significado do trabalho na sociedade contemporânea

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  • significado do trabalho na sociedade contempornea

    o QUE rEalMENtE o trabalho

    No h dvidas de que o termo trabalho um dos mais centrais da Modernidade, at o ponto de a obra de autores to definitivos dessa poca, como Adam Smith ou Karl Marx, girar em torno dele e de seu significado. O trabalho chegou a se converter em um dos temas fundamentais das Cincias Sociais, no apenas da Economia, mas tambm da Sociologia ou da Psicologia Social, dando lugar a uma denominada Faculdade de Cincias do Trabalho, na Espanha. Alm disso, o trabalho tem sido um conceito to crucial e de-finido da sociedade ocidental dos dois ltimos sculos, que a maioria das pessoas acredita atualmente que ele algo natural ao homem, que a prpria existncia do ser humano implica necessariamente algo que chamamos tra-balho. No entanto, isso no assim. Claro que o ser humano sempre, como qualquer outra espcie animal, teve que desenvolver algum tipo de atividade a fim de buscar o sustento para si mesmo e para seus prximos. Mas isso no necessariamente trabalho. O conceito de trabalho algo mais complexo do que a mera atividade de conseguir o sustento. A prova da dificuldade em defini -lo que o Dicionrio da Lngua Espanhola da Real Academia, em sua ltima edio de 2001, nem sequer o faz, somente se atreve a dizer algo to vago como ao e efeito de trabalhar, como primeira acepo, e ocupao remunerada, como segunda, cujo carter extremamente restrito evidente. E para trabalhar no diz nada mais do que: Ocupar -se com qualquer ativi-dade fsica ou intelectual, o que tambm no esclarece muito.

    Como dizia Wittgenstein, no o dicionrio, mas o uso das palavras que d o seu significado real, uso que depende de sua histria. Como consequn-

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    cia, o conceito de trabalho, como logo veremos, surge com a Modernidade, passando rapidamente a fazer parte dela. Surge, principalmente, a partir da conjuno destes trs fenmenos fundamentais estreitamente relacionados entre si: no nvel econmico, o capitalismo; no nvel cultural, o Iluminismo; e no nvel poltico, a constituio e a hegemonia do Estado -Nao e a democra-cia burguesa. Sem levar em conta tudo isso, assim como o processo pelo qual esses trs elementos foram formando a noo de trabalho e como essa foi sendo adquirida e internalizada pelos cidados, no seria inteligvel a ideia de como o trabalho deixou de ser algo meramente instrumental e passou a ser o centro de nossas vidas.

    Portanto, o primeiro problema que devemos formular estabelecer com preciso o que o trabalho. Uma forma bsica de responder a essa pergunta to simples, aparentemente, consiste em faz -lo intencionalmente, tentan-do dar uma definio plena e satisfatria. Assim, a maioria das definies disponveis costuma considerar o trabalho como uma atividade de carter produtivo, realizada por pessoas, para assim obterem alguma remunerao e/ou para contriburem com sua prpria subsistncia. Ou seja, apenas para exemplificar mais, se esta manh eu estive deitado em um campo lendo jor-nal, estava trabalhando ou no? E se eu li o jornal, porque nele havia alguns artigos que eram muito teis para eu preparar este livro, era trabalho ento? E se eu, que adoro explicar a meus alunos em que consiste o trabalho, lhes desse uma aula sobre este tema por hobby, sem remunerao alguma, estaria trabalhando? E a dona de casa, que trabalha muito, mas sem cobrar por suas atividades, trabalho o que ela faz?

    De fato, embora sejam numerosas as definies que pretendem esclarecer o que realmente o trabalho, nenhuma plenamente satisfatria. Assim, Marshall (1980) o define como um esforo da mente e do corpo, realizado parcial ou totalmente, com o propsito de obter algum benefcio diferente da satisfao que resulta diretamente do trabalho. Mas essa definio prope v-rios problemas. Por exemplo, como saber se o propsito realmente obter um benefcio? O que entendemos por benefcio? Fazer caminhada pelas manhs por mero prazer no trabalho, mas caminhar sem vontade, para melhorar a prpria sade ou para render melhor na empresa, seria trabalho? J Anderson e Rodin (1989) definem trabalho como o tempo pelo qual uma pessoa paga. Tambm essa definio desperta dvidas importantes. Assim, se no pagam a um imigrante pela tarefa que realiza, ele no est realizando nenhum tipo de trabalho? E se pagam a algum para no fazer nada, o que s vezes acontece com alguns, esse no fazer nada trabalho? Outras definies, sem expli-car totalmente esse conceito to complexo, ajudam -nos a entend -lo melhor, como a de Hall (1986), para a qual o trabalho o esforo ou a atividade de um indivduo, realizada com o propsito de prover bens e/ou servios de va-lor para outros, ou a de Peir (1989, p. 163), que entende por trabalho:

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    aquele conjunto de atividades humanas, remuneradas ou no, de carter produtivo e criativo, que mediante o uso de tcnicas, instrumentos, ma-teriais ou informaes disponveis, permite obter, produzir ou emprestar certos bens, produtos ou servios. Nessa atividade, a pessoa despende energias, habilidades, conhecimentos e outros recursos, e obtm algum tipo de compensao material, psicolgica e/ou social.

    Diante dessas dificuldades, uma boa forma de entender profundamente o que o trabalho consiste em fazer um apanhado histrico, caracterizando o que Michel Foucault chamaria de a genealogia do conceito e a prtica do trabalho.

    gENEalogia histrica do coNcEito dE trabalho

    Antes de analisar o apanhado histrico e para compreender melhor o que realmente trabalho, importante dizer algo sobre a funo ideolgica fundamental que est cumprindo a noo atual de trabalho. Na verdade, como dizia Jos Manuel Naredo (2001, p. 13), comum esquecer que a noo atual de trabalho no uma categoria antropolgica, muito menos uma variante da natureza humana. Trata -se, pelo contrrio, de uma categoria profunda-mente histrica. O trabalho, como categoria homognea, consolidou -se por volta do sculo XVIII, junto com a noo unificada de riqueza, de produo e com a prpria ideia de sistema econmico, para, assim, dar lugar a uma nova disciplina: a Economia. A razo produtiva do trabalho surgiu e evoluiu junto com os conceitos da Cincia Econmica, e nessa evoluo sempre estiveram estreitamente relacionados os conceitos de cincia, de ideologia e de socieda-de. J Domnique Mda (1998) pretende fazer um estudo crtico do conceito de trabalho que, no nos esqueamos, algo prprio de nossa civilizao atual, sem ter existido em outras culturas (sobre o conceito de trabalho, veja tambm Blanch, 2004; Durn, 2004; Garrido, 2004). Certamente, para sobre-viverem no passado, tanto as pessoas como os grupos e as sociedades tiveram que exercer algum tipo de atividade, mas o trabalho, tal como o conhecemos, um produto do capitalismo industrial, por isso no tem mais de dois sculos de existncia. O trabalho, que nunca teve antes as funes que tem hoje, cada vez est mais no centro de nossas vidas, tendo convertido -se, inclusive, em nossa vida. O que se pretende, acima de tudo, argumenta Mda, preservar o trabalho e fazer dele a atividade fundamental do ser humano. De fato, atual-mente so muitos os autores que defendem que o trabalho uma categoria antropolgica, constituindo nada menos que a essncia da natureza humana, proporcionando -nos no apenas os meios materiais para viver, mas, tambm, nossa prpria realizao pessoal e nossos vnculos sociais. Sem trabalho, no

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    seramos nada nem ningum. O trabalho nossa essncia e nossa condio. Tudo isso, como podemos facilmente constatar, so ideias legitimadoras das sociedades baseadas no trabalho, cujo objetivo ltimo o de conseguir que o trabalho se converta no lugar do vnculo social e do desenvolvimento pessoal. O que se tenta com isso, na verdade, no apenas justificar o capitalismo e as prticas de explorao do trabalho, mas sacralizar o trabalho para, dessa maneira, introduzir no cidado a motivao que o faa trabalhar sem a ne-cessidade de vigias nem controladores de nenhum tipo. Assim, consegue -se driblar as teorias de gesto empresarial que, comeando com Taylor, preten-dem conseguir nada menos que a quadratura do crculo: que os trabalhadores sejam capazes de estar motivados com tarefas dificilmente motivadoras. E nisso coincidiram cristos, humanistas, social -democratas e marxistas. Para todos eles o trabalho aquilo que deve nos realizar como pessoas e nos inte-grar na sociedade.

    Mas o que acontece com aqueles que no tm trabalho, que so por vol-ta de 60% da populao, que inclui menores de idade, aposentados, doentes, desocupados, donas de casa, etc.? O que acontece que com esse conceito de trabalho, simplesmente deixam de ser pessoas, e seus direitos so seria-mente diminudos. Todos os autores que consideram o trabalho dessa forma propem -se, assim, a uma mobilizao em toda regra de fundo terico com que se alimenta o sculo XX. A nosso ver, trata -se nada menos do que defen-der a ordem existente, aquela que fundamenta nossas sociedades modernas (Mda, 1998, p. 24). O que pretendem, em resumo, salvar o trabalho e com isso salvar o capitalismo. E nessa tarefa a funo da Psicologia no foi mesmo insignificante. Na verdade, os psiclogos desempenharam um papel funda-mental na tarefa de apoiar incondicionalmente o capitalismo e fizeram -no de duas maneiras. A primeira, explcita e muito conhecida, consistiu na sua contribuio em campos como a seleo de pessoal, por meio principalmente da aplicao de testes psicolgicos para a anlise de candidatos a uma vaga ou por meio da gesto de recursos humanos. Aqui, temos que lembrar de no-mes como Taylor, Fayol, Elton Mayo, etc., os quais nem todos so psiclogos de formao, mas psiclogos de profisso. No esqueamos que as diferentes formas de direo e de gesto empresarial no foram seno diferentes tenta-tivas de aumentar a motivao dos trabalhadores, mas sempre com uma fina-lidade explcita e intencional: a de melhorar a produo e, portanto, o lucro das empresas. A segunda, mais sutil e menos conhecida, porm fundamental, consistiu em criar nos cidados ou ao menos ajudar a criar as aptides e caractersticas psicolgicas propcias, como atitudes, traos de personalidade, etc., para o desenvolvimento bem -sucedido do sistema capitalista: capacida-de de economizar, capacidade de retardar os esforos, motivo de conquista, autossacrifcio, capacidade de persistncia em tarefas entediantes, etc.

    Em todo caso, e com a ajuda de muitos psiclogos e cientistas sociais como Smith, Ricardo, Marx, Keynes, entre outros, o capitalismo conseguiu o

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    que parecia difcil de conseguir: que em nossas atuais sociedades o trabalho seja nossa condio social fundamental, colocando -se no centro da viso do mundo desde o sculo XVIII. Sendo assim, o dilema que agora devemos ten-tar elucidar o seguinte: Como chegamos a esta situao? Como chegamos a considerar o trabalho e a produo como o centro de nossas vidas individuais e sociais? Se o trabalho um conceito moderno, se antes ele no existia, como foi o processo de sua constituio? Mais especificamente, para realmente en-tender o que o trabalho e qual seu significado nos dias de hoje, ser impres-cindvel rastrear sua genealogia histrica.

    rEsUMo histrico do coNcEito dE trabalho Nas sociEdadEs hUMaNas

    Se um dos sonhos da Humanidade, manifestado em repetidos escritos utpicos, ao menos desde o Renascimento, foi sempre alcanar a abundncia material que a dispensasse do trabalho, tudo parece indicar que esse sonho no est sendo alcanado. Para analisar este apanhado histrico, seguiremos especialmente as consideraes tericas de Domnique Mda (1998).

    sociedades primitivas ou sem Estado

    Para entender cabalmente o processo histrico que levou ao conceito atual de trabalho em nossa sociedade, ser til analisar, ao menos rapida-mente, o significado do trabalho nas sociedades primitivas, muitas das quais subsistiram h at pouco tempo, nas quais o trabalho no existia. Essas so-ciedades se caracterizam principalmente pelo no trabalho. A antropolo-gia apresenta abundantes materiais (Clastres, 1978, 1981, 1986; de Sahlins, 1974, 1976, 1991; de Malinowski, 1986) que mostram que nessas sociedades a noo de trabalho no tinha nem o suporte conceitual nem a incidncia social que tem hoje. Em primeiro lugar, a sua linguagem carece de um termo que possa se identificar com a noo atual de trabalho. Estamos diante de sociedades da abundncia, pois nelas todos os seus membros tinham suas neces-sidades satisfeitas com um esforo relativamente pequeno (por volta de trs horas dirias de trabalho), embora no existisse o af de acumular riquezas ou excedentes, como se observa na nossa sociedade: para essas sociedades os estoques de riquezas estavam na natureza e no fazia sentido acumul -los, nem era possvel transport -los. Dessa forma,

    o fato de estas sociedades conseguirem satisfazer um dado nmero de necessidades em um tempo determinado, sem empregar nisso a totali-dade de suas energias, significa que nada as incita a produzir mais que

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    o necessrio. As atividades de subsistncia se regem por outras lgicas alheias mera satisfao das necessidades, e sua perseguio no ocupa todo o tempo da existncia (Mda, 1998, p. 29).

    Alm do mais, e isto fundamental, o que contrasta com nossa realida-de atual, a atividade realizada para a subsistncia, como a caa, a pesca, a colheita de frutas nos bosques, etc., nunca se realizava individualmente (ver Malinowski, 1986). O elemento motivador do interesse pessoal alheio ao homem primitivo, e o benefcio no desempenha jamais a funo de incitar ao trabalho. O homem nem assume sozinho as atividades de subsistncia nem se apropria individualmente dos resultados dela (Mda, 1998, p. 30). Portanto, o trabalho no trabalho, mas concebido como uma obrigao de carter social que quase no exige esforo e que no precisa de retribuio material nenhuma.

    Em suma, nessas sociedades, como escreve Domnique Mda (1998, p. 30), o trabalho no se realiza para o benefcio pessoal, muito menos com vistas ao intercmbio, j que o intercmbio no tem carter econmico, no aspira a obter uma exata equivalncia, e obedece a outras lgicas mais dire-tamente sociais. Logo, acrescenta a autora (p. 31 -32),

    em um contexto radicalmente distinto do nosso, em que as necessidades naturais so limitadas, em que o indivduo como tal ainda no desabro-chou e os intercmbios econmicos no se desenvolveram, a ideia de trabalho no existe Isso significa que, nessas sociedades, nem o status social nem a origem e a conservao do vnculo social vm definidos pelo trabalho. So sociedades estruturadas em virtude de outras lgicas.

    Mas, como mostra o antroplogo Pierre Clastres, foi sobretudo a apa-rio dos Estados, assim como a introduo de qualquer tipo de tecnologia, o que modificou substancialmente a forma de se comportar dos indivduos e dos grupos nas sociedades primitivas. Eram sociedades slidas, com milhes de anos de permanncia, ao longo dos quais haviam mantido uma forma in-varivel de viver certamente nada negativa, mas invejvel com um iguali-tarismo real, o que lhes permitia trabalhar em geral entre duas e quatro horas por dia, o que os tornava, principalmente, sociedades ociosas, no melhor dos sentidos e, como dissemos, sociedades da abundncia. E isso porque cada um trabalhava apenas para si prprio. Melhor ainda: toda a comunidade traba-lhava para toda a comunidade. Somente quando apareceu o Estado, as pesso-as tiveram que trabalhar tambm para os outros, alm de para elas mesmas, e a comunidade j no se colocava a servio da comunidade, mas sim do Estado e de seus numerosos servidores, como o exrcito, a burocracia, etc. A partir de ento, a sociedade de cio foi passando a ser, muito paulatinamente, a so-

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    ciedade do trabalho, e do trabalho alienado, aparecendo assim a explorao, a escravido e sobretudo a desigualdade entre os seres humanos.

    a antiguidade clssica

    Na Grcia clssica tambm no existia o trabalho. Na realidade, a Grcia apresentava uma sociedade que no estava estruturada pelo trabalho, no existindo ali uma palavra equivalente noo atual de trabalho. Na Grcia o trabalho era servil, coisa de escravos: o Estado j havia dividido os gregos em cidados de primeira, fundamentalmente vares proprietrios, e cidados de segunda, como mulheres e sobretudo escravos, que eram os que trabalhavam para os cidados de primeira.

    Existia uma viso fragmentada das atividades, as quais suscitavam valori-zaes sociais distintas. Mas no era tanto o carter manual ou o esforo exigido pelas atividades o que fazia elas serem qualificadas de servis ou degradantes, mas sim o carter dependente daqueles que as praticavam. Consideravam -se atividades livres aquelas realizadas pelo simples prazer de exercit -las e no por finalidades ou contrapartidas alheias a elas, como podia ser a dedicao filosofia, poltica, s artes ou ao esporte e s artes marciais. Ao mesmo tempo, era considerado indigno as pessoas livres desenvolverem suas capacidades para obterem um benefcio.

    Por isso, encontraremos na Grcia ofcios, atividades, tarefas; a busca por trabalho ser em vo (Mda, 1998, p. 34). E mais, na Grcia havia um profundo desprezo ao trabalho, o que obviamente teve importantes conse-qun cias. Por exemplo, sabemos que os gregos dispuseram de algumas inven-es que puderam aperfeioar, mas as quais nem se preocuparam em aperfei-oar e desenvolver, dado que:

    a mo de obra escrava gratuita era abundante, mas principalmente porque filsofos e sbios no viam vantagem alguma no crescimento da produo: aument -la teria exigido assumir um procedimento comercial alheio ao ideal de vida imperante. Parece que a principal causa do blo-queio tecnolgico da Grcia est em sua hierarquizao das atividades, especialmente em seu desprezo pelo trabalho. Talvez os gregos tenham conseguido perceber a vinculao existente entre necessidades ilimitadas e uma humanidade reprimida pelo trabalho, de modo que, conseguiram moderar as primeiras para evitar esse efeito (Mda, 1998, p. 40).

    Em relao ao Imprio Romano, ocorreu algo similar, predominando, tambm ali, o desprezo pelas atividades ordinrias e geralmente penosas,

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    relacionadas com a subsistncia e o abastecimento, o que se deve principal-mente ao carter dependente dessas atividades. Assim, escrevia Ccero que tudo quanto tenha a ver com um salrio srdido e indigno de um homem livre, porque o salrio nessas circunstncias o preo de um trabalho e no de uma arte todo arteso srdido, como tambm o comrcio de revenda. E acrescentava: Consideram -se no nobres e desprezveis os lucros dos mer-cenrios e de todos aqueles aos quais se retribuem pelos seus trabalhos e no pelos seus talentos, porque para eles o salrio o preo de uma servido. E, da mesma forma que os gregos, os romanos tambm no tiveram a necessidade de invenes que facilitassem o trabalho, pois no existiam os conceitos atuais de produtividade e competitividade, que sero caractersticos do capitalismo, ao mesmo tempo que tinham escravos suficientes para fazer o trabalho.

    Novamente, a abundante mo de obra escrava e o desejo de preservar a organizao social explicam a falta de interesse Mas, sobretudo, o desenvolvimento de invenes tecnolgicas no aparece como necessi-dade social. Desse modo, ao longo do Imprio Romano, e at o final da Idade Mdia, nas sociedades ocidentais, o trabalho no se converte na base das relaes sociais. Estas resultam de outras lgicas (de sangue, de hierarquia, etc.), de lgicas que permitem que alguns vivam do trabalho dos outros. Em suma, o trabalho no est no centro das concepes que a sociedade tem de si mesma; ele no apreciado, sem dvida tambm, porque ainda no o conceituam como um meio para derrubar as barreiras sociais, para modificar as posies adquiridas por nascimento (Mda, 1998, p. 41 -42).

    Recordemos que, em relao a tudo isso, as festas dos antigos gregos e romanos eram muito numerosas, igual s de outros povos da Antiguidade, sem esquecer que tambm os escravos ficavam livres nos dias festivos da mesma forma que os animais de carga.

    o cristianismo e a idade Mdia, perodo de transio

    Com um novo conceito de homem, derivado do judasmo, o cristianismo j contm o germe da valorizao do trabalho, mas no chega a passar disso. Pelo contrrio, o pensamento judaico -cristo ainda o despreza. De fato, para ele o trabalho uma maldio, um castigo de Deus, depois do pecado de Ado. Essa ideia aparece claramente no Gnesis (3, 19):

    Maldita seja a terra por tua culpa! Com fadiga tirars dela teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te dar espinhos e cardos, e comers a erva dos campos. Com o suor do teu rosto comers o po, at que retornes terra da qual foste formado. Porque p s e ao p voltars.

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    Como facilmente se pode constatar, diante dessas ideias e valores, di-ficilmente poderia ser construda uma noo de trabalho como a que temos agora. Mantinha -se, assim, um desprezo s atividades servis, e, coerente-mente com isso, as festas, j ento religiosas, chegavam a ocupar quase a me-tade dos dias do ano em muitos dos povos da Europa crist medieval. Existem evidncias que mostram que comunidades mais atrasadas da Europa Central comemoravam 182 festas ao ano (Naredo, 2001).

    No obstante, algo j estava comeando a mudar. Assim, com Santo Agostinho, trabalho e obra comeam a se confundir, enquanto o cio j come-a a ser censurado. Com So Benedito o trabalho manual comea a ganhar prestgio, e ele o coloca no nvel nada menos que da reza (Ora et labora), censurando o cio por ser o pai de todos os vcios. Pouco a pouco, sob a in-fluncia dos textos gregos descobertos e principalmente pelas interpretaes rabes deles, assim como para definir normas de convivncia, sobretudo nos monastrios, a Igreja ir promover uma nova concepo do trabalho. So-mente ser ao final da Idade Mdia, quando teoria e prtica tero mudado ao extremo para favorecer a ecloso de uma modernidade centrada no trabalho (Mda, 1998, p. 43). De fato, durante os sculos XII e XIII, produz -se uma im-portante inovao: ocorre uma grande reduo na classificao de profisses consideradas ilcitas e uma moderao da censura, antes absoluta, da usura, de forma que apenas se condenam os comerciantes que agem por ambio ou por af de lucro. Por exemplo, So Toms de Aquino chega a valorizar muito o trabalho, embora apenas quando seja til para a comunidade, revalorizando certos ofcios, como os mercantis e, em certo sentido, inclusive a venda ou a usura, sempre que sejam em benefcio de um grupo de pessoas. Por isso, a utilidade social j justifica o trabalho e sua remunerao. Mesmo tendo aparecido nessa poca o termo tripalium, uma mesa de tortura, associado ao trabalho e, desde ento, este ltimo no deixou de ter certas conotaes negativas, como incmodo, angstia, sofrimento ou penalidade, tambm foi nesse perodo que surgiu

    uma nova considerao do trabalho, que se explica no apenas pelo interesse repentino da Igreja e de seus tericos pela vida cotidiana dos homens terrenos, mas tambm pela ascenso social de algumas classes em expanso e em busca de reconhecimento: artesos, comerciantes, tcnicos

    A concepo do trabalho mudou e apenas a partir deste momento como apontou em vrias ocasies Marc Bloch certas invenes, que no haviam passado de curiosidades, como o moinho de vento, come-am a ser aperfeioadas. Configura -se, assim, um contexto intelectual que ainda resiste em converter o trabalho em uma atividade essencial e valorizada, mas que traz consigo germes de futuras evolues (Mda, 1998, p. 48).

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    surgimento do capitalismo e incio da Modernidade

    Foi com o incio da Revoluo Industrial que comeou a mudar tudo:

    O toque dos sinos nos monastrios e das trombetas nos acampamentos e quartis logo se veria imitado pela sirene das fbricas para que, pela primeira vez na Histria, os homens se levantassem em unssono, como se dirigidos por um chefe invisvel, para serem submetidos pelo relgio ao ritmo pr -fixado do processo econmico. No sculo XVI, ao mesmo tempo que as campainhas dos relgios comearam a soar periodicamen-te, o trabalho se erigia em valor supremo ao que devia se submeter a existncia do homem.

    Tratava -se de um trabalho abstrato e homogneo, medido em uni-dades de tempo, cujo ritmo no devia ser perturbado. O grande nmero de dias festivos ento existente comeou a parecer uma desgraa: o desperdcio de um tempo roubado do trabalho. Assim, trabalho foi identificado com atividade e ao cio foi atribudo um carter meramente passivo e parasitrio Em suma, acabou -se impondo o novo evangelho do trabalho, segundo o qual se podia servir a Deus, ao Estado e inclusive ao indivduo mesmo, trabalhando (Naredo, 2001, p. 16).

    Era o incio do imprio de um novo conceito, o de trabalho, e de uma nova poca, a Modernidade. Mas essas mudanas no se produziram da noite para o dia, foram a consequncia de um longo processo histrico, como esta-mos vendo, processo que levou Revoluo Industrial, que comeou na Ingla-terra no sculo XVIII e que paulatinamente foi se estendendo, primeiro pela Europa e pela Amrica do Norte, muito tempo depois, pelo resto do mundo. Por exemplo, Fernando Dez (2001) situa o conceito de trabalho dentro do segundo Mercantilismo, que ocorreu na Europa a partir de 1680 e que, ten-tando resgatar o conceito de trabalho dos cristos, do ascetismo* e da doutri-na eclesistica sobre as obrigaes do Estado, pretendeu integr -lo no crculo das preocupaes que interessavam ao novo discurso da economia poltica mercantilista, elaborando uma teoria do fundamento da riqueza nacional em que o trabalho revalidar intelectualmente sua posio central.

    Dessa forma, com a Revoluo Industrial houve uma drstica mudana. Relativamente em poucos anos e de forma radical, incrementaram -se muito as taxas de produo e de lucro, o que implicou no desenvolvimento do sis-tema financeiro, no aumento exponencial da populao urbana e na consti-tuio de uma poderosa burguesia. No foi por acaso que, em 1776, Adam Smith publicou seu A riqueza das naes, em que j pretendia estudar as leis

    * N. de T. Doutrina de pensamento ou de f que considera a disciplina e o autocontrole do corpo e do esprito um caminho imprescindvel para se chegar a Deus, verdade ou virtude.

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    que determinam o crescimento da riqueza, da mesma forma que os fsicos es-tudam as leis que determinam os fenmenos fsicos. Isso teve trs importan-tes consequncias: em primeiro lugar, nasceu a Economia; em segundo lugar, em vez de condenar a riqueza, passa -se a almej -la e admir -la; e em terceiro lugar, nasce o conceito de trabalho em seu sentido moderno: o trabalho co-mea a ser visto como uma fora fundamental, capaz de criar e acrescentar valor, deixando de ser algo execrvel e entediante para ser um pilar da rique-za das naes. De fato, o citado livro de Smith comea com um longo estudo do trabalho, intitulado O trabalho e os trabalhadores so a principal fonte de riqueza das naes, em que o autor se sente fascinado pela capacidade que o trabalho humano, adequadamente organizado, tem de ganhar valor de maneira exponencial. Esse captulo um hino produtividade do trabalho, pois para Smith o trabalho o principal meio de fazer crescer a riqueza. Foi, portanto, no sculo XVIII que se inventou o trabalho, ao mesmo tempo como categoria homognea e como fator de crescimento da riqueza.

    Agora vejamos, por que ocorreu essa mudana radical na concepo da riqueza? Alguns explicam -na como uma mera consequncia da Revoluo In-dustrial. Mas outros, com os que estou mais de acordo, vo alm, perguntando--se: Por que a prpria Revoluo Industrial se deu em sua poca e no antes e nem depois? Para Max Weber, por exemplo, a Revoluo Industrial no teria acontecido sem uma profunda e prvia transformao das mentalidades: o Protestantismo de Lutero e o de Calvino levaram a uma importante mudana nas crenas e nas maneiras de pensar, que, por sua vez, haviam facilitado o incio da Revoluo Industrial que levou ao capitalismo. Embora, a meu ver, em tal processo, h de se ter presente a inevitvel, permanente e conflituo-sa relao entre tecnologia e mentalidade. Na verdade, foi principalmente a introduo de diferentes tecnologias, desde a ponta de ferro das flechas at a internet, que foi modificando as mentalidades das pessoas e dos povos o que, por sua vez, acarretou profundas mudanas sociais.

    Mas, para entender perfeitamente o surgimento do conceito de trabalho e, ao mesmo tempo, da prpria Modernidade, fundamental levar em conta algo importante como foi a apario do indivduo em sentido moderno. Apario que, como mostra Toulmin (2001), tanto se deve aos renascentistas do sculo XVI, com Michel de Montaigne ou, principalmente, com Juan Luis Vives. Mas foi durante o sculo XVII que surgiu no Ocidente, e em nenhum outro lugar, o indivduo na cena pblica, o que acarretou consequncias de primeira ordem sobre a mentalidade do homem ocidental. A apario do in-divduo facilitou o surgimento do conceito de trabalho, e logo o trabalho moderno tornou complexa a constituio da subjetividade individual (Crespo e Soldevilla, 2000; Ovejero Bernal, 1999, Captulo IV). Conforme mostrou Max Weber, o homem fica sozinho diante de seu destino e tem de buscar outras bases de sustentao, processo em que o trabalho alcanar um novo e crucial significado, pois a relao dos indivduos com a sociedade em seu

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    conjunto ser realizada por meio do trabalho, e a riqueza que possa ser al-canada por meio dele ser, a partir de agora, o sinal de que se aceito por Deus e, portanto, a autntica base de sustentao. A partir desse momento, o trabalho constituir a relao social nuclear.

    a consolidao do capitalismo nos sculos XiX e XX

    Como j dissemos, embora o conceito de trabalho tal como o conhece-mos existisse no sculo XVIII, no entanto, ser ao longo do sculo seguinte que ele evoluir muito. Realmente, no final do sculo XVIII o trabalho ser percebido como um fator de produo e como a relao contributiva que estabelece o vnculo entre o indivduo e a sociedade. De acordo com Mda (1998, p. 75),

    o sculo XIX transformar profundamente essa representao at fazer do trabalho o modelo por antonomsia da atividade criadora (): o trabalho acabar apresentando -se como a essncia do homem. Trata--se de uma transformao diretamente relacionada com uma profunda reviso das concepes de mundo e de conhecimento e com a evoluo das condies reais do trabalho.

    E nesse processo, por meio do qual o trabalho se converteu na essncia humana, Marx e o marxismo ocuparam um lugar to importante quanto o de Smith. Mas aqui, como em outros campos, Marx no seria Marx sem Hegel. A to citada autora Domnique Mda (1998, p. 81) nos explica essa ideia claramente:

    O conceito de trabalho fica, dessa forma, consideravelmente transfor-mado e enriquecido por Hegel, j que designa a mesmssima atividade espiritual, a essncia da Histria da humanidade, que atividade criadora e autoexpresso. Com isso Hegel est destacando a contribuio espe-cfica do sculo XIX: a construo de uma essncia do trabalho, isto , de um ideal de criao e de autorrealizao. Marx e parte dos idealistas consideraro este ideal como a verdadeira essncia do trabalho e a com-pararo com o trabalho real da poca: o resultado ser a configurao do esquema utpico do trabalho.

    nesse sentido que podemos dizer que, paradoxalmente, o pensamento de Karl Marx trouxe consigo uma inestimvel ajuda para a consolidao do capitalismo. Isso se deu, ao menos, em dois sentidos: em primeiro lugar, pela centralidade conferida ao trabalho em sua teoria, chegando a consider -lo a essncia do homem; em segundo lugar, pela importncia dada Economia, ficando acima do social e do poltico.

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    De forma mais concreta, e baseando -se, tambm aqui, em Hegel e em parte em Rousseau, Marx construir a oposio entre o verdadeiro trabalho, essncia do homem, e o trabalho real aquele que qualquer um podia ob-servar todos os dias na Inglaterra da Revoluo Industrial, em Manchester, por exemplo, e do qual ficaram registros literrios graas a Charles Dickens , que no seno uma de suas formas alienadas. Portanto, mesmo que se fale da alienao do trabalho, Marx o situa no centro da vida, embora deseje dignificar as condies concretas em que ele realizado. Porm, no coloca em dvida sua existncia: para ele, o trabalho a essncia do homem, j que defende que a Histria demonstra que o homem transformou -se no que graas ao trabalho. Para Marx, o homem s pode existir trabalhando, ou seja, criando artifcios, substituindo o natural por suas prprias obras. Mas esse pensamento vai alm: o homem somente alcana sua plenitude quando, por meio do trabalho, imprime em tudo que coisa a marca de sua humanidade, de modo que homem e trabalho viriam a ser termos quase sinnimos.

    Por outro lado, seria difcil entender o significado atual de trabalho e as profundas contradies que atravessam o seu conceito, se no considerarmos a influncia da social -democracia durante o sculo XX e do Estado do Bem--Estar ao qual levou Estado que agora, depois de retroceder a Adam Smith e ao sculo XVIII e parte do sculo XIX, podemos dizer que est sendo se-riamente atacado (Anisi, 1995; Montes, 1996; Ovejero Bernal, 2004b). Dessa forma, a social -democracia, que nasce em 1898, com a criao da II Internacio-nal, caracterizada precisamente por um grande pragmatismo: no pretende terminar com o capitalismo, mas sim humaniz -lo, melhorando as condies de trabalho das pessoas e exigindo uma diviso mais justa dos lucros da produo. Com isso, para o bem ou para o mal, a social -democracia acaba consolidando a relao de trabalho e consegue o que os gestores empresariais, desde Taylor, no haviam conseguido: que os trabalhadores internalizem o trabalho como um valor humano fundamental. Ainda que tenha conseguido promover as d-cadas de maior bem -estar das classes trabalhadoras de grande parte da Europa, como da Inglaterra, da Sucia, da Alemanha, da Holanda, da Frana, etc.

    Em resumo, o conceito de trabalho seguiu o mesmo percurso que o pr-prio capitalismo: seus antecedentes esto no sculo XVII, seu nascimento no sculo XVIII, desenvolveu -se nos sculos XIX e XX e est sofrendo uma trans-formao radical desde fins do ltimo sculo e incio do sculo XXI. Contu-do, ainda no podemos saber com certeza aonde essa mudana nos levar. A cada dia, a realidade cotidiana contradiz mais o significado idealista que o trabalho ainda tem enquanto autorrealizao pessoal, enquanto expres-so de criatividade e de autonomia do Eu. Se isso assim, o que dizer dos milhes e milhes de pessoas que realizam trabalhos no qualificados, que se dedicam a ofcios nos quais no se autorrealizam de modo algum e nem podem expressar sua criatividade? O que dizer daqueles que trabalham nas alienantes cadeias de montagem industriais ou nos caixas dos grandes ou

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    nem to grandes centros comerciais? Hoje em dia, quantos desempenham um trabalho que realmente lhes permita a realizao pessoal? No esqueamos que o trabalho surgiu como um meio de aumentar a riqueza das naes, em seguida como uma forma de incrementar a riqueza do capitalista, e s com a social -democracia, de aumentar a riqueza do trabalhador. Essa ideia da au-torrealizao foi algo acrescentado, sobretudo por Marx e pelos marxistas. O trabalho aparece, portanto, como simples meio a servio dos fins do capitalis-mo. Alm disso, apenas o exercem aqueles indivduos que se veem impelidos pela fome a venderem a sua fora de trabalho (Mda, 1998, p. 116). Assim argumenta Mda (1998, p. 110 -111),

    embora se continue dizendo que o mais importante humanizar o tra-balho, na realidade no se pretende liber -lo, uma vez que se converteu no princpio bsico para direcionar a participao nas vantagens do crescimento: o Estado Social substituiu a utopia socialista do trabalho liberado pelo objetivo mais simples de proporcionar ao trabalhador, em troca de seu esforo, uma quantidade crescente de bem -estar e mais garantias sobre seu emprego. O sculo XX j no o sculo do trabalho, o sculo do emprego: compete ao Estado proporcionar a todos um emprego, a partir do qual se possa ter acesso s riquezas e se situar socialmente. O emprego o trabalho entendido como estrutura social, isto , como conjunto articulado de posies s quais se agregam determinados benefcios, como uma grilheta* de distribuio de renda. O emprego o trabalho assalariado em que o salrio j no a contra-partida precisa de um esforo realizado, mas o modo mediante o qual se tem acesso formao, proteo e aos bens sociais. O importante que todos tenham emprego.

    Com isso, como se constata facilmente, nasce a preocupao com o de-semprego.

    Enfim, em todas as sociedades houve algumas pessoas que desenvolve-ram atividades para a sua prpria subsistncia e para a de outros. Mas, como mostra Erich Fromm (1976, p. 126),

    o novo na sociedade moderna foi que os homens estavam agora impul-sionados a trabalhar, no tanto pela presso exterior, mas pela tendncia compulsiva interna que os obrigava de uma maneira apenas comparvel a que tivesse podido alcanar um padro muito severo em outras socieda-des. A compulso interna tinha mais eficcia em direcionar a totalidade das energias para o trabalho do que qualquer outra forma de compulso externa. Sem dvida, o capitalismo no teria se desenvolvido se a maior parte das energias humanas no tivesse sido encaminhada para o benef-cio do trabalho. No existe outro perodo da Histria em que os homens

    * N. de T. Argola de ferro usada para prender.

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    livres tenham dedicado tantas energias a um s propsito: o trabalho. A tendncia compulsiva direcionada ao trabalho incessante foi uma das foras mais produtivas, no menos importante para o desenvolvimento de nosso sistema industrial que o vapor e a eletricidade.

    Fromm explica de forma mais concreta:

    nosso moderno sistema industrial requer que a maioria das energias seja direcionada para o trabalho. Se a gente trabalhasse somente devido s necessidades externas, surgiriam muitos conflitos entre seus desejos e suas obrigaes e, portanto, a eficincia do trabalho se veria diminu-da. No entanto, por meio da adaptao dinmica do carter frente s exigncias sociais, a energia humana, em vez de originar conflitos, estruturada em formas capazes de convert -la em incentivos de ao adequados s necessidades econmicas. Assim, o homem moderno, em vez de trabalhar to duramente por alguma obrigao exterior, sente -se arrastado por aquela compulso ntima para o trabalho Em outras palavras, o carter social internaliza as necessidades externas, enfocando desse modo a energia humana para as tarefas exigidas por um sistema econmico e social determinado (Fromm, 1976, p. 329 -330).

    O trabalho, portanto, passou a ser uma parte fundamental de nossa sub-jetividade.

    FUNEs QUE o trabalho cUMPrE atUalMENtE: UMa PErsPEctiVa crtica

    Como vimos, ao longo dos dois ltimos sculos o conceito de trabalho conseguiu se converter na atividade fundamental do ser humano, at o ponto de se transformar em uma categoria antropolgica segundo a qual constitui-ria a verdadeira essncia da natureza humana, bem como seu principal vn-culo com a sociedade e, portanto, com os indivduos, de modo que o trabalho chega a ser um dos elementos definidores da Modernidade e, inclusive, um dos componentes mais importantes de nossa subjetividade. Tudo isso se deve ao fato de estarmos convencidos de algumas funes realmente relevantes que o trabalho cumpre. No entanto, conforme Hannah Arendt, afirmar que o trabalho constitui o centro da sociedade e o vnculo social principal significa defender uma concepo muito pobre desse vnculo, e supe negar que a ordem poltica tenha alguma especificidade que a diferencia da ordem eco-nmica e da regulao social; supe, assim, esquecer que a sociedade tem outros fins alm da produo e da riqueza e que o homem dispe de outros meios de expresso alm da produo e do consumo. Claro que o trabalho, na sociedade atual, cumpre muitas e importantes funes sociais. Mas esse justamente o problema. A falcia est no seguinte: a sociedade capitalista

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    se organiza em torno do trabalho e da produo (do consumo), de tal forma que qualquer um que queira comer e satisfazer suas necessidades materiais e no materiais precisa trabalhar. E logo se diz que trabalhar uma necessidade humana essencial, que autorrealiza quem o exerce, e que trabalhar vincula essencialmente o trabalhador -cidado com a sociedade. Porm, ambas as coi-sas so um acrscimo ideolgico com a finalidade, por uma parte, de preser-var o trabalho e com ele preservar tambm a produo, a mais -valia e o lucro do capital e, por outra, com a finalidade de converter o trabalho na forma essencial de controle social em nossas sociedades. No se esqueam das leis de desocupados e ladres aprovadas em diferentes pases europeus quando o capitalismo necessitava ser implantado: podia ser preso qualquer um que no demonstrasse que trabalhava, e algo similar continua acontecendo hoje em dia com os imigrantes. que:

    o trabalho foi uma soluo diante da apario do indivduo no cenrio pblico e diante dos riscos de alterao da ordem social. Foi o mecanismo privilegiado para integrar o indivduo no conjunto social, assegurando, com isso, algum automatismo na regulao social. Nesse sentido, e enquanto atributo de cada indivduo, o trabalho veio para substituir as antigas ordens baseadas nas hierarquias naturais ou herdadas, e fundou um novo princpio de ordem em torno da capacidade e de uma nova hierarquia social (Mda, 1998, p. 156).

    Consequentemente, certo que o trabalho s vezes emancipa o indiv-duo e s vezes o escraviza, mas sempre o controla. Por isso as contradies do conceito de trabalho, j que ao mesmo tempo que legitima a explorao e o controle social, permite ao indivduo ser livre, satisfazer suas necessidades e se relacionar socialmente. De fato, na sociedade atual, o trabalho cumpre uma srie de funes, embora isso no sirva para todos os tipos de trabalho. Entre as funes, destacamos as seguintes (Salanova, Gracia e Peir, 1996):

    1. Funo integrativa ou significativa: O trabalho d sentido vida, dado que permite aos cidados se realizarem pessoalmente e formarem sua autoestima e sua identidade.

    2. Funo de proporcionar status e prestgio social: Certamente, em nossa sociedade, o status e o prestgio social dependem do trabalho que se realiza.

    3. Fonte de identidade pessoal: Vemo -nos muito e, principalmente, os outros nos veem por meio da profisso que exercemos.

    4. Funo econmica: Sem dvida, em uma sociedade como a nossa, basicamente econmica e consumista, o poder aquisitivo tudo. Alm disso, a maioria das pessoas obtm seus ganhos financeiros e, portanto, seu sustento assim como sua capacidade de gastar e comprar coisas,

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    de seu salrio, do dinheiro obtido pelo seu trabalho, o que faz com que a funo econmica do trabalho seja bsica.

    5. Fonte de oportunidades para a interao e os contatos sociais: A meu ver, por uma disfuno da sociedade atual que o trabalho , realmente, a principal fonte de oportunidades para as relaes sociais. Como consequncia, no raro que os desempregados se sintam sozinhos, deprimidos e com poucas relaes sociais.

    6. Funo de estruturar o tempo: Como mostra criticamente Hannah Arendt, nas sociedades industriais o trabalho o principal marcador do calendrio (dias de trabalho/dias de no trabalho), inclusive do horrio dirio.

    7. Funo de manter o indivduo sob uma atividade mais ou menos obrigatria: As sociedades industriais socializam quase que exclusivamente para o trabalho, de tal maneira que, quando as pessoas deixam de trabalhar, por motivos como desemprego, aposentadoria ou pr--aposentadoria*, no sabem o que fazer com o tempo livre.

    8. Funo de ser uma fonte de oportunidades para desenvolver habilidades e destrezas: A sociedade est organizada de modo que, quando algum no tem oportunidade de trabalhar, muitas vezes tambm no tem oportunidade de colocar em prtica e desenvolver suas habilidades e conhecimentos.

    9. Funo de transmisso de normas, crenas e expectativas sociais: O mundo do trabalho uma das principais instncias socializadoras em nossa cultura, sendo um dos principais emissores de normas sociais, crenas, etc.

    10. Funo de proporcionar poder e controle: Esta funo uma conse-quncia lgica de tudo que foi exposto anteriormente. Quem no tem trabalho perde muitas oportunidades de ter e exercer poder e, portanto, de defender seus interesses.

    Mas evidente que, para que o trabalho cumpra essas funes, deve ser realizado em condies com mnima qualidade, algo que est longe de acontecer. Alm disso, grande parte dos trabalhos continua sendo entedian-te, montona e com pouca qualidade de vida no trabalho. Encontramo -nos, portanto, em uma poca dominada pela contradio de considerar o trabalho uma obra pessoal quando, de fato, est regido mais do que nunca pela lgica da eficcia. O motivo dessa contradio no nos saltar vista porque assi-milamos plenamente o pensamento humanista e produtivista (Mda, 1998, p. 134). E quanto ao segundo argumento apresentado em defesa do trabalho,

    * N. de T. Situao de um trabalhador que decide abandonar sua atividade remunerada antes da idade legal de aposentadoria, mediante um acordo com sua empresa.

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    o do vnculo social, para o qual ele constitui o suporte cotidiano do vnculo na sociedade, j que nos proporciona uma identidade social, til para ns e propicia muitas relaes sociais. Seria preciso analisar por que isso assim. Claro que o trabalho, atualmente, cumpre importantes funes sociais, geran-do um vnculo entre as pessoas, mas no o faz por si mesmo, intrinsecamente, mas apenas acidentalmente, porque tudo est organizado para que essas fun-es no sejam satisfeitas por outras instncias. De uma forma mais direta, foi a prpria sociedade capitalista que organizou a vida social de tal maneira, e reduziu -a tanto, que obriga o trabalho a cumprir essas funes. Que conceito temos do vnculo social para poder chegar a considerar que o trabalho a sua condio principal? Que tipo de representao temos dele para chegar a confundi -lo com o vnculo que gera o trabalho? Herdamos as representaes transmitidas pela economia que encontramos nas obras de Smith e Marx, re-presentaes segundo as quais tudo se reduz economia: a poltica se trans-formou tambm nesta ltima, e a prpria Psicologia se colocou a seu servio. Estamos j na globalizao neoliberal.

    o No trabalho: o dirEito PrEgUia

    A internalizao do trabalho como valor central de nossas vidas foi tan-ta, que, quando surgiram sindicatos de trabalhadores, eles no foram contra o trabalho, mas somente tentaram faz -lo mais racional e justo, para melho-rar as condies da vida profissional. Por exemplo, Saint -Simon, socialista--revolucionrio, no critica a incipiente sociedade industrial e capitalista, mas prope que a prpria organizao poltica deve estar a servio da industrializa-o e do desenvolvimento econmico, ou seja, do trabalho produtivo e social-mente til. Depois de 120 anos, um homem e um sistema poriam isso em pr-tica: Stalin e o capitalismo de Estado na Unio Sovitica. As consequncias j sabemos. Apenas ficaram margem do processo parte do anarquismo e grupos sociais marginalizados pelo sistema, como por exemplo os ciganos. Por isso, o poder do capital alcanou um nvel to alto, que chegou a esconder totalmente o trabalho, colocando -o a seu exclusivo servio, com os j conhecidos efeitos de desemprego, de trabalho flexvel, de precariedade no trabalho, etc. A soluo trabalhar menos talvez, sobretudo para viver melhor e mais profundamente. No fim, o centro da vida no o trabalho, mas a vida em si mesma: a vida tudo que temos. Todo o resto devemos colocar a seu servio. Sendo assim, o trabalho que deve estar a servio da vida, e no o contrrio.

    No entanto, h sculos, foram muitas as utopias que sonharam com uma sociedade em que j no fosse necessrio trabalhar. Inclusive durante o sculo XIX, muitos foram os autores que defendiam o no trabalho, destacando -se principalmente o russo P. Kropotkin e o francs P. Lafargue, genro de Karl Marx. Todas essas ideias estavam baseadas em um antecedente fundamental:

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    as proposies do suo J. J. Rousseau. Na realidade, esse autor se posicionou contra o conceito burgus de trabalho, que j havia se consolidado em mea-dos do sculo XVIII. Isso se deu de tal maneira que, segundo Dez (2001, p. 223), podemos consider -lo um crtico radical da imagem do homem burgus e da sociedade burguesa, a qual se esforavam para perfilar seus ilustres co-legas. Com eles manteve uma relao difcil, entrando em conflito no final. A posio de Rousseau

    supe o desprezo sistemtico pela fundamentao psicolgica, econ-mica e moral da ideia de trabalho iluminada pelos ilustres Rousseau, na medida de suas possibilidades, proceder construo da ideia de trabalho para ajust -la a seu pensamento crtico. Com uma demonstrao surpreendente de tradio e inovao, esboar algum dos traos fortes de uma nova ideia de trabalho que influenciar poderosamente nas re-presentaes trabalhistas posteriores, prprias da atmosfera intelectual e discursiva do primeiro tero do sculo XIX (Dez, 2001, p. 224 -225).

    As ideias de Rousseau abrem caminho, inclusive, s poucas correntes an-titrabalhistas que surgiriam mais tarde. Entre as que eu gostaria de destacar, est a de P. Lafargue, com seu conhecido livro O direito preguia, publicado em 1880, sobretudo pelo grande sucesso que teve em diferentes pocas e mais ainda porque, ao meu ver, representa perfeitamente a maioria dos dis-cursos antitrabalhistas que existiram desde ento (ver Zerzan, 2001). Sem Rousseau, e tambm sem Kropotkin, provavelmente este livro nunca teria sido escrito. Ambos entendem o direito ao bem -estar como algo contraposto ao simples direito ao trabalho. O prprio Lafargue diz claramente:

    O direito ao bem -estar a possibilidade de viver como ser humano e de criar os filhos para faz -los membros iguais de uma sociedade superior a nossa; ao passo que o direito ao trabalho o direito a continuar sendo sem-pre um escravo assalariado, um homem de trabalho, governado e explorado pelos burgueses de amanh. O direito ao bem -estar a revoluo social; o direito ao trabalho , no mximo, uma pena de priso industrial.

    Portanto, no estranho que os libertrios acolhessem melhor o folheto de Lafargue do que os socialistas. O genro de Marx pretendia substituir o sis-tema capitalista por um sistema social novo, capaz de satisfazer as exigncias do direito preguia.

    De forma mais concreta, Lafargue comea o primeiro captulo de sua obra com esta citao de Lessing: Sejamos preguiosos em tudo, exceto para amar e para beber, exceto para sermos preguiosos. E acrescenta:

    Um estranha paixo invade as classes operrias dos pases em que reina a civilizao capitalista; uma paixo que na sociedade moderna tem por

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    consequncia as misrias individuais e sociais que h dois sculos tor-turam a triste Humanidade. Essa paixo o amor ao trabalho, o frenesi do trabalho, levado at o esgotamento das foras vitais do indivduo e de sua progenitura. Em vez de reagir contra essa aberrao mental, os padres, os economistas e os moralistas sacrossantificaram o trabalho (Lafargue, 1973, p. 91).

    Mais ainda, Lafargue afirma convicto (1973, p. 92) que: na sociedade capitalista, o trabalho a causa da degenerao intelectual, de toda a defor-mao orgnica. E conclui com um corrosivo sarcasmo (p. 95):

    Jeov deu a seus adoradores o supremo exemplo da preguia ideal: depois de seis dias de trabalho entregou -se ao repouso por toda a eternidade tambm o proletariado, traindo seus instintos e ignorando sua misso histrica, deixou -se perverter pelo dogma do trabalho. Duro e terrvel foi seu castigo. Todas as misrias individuais e sociais so o fruto de sua paixo pelo trabalho.

    Lafargue era consciente de que a tica calvinista do trabalho estava sen-do internalizada tambm pelos trabalhadores de pases catlicos como Fran-a, Itlia ou Espanha, principalmente no mbito urbano, de tal forma que ele estava comeando a ser idealizado. De fato, escrevia o genro de Karl Marx:

    Os proletrios, prestando ateno s falaciosas palavras dos economis-tas, entregaram -se de corpo e alma ao vcio do trabalho, contribuindo, com isso, para precipitar a sociedade inteira nessas crises industriais de superproduo que transtornam o organismo social. Ento, por causa dessa superproduo de mercadorias e da escassez de compradores, fecham -se as fbricas, e a fome aoita as populaes operrias com seu chicote de 1000 tiras (Lafargue, 1973, p. 106 -107).

    Lafargue (1973, p. 112) acrescenta:

    Essas misrias individuais e sociais, mesmo que sejam grandes e inu-merveis e que paream eternas, desaparecero, como as hienas e os chacais ao se aproximar o leo, quando o proletrio diga: eu o quero. Mas para que tenha conscincia de sua fora, necessrio que o proletariado pisoteie os preconceitos da moral crist, econmica e livre -pensadora; necessrio que volte a seus instintos naturais, que proclame os direitos preguia, 1000 vezes mais nobres e mais sagrados que os tsicos di-reitos do homem, concebidos pelos advogados metafsicos da revoluo burguesa; que se empenhem a no trabalhar mais de 3 horas dirias, folgando e gozando no resto do dia e da noite At aqui minha tarefa foi fcil; apenas tive que descrever males reais, bem conhecidos por todos ns! Mas convencer o proletariado de que a moral que lhe inculcaram

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    perversa; de que o trabalho sem freio, sem medida nem objetivo, ao qual se entregou desde o princpio do sculo, o mais terrvel aoite que sempre castigou a Humanidade, e de que o trabalho se converter em um condimento dos prazeres da preguia, em um exerccio benfico ao organismo humano e em uma paixo til ao organismo social quando seja sabiamente regularizado e limitado a um mximo de 3 horas, uma tarefa rdua e superior s minhas foras.

    Essa tarefa era na verdade to rdua, que ningum ainda a executou.

    coNclUso

    Do que estamos falando, quando falamos de trabalho? A resposta, depois deste captulo, parece -me bvia: o trabalho uma construo social dentro de um contexto histrico e de uma cultura muito concretos e que se relaciona com experincias e com um modo de vida das pessoas tambm concretos, tambm com um sistema de relaes simblicas desenvolvidas em seu meio e que, em boa parte, determinam as aspiraes dessas pessoas e de seu nvel de satisfao profissional em diferentes circunstncias e condies. Mas esse conceito de trabalho, como tudo que construdo socialmente, teve um princpio e ter um fim. O princpio foi o capitalismo do sculo XVIII, se me permitem afirmar isso com um certo exagero, e o final parece que est chegando no incio deste sculo XXI. O trabalho na Europa e quase que so-mente l passou a fazer parte essencial do conceito de cidadania, com seus direitos trabalhistas e sociais, est sendo arruinado em seus mesmos cimentos pelo atual neoliberalismo, melhor dizendo, pela atual gesto neoliberal, feroz e desumana, da globalizao (Ovejero Bernal, 2002, 2004b, 2005b, 2006), o que ser tema do prximo captulo. E as profundas mudanas que hoje acon-tecem no mbito do trabalho (Gorz, 1998) esto tambm modificando a Psi-cologia e at as vidas dos cidados. De fato, como mostra Alonso (1999), se o fordismo sups uma dessocializao forada dos modos de vida comunitrios para ressocializar o trabalho nos esquemas normatizados de produo e con-sumo em massa, o processo que estamos vivendo um passo paradoxal de dessocializao do trabalho estabilizado e normatizado e de reestruturao deste em estilos de vida justapostos, quase impermeabilizados, bastante di-ferenciados e estreitamente relacionados com dinmicas legitimadoras. Essas dinmicas esto mais desligadas dos aspectos apenas produtivos e da relao salarial e esto muito mais prximas dos mecanismos simblicos de controle social, no mais puro sentido foucaultiano. A poltica est sendo substituda cada vez mais pela economia, de forma que o lucro o mais importante o que, para aumentar a gravidade da situao, tambm se aplica ao setor pblico e s polticas sociais; a autorrealizao substituda pelo consumo, e a solida-riedade est cada vez mais sendo trocada pelo salve -se quem puder.

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    Como j vnhamos explicando, o conceito de trabalho adaptou -se gra-dualmente s necessidades do capitalismo e s suas transformaes, razo pela qual est, hoje em dia, mudando substancialmente, ao compasso das exigncias da revoluo tecnolgica, tornando -se mais flexvel, o que traz consequncias fundamentais para os trabalhadores (Carnoy, 2001). As mu-danas do conceito de trabalho ameaam com o seu prprio desaparecimen-to, conforme defendem alguns tericos. Digo que esto exagerando, porque no certo que o trabalho esteja desaparecendo: apenas est se transforman-do, e de uma maneira realmente profunda e radical. Inclusive o desemprego, sem dvida obscenamente alto, tem suas causas em polticas concretas ado-tadas. O problema do emprego e do desemprego nos pases tecnolgicos no uma questo econmica nem sequer tecnolgica, mas claramente poltica. Afinal, so os polticos que esto interessados em culpar a tecnologia pelo desemprego e pelo trabalho precrio, para ocultar a culpa que suas polticas tm. So as formas de utilizao da tecnologia, as polticas das empresas, as instituies reguladoras do mercado de trabalho e as polticas pblicas que explicam a evoluo do trabalho, tanto quantitativa como qualitativamente (Castells, 2001a, p. 10 -11). Mas no estamos, de forma alguma, diante do final do trabalho. Outro aspecto relevante e j comentado que as novas tec-nologias esto produzindo profundas transformaes no mundo do trabalho, entre as quais destacamos: flexibilidade do emprego, individualizao das condies de trabalho, fragmentao da mo de obra, aumento das diferen-as na temporalidade da vida profissional, entre outros. Tudo isso, devido s polticas concretas que esto sendo adotadas, est levando a uma srie de consequncias socialmente perigosas e absolutamente letais para milhes de trabalhadores, como desemprego, precariedade do emprego, perda dos direitos trabalhistas, etc. A tese central de Martin Carnoy (2001), publicada recentemente em um livro intitulado El trabajo flexible en la era de la informacin, que, se no se abordam esses custos e no se reconstri o teci-do subjacente nova sociedade, o crescimento econmico estar ameaado, porque o problema no econmico nem tecnolgico, mas poltico, como j dissemos. Segundo Castells, sustentar a nova economia significa construir um novo conjunto de instituies sociais, para mant -la e, acrescento, para proporcionar ao indivduo o apoio social que as mudanas da sociedade e do trabalho esto reduzindo (Putnam, 2002, 2003). Em outras palavras, a nova sociedade, as formas de trabalho no auge, individualizadas, flexveis e com jornadas de 12 horas dirias, etc., e o tipo de famlia e de relaes sociais que se vo impondo, e que acarretam um maior individualismo e solido, esto criando muitos problemas aos indivduos, e no existem ainda instituies sociais que ajudem os cidados a enfrentar esses problemas. O que se ob-serva que a famlia tradicional est em declnio, e ainda mais as igrejas, os partidos polticos e os sindicatos. Ao mesmo tempo, a vida no bairro tambm

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    desapareceu, ocupando parte de nosso tempo no as atividades sociais, mas outras indivi duais, como deslocar -se nas cidades e ver televiso. Por isso, con-forme Castells (2001a, p. 12), a flexibilidade produtiva que est na base da nova economia e a individualizao das relaes sociais que est na base da sociedade em rede rompem com o fundamento da sociedade como sistema de convivncia coletiva. Porm, o problema que surge de tudo isso no apenas pessoal (psicolgico) e social, mas tambm essencialmente econmico.

    Se no aparecem instituies novas que compensem essas transformaes fundamentais, a produo flexvel, essencial para a elevada produtivi-dade da economia global, ser muito menos eficiente, o que ter efeitos desastrosos em todos os nveis (Carnoy, 2001, p. 20).

    E tudo isso est transformando, tambm de forma radical, o significado do trabalho.

    A transformao do trabalho e da famlia tambm est dissolvendo as relaes polticas que se desenvolveram nos pases industrializados en-tre os trabalhadores e o governo por meio dos servios sociais pblicos, como a Previdncia Social e os servios pblicos de sade, dos quais se beneficiavam, principalmente, pessoas com postos de trabalho vitalcios e de tempo integral (na prpria localidade), por meio de grupos cvicos e polticos organizados em torno das comunidades e famlias tradicionais (Carnoy, 2001, p. 25 -26).

    Mas isso j est acabando, e nem os governos nem os sindicatos esto respondendo adequadamente a essas novas circunstncias, de modo que es-to surgindo novos movimentos sociais que tentam dar uma resposta.

    Concluindo, como defendia Max Weber, o ato fundador do capitalismo e portanto um dos fundadores da Modernidade foi a separao entre produ-o e lar, assim para Bauman (2003, p. 38 -39):

    os trabalhadores e artesos de ento no tinham claro o que podia significar o trabalho bem feito, por isso no se vinculava dignidade, valor ou honra com faz -lo bem. Ao seguirem a rotina sem alma da oficina da fbrica, observados no pelos familiares ou pelos vizinhos, mas vigiados exclusivamente pelo capataz, que tem suspeitas constantemente e vigia sempre, ao executarem movimentos ditados pelas mquinas sem nenhuma oportunidade de admirarem o produto do prprio empenho, e sem, digamos, julgarem sua qualidade, qualquer esforo se convertia em ftil, e um esforo ftil o que sempre e em todo momento aborreceu e ressentiu os humanos, devido ao seu instinto de trabalho eficaz (ver Bauman, 2003b).

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    Tudo isso no produziu mais que alienao e misria material com ex-cessiva frequncia. Em todo caso, como argumenta Bauman, talvez a princi-pal consequncia do capitalismo tenha sido justamente a perda do sentido de comunidade. Por isso, diante da pergunta de por que o homem moderno no feliz nem sequer quando tem tudo em abundncia, devemos responder que porque ele perdeu o sentido comunitrio que sempre teve e que agora deve enfrentar sozinho a liberdade. E isso insuportvel para ele, constituindo o germe de fundamentalismos e sectarismos de diferentes tipos.

    O que fazer nessas circunstncias? Ao meu ver, basicamente estas quatro coisas:

    1. Desencantar o trabalho, no sentido antes comentado. Assim, o trabalho a maneira de conseguirmos o sustento e nada mais;

    2. Trabalhar menos e viver mais e melhor. O trabalho no pode conti-nuar sendo o centro de nossas vidas nem nossa prpria essncia. Ele sempre deve estar a servio da vida e no o contrrio;

    3. Desenvolver associaes de diferentes tipos que aumentem o comunita-rismo e o apoio social, to necessrios hoje em dia, na medida em que diminuem a fora do individualismo feroz que nos atrapalha e que inclu-sive ameaa a prpria existncia da comunidade (Bauman, 2003a);

    4. Ir abandonando a lgica perversa e suicida de um desenvolvimento e crescimento desenfreados que levam s crises e, portanto, cedo ou tarde, catstrofe, mesmo cumprindo com os trs requisitos ante-riores.