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  • Universidade Federal de Pernambuco

    Centro de Filosofia e Cincias Humanas

    Programa de Ps-Graduao em Histria

    Mestrado em Histria

    PRETAS DE HONRA: TRABALHO, COTIDIANO E

    REPRESENTAES DE VENDEIRAS E CRIADAS NO

    RECIFE DO SCULO XIX (1840-1870)

    Maciel Henrique Carneiro da Silva

    Orientadora: Prof. Dr. Suzana Cavani Rosas

    DISSERTAO apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Histria da Universidade

    Federal de Pernambuco como requisito para

    obteno do grau de Mestre em Histria.

    Recife, 2004

    1

  • Maciel Henrique Carneiro da Silva

    PRETAS DE HONRA: TRABALHO, COTIDIANO E

    REPRESENTAES DE VENDEIRAS E CRIADAS NO

    RECIFE DO SCULO XIX (1840-1870)

    DISSERTAO de Mestrado em Histria pelo

    Programa de Ps-Graduao em Histria da

    Universidade Federal de Pernambuco.

    Orientadora: Prof. Dr. Suzana Cavani Rosas

    Recife, 2004

    2

  • Silva, Maciel Henrique Carneiro da

    Pretas de honra : trabalho, cotidiano e represen-taes de vendeiras e criadas no Recife do Sculo XIX (1840-1870). Recife : O Autor, 2004.

    295 folhas : il., fig., tab., quadros.

    Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Histria, 2004.

    Inclui bibliografia e anexo.

    1. Histria social Mulheres Recife Sculo XIX. 2. Trabalho cotidiano Mulheres Represen-taes sociais. 3. Escravido Recife Sculo XIX Mulheres vendeiras e domsticas. I. Ttulo.

    981.3418 CDU (2.ed.) UFPE

    981.3404 CDD (21.ed.) BC2004-324

    3

  • 4

  • Triste sina a do historiador: dar vida ao texto, recuperar a memria de uma linguagem primeira vista morta, ressuscitar o que foi perdido e, enfim, dar sentido a tudo isso, sem deixar infiltrar-se a menor suspeita de que tudo resulta dos artifcios do prprio historiador, estranho ventrloquo que pode estar apenas emprestando sua voz a um texto mudo, silenciado pelo peso do tempo, de sonoridade irrecupervel. Regina Zilberman. O Diabo e a Terra de Santa Cruz; ou: quando a histria se faz na voz de seus agentes.1

    Acho bem mais do que pedras na mo Dos que vivem calados Pendurados no tempo

    Esquecendo os momentos Na fundura do poo

    Na garganta do fosso Na voz de um cantador.2

    1 In DECCA, Edgar Salvadori de e LEMAIRE, Ria. (Org.) Pelas Margens: outros caminhos da histria e da literatura. Campinas, Porto Alegre: Ed. da Unicamp, Ed. da Universidade UFRGS, 2000, p. 122. 2 Trecho da msica A Terceira Lmina, do CD Z RAMALHO: 20 ANOS ANTOLOGIA ACSTICA. Direo Artstica: Srgio de Carvalho; Produo: Robertinho de Recife.

    5

  • Resumo:

    Esta pesquisa visou desenvolver uma histria social das criadas e vendedoras de rua a

    partir do seu cotidiano e das representaes que foram construdas sobre e por elas mesmas,

    ao longo das dcadas de 1840, 1850 e 1860. Atravs da descrio e anlise de um corpus

    documental bastante vasto, composto por fugas de escravos e avisos de jornais

    majoritariamente, pudemos observar que o universo cultural recifense impunha s escravas,

    libertas e livres pobres o ingresso em diversos tipos de arranjos de trabalho. Servindo de

    portas a fora ou de portas a dentro, nas expresses da poca, pretas e pardas em sua maioria,

    elas compartilhavam diferenas e semelhanas em suas condies. Consideradas mulheres

    sem honra, o seu engajamento nas diversas ocupaes estava submetido a srio controle de

    sua moralidade. Exigiam-se delas confiana, fidelidade, submisso, hbitos morigerados,

    alm da competncia na execuo dos servios. Em troca, elas recebiam promessas de bom

    tratamento, vesturio e, em determinados casos, algum pagamento pecunirio. Os contratos,

    entretanto, variavam, e elas prprias freqentemente intervinham na forma como queriam

    ser engajadas. Apesar das semelhanas, servir como criadas nos sobrados recifenses ou

    vender diversos gneros pelas ruas, ptios e praas so atividades singulares que terminam

    por modelar identidades distintas. Uma mulher branca pobre, dificilmente se ofereceria para

    um servio externo, preferindo usualmente servir a uma famlia honesta. Esta pesquisa

    apresenta as criadas e domsticas como mulheres que negociavam e resistiam, mesmo diante

    de relaes desiguais de poder. Esse grupo diversificado, quando possvel, forjava laos de

    solidariedade, impunha condies a seus patres e patroas, senhores/as, ou buscava, pela

    pobreza em que vivia, negociar com seus contratantes sua empregabilidade a partir de

    demonstraes dos requisitos morais to exigidos na poca.

    6

  • Abstract:

    This thesis develops a Social History study of female domestic workers and street

    sellers women from Recife on 1840, 1850 and 1860 years based on their daily life and the

    representations built about them. Working mostly on advertises of slave escapes, we observe

    the cultural universe in Recife on the XIXth as well as the imposition of values over the

    slaves and poor free women. We intend to classify the tipes of jobs allowed at these

    characters, and the social relations among them, their masters and the society.

    The representations created about these women by the slave society present them often

    as dishonoured persons, from which fidelity and submission are required. The group

    observed by this research is diversified, including slaves, black free women, mulatas and

    also white poor women. As result of this thesis, we are able to describe the social bounds

    often built among the poor working women, as well as the negociation imposed by them

    over their masters.

    7

  • Agradecimentos

    Talvez nem o melhor escritor consiga a proeza de, em poucas linhas, listar o nome

    daquelas pessoas a quem deve agradecer. Trata-se de uma genealogia sem fim, de um

    esforo interminvel de quem busca uma origem primeira para todas as coisas, e que sempre

    se decepcionar com o descobrir de uma dvida mais profunda. Entretanto, abaixo cito

    aqueles nomes que mais diretamente contriburam execuo desse trabalho. Isso de modo

    algum os responsabiliza pelos meus eventuais equvocos. Ao contrrio, todavia, com eles

    divido tudo o que de melhor se possa divisar no texto final.

    Meu orientador de iniciao cientfica, o Prof. Marcus J. M. de Carvalho, dividiu

    comigo sua experincia e amizade, tanto que o projeto de pesquisa que desembocou nessa

    dissertao teve sua leitura atenta e foi o resultado direto de seus projetos de pesquisa nos

    quais me inseri como bolsista. Nos dois anos consecutivos que com ele trabalhei, fui

    amadurecendo a sua provocao. Eu no consigo avaliar o tanto que esse trabalho tem de

    sua influncia. Em termos de amadurecimento do projeto, devo ainda o rigor crtico do Prof.

    Marc J. Hoffnagel.

    A Prof. Suzana Cavani Rosas, minha orientadora, foi paciente e atenciosa a minhas

    inquietaes, e dialogou comigo em todos os momentos, demonstrando uma sinceridade e

    um respeito difcil de encontrar nas pessoas. Suas sugestes, crticas e incentivos foram

    componentes de uma orientao prazerosa para mim. A Prof. Christine Rufino Dabat, por

    confiar em mim desde o momento em que ingressei na Graduao, brindando-me com

    responsabilidades e cobranas que eu no imaginava ser capaz de assumir.

    Nomes outros foram surgindo: Peter Beattie dialogou comigo, ofereceu textos seus, e

    terminou por influenciar muito as nossas anlises. Sua amizade propiciou ainda o contato

    com Beatriz Gallotti Mamigonian, que foi to gentil comigo como o prprio Beattie. Dela

    recebi generosamente o texto integral de sua tese de doutorado, e trocamos e-mails que

    suscitaram questionamentos e respostas, sobretudo no que concerne s condies de trabalho

    dos africanos/as livres, tema pelo qual a autora apaixonada. Sou bastante grato pelo

    carinho e ateno de ambos.

    8

  • Funcionrios responsveis e eficientes, tornaram a pesquisa de arquivo sempre

    prazerosa: Hildo Leal da Rosa, Celda Gusmo e Marlene Batista da Silva (alm de outros

    funcionrios do Arquivo Pblico Estadual de Pernambuco Jordo Emerenciano); Jos

    Gomes e Tcito Galvo (apaixonados pesquisadores do Instituto Arqueolgico, Histrico e

    Geogrfico Pernambucano); Douglas Batista de Moraes (do Laboratrio de Pesquisa e

    Ensino de Histria da UFPE). Todos deram o melhor de si, unindo competncia e gentileza

    na busca e mesmo sugesto de documentos. O desvelo no trato com a documentao, aliado

    ao conhecimento emprico, faz desses funcionrios verdadeiros heris perdoem a pieguice

    na preservao dos acervos.

    A transcrio de boa parte da documentao aqui utilizada foi resultado do eficiente

    trabalho de Anna Laura Teixeira de Frana, uma palegrafa e pesquisadora de exmia

    competncia. A sua experincia, o seu rigor e eficincia merecem rasgados elogios.

    Agradeo a minha famlia pelas vezes que fui me refugiar ao seu lado, e pela pacincia

    em esperar tanto por algum que, mesmo distante, sempre retorna cansado e alegre. Embora

    tenha ficado isolado vrias vezes, sobretudo na escrita do trabalho, jamais a esqueci. A ela

    peo desculpas pela certa dose de egosmo a que a elaborao do trabalho acabou me

    levando.

    Por fim, agradeo a Kalina Vanderlei Paiva da Silva, minha esposa. Uma das pessoas

    mais inteligentes e amveis que eu conheo. Desde quando comecei a pesquisar, tive sua

    competncia como horizonte. Tenho o privilgio de conviver com uma pessoa e uma

    profissional brilhantes. Eu jamais saberia dizer o quanto ela influenciou em minha formao.

    Por sua pacincia em suportar minhas crises, por seu inestimvel apoio intelectual

    (materializado em leituras, crticas, sugestes, incentivos), por seu carinho e preocupao

    constantes, a ela dedico esse trabalho. Dedico-o ainda a minha me, Joana DArc Carneiro

    da Silva, que fez de tudo para sustentar a famlia: foi cozinheira, lavadeira, engomadeira,

    costureira, vendedora e trabalhadora agrcola. Na maior parte do curto tempo de sua vida,

    como tantas outras mulheres, ela realizava essas atividades alternadamente, num esforo

    cotidiano e repetitivo.

    9

  • SUMRIO:

    Relao de Quadros e Ilustraes 12

    Introduo 14

    Parte I A Cidade e os Caminhantes:

    Gramticas de Espao 22 1 O Espao e os Habitantes: uma Leitura da Expanso Urbana

    do Recife no Sculo XIX 23

    1.1 O Espao Habitado 26

    1.2 A Cidade em Nmeros: Crescimento Urbano e Demogrfico 40

    2 Prticas e Gramticas de Espao: Vendeiras, Domsticas

    e Lavadeiras na Paisagem do Recife 61

    2.1 Os Caminhantes e suas Leituras do Espao 62

    2.2 Os Micro-espaos: a Casa, os Cmodos, os Gestos 89

    Parte II Mulheres, Gestos, Representaes:

    O Trabalho e a Honra 99 3 Identidade, Honra, Riqueza e Status nas Histrias de Pretas

    Vendeiras 100

    3.1 Um Pouco de Origens 100

    3.2 Uma Africana Livre Vendeira de Fatos ou a

    Penlope Africana 107

    3.3 As ltimas tentativas: o Trabalho da Penlope 120

    3.4 Uma Preta Forra de Honra 130

    Concluso 143

    10

  • 4 - Representaes e Gestos de Mulheres de Rua: Imagens

    Construdas no Cotidiano, contratos e Negociaes 148

    4.1 A Vendeira que se Precisa: Contratos, Lucros e 162

    Artigos Comercializados

    4.2 O que as Pretas Vendem 173

    Concluso 177

    5 - Os Nmeros do Trabalho: na Casa, na Rua ou um Mercado

    para Muitas Mulheres 181

    5.1 Portas a Dentro e Portas a Fora 182

    5.2 Entre Preferncias e Oferecimentos 187

    5.3 Entre a Casa e a Rua 188

    5.4 Anlise dos Dados Portas a Dentro e Portas a Fora por Dcada 192

    5.5 Escravas e No-escravas 198

    5.6 Uma anlise das Preferncias e Oferecimentos de 202

    Servios por Dcada

    6 - As Mais Boas Qualidades que se Procuram: as Mulheres

    Domsticas nos Anncios do Dirio de Pernambuco 208

    6.1 Senhores e Senhoras, Patres e Patroas: Perfil Social e Expectativas 210

    6.2 Domsticas: Histrias no Contadas 221

    6.3 Amas-de-leite e de Criao 224

    6.4 Mucamas 240

    6.5 Cozinheiras 250

    6.6 Lavadeiras, Engomadeiras e Costureiras 260

    Consideraes Finais 275

    Anexos 280

    Bibliografia 288

    Fontes 297

    11

  • RELAO DE QUADROS E ILUSTRAES:

    Quadro 1: Freguesias do Municpio do Recife (1855) 30

    Tabela 1: Nmero de Casas e Fogos da Cidade do Recife,

    Freguesia da Vrzea, e Freguesia de Nossa Senhora da Sade

    do Poo da Panela (1828) 33

    Figura 1: Caes da Rua do Trapiche 48

    Figura 2: Bolsa de Pernambuco 49

    Tabela 2: Populao Livre e Escrava, Por Sexo,

    da Cidade do Recife, Freguesia da Vrzea,

    e Freguesia de Nossa Senhora da Sade

    do Poo da Panela (1828) 55

    Quadro 2: Estatstica da Populao Livre e Escrava

    do Recife por Freguesias, 1873 58

    Figura 3: A Venda no Recife. 68

    Figura 5: Praa da Boa Vista 79

    Figura 6: Vista do Pateo da Boa Vista 85

    Figura 7: Vista do Pateo do Carmo/Casa de Banhos 86

    Quadro 3: Lista de Alguns Gneros e Artigos Comercializados

    por Vendeiras na Cidade do Recife no Sc. XIX 175

    Tabela 3: Anncios de Compra e Aluguel de Escravas,

    Oferecimentos e Solicitao de servios conforme o

    local de exerccio da atividade: Recife (1840-1849) 195

    Tabela 4: Anncios de Compra e Aluguel de Escravas,

    Oferecimentos e Solicitao de servios conforme o

    local de exerccio da atividade: Recife (1850-1859) 196

    Tabela 5: Anncios de Compra e Aluguel de Escravas,

    Oferecimentos e Solicitao de servios conforme o

    local de exerccio da atividade: Recife (1860-1869) 197

    Tabela 6: Anncios de Compra e Aluguel de Escravas,

    Oferecimentos e Solicitao de servios segundo a condio

    12

  • jurdica das Preferncias e Ofertas: Recife (1840-1849) 205

    Tabela 7: Anncios de Compra e Aluguel de Escravas,

    Oferecimentos e Solicitao de servios segundo a condio

    jurdica das Preferncias e Ofertas: Recife (1850-1859) 206

    Tabela 8: Anncios de Compra e Aluguel de Escravas,

    Oferecimentos e Solicitao de servios segundo a condio

    jurdica das Preferncias e Ofertas: Recife (1860-1869) 207

    Figura 8: Ama-de-leite escrava (Mnica) e menino. 238

    Figura 9:Ama-de-leite escrava (Mnica, j em

    idade avanada) e Adelaide de Miranda Leal. 239

    13

  • INTRODUO

    Mulheres enclausuradas, como chegar at vocs?

    (PERROT, Os Excludos da Histria, p. 186)

    Prefiro fazer uma introduo dessa pesquisa relatando as principais reflexes que a

    nortearam, um relato que mostre o percurso, s vezes enviesado, da construo do objeto, e

    as inquietaes e solues que foram sendo encontradas. Uma introduo que no

    transmita a falsa impresso de que o trabalho como um todo esteve sempre bem arrumado

    na cabea, e pronto para ser transposto para o papel. Assim, o objetivo dessa introduo

    bastante sincero: familiarizar o/a leitor/a com o texto final a partir do itinerrio da pesquisa e

    das principais questes que foram tomando forma.

    Inicialmente, a proposta era estudar o mercado de trabalho feminino no Recife do

    sculo XIX. Desse modo, efetivar o mapeamento dos principais ofcios realizados pelas

    mulheres, e que eram anunciados pelos jornais pernambucanos, era o passo essencial. A

    pretenso era realizar uma histria social do cotidiano e da insero das mulheres no

    mercado de trabalho. Claro que essa idia de mercado j era inquietante (soando at

    mesmo anacrnica), dado que a sociedade brasileira no sculo XIX marcada pelo trabalho

    compulsrio, e por outros tipos de relao de trabalho no monetarizadas. Alm disso,

    minhas fontes tendiam, pela benfica influncia de meu orientador de iniciao cientfica, a

    se reportarem mais s mulheres escravizadas. E no s as fontes, tambm as anlises, ainda

    preliminares, tendiam a apresentar dificuldades diante das mulheres libertas e livres pobres.

    No entanto, a idia de mercado no foi alijada das reflexes, e muito menos as mulheres

    escravizadas. O desafio, agora o compreendo, era descobrir como tratar das demais

    mulheres trabalhadoras (libertas e livres pobres), sem esquecer a escravido como o

    contexto intersticial das relaes sociais, e como pensar a noo de mercado de trabalho sem

    cometer anacronismos.

    Se a proposta inicial foi cumprida, complicado dizer, e talvez a melhor resposta seja

    sim e no. O fato que ela sofreu, ao longo do processo, ajustes e superposies a partir

    da descoberta de novas fontes, da leitura bibliogrfica e das conversas informais com

    pessoas muito mais amadurecidas com o fazer do historiador, mas isso sem perder de vista o

    14

  • horizonte mais geral vislumbrado a princpio, e que tinha a ver com a percepo de que era

    possvel construir uma histria social das mulheres domsticas e vendeiras de rua a partir de

    seu cotidiano, das representaes e das relaes sociais.3 O perodo, entretanto, tornou-se

    mais modesto, e restringimos o enfoque s dcadas situadas entre 1840 e 1870. A explicao

    para essa definio do marco cronolgico est assentada em dois eixos. O primeiro mais

    factual, sendo que 1840 assinala a administrao emblemtica do Baro da Boa Vista (1837-

    44), que ps o Recife em marcha para o progresso, para os melhoramentos urbanos, entre

    outras transformaes, e 1870 assinala o momento imediato que antecede a reforma social

    da Lei do Ventre Livre, que ter alguma repercusso no contexto das relaes de trabalho na

    escravido urbana; o segundo mais processual, e est ligado idia de que a escravido

    urbana subsiste ainda com certo vigor entre 1840 e 1870, mas a partir dessa dcada comea

    a entrar em lento declnio. Avanar para os anos 1870, ao nosso ver, poderia propiciar um

    quadro mais diferenciado em relao ao perodo anterior em termos de representaes e

    prticas relativas ao cotidiano das mulheres escravas domsticas e vendeiras em geral.

    Desde o incio, minha preocupao era como delimitar melhor o objeto para conseguir

    ampliar os objetivos mais centrais da pesquisa. Foi ficando cada vez mais claro que as

    criadas e vendeiras fossem escravas, livres pobres, forras, ou outra condio jurdica

    iriam povoar minhas reflexes, apesar de no ter encontrado certas fontes usualmente mais

    trabalhadas em estudos anteriores, como livros de registro de licenas para ganhadores/as

    (que seriam fundamentais para o estudo das negras ganhadeiras cuja Cmara Municipal

    tivesse concedido permisso para exercer o ofcio) e maos de populao (que

    possibilitariam a descrio e anlise da composio dos domiclios eventualmente chefiados

    por mulheres pobres).4 Registros que perseguimos em vo. Outras marcas, todavia, foram

    3 Uma pequena lista das pessoas que mais contriburam no tanto para resolver meus problemas, mas para me inquietar com questes inteligentes e melhor elaboradas: Marcus J. M. de Carvalho (meu orientador enquanto bolsista do PIBIC), Kalina Vanderlei Silva, Peter M. Beattie, Beatriz Gallotti Mamigonian, Marc Jay Hoffnagel e Suzana Cavani Rosas (minha orientadora no Mestrado). 4 A obra clssica de Maria Odila da Silva Dias que inspirou uma srie de historiadores ligados histria social das mulheres, utilizou-se fartamente de maos de populao. DIAS, Maria Odila. Quotidiano e poder em So Paulo no sculo XIX Ana Gertrudes de Jesus. So Paulo, Brasiliense, 1984. Sobre mulheres chefes de famlia, ver SAMARA, Eni de Mesquita. Mulheres chefes de domiclio: uma anlise comparativa no Brasil do sculo XIX. pp. 49-61. Histria, vol. 12, 1993, UNESP. Sobre as mulheres ganhadeiras e o uso de livros de licena das Cmaras municipais, ver SOARES, Luiz Carlos. Os escravos de Ganho no Rio de Janeiro do Sculo XIX. Pp. 107-142. Revista Brasileiro de Histria - So Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol. 8, n. 16, maro de 1988/agosto de 1988. Nmero especial organizado por Slvia Hunold Lara; e ainda SILVA, Marilene

    15

  • sendo encontradas ou melhor interpretadas, de modo que a pesquisa tomou um curso

    prprio. As novas fontes exploradas me permitiram fazer um quadro de perguntas diferente

    das que eram feitas para os maos de populao e os registros de licenas de ganhadeiras.

    Mas isso interessante, pois os resultados acabam se tornando mais ou menos inusitados.

    Nos primeiros passos da pesquisa emprica, a documentao mais fartamente

    consultada compunha-se de centenas de anncios de jornais, localizados nas sees Avisos

    Diversos e Escravos Fugidos do Dirio de Pernambuco, entre 1840 e 1870. No princpio,

    esses anncios suscitavam apenas uma vaga impresso de quantidade, j que eram muitos e

    diziam respeito a diversos ofcios: vendeiras alugadas ou vendendo para seus prprios

    senhores/as, cozinheiras, engomadeiras, lavadeiras, costureiras, mucamas e amas-de-leite

    em profuso. A preocupao a seguir era como estabelecer uma abordagem que aproveitasse

    essa documentao em termos quantitativos e qualitativos. A leitura de autores como Llia

    Moritz Schwarcz, Gilberto Freyre, Marcus J. M. de Carvalho foi possibilitando a

    interpretao dos anncios de jornais que, primeira vista, pareciam um tanto montonos e

    repetitivos.5 Os anncios, em suas poucas linhas, foram ganhando uma dimenso que eu no

    tinha visto. A leitura atenta demonstrou que eles estavam eivados de representaes sociais,

    de valores culturais presentes na sociedade escravocrata recifense. Fomos percebendo que os

    chamados bons costumes e a honra, enquanto atributos morais, povoavam a linguagem dos

    senhores/as de escravas, dos/as contratantes de domsticas e vendeiras, e a delas prprias.

    Mulheres que demonstravam possuir grandes habilidades em seus ofcios especficos tinham

    ainda de tranqilizar seu provvel contratante a partir de uma linguagem que dirimisse

    qualquer dvida que pairasse sobre sua conduta.

    A idia de representao, todavia, precisava ser melhor compreendida. Roger Chartier

    nos fez perceber que freqentemente h um embate de representaes, com cada grupo

    tentando impor ao outro os seus valores. Os Avisos Diversos, dessa forma, constituam o

    palco para as negociaes e lutas de convencimento, onde termos como bons costumes e

    honra marcavam identidades e expectativas dos inmeros atores sociais envolvidos: pretas e Rosa Nogueira da. Negro na rua: a nova face da escravido. So Paulo: HUCITEC, Braslia: CNPq, 1998. Entre outros. 5 Cf. SCHWARZ, Llia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidados em So Paulo no final do sculo XIX. So Paulo: Companhia das Letras, 1987. FREYRE, Gilberto. O escravo nos anncios de jornais brasileiros do sculo XIX. 2 ed. aum. So Paulo: Ed. Nacional; Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1979. CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. Recife: Ed. Universitria da UFPE, 1998.

    16

  • pardas de condio forra, livre e escrava, mulheres brancas, senhores/as de escravas e

    locatrios/as. Seguindo Chartier, tivemos como referncias fundamentais o contexto

    histrico e o lugar social do discurso produzido na imprensa diria. Essas referncias

    auxiliam ainda compreenso dos significados mltiplos que os atores podem construir a

    partir dessas representaes. Do mesmo modo, no pensamos em representaes e prticas

    como fenmenos estanques e impenetrveis, mas intrinsecamente relacionados.6

    Acreditamos que as representaes construdas nos jornais eram um ponto de partida

    essencial do tipo de contrato que poderia ou no vir a existir entre as partes negociantes.

    Domsticas e vendedoras de quitandas e tabuleiro, no Recife do sculo XIX, podiam

    enfim ter suas histrias reconstrudas, desde que delimitssemos melhor os aspectos de sua

    cotidianidade, e adentrssemos o universo cultural que construa as representaes sobre a

    trabalhadora ideal. Para isso, a leitura minuciosa dos Avisos Diversos do Dirio de

    Pernambuco documentao com a qual lidamos desde os primeiro momentos, e que foi

    exaustivamente relida foi essencial.7

    A definio de cotidiano aparecia como uma questo bastante problemtica, e que

    precisava de alguma caracterizao que permitisse uma utilizao vivel na pesquisa. A

    idia de Michel de Certeau de que o cotidiano se compe de inmeras prticas ordinrias

    que so inventivas e mltiplas, no seguindo necessariamente a padres impostos por

    autoridades polticas ou institucionais, tornou a nossa viso menos mope para as inmeras

    tticas e micro-resistncias que se desenrolam na cotidianidade. Essa definio j

    contemplava muitos dos anseios, entretanto Agnes Heller e Sidney Chalhoub contriburam

    para moldar uma definio mais abrangente que veio a nortear a anlise dos dados. Heller

    prope que o homem j nasce inserido na cotidianidade, ou seja, ningum est situado fora

    do cotidiano. Entretanto, essa cotidianidade heterognea e hierrquica, e o pesquisador

    precisa reconhecer quais elementos da cotidianidade vai abordar. Embora a autora

    6 Cf. CHARTIER, Roger. A histria cultural entre prticas e representaes. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, Lisboa: Difel, 1990, pp. 16-28. Para o autor, as representaes so construes discursivas de uma dada realidade histrica e particular, ou do que se imagina que essa realidade possa vir a ser. O autor busca um conceito que seja menos universalizante, propondo que os indivduos representam e traduzem o mundo a partir da forma como so socializados, no sentido de perpetuar hierarquias e forjar identidades. As representaes, para Chartier, no so construes abstratas, desvinculadas do processo por meio do qual as pessoas e grupos sociais as lem e constroem os significados. 7 Muitas outras fontes tiveram de ser sobrepostas aos Avisos Diversos, como imagens litografadas, fotografias, textos literrios, entre outros, para uma melhor apreenso das diversas representaes que podiam ser construdas a partir de diferentes formas de linguagem.

    17

  • classifique de forma um tanto rgida o que denominou de partes orgnicas da vida

    cotidiana, compreendemos que nosso objeto insere-se, at certo ponto, na parte que ela

    nomeou de organizao do trabalho e da vida privada. Esse enquadramento, todavia, no

    explica o desenrolar da nossa pesquisa como um todo. Chalhoub, por sua vez, com seu texto

    inspirador de Vises da Liberdade, esmia inmeros aspectos culturais dos grupos de cor

    do Rio de Janeiro dos ltimos anos da escravido atravs da noo de politizao do

    cotidiano. Havamos chegado, enfim, a uma definio operacional do cotidiano como o

    lugar onde inmeras prticas inventivas e heterogneas adquirem, por vezes, significados

    polticos bastante sutis, e por isso mesmo de difcil percepo. Ainda complementando o

    conceito de cotidiano aqui empregado, Heller nos ensina que A vida cotidiana est

    carregada de alternativas, de escolhas.8 Na descrio e anlise dos inmeros fragmentos

    de vidas individuais que aqui fizemos, ficaram patentes que os atores precisaram, a todo o

    momento, fazer escolhas, tomar caminhos, confiar, desconfiar, ser sinceros, simular

    sinceridade, acomodar-se, resistir, entre tantas outras escolhas que a vida cotidiana exige.

    A descoberta de outras fontes, como no podia ser de outro modo, gerou ainda mais

    problemas, ao mesmo tempo em que abriu novos horizontes de anlise. Alm dos Avisos

    Diversos, apareceram uma ao judicial movida por uma vendeira africana livre para se

    emancipar do contrato que praticamente a tornava escrava de uma mulher viva, e um

    processo-crime no qual uma vendeira forra buscava reaver bens que lhe teriam sido furtados.

    Em ambas as aes, foram construdas representaes interessantssimas em que a noo de

    honra e de boa conduta aflorava no texto. Mais uma vez, como nos Avisos Diversos, era

    possvel compreender como as relaes sociais (includas as relaes de trabalho) estavam

    vincadas de alto a baixo por perspectivas culturais acerca dos valores dominantes relativos

    ao que deve ser uma mulher morigerada, honrada, fiel. O mesmo embate de representaes

    que se dava nas pginas do Dirio de Pernambuco se dava tambm na fala dos defensores e

    opositores das duas negras vendeiras. Elas seriam honradas, virtuosas, fiis, morigeradas?

    A percepo de que a honra podia ser entendida como um ndice de todo um quadro

    mais amplo de valores culturais que informavam a relao entre os indivduos no sculo

    8 Cf. CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano. 1. Artes de fazer. 7 ed. Petrpolis: Vozes, 2002. Ver sobretudo o texto de Luce Giard intitulado Histrias de uma pesquisa, pp. 9-32; HELLER, Agnes. O cotidiano e a histria. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. Ver sobretudo o captulo Estrutura da vida cotidiana, pp. 17-41; e CHALHOUB, Sidney. Vises da liberdade: uma histria das ltimas dcadas da escravido na corte. 1 reimpresso. So Paulo: Companhia das Letras, 1998.

    18

  • XIX, levou-nos a compreend-la por um prisma diferente do que normalmente a

    historiografia a compreendia. Ao invs de pensarmos a honra como restrita aos aspectos

    mais diretamente ligados ao comportamento sexual honesto ou desonesto, pensamos a honra

    como um componente portador de inmeros e sutis significados. Negras e pardas no tinham

    a mesma percepo de honra das mulheres brancas senhoriais, mas podiam, em

    determinados contextos, reivindicar para si alguns dos significados inerentes ao conceito, e

    assim se mostrarem portadoras de estima pblica ou capazes de inspirarem confiana no

    exerccio de alguma atividade nos lares dos brancos. Sueann Caulfield demonstrou que,

    fosse em relao a casais, fosse em relao sociedade como um todo, a honra era

    freqentemente usada para consolidar relaes hierrquicas baseadas no somente nas

    relaes de gnero, como tambm nas de raa e de classe.9 Todos os grupos sociais,

    portanto, tinham na honra sexual o elemento em torno do qual se conflitavam ou

    negociavam, forjando identidades e hierarquias, aproximando-se ou afastando-se.

    Concordamos com a autora quando ela percebe que a honra apresentava componentes

    sobrepostos de gnero, classe e raa.

    A noo simplificadora de que as mulheres pretas e pardas no tm honra, e de que

    as brancas so honradas precisa ser repensada atravs das noes de hibridismo cultural.

    Homi Bhabha abre uma fenda importante para a superao do que chama de polaridades

    primordiais que transmitem a sensao de fixidez nas identidades. Em sua concepo, h

    interstcios que precisam ser considerados. Levando adiante a reflexo de Bhabha, devemos

    nos acautelar, e assim perceber que o binmio honra/desonra no pode ser encarado como

    portador de identidades fixas, mas como passvel de deslocamentos e desvios no contexto de

    uma cultura que hbrida. Isso no significa desconsiderar a construo efetiva de discursos

    e representaes antitticas por parte da elite masculina (e mesmo feminina) no sentido de

    evidenciar sua distino, sua diferena bsica em relao ao conjunto heterogneo de

    9 CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nao no Rio de Janeiro (1918-1940). Trad.: Elizabeth de Avelar Solano Martins. Campinas, SP: Editora da Unicamp/Centro de Pesquisa em Histria Social da Cultura, 2000, p. 26. Sobre a importncia de valores culturais como a honra para os grupos pobres, Cf. BEATTIE, Peter M. Measures of manhood: Honor, Enlisted Army Service, and Slaverys Decline in Brazil, 1850-90, pp. 232-255. In Changing Man and Masculinities in Latin America. Edited by Matthew C. Gutmann. Duke University Press, Durham and London, 2003. Cf ainda, ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colnia: Condio feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: Jos Olympio; Braslia: Edunb, 1993.

    19

  • pretos e pretas, pardos e pardas do sculo XIX. Significa, antes de qualquer coisa, perceber a

    complexidade inerente s identidades.10

    O/a leitor/a j deve ter suspeitado que a proposta inicial de construir uma histria

    social das mulheres domsticas e vendeiras recifenses no perodo de 1840 a 1870 acabou

    tomando uma face voltada para a histria cultural e das representaes. Deve ter percebido

    ainda que no tomamos a categoria de anlise gnero como o eixo central que permeia o

    trabalho. No se trata de desmerecer o potencial das discusses em torno da aplicabilidade

    da categoria, trata-se sim de reconhecer, como Gianna Pomata e Mary Del Priore, a

    necessidade de construir uma histria social das mulheres que traga luz as suas

    experincias, uma histria que ultrapasse a pobreza dos fatos sobre sus vidas.11 No caso

    das vendeiras e criadas do Recife do sculo XIX, essa pobreza ainda merece destaque.

    Tambm se deve reconhecer que a carncia de um trabalho voltado para a economia urbana

    da cidade no mesmo perodo dificulta o historiador social a situar com mais segurana as

    condies materiais de existncia dos atores. De qualquer modo, como sustenta

    apaixonadamente Louise A. Tilly, possvel escrever uma histria social das mulheres. Em

    suas palavras: Uma histria que coloque problemas, descreva e analise os dados

    disponveis, e explique. (...) que trate das grandes questes histricas e contribua para

    resolver problemas j inseridos na agenda da histria.12

    Creio que a tessitura do texto revisitou inmeras questes antigas e suscitou outras,

    mas sem a pretenso de oferecer uma resposta definitiva para questes velhas e novas. A

    trama foi dividida em duas partes, a primeira contendo dois captulos relacionados entre si, e

    10 Para uma compreenso do que acabamos de expor, ver o texto denso e frtil de Homi K. Bhabha O local da cultura. 2 reimpresso. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003, sobretudo a sua introduo Locais da Cultura, pp. 19-42, que discute e complexifica as fronteiras da cultura e as identidades. Sua leitura nos fez perguntar: qual o lugar da honra feminina nas sociedades patriarcais? Essa honra tambm no estaria em um entre-lugar de difcil fronteira? Essa reflexo reforou a nossa j emergente viso de que as mulheres pretas e pardas tinham (ou mostravam ter) honra em alguns sentidos, e outras tantas virtudes. Para idia de que a sociedade brasileira culturalmente hbrida, ver PAIVA, Eduardo Frana. Escravido e universo cultural na colnia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 11 Cf. PRIORE, Mary Del. Histria das Mulheres: as vozes do silncio. Pp. 217-235. In FREITAS, Marcos Cezar. (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. So Paulo: Contexto, 1998, p. 233. Acreditamos, como Eni de Mesquita Samara, Rachel Soihet e Maria Izilda S. de Matos, que o caminho para a aplicabilidade da categoria de gnero est na sua associao s categorias de classe e raa, no sentido de se vislumbrar no apenas as diferenas entre os campos masculino e feminino, mas a diferena na diferena. Cf. das autoras, Gnero em debate: trajetria e perspectivas na historiografia contempornea. So Paulo: EDUC, 1997. 12 Cf. TILLY, Louise A. Gnero, histria das mulheres e histria social. p. 52. Cadernos Pagu (3), 1994, pp. 29-62.Campinas, SP, Publicao do PAGU Ncleo de Estudos de Gnero/UNICAMP. Tema do caderno: Desacordos, desamores e diferenas.

    20

  • que tiveram por motivao bsica relacionar as mudanas do espao urbano recifense s

    prticas cotidianas das domsticas e vendeiras. A principal questo que permeia esses dois

    captulos refere-se forma como esses atores significavam os espaos atravs de suas

    prprias leituras e dos percursos que trilhavam. Suas leituras e gestos, baseados em

    costumes e hbitos arraigados, no raro entravam em conflito com a viso modernizadora

    dos espaos pblicos e privados. Aps construir o cenrio de portas adentro e de portas a

    fora onde domsticas e vendedoras teciam seus passos, suas tticas de sobrevivncia e

    resistncia, seguimos pela segunda parte da pesquisa, que se subdivide em quatro captulos

    dedicados s relaes de trabalho, ao cotidiano e as representaes que modelavam

    condutas, indicavam conflitos e acomodaes. Subjacente aos captulos dessa ltima parte,

    estava a concepo de que as identidades forjadas por vendeiras e domsticas podiam ou no

    coincidir com os anseios dos grupos mdios e de elite que as empregavam ou as possuam

    enquanto escravizadas. Negociaes, expectativas, contratos, relaes pessoais instveis,

    resistncias sub-reptcias emergiam em um cotidiano complexo vincado por expectativas

    mtuas baseadas em valores culturais constituintes da sociedade patriarcal e escravista do

    Recife do sculo XIX.

    Essa introduo ao leitor/a, certamente no tocou em todos os pontos abordados no

    texto que segue, e pode at t-lo inquietado mais do que o necessrio. De qualquer modo,

    alguma explicao foi dada, e o leitor agora pode partir, se o desejar, para a leitura mais

    atenta dos captulos do trabalho. Antes de terminar, esclareo o ttulo. Pretas de Honra

    representa uma provocao do autor, que acredita que os grupos populares tambm tm a

    sua honra, e que esta precisa ser reabilitada pela historiografia. E Pretas deve ser entendido

    a partir de um sentido metafrico: no indica que a narrativa tem por personagens apenas

    mulheres escravas (normalmente associadas cor preta), e sim que libertas e livres pobres

    de qualquer cor realizavam servios comumente atribudos s pretas escravas. Seja como

    for, eram mesmo muitas as pretas que vendiam pelas ruas e/ou serviam como domsticas

    nos lares recifenses.

    21

  • I PARTE

    A CIDADE E OS CAMINHANTES: GRAMTICAS

    DE ESPAO

    22

  • 1 O ESPAO E OS HABITANTES: UMA LEITURA DA

    EXPANSO URBANA DO RECIFE NO SCULO XIX

    "Neste conjunto, eu gostaria de detectar prticas estranhas ao espao "geomtrico" ou

    "geogrfico" das construes visuais, panpticas ou tericas. Essas prticas do espao

    remetem a uma forma especfica de "operaes" ("maneiras de fazer"), a "uma outra

    espacialidade" (...) (uma experincia "antropolgica", potica e mtica do espao) e a uma

    mobilidade opaca e cega da cidade habitada. Uma cidade transumante, ou metafrica,

    insinua-se assim no texto claro da cidade planejada e visvel."

    CERTEAU. (2002, p. 172)

    O Recife do sculo XIX, como toda cidade, algo mais amplo do que as linhas que a

    formam. Ela se compe de inmeros espaos significantes onde atores interagem entre si,

    vivendo experincias diversas, realizando operaes (maneiras de fazer) e fazendo a

    cidade existir enquanto aglomerao humana. Neste sentido, o propsito desse captulo

    construir uma leitura espao-social, tentando apreender o que os espaos da cidade

    incluindo aqui os arrabaldes em processo de urbanizao representavam na vida de

    vendeiras, domsticas e lavadeiras.13

    sabido que o Recife, no perodo desse estudo, passa por um processo de

    modernizao sobretudo de suas estruturas fsicas. A Cmara Municipal, nesse processo,

    aparece como um rgo gestor dos cuidados com a organizao espacial e com a moral

    pblica. Nem sempre com recursos para arcar com as despesas que as obras pblicas

    exigiam, ela se valia dos constantes pedidos de quotas oramentrias Assemblia

    Legislativa Provincial. Mas no que se refere moral pblica, aos costumes da populao em

    geral, a Cmara tinha certa autonomia para propor posturas que incidiam diretamente no

    cotidiano dos habitantes, criando novos espaos de sociabilidade, cerceando o comrcio das

    negras de tabuleiro em determinados locais, exigindo hbitos de higiene dentro e fora das 13 O objetivo desse captulo se complementa a partir da leitura do segundo, no qual abordamos mais detidamente as maneiras de fazer, as tticas de resistncia que a populao subalterna da cidade adotava para sobreviver em um contexto espacial em transformao.

    23

  • habitaes, e uma srie de normas nem sempre cumpridas.14 Inmeros ofcios da Cmara

    dirigidos aos presidentes da provncia de Pernambuco atestam as dificuldades que seus

    fiscais enfrentavam em coibir hbitos arraigados na populao, e proibidos por posturas da

    prpria Cmara.15

    Desse modo, o olhar vigilante das autoridades locais quanto organizao espacial e

    aos usos dos espaos deve ser contraposto s necessidades e resistncias prprias dos

    habitantes, em especial daqueles que se utilizam das ruas como meio de sobrevivncia, ou

    que trabalham nos insalubres sobrados, como as mulheres escravas, forras e livres pobres

    aqui focalizadas. Ao fazer isso, percebe-se que, para alm da disciplina imposta pelos

    procedimentos institucionais, existe uma malha complexa de outros procedimentos, o que

    chamamos aqui de antidisciplina, sendo que esta entendida como o conjunto de tticas de

    resistncia que se opem s estratgias do poder formal. Se os procedimentos ditos

    cientficos engendram um ritmo de mudanas que se auto-proclamam de modernidade

    procedimentos que se fundamentam em estratgias de controle, disciplina e dominao ,

    preciso visualizar a outra face dessas mudanas: as resistncias que as populaes

    assentadas no costume e na tradio imprimiam s normas disciplinares. a essa resistncia

    que designamos de antidisciplina, um conceito que inclui um vasto leque de tticas

    cotidianas que caminham em sentido oposto ao da modernizao.16

    Essas noes de ttica e estratgia permitem avaliarmos com mais clareza o alcance

    das posturas municipais que se referem aos usos dos espaos da cidade; permitem ainda e

    14 As Posturas Municipais podem ser definidas como um conjunto amplo de leis municipais que incidiam sobre diversos temas relativos administrao do municpio e sua organizao. Tais posturas, no Brasil, tm como marco regulador a Lei de 1 de Outubro de 1828, apresentando uma estrutura mais ou menos homognea. Em geral, dividiam-se em medidas de Polcia Urbana e Polcia Rural. Enquanto a Polcia Rural continha regulamentos destinados s atividades rurais e preservao de mananciais e outros bens, a Polcia Urbana contemplava um conjunto amplo de temas, como a estrutura das vias pblicas e edificaes, a higiene e a segurana pblicas, a economia urbana e os costumes. Cf. SOUZA, Maria ngela de Almeida. Posturas do Recife Imperial. Recife: Tese de Doutorado em Histria, UFPE, 2002, pp. 157-169. 15 Cmaras Municipais, 1855, vol. 35, fl. 73-74v. (Citado adiante CM, seguido do nmero do volume e folha). Arquivo Pblico Estadual e Pernambuco Jordo Emerenciano (APEJE). 16 Para os conceitos de ttica e estratgia utilizados aqui, Cf. CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano: 1. Artes de Fazer. 7. ed., Petrpolis, RJ: Vozes, 2002, pp. 116-117. O termo antidisciplina uma recproca do prprio Certeau noo de disciplina privilegiada por Michel Foucault. Em termos de fundamentao terica, o ltimo privilegia os procedimentos, instrumentos e estratgias que forjaram a sociedade disciplinar moderna. Certeau, por sua vez, afirma que tais procedimentos no eram os nicos disponveis, havendo uma infinidade de prticas e saberes cotidianos heterogneos que foram objeto de combate e controle pelos procedimentos panpticos; noo de estratgia (que lembra o poder instituinte), Certeau ope as tticas infinitas, inventivas e sub-reptcias do cotidiano. Seguimos Certeau ainda em sua perspectiva de buscar as Falas dos passos perdidos, e as prticas de espao inscritas na cidade habitada.

    24

  • esse um objetivo importante desse e do segundo captulo construir uma leitura da

    expanso urbana do Recife oitocentista a partir da perspectiva dos diferentes personagens da

    poca. Uma leitura difcil, uma vez que os atores institucionais, a Cmara especialmente,

    constroem a maior parte dos discursos relativos expanso urbana, modernizao, ao

    chamado progresso, forjando uma linguagem que se deve interpretar com cuidado, para

    evitarmos cair no entusiasmo da retrica elitista da poca, que superestima os smbolos do

    progresso e da civilizao, e assim tendem a minorar as prprias contradies do processo

    modernizador. Esse equvoco ocorre, particularmente, quando se relega a segundo plano o

    repertrio de interpretaes da cidade.17

    Nossa leitura da expanso urbana do Recife, como se ver, privilegia os arrabaldes e

    subrbios, povoaes prximas aos bairros centrais do Recife, Santo Antnio e Boa Vista, e

    que com elas interagiam. Outro ponto fundamental da leitura que fazemos diz respeito aos

    passos dos que caminham pela cidade. No h revivescncia possvel, alm de ecos distantes

    e pistas pouco ntidas no solo; e tais passos esto perdidos. O que se pode fazer persegui-

    los tateando pelas fontes, na esperana de construir caminhos fragmentrios. Vendeiras,

    criadas, escravas ou livres (at certos limites) que saam das casas para o mundo da rua,

    elas mesmas construram leituras do espao; ao caminhar elegeram os caminhos que

    julgaram melhores ou menos perigosos, criaram laos de amizade e parentesco, fugiram da

    vigilncia panptica das autoridades, encontraram pessoas que talvez no esperassem

    encontrar, preencheram os espaos de significados que muitas vezes no coincidiam com

    aqueles previstos pelos que projetaram os lugares.

    Enfim, o interesse dessa parte da pesquisa ultrapassar os elementos visveis da

    paisagem, a sua geometria e geografia, e assim adentrar pelas veredas daquilo que Certeau

    designou, muito corretamente, como sendo uma outra espacialidade.18 Esse termo revela

    muito de nossas intenes, e indica o carter social que inspira o estudo aqui desenvolvido.

    1717 Pensamos, como Edvnia Torre Aguiar Gomes, que A cidade contempornea (...), alegoricamente, um texto difcil. Mas pensamos ainda que a leitura retrospectiva de uma cidade tambm apresenta inmeras dificuldades, particularmente no que se relaciona ao uso de categorias cunhadas a posteriore. A primeira parte desse estudo adapta para o contexto de uma cidade escravista do sculo XIX os conceitos de ttica e de estratgia. Cf. GOMES, Edvnia Torres Aguiar. Agendando velhos reencontros: relaes entre os humanos e a natureza nos espaos socialmente produzidos. Pp. 231-251. In SPOSITO, Maria Encarnao Beltro. (org.) Urbanizao e cidades: perspectivas geogrficas. Presidente Prudente: UNESP/FCT, 2001. Cf. ainda, o texto de VASCONCELOS, Pedro de Almeida contido na obra citada: Categorias e conceitos para compreenso da cidade brasileira do perodo escravista. Pp. 13-34. 18 CERTEAU, Michel de. Op. Cit., p. 172.

    25

  • 1.1 O Espao habitado

    Falamos, com uma preciso que se deve desconfiar, da cidade do Recife. Mas o que

    era essa cidade no perodo abarcado por esse estudo algo ainda a se definir, ao menos

    territorialmente. Ktia Mattoso, em texto j clssico, j nos alertara para as dificuldades em

    perceber cidade e campo como espaos plenamente definidos no perodo escravocrata:

    (...) nos sculos XVI, XVII, XVIII e XIX, cidade e campo so, no Brasil,

    estreitamente inter-relacionados. No espao, seus limites so imprecisos,

    economicamente vivem em estreita simbiose. Seus habitantes no hesitam em

    deslocar-se de um para outro num contnuo vaivm de cavalos, mulas, palanquins

    e pedestres. As cidades so pomares, hortas, campos urbanizados.19

    O Recife do sculo XIX no constitui uma exceo. Dificilmente podem-se definir os

    limites da zona urbana propriamente dita dos arrabaldes que a circundam, com suas

    povoaes nascentes, seus loteamentos ainda recentes. Apenas os bairros do Recife por

    sua localizao quase insular e sua ocupao antiga e de Santo Antnio, uma ilha,

    mantm algum isolamento que os distingue do interior prximo. O bairro da Boa Vista, pelo

    contrrio, caracterizado por suas casas com amplos quintais e pelos inmeros stios que

    possui. O Recife, tal como a cidade de Salvador no mesmo perodo, guarda apenas uma

    aparente separao entre campo e cidade.20 preciso admitir, entretanto, que os habitantes

    da poca reconheciam visualmente os limites entre o urbano e o rural. Foram eles que

    criaram uma noo ainda muito popular entre os recifenses segundo a qual a cidade (leia-se

    a parte central efetivamente urbanizada) se constitua apenas pelos trs bairros acima

    citados. As demais reas do municpio ou seja, suas freguesias suburbanas rurais ou em

    lento processo de urbanizao eram declaradamente percebidas de modo diferenciado,

    conquanto fizessem parte do municpio, visto em sua totalidade.21

    19 MATTOSO, Ktia. Ser Escravo no Brasil. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1982, p. 13. 20 Para Geraldo Barroso a cidade do Recife, ainda em meados do sculo passado [sc. XIX], encontrava-se em processo de realizao urbana, crescendo na incerteza entre o rural e o citadino, condicionada pelos elementos que determinaram sua existncia (...). Cf. Crescimento Urbano, Marginalidade e Criminalidade: o caso do Recife (1880-1940). Recife: Dissertao de Mestrado (Histria), 1981. 21 Na mente do recifense oitocentista, j estava to impregnada a diviso cidade/subrbio que uma pessoa anunciou no Dirio de Pernambuco (citado sempre D. P., no restante do texto) dizendo querer comprar uma escrava e tambm uma casa terrea nos tres bairros, sem ao menos indicar quais seriam esses bairros. Estava se referindo, muito provavelmente, aos bairros do Recife, Santo Antonio e Boa-Vista, reconhecidos por ele e seus leitores de modo fcil, sem precisar nomear. O anunciante nem sequer se preocupou com uma possvel

    26

  • Uma referncia cidade de Salvador da segunda dcada do sculo XIX ser

    elucidativa para o entendimento da organizao espacial do Recife. Naquela cidade, temos a

    diviso ntida entre a Cidade Baixa e a Cidade Alta, com funes e caractersticas distintas.

    A primeira sendo o reduto das atividades comerciais, do Arsenal da Marinha, das lojas e dos

    depsitos, dos negros carregadores de fardos e das edificaes irregulares e incmodas, em

    uma notvel semelhana com o bairro porturio do Recife na descrio do viajante

    Tollenare, que residiu nas duas cidades na segunda dcada do sculo XIX.22 Para o

    negociante francs, o bairro do Recife era o bairro mais mal edificado e asseado da cidade.

    J a Cidade Alta soteropolitana, situada sobre uma montanha, sugere maior semelhana com

    Olinda, tendo sido descrita por Tollenare, de modo quase coincidente com o velho burgo

    duartino: outeiros, casas espaosas e ajardinadas, muitas igrejas. Mas por outro lado, a

    Cidade Alta avizinha-se da Boa Vista, bairro continental do Recife, por ter belas casas, bom

    ar, algumas ruas decentes. Tollenare descreve a Boa Vista como apresentando ruas e

    caladas largas, alm de algumas casas bonitas.23

    Do mesmo modo que o Recife, Salvador um cenrio que mistura o rural e o urbano,

    onde entre um morro e outro surgem vales verdejantes; j a capital pernambucana se espraia

    longitudinalmente entre espaos mais urbanizados e stios e chcaras ribeirinhas, no perodo

    aqui considerado.

    Em 1849, os limites da rea territorial do municpio recifense ainda no haviam sido

    estabelecidos por lei, o que dificultava o cumprimento das posturas relativas s edificaes

    urbanas. A prpria Cmara Municipal no esconde esse fato, e em ofcio dirigido ao

    presidente da Provncia declara:

    No se achando designado por Ley os limites desta Cidade, nem os seus

    arrabaldes, e havendo diversos individuos, fundados na disposio do art. 11 Tit.

    7. das Posturas em vigor, requerendo para edificar em lugares que parece devem

    fazer parte desta Cidade, mas que elles argumento estarem comprehendidos no

    termo = arrabaldes - com o fim nico de ahi construirem predios no to bem

    confuso: o bairro de So Jos, at 1844 pertencera ao bairro de Santo Antonio, e o leitor poderia se perguntar se aquele no seria um dos trs bairros no mencionados, j que sempre fora considerado bairro central sob a antiga denominao. Ver D. P., 16/01/1862. 22 TOLLENARE, L. F. de. Notas Dominicais. Recife: Governo do Estado de Pernambuco, 1978, pp. 20-21. E VERGER, Pierre. Notcias da Bahia - 1850. 2. ed. Salvador: Corrupio, 1999, pp. 17-19. 23 TOLLENARE, L. F. de. Op. Cit., pp. 22, e p. 130. E VERGER, Pierre. Op. Cit., p. 19-20.

    27

  • fundados, como os que so obrigados a fazer dentro da Cidade; e isto unicamente

    em benefcio de seus interesses, pela facilidade com que levantam predios que no

    prometem durao em razo da falta de profundidade e largura de seus alicerces,

    e pardes, e em prejuizo do bem publico, rogamos V. Ex.a se digne de levar o

    expendido ao conhecimento da Assemblia Legislativa Provincial, na sua proxima

    reunio, a fim de que esta por uma medida legislativa designe os limites desta

    Cidade, e seus arrabaldes, e desta forma se evitem os abusos de que se querem

    prevalecer os particulares.24

    Por esse ofcio, a Cmara demonstra no ter pleno conhecimento dos limites

    municipais, pois os infratores da postura em vigor esto edificando em lugares que ela

    apenas supe fazerem parte do municpio, e portanto sujeitas legislao da edilidade. At a

    data do ofcio quando no havia ainda legislao aprovada que demarcasse com clareza os

    limites da cidade e seus arrabaldes a populao preferia interpretar o significado de

    arrabalde de modo a isent-lo das medidas e normas de edificao, construindo prdios

    que, diz o documento, no prometem durao. Muito provavelmente seguir as normas

    construtivas em vigor encareceria a construo, e quem sabe se esses indivduos tinham

    condies econmicas que permitissem utilizar os melhores materiais e os melhores

    trabalhadores em suas obras? Pode-se pensar ainda que tais prdios no passavam de

    casebres, embora o documento oculte a condio social dos supostos infratores.

    Outro ponto esclarecedor que, mesmo censurando aqueles particulares que, para

    evitar multas, diziam residir nos arrabaldes e no na Cidade, a Cmara em sua

    linguagem reconhece que h os prdios de dentro da Cidade, e que so bem

    fundamentados, e aqueles que, podemos acrescentar, se situavam fora dela, nos

    arrabaldes. Ora, o texto da Cmara apresenta uma confuso conceitual entre Municpio (rea

    administrativa que engloba tanto o urbano quanto o rural) e cidade (considerada a parte do

    Municpio realmente urbanizada), embora queira dizer que no preciso uma rea ser

    urbanizada para fazer parte da jurisdio municipal. Os particulares preferiam se apegar

    imagem mais visvel da paisagem: arrabaldes no so a Cidade, e portanto no deviam

    cumprir as mesmas obrigaes dos moradores dos bairros centrais, que em 1849

    compreendiam as freguesias do Recife, Santo Antonio, So Jos e Boa-Vista. A Cmara,

    24 Cmara Municipal (daqui em diante, abreviado para CM), vol. 29, 10/12/1849, fls. 101-101v.

    28

  • todavia, embora utilizando o termo cidade e no municpio, estava segura de que devia

    convencer a populao de que mesmo os arrabaldes mais distantes que iam lentamente se

    urbanizando compunham uma entidade que devia estar sujeita a uma legislao comum.

    Em 1855, pelo Quadro das Freguesias abaixo, percebe-se que a Cmara municipal

    buscava deixar evidente qual era a configurao espacial pertencente ao municpio do Recife

    a Cmara faz uso do termo municpio efetivamente , e sob jurisdio. O municpio

    aparece como sendo composto por 10 Freguesias, que juntas compem 21 Distritos (ver

    Quadro 1).25 Reforar que a rea municipal abrangia um conjunto espacial mais definido e

    amplo devia ser fundamental para o exerccio da vigilncia e do controle sobre os

    habitantes, o que no significa dizer que esse controle e vigilncia fossem de fato

    implementados ou eficientes.

    claro que a formao de novos bairros, mais adiante, mudar esse quadro, tornando-

    o mais complexo. Mas o que interessa aqui assinalar que o Recife de meados do sculo

    XIX no pode ser pensado unicamente em termos de seus bairros principais. O municpio

    no se limita aos bairros do Recife, Santo Antnio e Boa Vista.26 No por acaso que em

    1849 torna-se necessrio reforar as Posturas Municipais de 1831, e elaborar outras que

    comportem a complexidade crescente do municpio. Sem a observao, ainda que rpida, do

    contexto mais amplo do municpio, fica-se com uma impresso mais ou menos homognea

    e, pode-se acrescentar, no contraditria da expanso urbana do Recife.

    25 Os Distritos, tambm conhecidos como Distritos de Paz, so as divises judiciais onde se d a jurisdio do Juiz de Paz. 26 Definir os limites do municpio com preciso era fundamental para a administrao. Jeronymo Martiniano Figueira de Mello, enquanto funcionrio eficiente, j afirmava em 1852 qual era a extenso do municpio do Recife. Dir que o municpio Confina ao Norte com o municpio de Olinda, seguindo do Manguinho pela travessa do Boi, atravessando a estrada de Joo-de-Barros, e entrando pela travessa do Pombal, a sair na margem do Capibaribe, e da Cruz-do-Patro, no istmo que separa o mar do rio Beberibe; ao Sul com o municpio do Cabo, (...); a Oeste com o do Paudalho, pela parte da freguesia de So-Loureno, que fica superior confluncia do riacho Massiape, no rio Capibaribe, e com o municpio de Santo-Anto, no engenho Queimadas, (...). Cf. MELLO, Jeronymo Martiniano Figueira de. Ensaio sobre a Estatstica Civil e Poltica da Provncia de Pernambuco. Recife: Conselho Estadual de Cultura, 1979, p. 81. Obra publicada originalmente em 1852. Na leitura do Figueira de Mello, o municpio propriamente dito tem propores territoriais imensas, apesar dele sempre se referir aos bairros principais de Recife, Santo Antonio, So Jos e Boa Vista como a Cidade do Recife (Ver Tabelas 1 e 2).

    29

  • QUADRO 1: FREGUESIAS DO MUNICPIO DO RECIFE (1855)

    N. dos Distritos

    de cada uma

    Freguesias de que se compe

    2 So Frei Pedro Gonalves

    2 Santo Antnio

    1 So Jos do Recife

    3 Boa Vista

    3 Afogados

    2 Poo da Panela

    2 Vrzea

    2 So Loureno da Mata

    2 Santo Amaro de Jaboato

    2 Muribeca

    Total: 21

    Fonte: APEJE, Fundo Cmaras Municipais, vol. 35, 1855, fl. 72.

    Em 1860, a indefinio dos limites municipais parece ter sido finalmente resolvida. A

    Cmara reconhecia como pertencentes ao municpio do Recife as chamadas freguesias

    rurais. Ela apenas no seria ainda capaz de evitar que em tais localidades se edificassem

    casas de taipa. Nesse mesmo ano foi proposta uma postura adicional que visava

    melhorar a construo das casas de taipa, que se fizerem nos povoados de certas

    Freguesias rurais deste Municipio, marcando a sua altura, a dimenso das portas

    externas, a fim de evitar-se o defeito e falta de uniformidade, que se notam nas

    actuaes, e que concorrem para o desaformoseamento dos nossos povoados.27

    As freguesias rurais a que se refere a Cmara so as de S. Loureno da Mata, Santo

    Amaro de Jaboato, Muribeca e Vrzea. Distantes dos bairros considerados centrais, essas

    27 CM, vol. 44, 18/07/1860, fl. 105.

    30

  • localidades abrigavam uma populao que no dispunha de moradias melhores que as casas

    de taipa, e os vereadores se dispem to somente a impor algumas normas estticas para as

    novas que se edificarem, preocupados que esto com o aformoseamento da cidade. Em

    1828, a freguesia da Vrzea inclua tambm as reas de Afogados e Caxang, e das 576

    casas (ou do que foi assim considerado) havia 204 de taipa, 70 de palha, e apenas 302 de

    pedra e cal, ou seja, pelo menos 47% das casas eram habitadas por pobres e miserveis (Ver

    Tabela 1).

    Mas outra freguesia reconhecidamente pobre no distava muito dos bairros

    considerados centrais Recife, Santo Antnio e Boa Vista. o caso da Freguesia dos

    Afogados, que se comunicava com a Freguesia de So Jos, pois havia uma estrada que,

    partindo do Forte das Cinco Pontas, seguia pelo Aterro dos Afogados e se bifurcava na

    povoao do Largo da Paz.28 Afogados era ainda o ponto de entrada dos almocreves,

    homens vindos do interior que adentravam o Recife por essa localidade, com seus cavalos e

    cargas, muitos dos quais podem ser vistos nas praas representadas nas litografias de artistas

    do perodo. Havia sobre o aterro, segundo o francs Tollenare em passagem pelo local,

    algumas cabanas feitas de folhagem, nas quais habitam mulatos e negros livres.29 A

    descrio do negociante no difere muito da contagem de 1828, que atribui ao arrabalde dos

    Afogados a existncia de 103 casas de taipa e 236 de pedra e cal. provvel que muita

    choupana tenha sido negligenciada na estatstica.

    Essa povoao se comunicava ainda com outras que lhes eram prximas: Remdios,

    Passagem da Madalena e Bem-fica. O que ligava esses arrabaldes era a Estrada dos

    Remdios. Em meados do XIX, vrios stios cortavam essa rea suburbana. O Dirio de

    Pernambuco contm inmeros anncios de stios para alugar, e alguns deles estavam

    situados nessa rea:

    Aluga-se por um anno um grande sitio em Bemfica, com frente para o Rio

    Capibaribe, e fundo para a estrada confronte viveiro; contendo rvores de fructo

    (...) e bastante terreno para qualquer outra plantao (...) a casa de vivenda

    excellente (...) e muito moderna (...) quartos para escravo, e feitor (...) accrescendo

    28 MENEZES, Jos Luiz da Mota. A ocupao do Recife numa perspectiva histrica. Pp. 147-162. In Clio - Revista de Pesquisa Histrica, vol. 1, n. 14, Recife: Editora Universitria/UFPE, 1993. Importante ressaltar que no estamos fazendo aqui uma associao simplista entre freguesia rural e miserabilidade, e freguesia urbana e riqueza. 29 TOLLENARE, L. F. de. Op. cit., p. 34.

    31

  • ser muito perto do Recife, pelo que deve preferir-se a outro qualquer lugar: no

    Recife, rua da Conceio, casa n. 53, 2 andar.30

    30 D. P., dia 15/04/1845. Laboratrio de Pesquisa e Ensino de Histria - LAPEH, Departamento de Histria da UFPE. Todos os exemplares do Dirio de Pernambuco consultados para essa pesquisa esto no referido Laboratrio, em cpias microfilmadas.

    32

  • 33

  • Ainda em 1868, essas povoaes no eram plenamente urbanizadas. Pelo inventrio

    deixado por Maria Alexandrina do Rego, que morreu deixando seis filhos menores

    herdeiros, entre as propriedades deixadas estava um stio com poucas fructeiras no

    arrabalde de Remdios, alm de outro grande stio no arrabalde de Bem-fica, este tambm

    com algumas fructeiras.31 A expanso da cidade no um fenmeno automtico, e muitos

    vazios construtivos ainda persistiam em grande parte do sculo XIX.

    Habitada por pessoas, em sua maioria, da classe menos abastada, negros, pardos e

    despossudos32, Afogados era sempre tambm um dos focos privilegiados das epidemias que

    assolaram Pernambuco no sculo XIX. Em 1855, h notcias de que a Freguesia foi atingida

    pela varola. Pedindo ao presidente da Provncia, em ofcio de 3 de julho, vacinas para as

    reas onde a doena se propagou, a Cmara reconhece que a varola tem feito grandes

    estragos nos habitantes das Freguesias deste Municipio, Affogados, Varzea, e Poo da

    Panella, principalmente na classe menos abastada, e sem recursos (...)..33

    E quando o presidente, o Conselheiro Jos Bento da Cunha Figueiredo, respondeu ao

    ofcio da Cmara julgando exagerada a sua declarao, esta respondeu que, de fato, a varola

    tinha se aplacado nas outras Freguesias, mas em Afogados ela se generalizara, aumentando

    ainda mais o nmero de vtimas, pelo que a Cmara refora o pedido de vacinas para aquela

    rea.34 Em 1860, havendo um surto de escarlatina, as primeiras vtimas eram logo dessa

    Freguesia. Consultando o mdico Jos Joaquim de Moraes Sarmento, a Cmara desejava

    saber a causa da epidemia e o que a entretinha. O mdico percebera que a causa era uma

    embarcao inglesa que aportara no Recife trazendo crianas com a doena. Os

    sobreviventes foram instalados no Lazareto do Pina, e

    Poucas semanas depois da chegada da Galera Accrington principiei a ser

    chamado ao Aterro dos Afogados para ver meninos nacionaes atacados pela

    escarlatina com a angina (...) e ahi viero a fallecer as primeiras victimas (...), e

    31 Instituto Arqueolgico, Histrico e Geogrfico Pernambucano: Juzo de rfos da Comarca do Recife, 1868. Inventariada: Maria Alexandrina do Rego. Ver fls. 14 e 15. 32 CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife. Recife: Ed. Universitria, 1998, p. 86. 33 CM, vol. 35, 07 de julho de 1855, fl. 43-43v. 34 CM, vol. 35, 28 de julho de 1855, fl. 62-62v.

    34

  • isto se deu positivamente nas casas do Aterro, que se achavam a sotavento da Ilha,

    ou em famlias, que l tinham ido.35

    Para o mdico, a localizao do Lazareto era prejudicial aos moradores dos Afogados,

    uma vez que o vento se dirigia da Ilha do Pina para o Aterro, conduzindo para este os ares

    doentios. Alm disso, os prprios moradores faziam visitas ao Lazareto, certamente para ver

    parentes seus infectados por outras doenas. Mas o mdico surpreende ao falar das causas

    que fazem a epidemia continuar assolando a cidade:

    Pelo que toca as causas, que podem entreter a molestia, so ellas por demais

    patentes para escaparem perspiccia da Illustrissima Camara. A falta de cuidado

    com os doentes nas classes menos intelligentes (...); os charcos que se encontro

    nas ruas desta Cidade; o modo, porque se fazem os despejos; os maos habitos

    culinarios de muitas familias, a insufficiencia das medidas policiaes cerca dos

    generos alimenticios expostos venda, tanto solido, como liquidos (...).36

    Chamar a Cmara de Ilustre e perspicaz s serviu para aumentar a ironia do

    mdico. A Cmara teve de ouvir o que no esperava (ou quem sabe esperasse): as causas so

    patentes, e o so sobretudo porque a Cmara a responsvel por evit-las, cuidando dos

    pobres adoentados, eliminando os charcos, e por uma srie de medidas que ela no cumpre

    eficazmente. O resultado de tudo isso a manuteno de uma situao de indigncia crnica

    que afeta sobretudo os arrabaldes e subrbios.

    Ainda nesse esforo de perceber os significados da geografia da cidade, no se pode

    esquecer o esforo da elite local para erguer e evocar alguns smbolos do progresso. Ao

    norte da ilha de Santo Antnio surgia nas dcadas de 1850 o Teatro Santa Isabel e o novo

    Palcio do Governo, dois prdios vizinhos que simbolizavam a vinda do progresso,

    testemunhando o que seria o refinamento cultural da cidade..37

    Surgidos a partir de uma drenagem que se realizou no local, esses edifcios estavam

    localizados na parte considerada nobre da cidade. Entretanto, isso no significa que eles

    35 CM, vol. 44, 1860, fl. 96-96v. 36 Idem, fl. 96v-97. 37 CARVALHO, Marcus J. M. de. Os smbolos do progresso e a populaa do Recife, 1840-1860; p. 60. In Cidades Brasileiras: polticas urbanas e dimenso cultural. Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de So Paulo, Projeto de Cooperao CAPES/COFECUB, 1998. Para um estudo que entende o Teatro de Santa Isabel em sua carga de propaganda civilizatria, Cf. ALENCAR ARRAIS, Isabel Pinheiro Concessa de. Teatro Santa Isabel: biografia de uma casa de espetculos. Recife: Dissertao de Mestrado (Histria), 1995.

    35

  • estivessem livres dos demais problemas comuns ao resto da cidade. Em 1855, a Cmara

    sugere ao presidente da Provncia, Jos Bento da Cunha e Figueiredo, a construo de um

    cais no local:

    Cabe-nos a que repetir o que doutra vez j ponderamos a v. Ex.ca sobre a

    necessidade da construco de ces na rua do Sol, ao lado do norte; a fim de

    vedar-se a continuao progressiva de despejos publicos ahi, desda ponte at

    atrs do Theatro.

    Esta pratica prejudicial sade publica, e que tira a gravidade da rua,

    dever desaparecer com a factura do ces (...).38

    Lado a lado com o progresso material mais evidente da cidade, como se percebe, a

    sujeira e a imundcie tambm progrediam, tirando do local a gravidade que supostamente o

    distinguia do resto da cidade. O problema dos despejos pblicos configurar uma batalha

    perdida pelas autoridades provinciais durante longo tempo. Os comentrios da Cmara a

    respeito no passam, quase sempre, de atos de contrio. Os exemplos so incontveis.

    Comentando algumas medidas higinicas propostas pela Comisso de Higiene Pblica, em

    1855, a Cmara responde dizendo que em parte elas j esto previstas pelo cdigo de

    posturas de 1849, mas ela mesma sabe da dificuldade em se fazer executar as posturas

    relativas aos despejos:

    A disposio do citado art. 5 das Posturas, de bastante utilidade, assim se

    podesse ella cumprir completamente; mas a experiencia h mostrado

    constantemente que no pode ser executada por aquellas pessas, a quem falto os

    meios de fazerem os despejos de suas casas das dez horas da noite em diante;

    porque, servindo-se ellas, para esse servio, durante o dia, de pretos ganhadores,

    noite, s mencionadas horas, no lhes possivel acha-los; e ento, ou ho de reter

    por muito tempo, enterrando-as ate nos quintaes, as materias excrementicias,

    contra todas as regras de hygiene, ou, por necessidade, ho de practicar

    infraces, que, em todo o caso, parece que devem ser antes toleradas, em quanto

    se no estuda e adopta um systema de limpeza geral da Cidade, do que forar

    38 CM, vol. 35, 1855, fl. 46-46v.

    36

  • essas pessas a procederem de um modo to reprovado e prejudicial s suas

    proprias vidas.39

    A citao longa nos pareceu necessria. Ela aponta para as contradies da prpria lei

    que, forjada para um cotidiano complexo, no respondia aos interesses de seus promotores.

    Ora, a linguagem da Cmara se trai: est implcito que seus prprios membros, ou pessoas

    que ela consideraria de boa f, tambm infringem a lei, pois no tm como, depois das dez

    horas da noite, arranjarem pretos ganhadores para fazerem o servio de despejos nos lugares

    estabelecidos. O dilema que fica : no h como seguir a norma, e no possvel que se

    passe a noite inteira com os dejetos dentro de casa. Os quintais eram ento a sada menos

    desconfortvel, ou mesmo, como era comum, lanar os dejetos em locais no autorizados.

    No havendo ainda um planejamento para o saneamento de toda a cidade, as posturas caam

    no vazio, e era preciso tolerar as infraes, reconhece a Cmara.40

    O problema de se controlar os locais e os horrios em que se deveriam fazer os dejetos

    ficava a cargo dos fiscais municipais. Mas, segundo a municipalidade, estes funcionrios

    nada podiam fazer. Respondendo a um ofcio acusatrio da parte do presidente da Provncia,

    ela defende os seus fiscais como pode, acusando o povo pelo fato. Afirma que seria preciso

    ter um fiscal por casa ou por rua para que se flagrasse o ato que ocorre geralmente noite.

    Uma outra dificuldade , diz a Cmara, o preconceito de muitos para com os fiscais:

    Em geral pensa-se que uma multa uma violencia, e no a execuo de um

    preceito legal, e por isso ningum quer testemunhar em Juiso aquillo que

    presenciou fora delle; e quando se isso compelido pela autoridade, [nega-se] a

    existencia da infraco.41

    39 CM, vol. 35, 1855, fls. 21-22. 40 Mesmo aps a implementao da empresa que contratou os servios de esgoto, a Recife Draynage Company Ltd. (1868), os despejos ainda incomodavam: anteontem, enquanto no encheu a mar, tarde, exalava-se no Cais 22 (atual Av. Martins de Barros), bairro de Santo Antonio), junto ponte 7 de Setembro, o mais apurado perfume da municipalidade. Os selvagens africanos contando com a impunidade e com a relaxao dos agentes municipais, nem ao menos nesse dia desceram a rampa, para lanar ngua o despejo que faziam e junto mesmo da ponte e sobre o monturo que se est formando ao p do cais, despejaram os vasos. Isto se deu em pleno dia e com escndalo e inc6omodo pblico. J no a primeira vez que tal sucede. (...). Jornal do Recife, 02/01/1872. Apud MELLO, Virgnia Pernambucano de. gua Vai! Histria do saneamento de Pernambuco - 1537-1837. Recife: Companhia Pernambucana de Saneamento, s/d, p. 96. 41 CM, vol. 35, 1855, fls. 73-74v. Para os locais onde se deveriam fazer os despejos, em 1843, ver SETTE, Mrio. Arruar: histria pitoresca do Recife antigo. 3. ed. Recife: Governo do Estado de Pernambuco, 1978, p. 248.

    37

  • A populao, ao que parece, tinha no silncio um acordo tcito de agir contra os

    fiscais, evitando assim possveis multas. Ningum queria se comprometer, delatando um

    vizinho ou quem quer que fosse, o que conferia uma caracterstica de contrato velado pelo

    qual o outro tambm se comprometeria a fechar os olhos para os seus delitos. A populao,

    apegada a hbitos enraizados, tinha ainda certa hostilidade ao discurso normatizador das

    autoridades. Pois, como estas alegam, pensam que uma multa uma violencia.

    Ainda por muito tempo, homens e mulheres entre estas, muitas vendeiras, lavadeiras

    e criadas que saam para comprar gneros para abastecer a casa de seus senhores ou patres

    que transitavam pelas ruas do Recife tinham que conviver com a sujeira da cidade. Seja

    porque os habitantes no contribuam muito para a limpeza, seja porque a Cmara no era

    eficiente em tornar a cidade asseada pela simples razo, por ela mesma levantada, de que

    no lhe eram fornecidos os recursos suficientes no oramento da Provncia. Em 1870, em

    Relatrio referente ao exerccio anterior (1868-1869), a municipalidade ainda est a

    lamentar pelo que deixou de ser feito em relao limpeza da cidade:

    Esta Camara v-se obrigada a confessar que este servio est muito quem

    (sic.) do que se devia esperar em uma Cidade que quer ter foros de civilisada;

    porem no possivel trazer a Cidade limpa com a exigua quantia marcada para

    limpesa e aceio, e muito menos desarraigar habitos inveterados e enraizados na

    populao, seno com o tempo e muito esforo (...).42

    Nessa ocasio, o Recife j era uma cidade bastante populosa, e a despesa com a

    limpeza tinha que ser aumentada. A Cmara afirma que a verba fornecida pelo oramento

    era de apenas 6:000$000 de ris, quando, por clculos de seu engenheiro, o gasto foi orado

    em 42:000$000 de ris. E esse ltimo montante ainda no estava levando em considerao a

    desobstruo dos cais. No mesmo Relatrio, a primeira causa do problema era atribuda ao

    mau costume da prpria populao em lanar todas as imundcies nas ruas; a segunda

    apontada foi o grande nmero de cavalos que adentravam a cidade em certas pocas do ano.

    Interessante ressaltar aqui que a prpria edilidade assume que a cidade apenas quer ter

    foros de civilisada.

    Vimos anteriormente que a ilha de Santo Antnio abrigava na parte norte alguns

    smbolos do progresso da cidade. Mas essa rea, diferente do istmo do Recife, no era

    42 CM, vol. 59, 1870, fls. 12-12v.

    38

  • pequena. A sua parte sul agregava uma populao pobre, resultante de um crescimento

    populacional desordenado. Para facilitar a administrao da ilha, ela fora dividida em duas

    freguesias: na parte norte, Santo Antnio; na parte sul, So Jos. Esta ltima freguesia tinha

    em 1856 uma populao de 11.446 habitantes, dos quais apenas 1.122 eram escravos. Sendo

    a propriedade escrava um indicador de riqueza no perodo, pode-se dizer que So Jos era

    uma rea pouco favorecida, j que s 9,8% de sua populao era escrava, um ndice muito

    abaixo do das outras freguesias centrais.43

    Marcus Carvalho no deixou de perceber o que essa diviso administrativa da ilha de

    Santo Antnio significava, com os seus componentes de excluso e controle social:

    significativo observar que a freguesia de So Jos, dessa populao pobre

    e deslocada, ficava de um lado da ilha (sul), e o palcio do governo, o teatro e o

    passeio do outro (norte). Os pobres ficaram longe dos smbolos de progresso da

    cidade, e perto do porto, onde tinha muito trabalho braal para se fazer. Mas o

    maior sintoma dessa redistribuio espacial foi o surgimento na margem do rio,

    perto do corao de So Jos, do maior prdio pblico da provncia: a casa de

    deteno. Essa observao revela muito do carter daquelas reformas. O Recife

    ficou muito mais belo. Mas o espao pblico continuava excludente. S que de uma

    forma mais sutil, na medida em que as novas idias de preveno e controle eram

    sobrepostas represso pura e simples.44

    Essa percepo pe em evidncia os contrastes existentes em uma sociedade ainda

    escravista e patriarcal, mas que aspirava seguir os passos da civilizao europia, que fazia

    suas revolues, tanto no que tange industrializao, quanto ao que se refere

    urbanizao. No Recife oitocentista, assim como nas demais cidades porturias do Brasil

    imperial, a expanso urbana, a modernizao dos aspectos fsicos e do tecido urbano so

    acompanhados de um controle forte sobre as camadas menos favorecidas. A prpria

    modernizao implica em certas rupturas no modo de vida das pessoas pobres.

    43 Carvalho, M. J. M. de. Liberdade. Op. Cit. p. 85. 44 Idem, p. 87.

    39

  • 1.2 A cidade em nmeros: crescimento urbano e demogrfico

    Se uma cidade no se resume s linhas que a formam, o mesmo se pode dizer dos

    nmeros. Os dados populacionais podem carecem de contedo, uma vez que quase sempre

    apenas fornecem momentos fixos de uma dada realidade. Entretanto, trabalhar apenas com

    dados quantitativos de uma populao no to temerrio quanto cunhar dados sobre o

    consumo de bens culturais, por exemplo. Nesse ltimo caso, alerta Michel de Certeau, as

    categorias formais terminam por ocultar o que as pessoas realmente fazem com

    determinados bens45; mas no que tange a dados mais gerais, que dispensam o uso de

    categorias, o risco de ficar muitas perguntas sem respostas menor. O nico problema (e

    no pequeno) a prpria precariedade da elaborao dos dados, o que confere um certo

    descrdito aos resultados das contagens. Essa era, particularmente, a situao das contagens

    realizadas no Brasil, em todo o sculo XIX. Apesar desse problema, as contagens do perodo

    fornecem elementos para o cruzamento dos dados disponveis, o que possibilita uma

    visualizao aproximada do que era realmente a cidade em termos populacionais.

    Mas antes de falarmos do nmero de habitantes do Recife, tentaremos captar a forma

    da expanso da cidade no sculo XIX. O Recife constitui um dos principais centros em

    expanso no sculo XIX. Essa expanso da cidade tem como marco inicial a abertura dos

    portos em 1808. O espao urbano vai ganhando os arredores antes cultivados com a cana-

    de-acar, e dos engenhos emergem alguns bairros da cidade, como Casa Forte, Torre,

    Engenho do Meio, Madalena, Apipucos e tantos outros.46 Em 1855, arrabaldes como a

    Passagem da Madalena, Remdios e Afogados, segundo a Cmara Municipal, j tinham suas

    plantas aprovadas, e diversos moradores (...) requerem licena para edificar nos

    mencionados lugares.47

    Todavia, se os arrabaldes vo sendo urbanizados, esse processo relativamente lento

    em todo o sculo XIX, e ocorre de um modo no uniforme. Poder-se-ia pensar que os

    45 CERTEAU, Michel. Op. Cit., p. 93. 46 Carvalho, M. J. M. de. Liberdade. Op. Cit., pp. 47-8. Entre 1782 e 1850, o Recife incorpora a chamada vrzea do Capibaribe, isto , toda a extenso que vai da Boa Vista e da Madalena at Caxang e a Vrzea propriamente dita, subindo o rio e retalhando os antigos engenhos de uma e outra margem em stios e chcaras, que, por sua vez, sobretudo a partir da dcada de 1840, sero objeto de loteamento. p. 68. MELLO, Evaldo Cabral de. Canoas do Recife: Um Estudo de Microhistria Urbana. In Revista do Instituto Arqueolgico, Histrico e Geogrfico Pernambucano. Vol. L, Recife: 1978, pp. 67-103. 47 CM, 1855, vol. 35, fl. 13.

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  • bairros centrais do Recife, urbanizados mais cedo, foram gradativamente se expandindo

    pelos stios e engenhos da Vrzea do Capibaribe, que iam sendo loteados para que se

    erguessem habitaes e ruas fossem traadas. Mas no assim nessa expanso contnua e

    ininterrupta como uma sombra. A situao mais complexa. O crescimento do Recife,

    segundo Cabral de Mello, se d de forma ganglionar. Os subrbios vo surgindo a partir de

    pequenas povoaes relativamente isoladas entre si pelos tufos de matas e stios ainda

    existentes. O autor frisa que esse ganglionismo vai persistir mesmo at fins do sculo XIX.

    E isso apesar da democratizao do arrabalde e de todo o progresso verificado nas

    tcnicas de transporte. Em 1874, o engenheiro Fourni, procurando um local apropriado

    construo de um asilo para alienados, faz o seguinte comentrio: Quando se passa de

    Apipucos, encontra-se no trecho entre Apipucos e Caxang, uma srie de colinas

    completamente cobertas de matas, as quais pertencem a vrios engenhos, ainda no

    loteados (...).48

    A caracterstica ganglionar do crescimento do Recife foi assinalada primeiramente por

    Josu de Castro. Para Castro, os engenhos foram

    os germes desses centros ganglionares de crescimento, atrados pela fora

    absorvente da cidade-porto, ou melhor, da direo imposta pelo porto (...). Os

    engenhos, esgotadas as suas possibilidades e extintas as suas lavouras,

    transformaram-se em stios ou chcaras (...).49

    Castro percebe um ponto capital da urbanizao do Recife. Ao mencionar a atrao

    exercida pelo porto, ele inverte a posio do crescimento, que no se d do centro j

    urbanizado para a periferia, mas ao contrrio, embora condicionado pela fora

    absorvente da cidade-porto.

    J se tornou um consenso que o surgimento dos subrbios recifenses se deve difcil

    conjuntura econmica da cultura da cana-de-acar, assolada por uma crise crnica

    caracterizada no tanto pela incapacidade produtiva, mas pela baixa no mercado

    internacional dos preos do acar, provocada em grande parte pela concorrncia externa.

    Essa conjuntura desfavorvel aumenta a disposio dos antigos proprietrios em se

    48 MELLO, Evaldo Cabral de. Op. Cit., p. 69. E ainda: Obras Pblicas, 17/04/1874, Victor Fourni a Henrique Pereira de Lucena. Arquivo Pblico de Pernambuco. 49 CASTRO, Josu de. Fatores de Localizao da Cidade do Recife (um ensaio de Geografia Urbana). DF: Imprensa Nacional, 1948, p. 69. E ainda BARROSO, Geraldo. Op. Cit.

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  • desfazerem de suas terras. Evaldo Cabral de Mello aponta que Em vez de cultivar suas

    grandes propriedades das cercanias do Recife, estes senhores preferiam alugar uma

    pequena poro delas por uma nfima anuidade (...).50

    Os subrbios, quando estes ainda eram povoados acanhados, com seus stios e

    chcaras, ocupam uma funo vital ao abastecimento da cidade no sculo XIX. Para Marcus

    Carvalho, os antigos engenhos acabaram se tornando celeiros do Recife, devido terem suas

    terras alugadas para a produo de horticultura.51 Embora no haja estudos acerca do

    abastecimento do Recife no perodo, podemos sugerir, com relativa segurana, que o

    abastecimento de verduras, frutas, leite, azeite e outros gneros da mesma natureza, que

    circulavam pelas ruas e mercados, pelas mos de vendeiras de tabuleiro e quitandeiras, era

    feito a nvel local, nesse contexto de simbiose cidade-campo. Os stios no distavam muito

    do centro da cidade, onde havia o foco do comrcio, e alm disso, muitos deles

    comportavam alojamentos para escravos e escravas, o que significava a possibilidade de

    associar a pequena produo ao comrcio urbano atravs das escravas. Alguns senhores de

    cativas vendeiras foragidas indicavam nos anncios de jornais um duplo endereo onde

    deviam ser entregues depois de presas: ou em alguma rua da cidade, ou em algum stio que

    possuam. Fica patente que tais escravas partiam dos stios de seus senhores para os bairros

    centrais conduzindo os frutos de uma pequena agricultura e de atividades de criao

    realizadas no entorno da cidade.52

    Flvio Guerra, tratando da origem de alguns subrbios do Recife assinala o perodo j

    de fins do sculo XVIII, e princpios do XIX como marco do incio da desagregao

    fundiria que originar as povoaes. As terras do antigo Engenho Monteiro, no princpio

    do XIX, j no fabricavam acar ou sequer safrejavam, de modo que as repartidas terras

    50 MELLO, Evaldo Cabral de. Op. cit., p. 69. O autor cita GRAHAM, Maria. Dirio de uma Viagem ao Brasil. So Paulo: 1956, p. 141, acerca do aumento dos loteamentos em 1821. 51 CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade. Op. Cit., p. 48. O mesmo se pode dizer para o Rio de Janeiro da mesma poca. Segundo Luiz Carlos Soares, verduras, frutas, legumes, aves e ovos eram provenientes de chcaras e stios situados nos subrbios fluminenses. E confirma o temos visto para o Recife: (...) era muito comum que os senhores proprietrios de chcaras e stios deslocassem um ou dois escravos para a venda desses produtos (...). p. 113. Cf. SOARES, Luiz Carlos. Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do sculo XIX. Pp. 107-142. In Revista Brasileira de Histria. So Paulo