas, enquanto

banham e circundam áreas imensas, diversas, e, por vezes, muito distanciadas entre si.

Daí a dificuldade de se falar de maneira acadêmica e abrangente sobre eles. É mais fácil

vivenciar tais pensamentos do que explica-los. Quanto mais mergulhamos em suas

águas, mais vemos como elas se transformam e se metamorfoseiam, como a própria

vida.

Ainda assim, é possível falar academicamente sobre tais pensamentos, desde que

nos ancoremos em algumas de suas regiões e façamos ali nossas expedições. Ou seja,

aquilo que dentro do jargão acadêmico chamamos de “recorte” é imprescindível, quando

falamos de Virginia Woolf, de Deleuze e de Virginia Woolf-e-Deleuze. E o nosso dito

“recorte” incide, então, sobre uma questão, melhor dizendo, um continente móvel, dada

sua amplidão e mobilidade. Trata-se da questão do pensamento criador, isto é, para o

que nos interessa aqui, a questão do pensamento enquanto em ato de criar, de produzir

arte, de produzir literatura, de produzir a si próprio.

o pensamento e os meios materiais para sua expressão

Pedir a um pensador que considere a questão do ato criador nos remete

necessariamente ao problema da disponibilidade dos meios de expressão.

E isso nos arremessa necessariamente a uma contextualização histórica, isto é,

nos arremessa de novo às constrições da materialidade que tanto queríamos evitar.

Afinal, todo pensador se encontra a priori diante de um conjunto de meios de

expressão já prontos à sua disposição, dados por seu campo social e sua época. São

esses meios que garantem inteligibilidade e visibilidade dentro de tal contexto.

Só que por estarem submetidos a convenções e regimentações de forças

históricas, os meios de expressão também se encontram impregnados por forças que

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enrijecem e endurecem as linhas móveis do pensamento. Estas forças calcificam muito

rapidamente a fluidez do pensamento e o aprisionam em fôrmas e moldes.

Virginia Woolf, por exemplo, teve que se debater contra as rígidas convenções do

romance realista vitoriano, que ainda imperavam no início do século XX, quando iniciou

sua carreira.

Além disso, ainda que tenha-se decidido por ser escritora já na infância, seus

diários de juventude testemunham uma enorme dificuldade em “dobrar” a escrita, em

torna-la mais maleável. Invejava a irmã por ser pintora, via na pintura um meio de

expressão mais flexível e pensava o mesmo sobre a música.

Não surpreende, portanto, que um grande pensador, já cedo se incomode com os

meios que sua época lhe disponibiliza para se expressar.

Isso explica sua inquietação, sua pesquisa precoce e incessante na busca de

novos materiais ou na combinação de meios convencionalmente afastados, para dar

inteligibilidade a suas idéias. Inteligibilidade ou visibilidade. Ou audibilidade. Ou

sensibilidade, já que o grande pensador nunca é apenas um teórico ou um romancista,

apenas um músico ou um pintor ou um cientista.

Ele é também um bricolleur, um experimentador que se fascina por ferramentas e

signos provenientes de outras áreas, diferentes da sua.

Daí também ele recorrer a pensadores do passado – e também do futuro: tudo isso

faz parte de seu aprendizado.

De fato, não é raro que um grande pensador comece sua obra onde outro

terminou. Nietzsche dizia que os grandes pensadores são como um povo disperso no

tempo e no espaço. Enquanto esteve apaixonado pelos gregos da época trágica e pré-

socrática, Nietzsche dizia que aqueles gregos constituíam um povo pensador por

excelência. E um dos segredos de sua grandeza residia no fato de que os gregos

“sorveram toda a cultura viva de outros povos e, se foram tão longe, é precisamente

porque sabiam retomar a lança onde um outro povo a abandonou, para arremessá-la

mais longe” (NIETZSCHE, 2009: 33).

Isso também se dá entre Virginia Woolf e Gilles Deleuze. Sendo Gilles Deleuze o

mais jovem entre os dois, não é surpreendente, portanto, que ele – e outros de sua

geração – tenham aprendido tanto sobre o pensar com Virginia Woolf e outros da geração

dela.

Mas o mais surpreendente é que às vezes temos a nítida impressão que Virginia

Woolf também havia lido Gilles Deleuze, Félix Guattari e seus contemporâneos! E isso

certamente se deve à qualidade futurística da escrita de Virginia Woolf, voltada para um

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povo ainda por vir.

O pensamento artístico se antecipa ao pensamento filosófico ou teórico.

Com seus passos ágeis e velozes, a arte sempre abriu caminhos, portas e

horizontes, aos quais o pensamento teórico sempre chegou tardiamente, carregando seu

pesado aparato.

Mas neste agenciamento entre literatura e filosofia, cabe à filosofia um papel de

grande importância.

Um pensador filosófico trabalha como um restaurador capaz de remover o excesso

de detritos que se depositam na superfície de uma estátua ou de um quadro e devolver-

lhes o frescor. Ele resgata na obra literária aquilo que foi carcomido pelas forças do

senso comum e assim revitaliza a fluidez e as potências da obra.

E isso é particularmente vital na obra de Virginia Woolf.

A abordagem deleuzeana de Virginia Woolf resgata a obra da escritora inglesa de

alguns reducionismos insuportáveis dos quais tem sido vìtima dentro de alguns modismos

acadêmicos recentes. Devido a publicação, nas últimas décadas, de um imenso volume

de escritos autobiográficos, Virginia Woolf já foi capturada por diversas grades teóricas

psicologizantes, psicanalizantes e psiquiatrizantes. Muito se fala de assédio sexual,

incesto, bissexualismo, doença bipolar, suicídio, enquanto que sua obra ficcional e seu

pensamento voltam a ser, assustadoramente, silenciados.

Mas basta de digressões.

Voltemos, pois, à proposta de convidar Virginia Woolf e Gilles Deleuze para algo

mais simples, despretensioso, um “bate-papo” à beira-mar.

Na verdade, eu proporia a eles uma espécie de “jam session” de troca de idéias.

E essa proposta teria uma tripla finalidade.

Em primeiro lugar, seria uma tentativa – ainda que artificial, obviamente – de

reinserir dentro da vida dois pensadores que estiveram profundamente comprometidos

com ela, tal como ela é. Enquanto vivos, Virginia Woolf e Gilles Deleuze eram pessoas

simples, acessíveis, que gostavam de conversar com amigos, de rir e beber com eles, e

de pensar a vida.

Em segundo lugar, para impregnar de leveza o acontecimento do encontro, já que

muita gente os considera difíceis, justamente por ainda não terem percebido o quão

próximos da vida eles estiveram.

Leveza não é sinônimo de “banalidade”. Leveza é um artifício, é o ato ou efeito de

tornar leve, prazeiroso, palatável, até mesmo aquilo que normalmente se encontra duro,

pesado ou difícil.

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E, em terceiro lugar, porque leveza está muito próxima da alegria, outra qualidade

que aproxima estes dois pensadores.

Mas, como um encontro desta natureza não é factível mesmo, isto é, não é

atualizável, passível de realidade; já que nem Virginia Woolf nem Gilles Deleuze estão

mais aí para nos oferecer a graça de um improviso presencial, então, ao invés de nos

lamentar, vamos tirar proveito disso.

Façamos um exercício daquilo que Coleridge, um grande pensador inglês,

chamava de suspension of desbelief, ou seja suspensão da descrença.

Deixemos de lado, portanto, a chamada “realidade empírica” – vejam bem, a

realidade, não o real – e mergulhemos juntos no mundo dos possíveis.

E aí, de dentro dele, proponhamos mesmo nosso encontro entre os dois, entre

Virginia Woolf e Gilles Deleuze. Reformulemos, no entanto, a proposta. Ao invés de um

bate-papo puramente informal, convidemo-los para uma espécie de dueto vocal em

contraponto, algo parecido com os nossos repentes à moda nordestina, com lançamento

de temas e desafios.

A diferença é que cada qual responderia ao outro, não tanto improvisando, mas

apresentando algum trecho de suas obras.

Respeitando as tradições do gênero, daríamos a primeira palavra à dama.

Pediríamos, então, a Virginia Woolf que, instigada pela questão do pensamento

criador, escolhesse livremente alguma passagem de uma de suas obras.

primeiro contraponto: Virginia Woolf e o farol

Nessa hora, seria fácil imaginar um certo sobressalto nela, quando assim,

diretamente interpelada.

Enquanto eu desfiava este longo preâmbulo, ela teria estado distraída com o

entorno, olhando as pessoas, observando através das janelas, sem prestar a menor

atenção ao que eu dizia. Por isso, ela teria arregalado seus grandes olhos azuis, que se

acenderiam como dois faróis, em seu rosto magro, quando eu me dirigisse diretamente a

ela com esta solicitação.

Meio que nervosamente, ela pegaria às pressas qualquer um dos volumes de suas

obras, que estariam espalhados sobre uma mesa, e folheando de maneira agitada as

páginas, se deteria numa delas, como se não tivesse escutado bem ou entendido ao certo

o que era para fazer, mas, por cortesia, temesse perguntar.

Suponhamos, então, para alegria dos alunos de graduação aqui presentes, que ela

tivesse escolhido uma passagem extraída da primeira parte de seu romance To the

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Lighthouse, traduzido para o português como Passeio ao Farol, ou Rumo ao Farol.

Como anfitriã, competeria a mim abrir um breve parênteses informativo para

apresentar esta obra ao público presente. E eu diria que TL foi o quinto dos 9 romances

que Virginia Woolf escreveu e foi aquele que ela compôs mais rapidamente, tendo levado

menos de 2 anos entre o primeiro rascunho e sua publicação, em 1927. Foi nele também

que ela aperfeiçoou sua técnica do fluxo da consciência.

Sua sinopse é aparentemente simples e quase banal, já que não se trata de um

“romance-ação” (eu diria isso, para fazer uma analogia com o “cinema-ação” e “cinema-

tempo” de Deleuze.)

Em linhas muito gerais e simplificadoras, eu diria que TL é subdividido em 3 partes

- A Janela, O tempo passa e O Farol, - e tem como contexto presumido de época a

Inglaterra eduardiana, isto é, a primeira década do século XX, o período logo após a era

vitoriana.

Passemos, pois, à sinopse.

Na primeira parte do romance, A Janela, um casal de meia-idade, o Sr Ramsay,

professor de filosofia, e sua esposa, se encontram com seus oito filhos e mais 6 hóspede

na casa de praia da familia, ao fim do verão, no litoral da Escócia, bem longe de Londres,

onde vivem durante o ano. O filho caçula, James, deseja muito ir ao farol, mas o mau

tempo impede a viagem. Dentre os hóspedes, se encontra Lily Briscoe, uma pintora

moderna, que lançando mão de uma técnica não-figurativa, está tentando pintar a cena

da abertura do romance, na qual mãe e filho estão sentados no lado de fora da casa,

diante de uma bela vista para o mar e o farol. A Sra Ramsay tricota e conversa com

James, enquanto ele recorta figurinhas.

Fecharia a seguir o meu parênteses, sabendo que Virginia Woolf já se encontraria

de pé, impaciente, com o livro aberto no capítulo 11 desta primeira parte do romance,

pronta para apresentar sua passagem, com o seguinte comentário:

O sol se pôs e a babá veio buscar James.

Sozinha no jardim, ainda com o tricô na mão, a Sra Ramsay pode agora relaxar e

contemplar o mar e o farol que, imponente em sua ilha solitária, se acende à distância, em

meio à luz crepuscular.

Fazendo uso do discurso indireto livre, a voz narradora nos dá acesso aos

pensamentos da Sra. Ramsay. E aí viria a passagem, em minha tradução1 livre:

1 salvo onde estiver explícito, todas as traduções – tanto do inglês para o português, quanto do francês

para o português – são de minha autoria

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Pois agora ela não precisa mais se preocupar com ninguém. Podia, enfim, ficar sozinha. E era disso que ela às vezes mais sentia falta: de pensar, ou melhor, nem mesmo de pensar. Só ficar em silêncio, ficar só. ...E assim toda a atividade da existência, - com sua expansividade, luminosidade e verbosidade, - se evaporava; e ela podia então se recolher para dentro de si mesma com uma certa solenidade, para dentro de um núcleo de escuridão, algo invisível para os outros. E embora continuasse tricotando, sentada bem ereta, era assim que ela mais se sentia a si mesma, a seu ser, depois de libertada de todos os laços, pronta para as mais variadas/ aventuras. Quando a vida cotidiana submergia assim, por alguns momentos, um leque imenso de possibilidades parecia se abrir ... O horizonte parecia ilimitado. Lá estavam todos os lugares que ela não conhecia: as planícies da India; de repente se viu abrindo uma pesada cortina de couro numa igreja em Roma. Esse núcleo de escuridão podia ir a qualquer lugar, porque ninguém o via. Ninguém podia detê-lo, ela pensou exultante. Aí estava a liberdade, a paz, e acima de tudo, o descanso em uma plataforma de estabilidade. Mas em sua experiência, não era como si própria que era possível descansar (e neste momento ela executou um ponto complicado com as agulhas do tricô), mas apenas como um núcleo de escuridão. Desprendendo-se da personalidade, se desprendia de tudo, da pressa, da agitação, do rebuliço; e sempre lhe subia aos lábios uma exclamação de triunfo sobre a vida, quando tudo dentro dela se reunia nessa paz, nesse repouso, nessa eternidade; ... e detendo-se ali, seu olhar encontrou a luz do farol, no longo lampejo, o último dos três, aquele que era o seu lampejo, pois de tanto olha-los neste estado de recolhimento nesta mesma hora do dia, não tinha como evitar se apegar a alguma coisa em especial, dentre as coisas que via; e esta alguma coisa especial, o longo e firme lampejo, era seu lampejo. ... Tantas vezes ela se via sentada e olhando, sentada e olhando, com o tricô nas mãos, até que se transformava na coisa que tanto olhava – naquela luz, por exemplo. ...É tão estranho, ela pensava, como quando se está sozinha, a gente se apega às coisas inanimadas, às árvores, aos riachos, às flores; sentimos que essas coisas nos expressam; que elas se tornam nós mesmos, que elas nos conhecem, e de certa maneira, são a gente; sentimos uma ternura irracional por essas coisas (e então olhou de novo o longo lampejo do farol), como se fosse por nós mesmos. (WOOLF, 1977: 69-71)

Virginia Woolf encerraria sua leitura com o rosto um pouco corado e um olhar ainda

indagador em direção a todos nós, como se estivesse ainda em dúvida se realmente

havia feito o que haviam-lhe pedido. Só tinha certeza que agora seria a vez de Gilles

Deleuze.

segundo contraponto: Gilles Deleuze e o devir-farol

Passemos, pois, ao contraponto dele.

Vejamos agora, ou melhor, escutemos como a leitura de V Woolf afetaria Deleuze.

Todos os olhos do círculo de amigos se voltariam agora para ele e o encontrariam

embevecido, com um sorriso aberto até as orelhas.

Ele se levantaria, chegaria até ela e beijaria sua mão, dizendo, com seu forte

sotaque:

“Mme Woolf, é sempre uma alegria reencontrá-la ...”

Depois, voltaria para seu lugar, e ficaria contemplando o espaço por alguns

instantes, enquanto pensaria sobre o que dizer.

Os amigos respeitariam o silêncio.

E o olhar distante, mas ativo, de Gilles Deleuze parece indicar que o trecho citado

por Virginia Woolf deflagrou um processo em seu pensamento.

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Se ele ainda permanece em silêncio, deve ser porque entendeu bem a proposta de

pensar em contraponto.

Aliás, foi isso o que sempre fez, enquanto pensou as obras de outros artistas,

escritores, filósofos e cientistas.

O que vier a dizer nunca terá a função de “traduzir”, “interpretar” ou mesmo

“transpor” para um linguajar filosófico uma experiência de natureza estética, esta

singularidade instransponível que V Woolf soube tão bem produzir.

Não, não se trata disso.

Seu contraponto acontecerá através de conceitos, mas eles surgirão como algo

inspirado no que acabou de ser escutado ou vivenciado, da mesma maneira como, por

exemplo, um flautista é capaz de improvisar na flauta uma nova peça musical, inspirada

em outra peça, recém-tocada por um violonista-amigo.

Ou seja, são coisas diferentes. São variações sobre um mesmo tema, sobre uma

mesma questão, mas cada qual no seu timbre, na sua modalidade, na sua freqüência

sonora. Afinal, uma peça musical que se expressa flautisticamente nunca é igual a uma

peça que se expressa violonisticamente.

É isso é que é pensar por contraponto, é isso que Gilles Deleuze sempre fez.

Daí o absurdo daqueles que dizem que o romance morreu, a literatura morreu, e

que agora só existe a teoria. Seria a mesma tolice que dizer que a flauta acabou, porque

inventaram o violão.

Gilles Deleuze só demora um pouco para responder, por causa da minha exigência

de que o faça usando uma passagem de alguma obra publicada, isto é, não improvisando

de uma maneira totalmente livre.

Finalmente, ele nos diz que gostaria de fazer um comentário sobre a Sra. Ramsay

e seu devir-farol. Escolhe um dos livros sobre a mesa, o abre e lê uma passagem:

Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimésis), mas é encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação, de maneira que já não nos podemos distinguir de uma mulher, de um animal ou de uma molécula: e que não são nem imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, ... Pode-se instaurar uma zona de vizinhança com qualquer coisa, ... Entre os sexos, os gêneros ou os reinos, qualquer coisa passa. O devir é sempre “entre” ou “dentre”: mulher entre as mulheres, ou animal dentre outros animais. (DELEUZE, 1990: 11)

Ou seja, ele nos explica, trata-se de um processo e não um fim. Não se trata de

empiricamente se tornar um farol, mas de sair de si mesmo, da máscara social, como

expressa muito bem a Sra Ramsay, para captar outros fluxos, outras potências, não

necessariamente humanas ou mesmo orgânicas, como é o caso do farol. Trata-se de

captar aquilo que mais tarde ele refinará nos conceitos de afecto e percepto, isto é, o

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devir não-humano, o atingir dessa zona de indiscernibilidade, de indefinição, em que os

contornos se esmaecem, como na própria hora do crepúsculo da cena citada. E, no caso

da Sra Ramsay, é só no silêncio, no recolhimento, no fora da carapaça social e de sua

tagarelice, que ela consegue isso.

Não surpreende a Gilles Deleuze, portanto, que Virginia Woolf tenha escolhido

esta passagem quando interpelada a falar sobre o pensamento criador, mesmo que ela

própria tenha demonstrado uma certa dúvida. Afinal, criar, escrever, só pode se dar

dentro de um processo desta natureza, de devir-outrem e até de devir algo não-humano.

A passagem citada por Virginia Woolf também suscita outro conceito em Gilles

Deleuze, co-ligado ao devir. Trata-se do conceito de linha-de-fuga. Afinal, este é o

momento no qual Sra Ramsay consegue, literalmente, fugir de seus papéis sociais e se

tornar invisível, imperceptível, e escapar, mas sem sair do lugar. Ela cria uma linha-de-

fuga e, para usar suas próprias palavras, “ela se desprende de sua personalidade”, isto é,

de sua persona, sua máscara social, das linhas de segmentaridade dura que a encaixam

dentro dos papéis de mãe, anfitriã, dona-de-casa, e salta para fora disso, embarcando

dentro de uma linha totalmente fluida e flexível, que a leva até a própria lâmpada do farol,

para aí se fundir com a luz e comungar – como numa espécie de núpcias contra natura –

com o farol e outros elementos inanimados de seu entorno.

E é aí que Gilles Deleuze exalta a capacidade dos escritores anglo-americanos de

serem capazes de criar por linha-de-fuga. É isso que ele detecta na atividade

contemplativa da Sra. Ramsay

Para Deleuze, a literatura consiste em justamente partir, escapar, traçar linhas de

fuga. Mas fugir não tem nada a ver com renunciar à ação: ao contrário, não há nada

mais ativo que uma fuga. Citando suas palavras:

Fugir não é renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É também fazer fugir, não necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar como se fura um cano. ... Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia. Só se descobre mundos através de uma longa fuga quebrada. A literatura anglo americana apresenta continuamente rupturas, personagens que criam sua linha de fuga, que criam por linha de fuga. Thomas Hardy, Melville, Stevenson, Virginia Woolf, Thomas Wolfe, Lawrence, Fitzgerald, Miller, Kérouac. Tudo neles é partida, devir, passagem, salto, demônio, relação com o de fora. (DELEUZE, 1977: 49)

Deleuze nos explica, dentro deste mesmo texto, que "fugir não é exatamente viajar,

nem mesmo se mexer" (D48-49), pois há viagens, onde nos deslocamos

geograficamente, extensivamente, mas não saímos do próprio “eu” o tempo todo. E, por

outro lado, existem viagens imóveis, que produzem mapas intensos, isto é, uma

cartografia intensa e não extensiva.

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Gilles Deleuze toma um gole de caipirinha, olha os rostos amigos, sorri para

Virginia Woolf e se cala. Volta a se sentar, devolvendo a palavra a Virginia Woolf.

terceiro contraponto: Virginia Woolf, a arte e o caos

Ela sorri. E desta vez, seu sorriso traz o ar do entendimento. Ela diz, com seu

impecável sotaque britânico:

“My dear Gilles! Você é um feiticeiro incrível!”.

Diz que também leu todos os livros dele e que lamenta isso não ter acontecido

antes de ela encerrar sua própria obra.

Diz que ficou fascinada com a maneira como alguns dos livros de Deleuze

funcionam – principalmente aqueles escritos com Guattari, isto é, são como máquinas de

produzir conceitos que disparam processos de pensamento que se aderem à consciência,

da mesma maneira como ela própria tentou fazer com seu fluxo da consciência. E ainda

diria:

“Eu gosto muito da maneira como você nomeou seus conceitos: devir, linha-de-

fuga, devir imperceptível, acontecimento...”

Afirma que dá gosto escutar um pensamento tão preciso e elegante quanto o dele,

tão compacto, tão “straight to the point”, enquanto que ela tinha que dar voltas e fazer

digressões, fazer idas e vindas para circundar uma questão. E acrescenta:

“Como romancista, eu só podia mostrar, não podia explicar nem conceituar ... Eu

sempre pensei através de imagens, visuais e sonoras, mas a minha ferramenta foi

sempre só a palavra. E não era fácil pintar com palavras. Esperavam que a gente ficasse

só descrevendo cenários...”

Ela, então, se dirige a mim, em voz baixa, dizendo que gostaria de extrair a

próxima passagem da terceira parte de To the Lighthouse.

Cabe a mim, de novo, portanto, apresentar em poucas palavras a cena que ela irá

apresentar.

Na segunda parte do romance, O Tempo passa, dez anos se passam sem que

ninguém [da família] visite a casa. Presenciamos o caos invadir a casa, enquanto

potências não-humanas – animais e vegetais – vão-se apoderando do espaço e

desmanchando o território humano. Somos informados dos fatos humanos por pequenas

frases impessoais entre parênteses, que chegam como informes curtos vindos de longe,

Sra Ramsay morreu, a guerra começou, a filha mais velha se casou, morreu durante um

parto, outro filho morreu em combate. Ao fim deste longo período, no entanto, em que a

casa quase desaba, a família resolve retornar e toma providências para isso.

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Na terceira parte, O Farol, a família retorna, finalmente, à casa de praia, agora sem

sua matriarca e dois de seus filhos. O tempo agora está bom e o Sr Ramsay quer, enfim,

cumprir tardiamente a promessa não consumada de sua agora falecida esposa, de levar

James, o filho caçula, ao farol. Enquanto o barco que os leva à ilha do farol se afasta do

litoral, Lily tenta retomar a pintura que não havia terminado na primeira parte.

Finda minha apresentação, vejamos agora a passagem escolhida em si. Ela se

encontra logo no início da terceira parte e se resume nas próximas linhas.

Na primeira manhã em que se reúne com a família à mesa do café, dez anos

depois da primeira cena, Lily sente um grande estranhamento. Nada parece se conectar

com nada. Ela não consegue sequer sentir. Nem mesmo a menção dos nomes dos

mortos suscita algum sentimento.

Ao contrário, a atmosfera de desconexão produz nela a desconfortável sensação

de estar flutuando no caos.

Aborrecida pelo tédio e pela perda de tempo, pois agora, aos 44 anos, sente que

não pode mais se dar ao luxo de desperdiçar tempo, de repente se lembra do quadro que

não havia conseguido concluir dez anos antes.

E se recoloca no gramado diante da casa, para tentar recapturar de memória a

essência da cena que a havia motivado, na primeira parte do romance.

Mas não consegue produzir nada, pois o Sr. Ramsay está por perto.

Perambulando de um lado para o outro, ele recita um poema sozinho e em voz alta,

enquanto espera, impaciente, a chegada dois dois filhos menores – James e Cam – que o

acompanharão ao farol, nesta manhã.

A proximidade dele desordena os pensamentos de Lily, modifica sua disposição.

Sente-o como um espectro vagando em meio ao caos.

Só depois que o Sr Ramsay e os filhos partem é que Lily consegue se concentrar.

Ela se volta para o cavalete e o endireita, se dá conta de que estava mal

posicionado e que as tintas estavam mal escolhidas: tal havia sido o efeito da presença

de Sr Ramsay sobre ela. Coloca a tela branca sobre o cavalete.

Lily volta a considerar seu plano de ataque sobre a composição do quadro. O

problema estava no equilíbrio entre as massas, mas agora ela sabia como solucioná-lo.

Só teoricamente, no entanto, pois sabia que “havia uma enorme diferença entre

conjecturar planos no ar, longe da tela, e efetivamente pegar o pincel e dar o primeiro

toque.”

Aos poucos se acalma, se recolhe e se encontra com o olhar branco da tela.

Agora, com um pincel na mão, Lily se coloca esta questão: "por onde começar?".

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Afinal, a responsabilidade do primeiro traço é imensa, é ele que desencadeia as relações

entre os elementos e determina o modo de propagação dos efeitos, dentro da

composição.

Lily se vê de novo diante do caos, mas não mais de um caos externo, mas de um

caos interno, que igualmente a amedronta e a fascina.

Apesar de toda a excitação e liberdade deste momento – isto é, do instante

imediatamente antes de encostar o pincel saturado de tinta sobre a superfície da tela a

complexidade do ato de criar se torna visível, como nos mostra seguinte passagem:

... subjugando assim as impertinências que roubavam sua atenção ..., firmou a mão e ergueu o pincel. Por um momento este tremeu no ar, num doloroso mas emocionante êxtase. Por onde começar?, esse era o problema; em que ponto dar o primeiro toque? Uma linha colocada na tela a expunha a inúmeros riscos, a freqüentes e irrevogáveis decisões. Tudo o que na imaginação parecia simples tornava-se, na pratica, imediatamente complexo; como as ondas que, vistas do alto de um rochedo, parecem simétricas, mas, para aqueles que nadam dentro, se erguem repartidas por imensos abismos e cristas espumejantes. Ainda assim, é preciso correr o risco e dar o primeiro toque. (WOOLF, 1977: 171-172)

Lily começa, finalmente, a pintar. E em pouco tempo, o pincel adquire um ritmo

próprio que a conduz para dentro de um espaço – parecido ao de uma onda crescente –

que a envolve e a afasta das preocupações mundanas.

E agora, Virginia Woolf se cala e num gesto, mostra que é a vez de Gilles Deleuze.

terceiro contraponto: Gilles Deleuze, a opinião e o caos

Apesar de ainda relaxada, a fisionomia de Gilles Deleuze agora se tornou mais

atenta e circunspecta. Virginia Woolf tocou num ponto crucial para a questão do

pensamento criador: a relação entre caos e criação.

Esta é uma questão sobre a qual ele e seu grande amigo, Felix Guattari, se

debruçaram naquela que seria a última de sua obras conjuntas, porque logo a seguir,

Guattari morreria. É nas últimas páginas desta obra magistral, intitulada O que é a

filosofia? que ambos sintetizam todo um percurso de vida dedicado ao pensamento, como

se fosse um legado, um belo presente para as novas gerações.

E ali eles explicitam claramente que vivemos cercados pelo caos. E o caos se

define, não pela desordem, mas pelas velocidades altíssimas que compõem e

decompõem qualquer configuração. Ou seja, estamos imersos num devir incessante e

imanente, isto é, sem nenhuma solução transcendente, sem nenhum deus que nos

proteja ou organize as coisas para nós.

Assim pensavam Deleuze e Guattari, e Virginia Woolf e Bergson antes deles, e

Hume, e muitos outros pensadores, a começar talvez com Heráclito, ou até mesmo

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Anaximandro.

Bergson dizia, “tudo é luz”. A teoria da relatividade expressa isso cientificamente,

dizendo “matéria é energia”. Virginia Woolf diria “o milagre é o sólido”.

Fazendo uma generalização apressada, diríamos que estes pensadores entendem

por corpo tudo aquilo que ergue um anteparo opaco, que reduz as velocidades e confinam

os fluxos dentro de uma forma, por uma certa duração, até ela se desfazer de novo e se

reintegrar dentro do caos.

Precisamos destes anteparos, precisamos de guarda-chuvas. O caos nos circunda

por dentro e por fora. E quanto ao caos interno, Gilles Deleuze nos lembra do quanto ele

é doloroso e angustiante. É por isso que nos aferramos tanto às opiniões prontas. Em

suas palavras e na tradução de Bento Prado Jr.:

Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, idéias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos. ... É por isso que nos agarramos tanto a opiniões prontas. (DELEUZE, 1992: 259)

Deleuze nos adverte que as opiniões, entretanto, não nos libertam do caos.

Elas só nos aprisionam a formas rígidas que nos paralizam e, portanto, de certa

maneira, são até mais terríveis que o próprio caos. Daí a importância da filosofia, da arte

e da ciência. Segundo ele :

Mas a arte, a ciência, a filosofia exigem mais: traçam planos sobre o caos. Essas três disciplinas não são como as religiões, que invocam dinastias de deuses, ou a epifania de um deus único, para pintar sobre o guarda-sol um firmamento, ... A filosofia, a ciência e a arte querem que rasguemos o firmamento e que mergulhemos no caos. Só o venceremos a este preço. ... O filósofo, o cientista, o artista parecem retornar do país dos mortos. O que o filósofo traz do caos são variações que permanecem infinitas, ... O cientista traz do caos variáveis, ... O artista traz do caos variedades, ... (DELEUZE, 1992: 260-261)

Essa empreitada é sempre arriscada, não há garantia de sucesso, mas se a luta

contro o caos é ferrenha, mais ferrenha ainda deve ser a luta contra a opinião, pois esta

originalmente pretendia nos proteger contra o caos.

Em seguida, Deleuze se refere a um belo texto escrito por D.H.Lawrence, um

romancista-poeta-e-pensador inglês, contemporâneo de Virginia Woolf, que nos fala da

função do poeta. Nas palavras de Deleuze:

... Lawrence descreve o que a poesia faz: os homens não deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo do qual traçam um firmamento e escrevem suas convenções, suas opiniões; mas o poeta, o artista abre uma fenda no guarda-sol, rasga até o firmamento, para fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar numa luz brusca, uma visão que aparece através da fenda, [primavera de Wordsworth ou maçã de Cézanne, silhueta de Macbeth ou de Ahab. Então, segue a massa dos imitadores, que remendam o guarda-sol, com uma peça que parece vagamente com a

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visão; e a massa dos glosadores que preenchem a fenda com opiniões: [comunicação]. Será preciso sempre outros artistas para fazer outras fendas, operar as necessárias destruições, talvez cada vez maiores, e restituir assim, a seus predecessores, a incomunicável novidade que não mais se podia ver. Significa dizer que o artista se debate menos contra o caos ..., que contra os "clichês" da opinião. (DELEUZE, 1992: 262)

Ao final da leitura, Gilles Deleuze pausa em silêncio.

Sabemos que aquela foi uma obra de fim de vida e ainda que escrita num estado

de alegria, talvez já trouxesse em sua intuição a urgência de quem já intui ou pressente

a finitude de sua existência. Isso parece um pouco implícito na abertura do livro, quando

eles falam que talvez seja só na velhice que se possa pensar sobre o que seja a filosofia.

Ou talvez não. Talvez só possamos dizer isso agora, nós, em retrospectiva.

quarto contraponto: o que escrever no fim da vida?

Neste momento, Virginia Woolf e Gilles Deleuze dois assumem uma atitude mais

circunspecta e se perguntam:

“O que escrever ao fim da vida ?” “Como sintetizar o que ficou de fora? “ “O que

legar para as futuras gerações ?” “Como deixar para elas algo similar ao que nós também

herdamos de gerações passadas ?” “Como enxergar um futuro que não conheceremos ?”

E nesse momento, Virginia Woolf, profundamente sensibilizada por esta questão,

diz para ele:

“Sabe, Gilles, eu também tentei fazer filosofia, como vocês jovens franceses

fizeram depois da guerra, isto é, conceituando com rigor, mas usando um estilo mais

solto, mas afetivo. Mas isso na Inglaterra do meu tempo era impensável. Filosofia era

assunto só para homens que tivessem freqüentado a Universidade de Cambridge. Nos

romances eu tinha que me sujeitar a muitas restrições e mesmo assim, houve quem

dissesse que eu tinha destruído o romance inglês. Nos ensaios e resenhas eu tinha que

me limitar a temas mais ou menos corriqueiros. Nos diários eu fiz muito laboratório sim,

mas nada com muita coesão. No entanto, quando a guerra chegou, isso mudou.”

E aí Virginia Woolf nos explica, que quando os alemães começaram a bombardear

Londres, ela, seu marido, Leonard Woolf, e alguns amigos fugiram para um vilarejo. Toda

vez que a sirene tocava avisando que um bombardeio aéreo estava a caminho, eles se

escondiam no porão. Os alemães pareciam tão próximos de invadir a Inglaterra que seu

irmão Adrian chegou a providenciar doses letais de morfina para todos, já que sabiam que

se os alemães os pegassem não teriam chance. Afinal, Leonard não só era um ativista

socialista, mas também judeu.

E foi assim, neste clima, que ela começaria um texto ao qual daria uma forma

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filosófica de grande envergadura. Trata-se de suas memórias, iniciadas em abril de 1939

e interrompidas em novembro de 1940, isto é, 4 meses antes de sua morte em março de

1941. Esse texto só veio a público 35 anos depois, em 1976, depois da morte de Leonard

Woolf.

Virginia Woolf abre, então, um pequeno volume, intitulado Moments of being, onde

se encontra o texto em questão, intitulado A Sketch of the Past.- traduzível por Um

Esboço do Passado.

“Não consegui acabá-lo, nem sei se você o conhece, Gilles, mas gostaria de ler

duas passagens curtas para você e os amigos.”

E explica que sua intenção, ao escrever suas memórias, era construcionista, como

sempre, isto é, não lhe interessavam a exatidão nem a verificabilidade dos fatos que

pretendia narrar, mas demarcar zonas de possibilidades. Sua pretensão em registrar

suas memórias é de evocar certas sensações e regiões de intensidade e não de relatar

fatos históricos.

Desta maneira, Virginia anuncia sua primeira lembrança: flores vermelhas e roxas

sobre um fundo preto, o vestido de sua mãe, que a carregava no colo. Virginia-bebê,

portanto, via as flores bem de perto. Provavelmente a família se encontrava num trem ou

num ônibus e é possível também que estivessem voltando da cidadezinha de St Ives, na

Cornuália, sudoeste da Inglaterra, onde a família tinha uma casa de praia. Contudo – e aí

ela reforça a dimensão construcionista – como nada disso é certo, artisticamente é mais

conveniente imaginar que estivessem indo para St Ives, pois isso a conduz para uma

outra lembrança da infância, que também parece ser a primeira, já que se trata, segundo

ela, da lembrança mais importante de sua vida.

Ou seja, ela marca o início de suas memoirs com uma lembrança a que atribui

tanta importância, que a considera como a base, o fundamento e o sustentáculo da vida

que está por descrever.

Trata-se do amanhecer em St Ives, visto de dentro do berçário e de sua sensação

de êxtase. Ela descreve esta sensação, evocando ritmos, o som do bater das ondas e o

do pingente preso à corda da persiana se arrastando pelo chão, quando o vento a

enfunava. Para associar esta lembrança à idéia de "base da vida", Virginia evoca a

imagem de um vasilhame (bowl), cujo conteúdo a ser preenchido é sua própria vida. Se

assim for, diz ela, então a base de seu vasilhame é esta lembrança do berçário, como

segue:

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Se a vida tem que ter uma base, se ela tem que ser um vasilhame que preenchemos e preenchemos – então meu vasilhame sem dúvida se sustenta em cima desta lembrança: de estar meio adormecida, meio acordada, na cama, no berçário em St Ives. É de escutar as ondas quebrando na areia, um, dois, um, dois, e jorrando água pela praia; e depois quebrando, um, dois, um, dois, por trás da persiana amarela. É de escutar a persiana arrastar o pingente pelo chão, quando o vento a enfunava. É de estar deitada e escutar este som das ondas e ver esta luz e sentir, é quase impossível eu estar aqui; é de sentir o mais puro êxtase que eu posso imaginar. (WOOLF, 1978: 75)

Um pouco mais adiante, Virginia começa, então, a conceituar.

E elabora inicialmente dois conceitos, being e non-being (literalmente traduzíveis

por ser e do não-ser).

Conceitua o non-being (não-ser) como the cotton wool of daily life . Esta expressão

designa uma espécie de “matéria amorfa”, algo como uma indistinta massa de algodão

que circunda nossas vidas cotidianas. Compactei-a por lanugem que recobre a vida

cotidiana, já que se refere a materialidade da vida cotidiana, da qual não podemos

escapar e na qual estamos imersos a maior parte do tempo.

Seguindo o rigor empirista, ela reforça seu conceito com um exemplo e, neste

caso, descreve alguns episódios pessoais do dia anterior ao da redação, que, por ter sido

um bom dia, continha mais "being" do que "non-being”, mas que, apesar disso, já havia

submergido, em grande parte, no esquecimento.

Em seguida, ela começa a elaborar o conceito de choque, que introduz na seguinte

passagem:

Em criança, meus dias se davam, em grande parte, em meio a esta lanugem, a este não-ser, da mesma maneira que em adulta. As semanas se passavam em St Ives sem que nada me afetasse, em particular. E aí, de repente, por alguma razão desconhecida, acontecia um choque violento; alguma coisa acontecia de maneira tão violenta que eu me lembraria para o resto de minha vida.(WOOLF, 1978: 82)

E mais uma vez, fornece exemplos, aos quais não poderei me deter.

A esses choques que surgem inesperadamente de dentro do não-ser, – do

lanugem que recobre a vida cotidiana– ela dá o nome de moments of being.2. Devido a

suas implicações e os traduzi por momentos de revelação.

Afirma em seguida que foi esta capacidade de receber tais choques da vida, que a

transformou em escritora.

Ela explicita o choque, como sendo um momento de revelação de alguma coisa

real, que permanece difusa por trás das aparências, até ela conseguir colocá-la em

palavras. Ao mesmo tempo, é este ato de colocar em palavras o que torna a coisa real.

2 traduzível literalmente por momento do ser; optei por momento de revelação ou momento de vida

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Ou seja, as palavras se tornam uma ferramenta que ordena o real.

E logo a seguir, ainda na mesma passagem, ela revela sem mais timidez, modéstia

ou insegurança a essência sua filosofia da vida e da arte. Trata-se de uma filosofia

imanentista, não da vida como obra de arte, como enunciava Nietzsche, mas da arte

como obra da vida.

Por trás da matéria amorfa, da cotton wool, surge um padrão (a pattern), que pode

ser entendido como textura, mas também como uma rede que conecta partes de uma

grande obra de arte, que é a própria vida. Não há, entretanto, qualquer transcendência

nisso: tudo é pura imanência. Não existe um deus organizando nada por trás disso,

somos a vida, somos a arte, somos as palavras e ela enxerga isso claramente, quando

leva um choque.

Vejamos como ela formula esta belíssima e reveladora conception (visão de

mundo), na seguinte passagem:

A partir daí, eu chego a algo que eu poderia chamar de filosofia; seja como for, é uma idéia constante que tenho; que por trás da lanugem, se esconde um padrão. Que nós – quero dizer, todos os seres humanos – estamos conectados a isso; que o mundo todo é uma obra de arte, que somos parte de uma obra de arte. Hamlet ou um quarteto de Beethoven é a verdade sobre esta vastidão que chamamos de mundo. Mas não existe nenhum Shakespeare, nenhum Beethovem; com certeza absoluta, não existe nenhum deus; somos nós as palavras, nós somos a música, nós somos a coisa em si. E eu vejo isso, quando levo um choque. (WOOLF, 1978: 83)

No parágrafo seguinte, talvez temendo exagerar o tom de arrebatamento com que

enunciou o fundamento de seu pensamento, ela retoma a cautela empirista. Talvez o faça

para lembrar a si mesma do caráter construcionista desta sua visão particular da vida, de

que não existem explicações ou causas definitivas para nada e que, portanto, é preciso

sempre cuidado para não cair em dogmatismos. Contudo, uma vez ciente dessas

advertências – e aí ela mostra que leu os livros do pai sobre os empiristas ingleses – se

sua conception se revela útil, se oferece coerência suficiente para ajudá-la a viver bem,

então ela é boa e, portanto, merece continuar a ser desenvolvida, mesmo sendo um

artifício.

Pois, afinal, o que não é?

Infelizmente, nosso tempo se esgotou.

Não poderemos agora escutar o contraponto de Deleuze.

Mas posso adiantar, que o bate-papo continuou ainda por muito tempo ...

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DE SALVO, Louise ; LEASKA Mitchel [org]. The Letters of Vita Sackville-West to Virginia Woolf. London: Papermac , 1985

DELEUZE, Gilles. Empirisme et subjectivité. Paris: PUF, 1953 DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Carlos Roberto F. Salinas. São Paulo: Perspectiva, 1974 DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Dialogues. Paris: Flammarion, 1977 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mille plateaux. Paris: Les editions du minuit, 1980 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal,

1988 DELEUZE, Gilles. Critique et clinique. Paris : Minuit, 1990 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. Trad. Bento Prado Jr e Alberto Alonso Muñoz.

Rio de Janeiro: Editora 34, 1992 MACHADO, Roberto. [org.] Nietzsche e a polêmica sobre O Nascimento da Tragédia. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2005 MACHADO, Roberto. O Nascimento do Trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

2006 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica dos Deuses. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. Coleção

Os Pensadores, volume Os Pré-Socráticos. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1996 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Era Trágica dos Deuses. Trad. Fernando R. de Moraes Barros. São Paulo:

Editora Hedra, 2008 WOOLF, Virginia. To the Lighthouse. London: Triad-Grafton Books, 1977 (1ªedição: 1927) WOOLF, Virginia. Moments of being. Jeanne Schulkind (editor) Granada: Triad, 1978

Resumos e Abstracts

ESTILO E REPETIÇÃO: DELEUZE E ALGUMAS POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS______________________________________________

Annita Costa MALUFE Pós-doutoranda PUC-SP

RESUMO

Para Gilles Deleuze, a filosofia não poderia ser concebida separadamente a um

trabalho intenso com a potência das palavras – e, portanto, com o estilo do texto. Para

nos aproximarmos de seu conceito de estilo, e pensarmos suas implicações e trânsitos

com a poesia hoje, vale recorrer a seus próprios procedimentos composicionais, a partir

de suas ressonâncias com duas poéticas contemporâneas que lhe serviram de

inspiração: Samuel Beckett e Ghérasim Luca.

Palavras-chave: estilo; Deleuze; repetição; poesia contemporânea.

ABSTRACT

For Gilles Deleuze, the philosophy could not be separated of a hard work with the

words power – and therefore with the style of the text. Towards his concept of style, and

thinking its implications and connections with poetry today, this article analyzes some of

his compositional procedures, and their resonances with two contemporaries poetics

which had served him as inspiration: Samuel Beckett and Ghérasim Luca.

Key words: style; Deleuze; repetition; contemporary poetry.

WALTER BENJAMIN TRADUTOR DA OBRA DE PROUST_____________

Guilherme Ignácio da Silva Prof. Dr. Universidade Federal de São Paulo

RESUMO:

Sabe-se que, além de grande leitor da obra de Proust, Benjamin foi o primeiro

tradutor de parte dela para a língua alemã. O trabalho pretende mostrar em que medida

certas soluções encontradas pelo tradutor para o volume O Caminho de Guermantes

sinalizam uma compreensão particular do universo da nobreza na obra do romancista

francês.

ZUSAMMENFASSUNG:

Benjamin war nicht nur ein großer Leser und Kritiker des Werkes von Marcel

Proust, sondern auch der erste Übersetzer dieses Werkes ins Deutsch: die zwei ersten

Bänder der Recherche wurden von ihm in den 1920er Jahren übersetzt.

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Der vorliegende Artikel versucht zu zeigen, inwiefern bestimmte

Übersetzungserfindungen Benjamins als ein Zeichen gelesen werden können, dass der

Kritiker ein besonderes Verständnis der Welt von ,,Guermantes” erreicht hat.

O SABOR DE PENSAR-SENTIR COM CLARICE LISPECTOR __________

José Cláudio Dias Guimarães Mestrando em Ciência da Literatura, UFRJ

RESUMO

Muito se falou sobre uma dimensão filosófica na obra de Clarice Lispector, de uma

suposta adesão ao existencialismo e posteriormente ao pós-modernismo. Seria difícil

tratar filosofia como um aspecto isolado ou apêndice em sua obra, mas ela própria chega

a elaborar na novela de título duplo, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, a clara

alegoria do casamento entre saberes distintos, dito entre literatura e filosofia;

curiosamente o único final feliz de sua obra.

Palavras chave: Clarice Lispector, Nietzsche, Sensualismo Cósmico, Nominalismo,

metáfora e verdade

AUTO-RECONHECIMENTO EM MAN WALKS INTO A ROOM __________

Patrícia Marouvo Fagundes aluna de graduação Português-Inglês

RESUMO

Dialogando com questões como memória e identidade, encerradas no romance

Man Walks into a Room de Nicole Krauss e passíveis de reflexão e articulação com o

pensamento poético, é proposta uma interpretação hermenêutica que pense a trajetória

da personagem principal Samson Greene, diagnosticado com um tipo de amnésia que

o faria esquecer de todos os eventos ocorridos após sua infância.

LITERATURA COMO MODELO PARA A DEMOCRACIA POR VIR___ __

Tiago Guilherme PINHEIRO Mestrando USP

RESUMO

Esta comunicação tem como objetivo traçar um paralelo entre a idéia de

democracia por vir e a instituição literária, tal como sugerida por Jacques Derrida. Ao

pensar esse tema, teremos em vista a relação entre o atual estado democrático – que

vem se tornando cada vez mais uma dispositivo de governabilidade consensual – e o

espaço que a literatura (e também a cultura) vem ocupando nos últimos 20 anos.

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VIRGINIA WOOLF E GILLES DELEUZE: ALGUNS CONTRAPONT OS _

Vera Lima Ceccon Faculdade de Letras, UFRJ, Projeto Bridges

RESUMO

“Como funciona o pensamento criador ?” É esta questão que aproxima Gilles

Deleuze e Virginia Woolf, a filosofia e a literatura. Partindo do autobiográfico e do “vivido”,

Virginia Woolf se lança na busca dos afetos do “não-vivido”, numa escrita que funde o

ficcional, o poético e o filosófico. Partindo de Virginia Woolf e de outros escritores de

língua inglesa, Deleuze detecta pragmáticas singulares e intensas, que lhe possibilitam

teorizar sobre o fazer artístico.

PALAVRAS-CHAVES: literatura, filosofia, pensamento, criação

ABSTRACT

“How does creative thought work?” This question approaches not only Gilles

Deleuze and Virginia Woolf, but also philosophy and literature. Taking lived and

autobiographical data as raw material, Woolf goes on a quest for “affections of non-lived

experiences”. She creates a style which merges the fictional, the poetical and the

philosophical. Departing from Woolf and other writers in English, Deleuze detects singular

and intense practices, which empower him to theorize about the creative craft.

KEYWORDS: literature, philosophy, thought, creation

sobre os autores

Annita Costa MALUFE

Doutora em Teoria e História Literária (Unicamp). Autora de Territórios dispersos: a

poética de Ana Cristina Cesar (Ed. Annablume/ Fapesp, 2006), Como se caísse devagar

(Ed. 34, 2008) entre outros. Atualmente desenvolve seu pós-doutorado na PUC-SP, no

Núcleo de Estudos da Subjetividade sob supervisão de Peter Pál Pelbart.

e-mail: [email protected]

Guilherme Ignácio da Silva

Guilherme Ignácio da Silva é professor do curso de Letras da Universidade Federal

de São Paulo. Tem doutorado sobre a obra de Marcel Proust defendido na USP e

realizado nesta universidade e na École Normale Supérieure de Paris e um pós-doutorado

sobre as relações da obra de Proust e autores do Antigo Regime francês realizando na

Universidade Estadual de Campinas. Guilherme também é o editor da tradução em

português de “Em Busca do Tempo Perdido”, publicada pela ed. Globo.

José Cláudio Dias Guimarães

Nascido em 1961 e formado em Comunicação Social na FACHA, estudou

Publicismo e Latinoamericanismo na Universidade Livre de Berlim. Atuou em projetos

sociais, realizou documentários, foi crítico de cinema (Isto É, Senhor, Tribuna da

Imprensa), jornalista, redator e colunista em periódicos (Frankfurter Allgemeine).

Atualmente cursa mestrado em Literatura Comparada (UFRJ).

Patrícia M. Fagundes

Está cursando o oitavo período da graduação em Letras Português/Inglês pela

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Além disso, é uma das editoras do Dicionário de

Poética e Pensamento e faz parte do grupo de pesquisa NIEP (Núcleo Interdisciplinar de

Estudos de Poética), tendo como foco de sua pesquisa a literatura de Clarice Lispector.

Tiago Guilherme Pinheiro

("Autonomia e neutralização: Representações do campo literário contemporâneo

em Roberto Bolaño e J.M. Coetzee")

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Tiago Guilherme Pinheiro é bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela

PUC-PR. Realizou pesquisas no MAC-SP, além de participar do projeto Guia de Leitura

Jorge Luis Borges com Jorge Schwartz. É mestrando pelo Departamento de Teoria

Literária e Literatura Comparada da USP, orientado pelo Prof. Marcos Piason Natali. É

bolsista Fapesp.

e-mail: [email protected]

Vera Lima Ceccon

Professora Adjunto de Literaturas de Língua Inglesa na Faculdade de Letras da

UFRJ, desde 2003, e contista publicada na Austrália. Atua na graduação. Desenvolve

projetos independentes de aproximação entre Literatura e Filosofia, que privilegiam a

abordagem de Gilles Deleuze à literatura anglo-americana.

e-mail: [email protected]