sicride um retrato das a es contra o desaparecimento de crian as no paran

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texto sobre crianças desaparecidas no Paraná

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  • 1SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

  • 3SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    SICRIDE Um retrato das aes contra o

    desaparecimento de crianas no Paran

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    Todos os direitos reservados aos autores.Maring, 2012

    EdioRosane Verdegay de Barros

    EditoraoIsadora Casavechia

    CapaThiago Ximenes

    FotosAna Luiza Verzola

    David Souza (p. 43)

  • 5SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    s mes, aos pais e a cada pessoa que luta incessantemente em prol do combate ao

    desaparecimento de crianas, dedicamos este trabalho.

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

  • 7SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    Eu acredito que, nas ruas do mundo, o grande desafio olhar

    para ver. E olhar para ver perceber a realidade invisvel - ou

    deliberadamente colocada nas sombras. Olhar para ver o ato

    cotidiano de resistncia de cada reprter, de cada pessoa.

    Eliane Brum

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

  • 9SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    SUMRIO

    CAPTULO UMA ltima lembrana ................................................................... 11

    CAPTULO DOISMudana de rumos ................................................................... 71

    CAPTULO TRS1995 a 1997.............................................................................. 81

    CAPTULO QUATRO1997 a 2003 ............................................................................. 99

    CAPTULO CINCO2003 a 2007 ............................................................................. 119

    CAPTULO SEIS2007 a 2008 ............................................................................. 141

    CAPTULO SETE2008 a 2011 ............................................................................. 151

    CAPTULO OITODezembro de 2011..................................................................... 177

    CAPTULO NOVETer um filho desaparecido ter a vida suspensa ....................... 187

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    PRIMEIRO CAPTULO

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    A LTIMA LEMBRANAAntes de 1995, 12 crianas do Paran estavam desaparecidas. Em 1992, seis sumiram. A mais

    antiga, de 1980, de Foz do Iguau.

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    1991

    Acordou apressada, arrumando-se rapidamente e mal aproveitando

    o caf da manh. Era preciso chegar ao trabalho, afinal, uma nova jornada

    se materializava diante da nova semana. Dona de olhos castanhos e do

    cabelo de mesma tonalidade bem ajeitado, na altura dos ombros, Arlete

    lembrou-se de uma tradio que a acompanhava sempre que saa de

    casa, todos os dias: dirigia-se ao quarto onde repousavam dois amores

    incondicionais o filho, de 8 anos, e a prpria me, que fazia aniversrio

    naquele mesmo dia, completando 67 anos. Ela encostaria os lbios na

    testa do primognito, desejando estar logo em casa para desfrutar da

    companhia da famlia. O horrio de almoo no deveria tardar era o

    momento que Arlete reservava para os entes queridos e tambm para

    aprontar o lanche da criana, que cursava a 2 srie do primrio. Entretanto,

    naquela manh, o ato materno no se repetiu. Havia a urgncia em chegar

    na hora certa ao trabalho. Ela saiu da residncia de fachada em tom pastel

    e janelas grandes, localizada na rua Osrio Duque Estrada, nmero 850,

    no Jardim Social em Curitiba. Arlete fechou o porto pensando no beijo

    que no havia dado no pequeno Guilherme.

    O expediente se estendia no Banestado, hoje banco Ita, onde

    ocupava o cargo de secretria executiva. O telefone tocou por volta

    das 10h. Arlete atendeu e reconheceu a voz de criana do outro lado

    da linha. O filho perguntou onde estavam os trocados que achara no

    passeio realizado no fim de semana. Tentou convencer a me, com uma

    exaltao tpica da idade, de que tinha bons planos para o dinheiro. No

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    se contentava com os brinquedos espalhados no quarto que dividia com

    a av, nem do gato e do cachorro que circulavam pela casa. Considerou

    que seria prudente dividir sua afeio por animais com um futuro bicho

    de estimao, que seria comprado com aquela quantia, que ele calculou

    ser razovel para a aquisio: um coelhinho branco seria o novo membro

    da famlia Tiburtius. Acordo feito. No havia como fugir da persuaso

    de uma criana to doce. Arlete sentiu a alegria irradiando mesmo por

    telefone. Criana no contm sentimentos, no reprime felicidade

    transborda qualquer emoo, de forma sincera. E era certo que Guilherme

    estava acompanhado de uma empolgao contagiante naquele momento.

    Mandou-lhe um beijo pelo telefone sem imaginar que seria a ltima vez

    que ouviria aquela voz.

    ***

    Aps 21 anos, relatar as ltimas lembranas do filho j no um

    desafio insuportvel para Arlete Ivone Carams. Embora jamais tenha

    perdido as esperanas de reencontr-lo, j se v a ausncia de emoo ao

    repetir a histria tantas vezes solicitada ao longo desses anos. Os olhos

    no ficam marejados, a voz no embarga nem mesmo proferida. Uma

    documentao de quatro pginas empurrada sem muita vivacidade pela

    mesa, em direo aos reprteres. A sala comercial do edifcio Minerva

    Baro, na rua Jos Loureiro, regio central de Curitiba, abriga a Organizao

    No Governamental (ONG) presidida por Arlete desde a criao, em

    1992. No espao, esto espalhadas algumas fotos de um menino com o

    cabelo escuro, a pele branca, os olhos brilhantes e espertos. possvel

    ver, em todo o cmodo, fotos que projetam a imagem de como o garoto

    seria com 13 anos, 19 e hoje, j adulto, com 29 anos. As novas geraes

    podem at ter ouvido falar, mas talvez no se recordem dos detalhes que

    permanecem nas lembranas dessa me que est sem o filho h mais de

    A LTIMA LEMBRANA

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    duas dcadas. A dor do desaparecimento no cabe na classificao de

    um luto familiar. No se sabe o que aconteceu com a criana, se est viva

    ou morta. Traduzir em palavras o pnico que aflige os pensamentos e ao

    mesmo tempo aquece as esperanas de uma luta que perdura sem muitas

    pistas, baseia o futuro em hipteses. Amedronta e castiga. E por qu?

    Quando l fora h fome chuva frio desabrigo

    violncia Para os pais, o simples ato de comer, de se cobrir,

    de se vestir e at de sorrir, um ato doloroso. Como comer,

    se o filho pode estar passando fome? Como se agasalhar,

    se o filho pode estar passando frio misria desamor

    sofrimento e violncia? Como sorrir se o filho pode estar

    chorando?

    (Trecho de carta escrita por Arlete quando completou 14

    anos do desaparecimento do filho)

    ***

    O dia 17 de junho de 1991 nascia ensolarado, renovando as

    atividades que comeavam naquela segunda-feira. Guilherme acordou

    animado, refletindo toda a energia tpica das crianas que fazem os

    adultos pensarem: De onde vem tanto pique?. Saiu de casa para

    cumprir a rotina que tinha antes de ir para a escola, mas no foi muito

    longe - a misso era dar uma volta de bicicleta na quadra, percurso que ele

    j havia feito muitas outras vezes. Calava chinelos de dedo e vestia uma

    bermudinha combinando com uma camiseta listrada em azul com botes

    de cor amarela, tal qual o sol daquele dia. O passeio demoraria o tempo

    de a barriga clamar pelo almoo feito pela av. Enquanto o estmago

    no resmungasse, ele aproveitaria ao mximo a tranquilidade do bairro

    e o frescor do bosque que ficava logo do outro lado da rua, como uma

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    extenso dos jardins bem cuidados das residncias. Sueli Carams, a av,

    saiu de casa em direo ao porto. Segurou firme na grade e chamou pelo

    neto, avisando-o que o almoo estava pronto. A fome no batera porta

    ainda e Guilherme Carams Tiburtius resolveu pedalar mais um bocado

    pelas ruas largas e arborizadas que contornavam as moradias. Sempre

    gostou de bicicletas, esta no era a primeira que tinha, embora fosse a

    que mais gostava. De cor preta, ao mont-la fingia ser uma motocicleta,

    e pilotava com desenvoltura o brinquedo que havia domado sozinho. Um

    esportista nato, que cedia emburrado aos limites impostos para suas

    aventuras. A recomendao da av era clara: s podia andar na quadra

    de casa. O Jardim Social, onde moravam, era um bairro nobre e pacato

    da capital paranaense, estritamente residencial e com habitantes de alto

    poder aquisitivo.

    - V, vou dar mais uma voltinha e j venho! avisou, encostando a

    bicicleta na calada em frente de casa para respond-la.

    ***

    Guilherme era fruto de uma gravidez tardia, de risco e muito

    desejada por Arlete, que tinha quase 40 anos quando decidiu que

    assumiria a responsabilidade que mais quis ter na vida: a de ser me.

    Arlete percebera, ao segurar o menino nos braos pela primeira vez, que

    dar a luz no era um papel restrito apenas s mes a criana quem

    vinha a iluminar toda a famlia. Certa de que a idade representava um

    risco para outras gestaes, aps Guilherme ter vindo ao mundo Arlete

    optou por uma operao que tornaria o amor da famlia exclusivo ao

    nico filho, a alegria da casa. Como bons tesouros que devem ser bem

    guardados, o medo de que o garoto lhe fosse tomado do seio familiar era

    o que mais atormentava a vida de Arlete, que trabalhava fora e no podia

    se dedicar integralmente funo que elegeu como prioridade: cuidar de

    A LTIMA LEMBRANA

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    Guilherme. A educao e a ateno dadas ao menino eram divididas entre

    a me, a av e o pai, Ewaldo Oscar Tiburtius.

    ***

    Com a comida j posta mesa, dona Sueli resolveu apressar o neto

    que iria para a escola no perodo da tarde e ainda precisava tomar banho

    antes de sair. Arlete j estava para chegar e ele tinha de estar arrumado

    para pegar o nibus. Saiu ao porto antes mesmo de o desespero soar a

    campainha.

    - Guilherme!

    Sem resposta. Por onde andaria o menino? Esperou.

    - Guilherme!

    Sem resposta. Teria desobedecido aos avisos e ido mais longe de

    casa?

    - Guilherme!

    Ao no ouvir a voz do neto, nem avist-lo, Sueli refez o trajeto

    j natural ao menino, sem encontr-lo. Ele nunca mais foi visto desde

    ento.

    Aps constatar o desaparecimento do menino, dona Sueli

    avisou a filha por telefone do que havia acontecido. Imediatamente, a

    iniciativa que Arlete tomou foi percorrer o bairro procura do filho o

    pensamento frequente era a expectativa de que Guilherme estivesse na

    casa de algum vizinho, brincando com algum amiguinho do bairro. No

    perodo, predominava o mito de que, para acionar a polcia em caso de

    desaparecimento de qualquer pessoa, era necessrio aguardar 24 horas

    para registrar o boletim de ocorrncia. Em casos de crianas, o mesmo

    tempo tambm era erroneamente respeitado. O lao familiar do chefe

    de Arlete, Heitor Wallace de Mello e Silva, ento diretor do Banestado,

    primo de Roberto Requio, governador do Estado na poca, favoreceu o

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    drama familiar com o qual se depararam - por conta dessa proximidade,

    Silva no poderia deixar a funcionria na mo em uma situao assim. O

    acionamento da polcia ocorreu no mesmo dia, pouco depois de terem

    verificado que o menino poderia ter sido sequestrado.

    A partir das 13h30 daquela segunda-feira, uma equipe de polcia

    averiguava o desaparecimento na regio da capital paranaense por ora

    considerada tranquila. Ces farejadores, carros, parentes e uma legio

    frustrada pela falta de pistas, que no apareceram. Nem sequer a bicicleta

    foi encontrada. Um mistrio que devastou a famlia, outrora estruturada, e

    o prprio Paran na ocasio. Guilherme no foi o nico a ter seu paradeiro

    desconhecido pelos pais e pela polcia e infelizmente no ser o ltimo

    caso a provocar comoo pblica em condies to intrigantes.

    Em um primeiro momento, aps superar o baque inicial de que

    o filho estaria longe de sua proteo, Arlete foi encaminhada para a

    Delegacia de Homicdios de onde partiu o choque que a mobilizaria

    por uma mudana. A impresso que se tinha era de que a busca se dava

    por um corpo j sem vida, e no pelo sorridente Guilherme. Durante os

    sete meses seguintes, Arlete abdicou do emprego e passou a se dedicar

    a uma causa que, ainda no sabia, a acompanharia para caminhos que

    destoavam do que ela esperava como me, e de toda a vida que imaginou

    quando o filho ainda estava no prprio ventre. No tempo decorrido do

    desaparecimento de Guilherme, ela fez questo de acompanhar de perto

    as investigaes da polcia. A cada ligao, o corao palpitava e um

    jorro de esperana inundava aquela me em constante aflio. A nsia

    desaguava em mais lgrimas de inconformidade pela falta de notcias

    sofreguido dimensionada pelas ligaes annimas que se deleitavam com

    o desespero alheio. Foram centenas de chamadas que nunca resultaram

    em uma soluo ou pista que se concretizasse. Aps um tempo, o arquejo

    das ligaes foi substitudo pela repulsa de comentrios negligentes.

    A LTIMA LEMBRANA

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    Tenho umas 24 fitas gravadas de trote. Digo que trote

    porque nunca chegaram a uma concluso. Um dos ltimos

    que tenho de uma menininha que ligou para casa, na

    poca eu tinha bina [identificador de chamada], dizendo que

    o Guilherme estava enterrado no sei aonde. Ela no sabia

    que eu tinha bina e retornei a ligao. Era de uma igreja, a

    filha do pastor. Uma menininha. Coisa da cabea deles, de

    criana. Mas tinha um monte de trote. Logo que o Guilherme

    desapareceu, no dia seguinte, uma pessoa ligou falando

    estrangeiro, uma voz meio enrolada, dizendo que estava

    com ele. Ligou vrias vezes, mas nunca se chegou a ele.

    Outro detalhe: a polcia gravava e 15 dias depois eu recebia a

    gravao de onde era a ligao, e no resolvia nada.

    A indignao no era restrita quela me. Antes mesmo de o filho

    desaparecer, outras famlias paranaenses j enfrentavam a dor de um

    ferimento que no estanca. No se cura, no cicatriza e fica margem do

    tempo, na espreita de uma esperana que no finda. Antes do Guilherme,

    quatro crianas j estavam longe do afeto familiar. Depois, mais sete

    desapareceram at que uma mudana de fato, acontecesse.

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    1980

    Reza a lenda que as margens do rio Iguau, alm do contorno da

    mata, tambm era contornada por ocas de uma tribo de ndios caingangues.

    A fbula perpetuada em Foz do Iguau conta que Napi, uma bela ndia

    de cabelos escuros e longos, chamava a ateno pela beleza natural, to

    intrnseca quanto a fauna e flora que conviviam harmoniosamente com

    os atributos da moa, filha do cacique chamado Igobi. A tribo em questo

    cultuava um deus chamado MBoy, que era representado pela imagem

    de uma serpente o deus era filho de Tup, deus do trovo. Os traos

    delicados e marcantes da filha de um dos lderes da tribo fizeram com que

    ela fosse dedicada ao deus protetor assim que nasceu.

    O destino dela poderia terminar na entrega a MBoy, no fosse

    um jovem do grupo perceber que estava perdidamente apaixonado pela

    moa. Entre os caingangues havia um guerreiro chamado Tarob, que

    se encantou por Napi to logo conheceu a bela ndia. No era o nico

    a ficar encantado com a leveza de seus movimentos somada s suas

    caractersticas joviais quando esta se debruava na beira do rio para

    ver o prprio reflexo, as correntezas cessavam, estagnando para que as

    guas tambm pudessem apreciar os traos de seu rosto. Tarob teve

    seus sentimentos correspondidos pela menina, que decidiu fugir com ele

    durante um festejo de sua prpria consagrao.

    Enquanto o cacique e o paj compartilhavam uma dose de cauim,

    uma bebida a base de milho fermentado, a aldeia toda danava em clima

    de celebrao. Os amantes aproveitaram a distrao para fugir em uma

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    canoa, navegando pelo rio que se arrastava por um longo percurso. O deus

    MBoy, ao perceber que a jovem havia fugido, no mediu sua frustrao.

    Enfurecido, adentrou os sulcos mais ngremes da terra e retorceu todo

    o corpo, criando uma abertura que resultou em uma imensa catarata. A

    prpria gua que os arrastava rumo felicidade abraou o jovem casal,

    fazendo com que cassem de uma grande altura. E, juntos, desapareceram.

    A lenda relata de maneira ldica como foi a criao do principal

    ponto turstico da cidade fronteira com o Paraguai e Argentina: as

    Cataratas do Iguau. Localizadas no Parque Nacional do Iguau, hoje so

    reconhecidas como uma das setes maravilhas da natureza. As centenas de

    quedas dgua encantaram os internautas do mundo inteiro nos ltimos

    anos, e culminou no resultado da eleio promovida pela fundao sua

    New Seven Wonders, responsvel pelas votaes que tambm resultaram

    nas novas sete maravilhas do mundo moderno, entre outras aes

    realizadas pelo grupo. A cidade habitualmente quente abriga 256 mil

    habitantes, de acordo com dados apresentados pelo Instituto Brasileiro

    de Geografia e Estatstica (IBGE) em 2010. Seja qual for a explicao

    para o fato, o nmero da populao encolheu em 2000 o mesmo censo

    apontou 258 mil moradores. Para uma das famlias, dcadas antes, pouco

    importava se Foz do Iguau comportava dois mil habitantes a mais ou a

    menos, desde que o filho fizesse parte de tal contabilizao.

    Em abril de 1980, Elenilde Alves da Silva e Antonio Carlos da Silva

    comemoravam o aniversrio do filho, que completava 4 anos no dia 11

    daquele ms. Ao assoprar as velinhas azuis posicionadas no centro do

    bolo feito pela prpria me, Mikelangelo Alves da Silva observava atento

    s chamas danando pouco a frente do rosto em formato oval. A criana

    no pensou em nada que pudesse desejar de pronto. Ele mantinha os

    olhinhos fechados, e a me notava como seu menino estava crescendo e

    virando um homenzinho logo as responsabilidades aumentariam, e ele

    deveria aproveitar aquele ano antes que a poca de escola chegasse. Os

    A LTIMA LEMBRANA

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    meses seguintes passaram assim que abriu os olhos. O tempo passava

    rpido e a cada ms os pais assistiam de o espetculo do crescimento do

    prprio filho. O Dia das Crianas j era passado, e Mikelangelo pensava

    no que poderia pedir ao pai de presente de Natal.

    O primeiro dia de novembro marcava um sbado sossegado no

    bairro onde a famlia Silva morava: Jardim Amrica. A vizinhana era

    ladeada pela Avenida Juscelino Kubitschek e Avenida Beira Rio, ao lado da

    fronteira. Durante essa poca ainda se acompanhava o desenvolvimento

    ligado s transaes entre Brasil e o Paraguai, principalmente para o

    distrito Ciudad Del Este no pas vizinho. Tal qual a tribo indgena do

    folclore local, a famlia morava tambm perto de um rio: o Rio Paran,

    que fazia um caminho sinuoso, brincando com a linha que separava

    as nacionalidades. Com guas revoltas, passeava por entre brasileiros

    e paraguaios com facilidade, desaguando em um espetculo que s a

    natureza poderia proporcionar com tanto esplendor.

    O garoto tinha pele branca, cabelos e olhos castanhos. As madeixas

    lisas eram arrumadas para o lado direito do rosto, formando uma franja

    de lado sobre a testa do menino. Naquele dia ele saiu de casa para brincar

    com os vizinhos, aproveitando a infncia que teimava em passar depressa.

    Era vspera de finados, e o maior movimento concentrava-se no comrcio

    da regio central da cidade, com o aumento de venda das velas e flores.

    Mikelangelo no se importava com a data, no podia ainda compreend-

    la, e aproveitou as ruas vazias do bairro afastado para correr com a

    molecada da rua. Despediu-se da me e saiu, e igual aos personagens da

    histria que narrava a criao de sua cidade, desapareceu.

    A lenda dos caingangues revela que Napi, a ndia que fugiu com

    seu grande amor, transformou-se em uma das tantas rochas centrais

    das cataratas, circundadas pelas guas perturbadas. Tarob, o jovem

    guerreiro, tomou forma de uma palmeira, fincada prxima a um abismo,

    com leve inclinao garganta do rio. Acreditavam que abaixo da palmeira

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    existia uma gruta anexa Garganta do Diabo, onde um monstro vigiava

    as duas vtimas. J o final da histria do garoto de 4 anos ainda no foi

    revelado. No se sabe o que aconteceu com Mikelangelo, no que foi capaz

    de arrast-lo para longe da prpria famlia. Sabe-se que sua condio de

    criana o transformava em um anjo.

    A LTIMA LEMBRANA

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    1986

    Era comum o garoto Adriano Marques da Silva passar momentos

    do dia na companhia do pai, Romo Marques da Silva, no porto de

    casa. Cascavel, regio oeste do Paran, era um municpio em crescente

    desenvolvimento e que vinha se destacando no cenrio estadual. A

    intensificao das atividades industriais e do setor agropecurio, em

    ascenso a partir do incio da dcada de 1970, fortalecia a identidade da

    cidade e contribuiria, mais tarde, para a vinda de pessoas de diferentes

    regies brasileiras, tornando o municpio o quinto mais populoso do

    Estado.

    Era 29 de julho de 1986. A regio apresentava durante o inverno

    temperaturas extremamente baixas, registrando inclusive geadas

    constantes. Adriano j havia almoado na companhia do pai e da me,

    Maria da Luz Cabral da Silva. Vestia uma blusa de l preta e cala de cor

    azul desbotada. Calava sapatos gastos, com marcas das ruas de terra

    nas proximidades de casa, onde costumava passear. Corantes nos cantos

    da boca indicavam que no fazia muito tempo que havia almoado.

    Enquanto o pai olhava para a rua frente da casa, sob os fracos

    raios do sol, o garoto de 7 anos desenhava na calada com uma pedra

    que encontrara. Desejou por doce e pediu ao pai. Romo sorriu e lhe deu

    algumas moedas. A pedra, usada para registrar rabiscos, foi deixada no

    cho. Adriano sustentava um sorriso largo no rosto, e correu agilmente

    em direo a uma mercearia, a poucos metros dali.

    Alguns minutos j haviam passado e o menino no tinha retornado.

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    Por que a demora? Ser que o dinheiro era suficiente? Ser que ele tinha

    encontrado algum conhecido no caminho? Ser que encontrara o doce

    que procurava? Com essas perguntas em mente e sem nenhuma resposta,

    o pai saiu em direo ao local que o filho tinha se dirigido. Entrou, andou

    por entre os curtos corredores, olhando por entre as prateleiras. No

    avistou o menino. Foi ao caixa afirmando que o filho tinha ido ali e

    que precisava de uma resposta. Ouviu as palavras que lhe causariam

    desespero: No entrou nenhuma criana aqui.

    Por mais que percorresse a p o bairro em que morava, pedisse

    ajuda e informaes a conhecidos e estranhos, nada mudava. Iniciava ali

    uma luta incessante e dolorosa pelo encontro de Adriano. Do filho, as

    ltimas lembranas que teve foram os rabiscos na calada e a pedra usada

    para os registros.

    A LTIMA LEMBRANA

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

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    1987

    Uma casa simples de madeira na cor verde, localizada no

    bairro Pinheirinho, regio sul de Curitiba, destacava-se pela constante

    movimentao de pessoas nos fins de semana. Como trilha sonora ao

    cenrio buclico, os gritinhos efusivos da crianada j denunciavam a

    proximidade do Dia das Crianas. Naquele 11 de outubro de 1987, tarde

    de domingo, uma famlia se reunia como de praxe para brindar o momento

    que todos podiam compartilhar juntos. A riqueza ali era traduzida por

    alegria e a simplicidade do ambiente s confirmava que no era preciso

    muito para estar feliz. Com o porto fechado, os primos corriam e

    brincavam no quintal em frente casa de Luiza Novicki, que contemplava

    o sobrinho e afilhado de um ano e oito meses Rodrigo, primeiro filho da

    irm Elisabete Novicki de Oliveira, a Bete. Os braos rechonchudos do

    menino ficavam ainda mais evidentes na regatinha estampada que usava,

    combinando com o short azul e os chinelos de mesma cor. Ele se divertia,

    entretido nas brincadeiras com as outras crianas pelo espao em frente

    residncia.

    A sombra frondosa do abacateiro no jardim da casa era usada em

    uma v tentativa de refrescar o dia quente na capital paranaense. Local

    perfeito para os tios montarem guarda e ficarem de olho na molecada

    enquanto colocavam o papo em dia. Bete estava com o marido, Antonio

    Leal de Oliveira, dentro da casa, junto de outros parentes. J algum tempo

    aps o almoo, ela se distraa abrindo e cortando um coco para oferecer

    ao filho, que certamente iria adorar lev-lo boca. Antonio conversava

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    animadamente com os cunhados e Bete pediu licena para levar o fruto

    ao menino que ainda no tinha todos os dentinhos de leite formados. Era

    perto das quatro da tarde, quando, segurando um pedao entre os dedos,

    ela cruzou a sala, foi at a janela e chamou a irm, perguntando por

    Rodrigo. Um piscar de olhos bastou. A resposta negativa deu incio a um

    pesadelo do qual a famlia, aps um quarto de sculo, ainda no acordou.

    Sem telefone em casa, o orelho na esquina prxima serviu de

    apoio para avisarem as rdios locais e a polcia. Foram informados de

    que o boletim s poderia ser registrado no outro dia. Poucas pistas foram

    apontadas, muito se especulou e s restaram incgnitas. Sequestro?

    Trfico?

    As esperanas davam vez revolta que crescia no peito de Antonio

    a cada vez que a famlia, aos prantos, se encaminhava delegacia.

    Questionavam o pai se a os parentes tinham alguma pista que pudesse

    auxiliar nas investigaes, fazendo com que todos se sentissem culpados

    pelo desaparecimento que aconteceu no quintal da casa da prpria

    tia do garoto. De vtimas, foram colocados como suspeitos ao serem

    questionados se por ventura teriam vendido o pequeno Rodrigo ou dado

    o garoto para adoo. Para o pai, no fazia sentido: se tivessem feito

    isso, por qual motivo estariam desesperados na busca pelo menino?

    Por mais que a famlia tivesse dificuldades financeiras, tal possibilidade

    jamais fora cogitada pelos pais de primeira viagem, horrorizados com tal

    posicionamento.

    Uma das informaes que chegou at os Novicki foi que a fotografia

    do filho teria sido encontrada dentro da bolsa de uma traficante de

    crianas e, como argumento, a mulher disse que estava indo para Israel

    investigar o caso. Nenhuma resposta foi obtida desse relato, e a cada dia

    esperavam pela chegada do menino. A gota dgua foi quando um dos

    policiais da poca se dirigiu para o pai e disse que no tinha uma bola de

    cristal para saber o que teria acontecido com o beb. A vida seguiu com

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    uma lacuna que nunca foi preenchida. Os dois caulas de Bete e Antonio

    sempre ouviram dos pais histrias sobre o desaparecimento de Rodrigo,

    o irmo mais velho que nunca conheceram. O nome jamais ser apagado

    da memria da famlia e das oraes dirias da tia Luiza.

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    1988

    Ewerton, ento com 3 anos, no esperava sentir dor enquanto

    brincava. Machucar-se em momento to prazeroso? Inimaginvel. Foi em

    uma ocasio assim, em 1988, que aps um tombo, o garoto ganhou um

    belo corte um pouco acima da sobrancelha direita. Foi um grande susto

    para os pais, mas no maior pelo qual ainda iriam passar. No fim do

    mesmo ano, a famlia toda se preparava para comemorar o Natal na praia.

    L, em meio aos castelos de areia e a gua salgada, os pais j imaginavam

    Ewerton descobrindo que o Papai Noel havia atendido seu pedido. O

    menino iria ganhar de presente um helicptero azul de brinquedo, pedido

    feito com entusiasmo pelo garoto. Ainda era 23 de dezembro, mas a

    ansiedade pelas surpresas que a viagem de Curitiba ao litoral paranaense

    prometia no lhe dava trgua.

    Mais velho de trs irmos, Cleverson de um ano e Emerson, com 19

    dias, a me entendia a expectativa do menino de olhos e cabelos castanhos

    claros, que naquele dia no acompanhou o pai, Jos Vicente Gonalves ao

    trabalho, como costumava fazer. Tentou se concentrar no que a televiso

    transmitia, mas no conseguiu. Queria esper-lo na frente de casa de

    cmodos pequenos, localizada no bairro Ah, regio norte da capital do

    Estado, como sempre fazia. Mesmo que a contragosto, a me permitiu

    que ele fosse aguardar o pai l fora em outras ocasies, eles teriam

    ido juntos a um jardinete de 456 m prximo, compartilhando a espera.

    Na agitao, o menino deu alguns passos a mais que o de costume, em

    uma tentativa furtiva de ir ao encontro de Jos, conhecido como Zezo,

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    que a essa altura j fazia o caminho de volta para casa. Passaram-se 15

    minutos at que o pai chegasse com o carro do cunhado, que os levaria

    para o litoral. Ewerton quando saiu de casa vestia uma regata, shorts e

    chinelo do personagem Topo Gigio, bastante popular na dcada de 1980.

    Era para ele ter encontrado o pai logo que Zezo passou pelo jardim, o que

    no aconteceu. A cicatriz na sobrancelha do menino no foi a nica marca

    deixada naquele ano.

    O bairro com casas de estilo europeu estava calmo, consequncia

    das festividades de fim de ano que levaram a vizinhana a pegar a estrada

    ou migrar para casa de parentes em outras localizaes. A poucos metros

    do lar da famlia Gonalves, um servente de pedreiro estava sentado

    em um bar, observando a rua vazia e um garoto conversando com um

    homem. O condutor ento levou o menino chorando pela rua Mateus

    Leme. Depois que a notcia do sequestro de Ewerton se espalhou pelo

    bairro, o trabalhador reconheceu a criana que morava pelos arredores,

    e deu-se conta de que testemunhou a ao. Mais tarde ele contribuiu

    com um depoimento polcia afirmando que vira o garoto entrando em

    um veculo, seguindo para longe dali. Com as poucas informaes que

    recordava, o pedreiro conseguiu construir um retrato falado da pessoa

    que dirigia o carro. O que viu, no entanto, no trouxe Ewerton de Lima

    Gonalves de volta para a mesma casa que, ainda hoje, os pais e os trs

    irmos moram. Anderson, o mais novo, no chegou a conhecer o irmo.

    Os Natais daquela famlia nunca mais foram os mesmos.

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    1990

    Parecia um dia como outro qualquer. O municpio de Roncador,

    localizado na regio centro-oeste do Estado do Paran, com uma populao

    que no chegava a 10 mil habitantes, aparentava a comum tranquilidade

    de uma comunidade cercada por belezas naturais. Era 22 de maio de

    1990, tera-feira, e a temperatura alta podia ser sentida logo nas primeiras

    horas do dia. Antes mesmo que o sol aparecesse, exuberante, furtando o

    espao da escurido da noite, dona Djanira j estava de p. O aroma do

    caf caseiro, modo havia pouco no moedor manual, j se espalhava pelos

    quatro cmodos do casebre de madeira na regio rural.

    Djanira dos Santos Correia, de pele clara, mdia estatura e lisos

    cabelos castanhos adaptava-se ao casamento com Pedro Alexandre.

    Tinha um filho de um relacionamento anterior recente unio. Leandro

    Correia tinha 3 anos e uma animao prpria de crianas de sua idade.

    Comumente, enquanto as atividades na roa da conhecida Fazenda So

    Jorge eram desenvolvidas pela me e pelo padrasto, o garoto realizava

    descobertas, explorando a harmonia ambiental a que tinha acesso.

    Naquela manh, tudo deveria ser como sempre. Alimento

    mesa, poucas palavras trocadas entre o casal de agricultores. No meio

    da refeio, Djanira se levantou e caminhou em direo ao quarto de

    Leandro. Era hora de acord-lo para seguirem em mais um dia de trabalho

    na lavoura de caf. Ao lado da cama, estendeu a mo esquerda alisando

    os cabelos levemente ondulados e claros da criana, sussurrando o seu

    nome. Preguiosamente o menino abriu os olhos. Ela o beijou, desejando-

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    lhe bom dia. Trocou-lhe as roupas e preparou-se para sair de casa.

    Enquanto na lavoura Djanira e Pedro aplicavam suas foras, Leandro

    brincava no cho, construindo, com os gravetos que encontrava, casas,

    carros e bonecos. Era possvel ouvir balbucios que tentavam traduzir

    seus pensamentos enquanto brincava, com a chupeta ainda boca. O

    silncio foi marcado quando o menino parou sua brincadeira para comer a

    fruta que a me guardara prxima s marmitas, sombra de uma rvore.

    Todavia, no demorou muito para que o pequeno arteso retomasse a sua

    obra.

    A famlia almoou sentada curva de nvel. Leandro, depois de

    vrias brincadeiras, dormia. Dali era possvel ouvir o barulho da cachoeira

    em harmonia com o canto dos pssaros que sobrevoavam o local. A paz

    do dia, naquele cenrio, no poderia ser perturbada.

    Era hora do casal voltar ao trabalho. Djanira repousou Leandro

    sobre um leito improvisado, enquanto uma brisa agradvel beijava os

    rostos. O servio foi retomado, mas com pausa pouco tempo depois.

    Som de palminhas e o cantarolar tpico de quem ainda desconhece as

    preocupaes do mundo denunciavam que a soneca havia chegado ao

    fim. Foi em direo ao menino, conversou com ele. O garoto ainda no

    havia almoado; a me preparou o alimento, entregou nas pequenas mos

    do garoto e, enquanto ele se alimentava, foi ao encontro do marido. O

    trabalho precisava continuar.

    No faltava muito para concluir aquele servio. Apenas alguns dias

    a mais e estaria acabado. A quadra estava chegando ao fim. Era melhor

    voltar, pegar o garoto e traz-lo para perto de si. Djanira andou alguns

    metros na direo de onde estava o menino. No o avistou. Chamou pelo

    seu nome e no foi respondida. Outra vez, com mais fora. Silncio. O

    marido havia corrido para entender o que estava acontecendo e j se

    posicionava ao seu lado. O casal insistia em chamar pelo garoto e a correr

    pela fazenda, no desejo desesperado de encontr-lo a brincar. Contudo,

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    vrios minutos se passaram sem que o menino fosse avistado. Leandro

    sumiu como se estivesse desaparecido no ar.

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    1992FEVEREIRO

    Nos trs meses da temporada, o servio era intenso para as famlias

    litorneas, que aproveitavam a chegada dos turistas para arrecadar o

    dinheiro com o qual sobreviveriam o restante do ano. A quantia recebida

    pelo trabalho durante dezembro, janeiro e fevereiro precisaria ser

    suficiente para suprir os meses de marasmo nos 22 km de extenso das

    areias do litoral de Guaratuba. Pela contagem do ltimo censo, em 1990,

    havia ali 17.998 habitantes, gente que vivia principalmente da agricultura,

    pesca e do turismo. O movimento de visitantes era bom tambm para os

    pescadores. De modo ainda artesanal, eles embarcavam nas aventuras em

    alto mar a fim de trazer terra firme peixes e frutos frescos para vender

    s dezenas de restaurantes da orla.

    Um desses pescadores era Joo Bossi, que chefiava uma famlia

    composta pela esposa e um filho pequeno. O que conquistava a cada vez

    que lanava a rede nas guas, tinha destino certo: investir na educao do

    nico filho, Leandro Bossi, de 8 anos. A famlia at podia ser reduzida a

    trs membros, mas todos em casa trabalhavam - principalmente naquele

    perodo. Era 15 de fevereiro de 1992, e no havia motivo para descanso

    at o fim do ms, quando terminariam as frias de boa parte dos que

    curtiam o sol do litoral. Assim que os turistas retornassem s prprias

    rotinas, comeava ento o momento de descanso para diversas daquelas

    famlias. Enquanto seo Joo sustentava a casa com o que arrecadava da

    pesca, Paulina Rudy Bossi auxiliava cozinhando as iguarias tropicais o

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    banquete e os dotes culinrios no se restringiam ao fogo da prpria

    casa. Ela era cozinheira de um dos hotis mais tradicionais da cidade,

    o Vila Real, localizado logo beira da praia das Caieiras, rea de um

    quilmetro de extenso voltada principalmente para a pesca. Era l que a

    famlia tambm morava, em uma casa simples, no to prxima da praia

    quanto gostariam. Enquanto Paulina trabalhava arduamente nos pratos

    para agradar ao paladar dos clientes, sentia o sopro refrescante vindo

    direto das ondas, quebrando pouco a frente do local de trabalho. A vista

    sempre a deixava boquiaberta.

    O batente comeava cedo no hotel, instalado na Avenida Atlntica,

    nmero 400. Naquele sbado, a cozinheira foi surpreendida com os braos

    curtos do filho enlaando suas pernas em um abrao desengonado. Ele

    havia entrado silenciosamente no ambiente de trabalho e queria fazer uma

    surpresa para a me. Encarou-o sem reao, feliz pela visita do mocinho

    que herdara um misto de traos de Paulina e Joo. Acariciou os cabelos

    lisos do menino e pediu a ele que, cuidadosamente, retornasse para casa

    e trocasse de roupa. O fim de semana era de agitao em Guaratuba e o

    expediente deveria ir longe. Talvez, ao entardecer, pudesse tambm esfriar,

    o que era comum no litoral, e era bom que ele estivesse precavido.

    Leandro usava uma bermudinha jeans e uma camiseta vermelha.

    Obediente, retomou o caminho de casa andando calmamente pela praia.

    Era dono de caractersticas marcantes, capazes de encantar todas as

    colegas de trabalho da me coruja. Os olhos eram de um azul idntico

    ao do mar, onde o garoto gostava de molhar os ps e buscar conchinhas.

    O cabelo era da mesma cor da areia que gostava de brincar. De pele

    bronzeada, os atributos eram de um garoto tipicamente praiano. No

    demorou a alcanar o prprio lar. Atravessou a porta j imaginando a

    roupa que escolheria, abrindo as gavetas do guarda-roupa para encontrar

    outro conjunto que pudesse agradar a me. Vestiu-se e saiu apressado,

    pois tambm queria aproveitar o dia no hotel e tudo o que o espao

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    podia oferecer: um mundo de descobertas e gente diferente para observar.

    Numa dessas, poderia at mesmo arrumar novos amiguinhos. Ao dar os

    primeiros passinhos para fora de casa, j conseguia ouvir o barulho das

    ondas beijando a areia da baa. Pensou que logo aquele espao estaria se

    esvaziando e esse som seria o nico que ouviria at nova temporada e

    agitao na praia, nove meses dali em diante. Gostava de ver o movimento.

    Calava chinelos de dedo e sentia a pele arder com o sol escaldante sobre

    a cabea. Tinha o caminho que era necessrio percorrer em mente, mas

    nunca chegou a alcanar o destino.

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    MARO

    Em 1992, o Carnaval do Country Club, um dos mais tradicionais

    de Maring, ficaria conhecido como um dos melhores que os folies j

    brincaram. Com vrios bailes programados, a festividade atraa toda a

    regio que, durante aquele feriado, se aglomerou na cidade. Os visitantes

    e a alegria dos folies animou Jos Carlos dos Santos, de 12 anos,

    que ajudava a famlia vendendo bilhete de loteria pelas ruas centrais.

    A festa mais popular brasileira havia comeado na sexta-feira, 28 de

    fevereiro, e se estenderia at a tera-feira seguinte. Logo que comeou

    a semana, Carlinhos, como era chamado carinhosamente pelas pessoas

    mais prximas, levantou-se cedo e tomou caf da manh reforado. O

    pai, Nilton Marques, tambm estava prestes a sair ele era vendedor

    ambulante e fazia alguns bicos como servente de pedreiro. O filho mais

    velho vestiu uma camiseta branca, short azul e calou o par de tnis de

    lona vermelha que gostava de usar. Na bolsa, aprontou uma sacola com

    limes e saiu dizendo famlia que entregaria a encomenda para uma

    freguesa.

    O menino estava acostumado a se levantar assim que os primeiros

    raios de sol ameaassem surgir. Naquela segunda-feira, dia 3 de maro,

    por volta das 9 horas, Jos Carlos fechou o porto de casa de madeira

    e quintal amplo que abrigava um pequeno pomar, localizada na rua Rio

    Grande do Norte, nmero 1.740. Atravessou a varanda de casa, fechou

    o porto e caminhou pela rua inclinada do Jardim Alvorada, regio

    norte da cidade, at o centro, em um trajeto com aproximadamente

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    cinco quilmetros. Era um garoto esperto e a inteligncia do filho mais

    velho sempre foi motivo de orgulho para o pai. No foi difcil Carlinhos

    fazer amigos na cidade, fregueses habituais da simpatia do rapazinho

    de cabelos loiros, pele branca e olhos escuros. J nas avenidas centrais,

    ele costumava passar de estabelecimento em estabelecimento oferecendo

    bilhetes e, por vezes, os limes que tinha entregado naquela manh. O

    calor aumentava assim que a tarde se aproximava e, por volta das 13

    horas, o menino dirigiu-se ao restaurante Tai-Wan, na avenida Tiradentes,

    prximo ao Parque do Ing um dos principais pontos tursticos da

    terceira maior cidade do Estado. Deu passadas largas entre uma mesa

    e outra oferecendo mais limes aos clientes em horrio de almoo. At

    as 15h30 permaneceu ali e antes de sair, pediu para os garons um prato

    de comida. O pedido foi prontamente atendido. Na ocasio, Jos Carlos

    aproveitou para compartilhar dois momentos com os funcionrios do local:

    que ele teria sido vtima de um assalto e que tambm teria encontrado

    naquele dia uma carteira decorada com muitos adesivos e com Cr$ 21

    mil cruzeiros dentro, o que hoje equivaleria a aproximadamente R$ 76.

    Nenhum documento identificava o dono.

    Despediu-se dos que estavam no Tai-Wan e ficou at aproximadamente

    16 horas na esquina da avenida Tiradentes com a rua Piratininga. De l,

    seguiu em direo avenida Brasil, h cinco quadras do local que estava

    at esse horrio. Como era um rostinho de fcil identificao, por sempre

    andar pelo centro, no tardou at que as pessoas revelassem se tinham

    visto ou no Jos Carlos quando a famlia deu por falta do rapaz.

    A revelao mais surpreendente nos telefonemas feitos ontem para a redao do JP sobre o paradeiro do menino, foi feita por um rapaz, que no quis se identificar. Ele contou que por volta das 18h20, daquele dia, quando trafegava de moto com sua esposa pela avenida So Paulo viu o menino dentro de uma Braslia branca trafegando naquela via. Segundo ainda

    A LTIMA LEMBRANA

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    o rapaz, a sua esposa chegou a comentar que o menino que estava no carro todos os dias passa na loja onde ela trabalha para vender limes e raspadinhas. Ele revelou ainda que trafegou junto com o carro at a avenida Morangueira e na rua 10 de Maio o veculo dobrou esquerda e sumiu. (Sumio de menino envolto em mistrio - Reportagem publicada no Jornal do Povo, no dia 7 de maro, em Maring)

    A famlia Santos era formada pelo pai, a me e dois irmos mais

    novos. Nilton Marques, ento com 42 anos, prolongou o inaceitvel registro

    do boletim de ocorrncias que confirmava o desaparecimento da criana

    at quinta-feira, dia 5 de maro. A volta do menino, desde 1992, continua

    sendo adiada. Com as notcias divulgadas na imprensa, no demorou

    muito para que telefonemas apontassem algumas pistas resultando no

    desgaste da prpria polcia, que teve de lidar com o que os jornais da

    poca noticiavam como humor macabro, devido s informaes que

    os annimos ofereciam. Uma das ligaes dizia que o corpo de Carlinhos

    estaria no bosque. Maring tem dois parques principais, que ficam na

    regio central e so comumente comparados a dois pulmes da cidade

    pelo contorno que tomam. Os dados mobilizaram os policiais e familiares

    do menino, h dias realizando buscas, a revistarem o Parque Florestal dos

    Pioneiros, conhecido como Bosque 2 e o Parque do Ing. Pensando que

    iriam se deparar com o cadver do garoto e responder em parte, a incgnita

    acerca do desaparecimento que se deu naquele fim de tarde da segunda-

    feira, os envolvidos foram assolados por nova decepo ao constatarem

    que o telefonema no passava de mais um trote. Informaes falsas que

    levaram a polcia a percorrer toda a regio de Maring, viajando tambm

    para Doutor Camargo e uma cidadezinha prxima a Assis Chateaubriand.

    Todas as viagens em vo.

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    MARO

    Todas as manhs Suely cumpria o mesmo ritual. Preparava-se para

    a atividade voluntria no Molivi (Movimento de Libertao de Vidas),

    uma organizao responsvel por atender mulheres grvidas e mes em

    situaes de vulnerabilidade social, que funcionava Avenida Paran,

    regio norte de Maring. Cada passo que dava em direo sede do

    movimento representava uma etapa cumprida daquilo que considerava

    uma misso. Membro da Igreja Missionria Central, Suely Palma Stadler

    dava aulas de msica no local, promovendo perodos de louvor e de

    evangelizao. Sentia-se bem pelos momentos dedicados atividade e

    o sentimento positivo parecia crescer e cobrar-lhe mais a cada dia. Em

    contato com as pessoas ali reunidas, era improvvel no conhecer um

    pouco da histria de cada uma, envolvendo-se com todas. E quo grata

    surpresa era saber que suas mos e suas aes contribuam para alguma

    mudana de perspectiva.

    Durante as ministraes de Suely, algum chamava-lhe a ateno.

    Com cabelos castanhos e lisos pouco abaixo dos ombros e sempre presos

    por um prendedor de mesma cor, a jovem de pele clara e de baixa estatura

    gestava, aparentemente, o primeiro filho. A cada novo encontro, novas

    impresses. A barriga da jovem crescia, fazendo Suely refletir sobre o

    destino daquela criana. O seu desejo era que aquela me tivesse uma

    vida digna e pudesse oferecer os melhores cuidados ao ser que nasceria.

    Como os encontros no eram dirios, as diferentes etapas da gravidez

    daquela moa mexiam com Suely. Crescia a compaixo pela vida que

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    naquele ventre era gerada. E o tempo passou depressa.

    Era tera-feira, 2 de novembro de 1982. Suely se arrumou e

    encontrou-se com o grupo com o qual costumava ir ao centro assistencial.

    No salo onde todos comumente se reuniam para os momentos de louvor

    e evangelizao, havia uma movimentao diferente. Suely deixou os

    objetos que carregava consigo sobre a pequena mesa de plstico coberta

    por uma toalha florida e caminhou em direo ao aglomerado formado

    ao fundo do saguo. Grata surpresa: a jovem gestante, que lhe despertava

    sempre a ateno, dera luz um lindo menino, de pele branca, olhos de

    jabuticaba e cabelos negros. Sentia-se feliz por poder, ao mesmo tempo,

    ajudar mulheres a alcanarem conquistas e mudarem de vida e, mais do

    que isso, contemplar naquele momento o milagre da vida. O pequeno

    Ednilton nascera no domingo, dia 31, e aparentava estar em timas

    condies de sade.

    A entidade assistencial era o segundo lar de Suely. O pensamento

    dela no se desvinculava das histrias de tantas personagens que ali

    estavam. Nos minutos que antecediam suas ministraes e entre os

    intervalos existentes, ela procurava saber sobre o desenvolvimento do

    beb Ednilton. Era solteira, mas sonhava ter um filho e derramar-lhe todo

    o carinho que sentia por crianas. Em casa, durante o caf ou o jantar,

    assuntos referentes s vidas das mulheres que conhecia no Molivi eram

    inevitveis.

    Dona Delva, sua me, ento com 45 anos, alertava:

    - No se envolva demais com essas pessoas. Evite sofrimentos para

    voc, minha filha vrias conversas entre as duas terminavam sempre

    com a mesma advertncia.

    Foi com surpresa que Suely, em um dia nublado no qual se

    preparava para iniciar as aulas musicais no Molivi, recebeu a notcia sobre

    o pequeno Ednilton:

    - A me o abandonou. Deixou apenas uma carta abrindo mo dele

    A LTIMA LEMBRANA

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    e avisando que estava indo embora. Pobre garoto! algum lhe contou.

    Promover o perodo de louvor, naquele dia, foi difcil. O seu desejo

    era que a hora passasse depressa. No podia imaginar sem preocupao o

    futuro daquela criana abandonada. Precisava fazer algo para ajud-la e

    seu corao j lhe indicava o qu.

    Mal prestou ateno no trajeto do nibus at a sua casa. Ansiosa

    e apressadamente abriu e fechou o porto, correndo na direo da me.

    A histria foi contada com muita empolgao e no reservou espao para

    rodeios: Me, temos que adot-lo!. Apesar da delicadeza e seriedade do

    pedido, no custou muito para que dona Delva, me de outros quatro filhos,

    j encantada com a histria e os desejos narrados pela filha, aceitasse a

    ideia da adoo. A conversa com o marido, Willin Palma, ento motorista

    de caminho, ocorreu por telefone. Ele fez algumas ressalvas, questionou

    se era isso mesmo o que ela queria e aceitou que o menino viesse para a

    famlia. Vamos comear de novo?, brincou com a mulher.

    Com o garoto vivendo sob o mesmo teto, a cada novo dia a famlia

    apegava-se mais a ele, ao mesmo tempo em que precisava considerar a

    ideia de ele voltar aos braos da me biolgica - a Justia aguardaria por

    at um ano o aparecimento da me, que poderia voltar expressando o

    desejo de ter a guarda do filho. Mas isso no aconteceu. No se tinha

    notcias da jovem que havia abandonado o movimento e o prprio filho.

    Por recomendao do juiz, ento, o garoto, que j atrara a ateno de todos

    os familiares, foi adotado em nome de Delva Palma e seu marido Willin

    Palma. Alm de ganhar um pai, o abandono sofrido foi recompensado

    pela conquista de duas mes: Suely e Delva dividiam a responsabilidade

    pela formao de Ednilton, que com o tempo passou a ser carinhosamente

    chamado de Niltinho.

    Quando Suely se casou, Niltinho tinha 3 anos. Depois de seis anos

    casada, Suely decidiu deixar a casa de sua me. Foi o momento de uma

    grande deciso para o garoto de ento 9 anos. A partir daquele instante,

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    moraria com Delva, legalmente responsvel por sua formao, ou com

    Suely, que gostava de estar prximo? Parece que a relao iniciada ainda

    nos seus primeiros dias de vida falou mais alto: o garoto escolheu mudar-

    se de casa.

    A casa de Suely ficava a no mais de um quilmetro da de Delva.

    Niltinho crescia brincando pelo bairro Lea Leal. Sua esperteza e disposio

    encantavam toda a famlia Palma, que, durante os almoos de domingo

    se envolvia com o filho mais novo de dona Delva. Brincalho, levado e

    criativo, Ednilton tinha uma animao admirvel. Durante as refeies,

    ningum tocava na coxa de frango: era o seu prato preferido; bastava um

    convite de dona Delva para que ele buscasse a carne, segurasse com as

    duas mos, ao mesmo tempo que tentava criar novos passes futebolsticos

    com a bola aos ps.

    O trajeto da casa de Delva at a de Suely era comum a Niltinho.

    O contato com as duas mes e as duas casas j era algo natural para

    ele h seis meses, desde que Suely se mudou. No ano de 1992, o menino

    frequentava a 3 srie do ensino fundamental na escola Gabriel Sampaio.

    No gostava muito do ambiente escolar, mas era habilidoso em trabalhos

    manuais e muito inteligente. Preferia, como qualquer garoto de sua idade,

    brincar com os amiguinhos.

    Domingo era o dia da semana em que Niltinho acordava com uma

    animao fora do comum. Procurava aproveitar cada momento ao lado de

    familiares e amigos da vizinhana. Era 29 de maro de 1992. O garoto abrira

    os olhos pensando na festa do amigo que tinha naquele dia. Enquanto sua

    famlia reunia-se depois do almoo, como de costume, Niltinho se trocou

    na casa de dona Delva e dirigiu-se para a festinha de aniversrio. Bolo,

    brigadeiro, beijinho e muitas brincadeiras agitaram a tarde do garoto, que

    nem viu o tempo passar depressa. Quando deu por si, poucas pessoas

    ainda estavam na casa onde a comemorao ocorria e o dia dava sinal de

    que estava por acabar. Niltinho voltou para a casa de Delva e pegou seus

    A LTIMA LEMBRANA

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    pertences, planejando chegar em casa e acompanhar Suely ao culto, como

    de costume. Segurou a coberta que carregava sempre consigo e, com o sol

    quase se pondo, foi andando pelas ruas tranquilas daquele bairro.

    Naquela noite, enquanto Delva e o marido julgavam estar Niltinho

    aos cuidados da filha, Suely pensava que o garoto estivesse na casa de sua

    me, afinal, o dia havia sido festivo e a comemorao poderia ter acabado

    j noite.

    Segunda-feira pela manh, Suely se dirigiu casa de Delva, onde

    teve a surpresa que abalou aquele incio de semana da famlia Palma: o

    garoto no estava l. Rapidamente, me e filha se mobilizaram procura

    do menino e de informaes na vizinhana. As horas corriam e ningum

    dava nem sequer uma pista de onde a criana poderia estar. O desespero

    comeou a tomar conta no s dos familiares, mas dos vizinhos e amigos

    que observavam durante anos o crescimento do garoto.

    Delva acionou a polcia, entendendo ser uma das mais fortes

    esperanas de o menino ser encontrado. Desejou que os policiais

    comeassem imediatamente o servio de buscas, mas isso infelizmente

    no aconteceu. A me, j desesperada com o que estava acontecendo, foi

    informada de que o prazo de tempo entre o desaparecimento e o incio de

    buscas e investigao ainda no havia terminado.

    Sem esperar somente pela atuao da polcia, a sada foi continuar

    a procurar Niltinho na regio, contando com a ajuda daqueles mais

    prximos. Ao alcanar a casa de um amigo do garoto, uma novidade:

    os dois haviam se encontrado aps a sada de Niltinho da casa de dona

    Delva. O amigo contou que conversaram e que, aps ter ido padaria, a

    pedido da me, no viu mais o filho de Delva, imaginando que ele j teria

    ido embora.

    Os momentos que se seguiram foram angustiantes. A famlia

    ansiava por uma pista, ao menos. E ela chegou. A nica. Niltinho estaria no

    Jardim Alvorada, a 4 km de casa, sujo e com fome. Delva depositou toda a

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    esperana sobre aquela pista. Seu desejo incessante era de que o menino

    fosse encontrado e a sua animao e esperteza voltassem a contagiar sua

    casa e aquele bairro, onde era querido. Rapidamente chegaram ao local da

    pista. Nada encontrado. Nem sinais, informaes ou algo que lembrasse o

    garoto. A famlia estava abalada.

    Mesmo com o incio das buscas pela polcia, no houve avano.

    Muitos depoimentos foram ouvidos e registrados e sempre que ficava

    frente a frente com o delegado, dona Delva ouvia dele o que sabia no

    ser verdade: O menino fugiu!. No se conformou, porque conhecia o

    garoto. A sua busca pelo filho seria sua vida. Tinha sede por respostas e

    desejo de misso maternal cumprida.

    Eu acho que a polcia daqui tinha que ter dado mais assistncia.

    O caso que envolve uma vida merece dedicao. Tem que ir

    em todos os lugares possveis de encontrar a criana. Ele

    fugiu? No. Ele no tinha motivo para fugir. Por que uma

    criana amada e bem tratada em casa e pelos vizinhos iria

    querer fugir? Acredito que se [a polcia] tivesse agido logo

    que a gente avisou, teramos mais chance de encontr-lo. s

    vezes no entendo por que tudo isso aconteceu. Parece at

    que tem peixe grande por trs disso. Eu tinha informaes

    de que o registro de nascimento dele estava em Paiandu.

    Procuramos l e em Sarandi, nada foi encontrado.

    (Delva Palma, me adotiva de Ednilton)

    Aos 10 anos de idade, quando desapareceu, a famlia ainda no

    tinha revelado para o garoto que ele era filho adotivo. E nunca tiveram a

    oportunidade de contar.

    A LTIMA LEMBRANA

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    ABRIL

    Vivendo sempre nas estradas, para participar do maior nmero

    possvel de feiras agropecurias, caracterizadas pela forte movimentao

    financeira principalmente no interior do Estado, a famlia estabelecida

    em Sarandi, cidade localizada na regio metropolitana de Maring, regio

    norte do Paran, no precisou de tanto tempo de viagem para levar a

    barraca de pastel at a prxima feira da agenda. De cidade em cidade o

    grupo, sempre unido, tratava logo de montar o acampamento para vender

    o salgado tpico das feiras responsvel tambm pelo sustento do lar. Em

    Londrina no foi diferente. As exposies sempre encantaram o garoto

    Edson Rodrigo Batista da Silva, de 6 anos, que at gostava de oferecer

    ajuda aqui e ali aos pais. Mas o que o divertia mesmo era ver o movimento

    das feiras e brincar em meio a tantos lugares diferentes que conhecia ao

    lado da me, Vera Lcia, e do pai, Elcio, donos da Pastelaria Maring.

    A chegada sempre lhe enchia os olhos. O trnsito interno era

    formado por crianas acompanhadas dos pais e numerosos brinquedos

    para experimentar. O carrossel, o temeroso trem-fantasma, os carrinhos de

    bate-bate e a imensa roda-gigante, que parecia sorrir ao pequeno Edson,

    to miudinho perto da grandeza daquele crculo aramado, decorado com

    cores chamativas. Quando a noite chegava, devagar, a aparelhagem toda

    fazia a festa com tanta luminosidade. Eram luzes que revezavam entre

    si o momento de encantar os visitantes, indo do amarelo, verde, azul,

    vermelho. A msica era frentica e o algodo doce ajudava a temperar

    a animao de cada criana. Toda a movimentao refletia aos olhos

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    encantados do menino que nunca se cansava de reviver tal emoo. O

    que era sonho para muitos pequeninos do interior era uma realidade

    frequente ao garoto, de morar em um parque de diverses. Gostava

    de visitar o pavilho dos bichos, e convivia feliz com bois, cavalos e a

    tpica aglomerao de curiosos para um evento que parecia igual todos os

    anos. Para ele, era rotina. E, mesmo assim, era capaz de se surpreender e

    reforar a criatividade para cada nova traquinagem.

    Ao entardecer do dia 5 de abril de 1992, Edson, saindo para

    se divertir, apresentou para a me um novo amiguinho, sete anos mais

    velho, que conheceu durante a estadia deles na cidade, distante 87 km da

    casa em que mal vivia. Vera Lcia Pereira da Silva alertou ao filho para

    que no fosse longe e retornasse logo para a barraca, que fechava com o

    fim das atividades de mais um dia de feira. Edson vestia uma camiseta

    lils, short marrom e botas pretas. Antes de se lanar na nova aventura,

    beijou a me e correu todo serelepe, a fim de desvendar os mistrios que

    o lugar lhe reservava. De pele alva, cabelos e olhos negros, o rapazinho

    da famlia saiu prometendo no ficar muito tempo longe.

    J passava das 11 horas da noite daquele domingo e Edson ainda

    no tinha aparecido. Aos poucos as fontes luminosas que caracterizavam

    o parque foram se apagando, at restar poucas lmpadas acesas.

    A preocupao da famlia mobilizou todos os outros barraqueiros,

    que se espalharam pelo parque de exposies na tentativa de encontrar

    o garoto. Em pequenos grupos, eles teriam de percorrer os 411 mil m

    da rea total do Parque de Exposies Governador Ney Braga, onde

    ocorria, anualmente, durante 11 dias, a grande festa de Londrina. A me

    prontamente avisou a polcia, que informou com tranquilidade que o

    menino logo estaria de volta. A madrugada chegava fria, aumentando

    ainda mais o medo de Vera e do marido, Elcio Batista da Silva, quando

    uma notcia despertou o alvio dos pais. Uma moa informou que havia

    visto uma criana dormindo debaixo de um dos brinquedos do parque.

    A LTIMA LEMBRANA

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    Rapidamente se deslocaram para o local sugerido e a decepo veio com

    dificuldade para ser compreendida por todos os envolvidos na busca:

    existia sim algum dormindo, mas no era Edson. Logo outra pista os

    direcionava para o pavilho industrial e nova desesperana assombrou

    os pensamentos da famlia, que acompanhou lentamente, como quando

    os segundos parecem minutos, e os minutos transfiguram-se em horas

    interminveis de sofrimento. Vera tentava afastar os pensamentos ruins da

    mente. Sentada prxima barraca de pastel, suspirava fundo, aspirando o

    cheiro de gordura que impregnava a roupa, o qual ela e todos ali j estavam

    acostumados a sentir. Sentia tambm um aperto no peito, pensando se o

    seu menino tinha passado a noite bem. Onde estaria Edson? Os primeiros

    raios de sol tocaram o rosto dos pais que, abraados, torciam para que

    tudo desse certo.

    Vendo a mobilizao dos responsveis pelas dezenas de barracas

    montadas na feira em busca da criana, a polcia tambm resolveu comear

    as buscas. Os policiais iam diariamente barraca da famlia perguntar

    sobre novas informaes e deixavam o local sem respostas. Vera tinha

    o pensamento fixo no rosto do filho, que no lhe saa da cabea por

    um momento sequer. As olheiras das noites sem sono comeavam a

    ficar evidentes abaixo dos olhos cansados. Ela, ento, comeou a agir

    por conta prpria, reunindo pistas que achava ser prudente conferir: o

    cunhado Nelson Batista teria arrumado inimizade com uma pessoa,

    que poderia ter raptado o sobrinho dele a fim de se vingar. Resposta

    negativa. Ela acreditava que se a polcia tivesse agido imediatamente aps

    seu pedido de socorro, estaria com o filho nos braos, lhe dando outro

    beijo no rosto e dizendo que em vez de brincar no parque, ficaria desta

    vez junto aos pais, aliviados, na barraca. Sonho distante e que nunca se

    realizou. Diversas testemunhas apareceram poca dizendo que o viram

    no parque, mas nenhuma foi efetiva.

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    ABRIL

    De famlia grande, as tardes em casa ou na vizinhana sempre eram

    movimentadas para Lucinia Silvrio da Silva, de 5 anos. Eram seis irmos

    incluindo a garota sua irm mais velha, ento com 16 anos, olhava os

    menores para que os pais pudessem cumprir os afazeres. No dia 19 de abril

    de 1992, um domingo, ela e os irmos foram a uma festa de aniversrio que

    acontecia na casa de uma vizinha. Com grande movimentao, a reunio

    era recheada de alegria, salgadinhos e docinhos de festa que as crianas

    tanto gostavam. Lucinia se concentrou nos brigadeiros, a guloseima que

    mais apreciava. Msicas infantis e risadas podiam ser ouvidas a casas de

    distncia e a festa parecia ir longe. Era final de domingo e muitos pais

    se preparavam para a jornada que comearia dali a algumas horas, com

    o incio de mais uma semana de trabalho. Os filhos de Milta Silvrio da

    Silva e Joo Bernardo da Silva logo voltaram para o lar a fim de tambm

    descansar. Antes de irem embora, um convidado especial registrara um

    retrato dos cabelos castanhos ondulados, as bochechas salientes e o

    sorriso meigo de Lucinia. O boliviano que estava na reunio festiva iria

    embora pouco tempo depois.

    Naquele incio de dcada, Araucria contava com 61.998 habitantes.

    A cidade, localizada na regio metropolitana de Curitiba, est situada s

    margens do rio Iguau. A regio, que conta com 471,33 km, cortada

    pela BR-476, conhecida como rodovia do Xisto. A segunda-feira, dia 20

    daquele ms, comeava cedo para Joo Bernardo. A me tambm pulava

    da cama cedo para preparar o caf antes de o marido sair de casa. O pai

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    de famlia entornou uma xcara do lquido escuro em um despertar e

    tomou o rumo do servio. Milta aguardou os filhos tambm levantarem

    para dar conta dos prprios afazeres, pois tinha de ir ao banco logo mais.

    Deixou as crianas em casa e foi com a promessa de que logo estaria de

    volta. Nesse meio tempo, Lucinia disse que visitaria duas vizinhas para

    brincarem juntas, mas que retornaria at o horrio de almoo. Trocou de

    roupa, calou chinelos de dedo e encostou o porto cuidadosamente,

    tentando no provocar tantos rudos.

    A dona de casa cumpriu a promessa e no tardou a voltar para a

    casa. Perguntou a uma das filhas se todos j haviam almoado, e obteve

    como resposta a informao de que a filha mais nova estava fora de

    casa. Percorreu o mesmo caminho que a pequena fez para sair de casa e

    pretendia busc-la para almoar. No estava com as amiguinhas, muito

    menos na vizinhana. O desespero aumentou quando, em um terreno

    baldio prximo da prpria casa, Milta encontrou um dos chinelinhos

    da menina, impossvel de no reconhecer: no dia anterior um cachorro

    mordera um dos pares do calado e a me calmamente havia remendado

    com linha.

    O pai passou dias caminhando beira do rio e no meio da mata,

    pensando que poderia encontrar alguma pista. A polcia e a famlia ficaram

    na rdua investigao durante quatro dias e o nico suspeito que tinham

    em mente era o boliviano da festa do ltimo domingo ele foi localizado

    um tempo depois, mas viajou para a Bolvia e nada foi descoberto. Nas

    lembranas de Maicon Silvrio da Silva, que na poca tinha apenas 2

    anos de idade, vrios flashes de reprteres, cmeras e microfones assolam

    uma lacuna que ficou. To novo, ele no sabia. Mas a movimentao se

    dava por conta do desaparecimento de Lucinia, a irm que nunca mais

    o aninhou nos braos.

    A LTIMA LEMBRANA

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    NOVEMBRO

    A decorao da sala de estar era repleta de quadros com fotografias

    da famlia uma dessas imagens registrava a filha do meio com os

    cabelos presos em duas chiquinhas. Sua feio era tranquila, transmitindo

    a inocncia e doura de criana. O dia era claro, convidativo para brincar

    fora de casa e no tardou para Gislaine Aparecida Ferreira, ento com 6

    anos de idade, sair pela porta da frente. O lar da menina ficava na rua

    Roger Bacon, 499, no Jardim Campo Alto, em Colombo, municpio da

    regio metropolitana de Curitiba. Uma vez no quintal da residncia, ela

    aproveitava a brisa fresca para brincar com uma boneca que, com muito

    custo, os pais, Jurandir Ferreira e Vanilza Aparecida Ferreira, conseguiram

    comprar. A menina tinha uma irm dois anos mais velha e um irmo dois

    anos mais novo. A famlia vivia da venda de material reciclado e ficava

    boa parte do dia fora.

    Era 11 de novembro de 1992, uma quarta-feira, e pela proximidade

    de Curitiba, boa parte da populao colombense sara de casa para

    trabalhar na capital paranaense, localizada a aproximadamente 18 km.

    No ltimo censo do IBGE, a populao de Colombo era estimada em

    117.767 habitantes. O bairro onde a famlia Ferreira morava era afastado

    dos bairros mais populosos. Tranquilo, a ponto de as crianas brincarem

    livremente nas ruas e vielas sinuosas que compunham o Campo Alto. A

    casa simples de madeira era prxima o equivalente a quatro quadras do

    rio Atuba, que passa por Pinhais e Curitiba, alm de ficar tambm a 14

    quadras da estrada da Ribeira, nome que a BR-476 recebe entre a cidade

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    de Adrianpolis at a capital do Estado.

    Acostumada a ir para a casa da madrinha durante o dia, a garotinha

    de pele morena clara, cabelos crespos e olhos espertos resolveu fazer-lhe

    uma visita. Calou chinelinhos havaianas, caminhou at o melindroso

    porto de ferro corrodo pela chuva e encostou-o assim que ganhou a

    calada de pedregulhos. O muro de casa era baixo, quase beirando a

    prpria altura, permitindo que ela observasse a porta do lar, dando-lhe

    adeus. Direcionou o corpinho para a casa da segunda me, e partiu. A

    casa da madrinha ficava a pouco mais de 50 metros da sua, quase de

    esquina com a rua Kelvin. L, ela passou a tarde brincando com outras

    crianas at cansar. Sentindo-se exausta, avisou a turminha que iria para

    casa e tomou o caminho de volta.

    J em casa, Vanilza estranhou a demora da filha e foi at a madrinha

    de Gislaine. Chegou ao porto batendo palmas para anunciar sua chegada

    e perguntou para as crianas onde estava a menina. A resposta fez com

    que a me suasse frio: j passara uma hora que a filha disse que retornaria

    para casa, e no o fez. Vrias pessoas foram ouvidas, mas nenhuma

    informao levantada direcionou as investigaes com sucesso. A nica

    testemunha do caso informou polcia que viu Gislaine sendo levada por

    uma mulher de cabelos de tom castanho escuro, pele branca, usando

    culos de sol. Junto da moa estava um homem de cabelo grisalho, que

    dirigia um carro de modelo Escort na cor vermelha. A testemunha, um

    vizinho, disse que no momento no estranhou que a garotinha fosse

    levada porque pensou que fosse algum parente. Os tios da molecada

    costumavam visit-los de carro, o que contribuiu para que a ao fosse

    vista com naturalidade pelo observador. Ele faleceu algum tempo depois

    e nenhuma resposta foi obtida do relato. Os chinelinhos foram os nicos

    pertences encontrados por Vanilza.

    Hoje a garota teria quatro irmos. O que tinha 4 anos na poca

    no consegue se deparar com alguma boneca hoje sem lembrar-se da

    A LTIMA LEMBRANA

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    pequenina. Uma das poucas lembranas que tem da irm a choradeira

    que ela aprontou quando perdeu uma boneca. Os soluos da menina

    ecoam at hoje na memria do rapaz. Gislaine tambm seria tia de quatro

    crianas, filhos da irm mais velha. Quem sabe hoje tambm no fosse

    me? Os pais se separaram e Jurandir Ferreira morreu sete anos depois do

    desaparecimento da menina sem nunca saber se foi av, sem nunca mais

    ter nos braos sua princesa. Ele tambm chorou quando se deu conta de

    que havia perdido sua bonequinha.

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    SEGUNDO CAPTULO

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    MUDANA DE RUMOS

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    SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN

    A insatisfao aumentaria a cada chamada no conferida pela polcia

    e a cada vez que se deparava com o rostinho do filho nas fotografias.

    Sem ainda se dar conta disso, a prpria histria de Arlete Ivone Carams

    se cruzaria com 11 outras de um mesmo enredo, suficiente para unir

    e direcionar a dor para algo efetivo diante de novos desaparecimentos.

    Esse drama em comum mudaria para sempre o destino de tantas outras

    famlias paranaenses nos anos seguintes.

    Aps um ano longe de Guilherme, Arlete estava determinada a

    mudar a situao. A prpria vida estava em segundo plano. Os vizinhos j

    comentavam o desleixo com uma das casas na rua Osrio Duque Estrada,

    outrora de fachada bem cuidada e o jardim aparado, tempos de quando

    o filho costumava brincar no espao defronte a residncia. Era notvel a

    sensao de abandono se observassem os outros sobrados to destoantes

    daquele lar. O interesse com os servios da casa tinham ido embora desde

    o dia em que Guilherme desapareceu e era difcil recomear. De cor opaca

    e janelas constantemente fechadas, at as paredes refletiam a ausncia

    do garoto.

    Motivada a reverter o descaso para com os desaparecidos, ela

    deu incio a um movimento que tempos depois representaria no s o

    desagravo de famlias traumatizadas pela perda de suas crianas, mas

    tambm a esperana de todo pai e me amparados somente pelo prprio

    estertor. O Movimento Nacional em Defesa da Criana Desaparecida do

    Paran (CriDesPar) se tornou a fora que Arlete nunca imaginou que teria,

    e mal sabia que esse era apenas o comeo.

    - A gente nunca sabe os desgnios de Deus, o que Ele quer da gente.

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    De repente eu fui esse instrumento para alavancar tudo isso - cr.

    ***

    Com a criao da ONG em 1992, Arlete desde ento tem se

    dedicado no s busca incessante por Guilherme, mas tambm de

    todas as outras crianas que desaparecem ano aps ano no Paran e no

    so localizadas. A iniciativa surgiu com o objetivo de atuar na preveno

    dos desaparecimentos, orientando pais, crianas e professores, com

    aconselhamentos sobre segurana. Alm disso, por meio de uma rede

    de relaes com as outras famlias que haviam sofrido a mesma perda,

    o peso das reivindicaes seria outro. O prdio que abriga o CriDesPar,

    com a fachada trabalhada em granito de duas cores escuras, funciona

    na regio central de Curitiba. A sala que guarda as histrias de tantas

    famlias paranaenses fica no 9 andar do nmero 464. A manh daquele

    26 de junho de 2012 era fria, clima tpico na capital do Estado e atpico

    para os que esto acostumados com o calor do interior. Dona Arlete?

    906, respondeu uma das zeladoras do edifcio Minerva Baro. O elevador

    amplo e mais frio que a prpria temperatura aqum a porta de vidro

    que separa o saguo do prdio da calada craquelada do lado de fora.

    Um homem de meia idade entra no elevador, compartilhando por um

    momento a mesma viagem. O destino dele o 4 andar.

    No piso desejado, uma porta de madeira escura sustenta uma

    placa de metal identificando a ONG CriDesPar. Gilson, um homem

    aparentando ter 40 anos, cabelos negros e olhos atentos no fundo dos

    culos atende, indicando rapidamente o caminho at uma pequena sala,

    aps atravessar a passadas largas dois cmodos de tamanho semelhante

    - todos repletos de banners e psteres de crianas desaparecidas do

    Paran.

    A sala tem uma grande janela que permite a luz fria atingir

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    qualquer um que esteja ali presente. Um adesivo na mesma janela que

    d viso para o prdio da Polcia Civil j denunciava: Arlete, Me do

    Guilherme. Arlete chega desculpando-se pelo atraso. Separou-se do

    marido e mora hoje somente com a me em outra residncia que estava

    sendo construda quando Guilherme desapareceu. Sueli Carams, hoje

    com 88 anos, est muito doente e requer cuidados, ateno e tempo da

    filha que, aposentada, divide-se entre o lar e as atividades da ONG, que

    j no to atuante quanto ela gostaria.

    A aparncia da me coragem - adesivo que a identifica tambm na

    parede - de algum cansada. Ela diz que em momento algum, em todos

    esses anos, sentiu realmente que estava prxima de encontrar o filho

    desaparecido. Suspira.

    - Mas a luta continua - ressalta.

    A pacincia e esperana inesgotveis j comeam a dar lugar

    fatalidade dos anos sem resposta. As ligaes de trotes ou pistas cessaram

    h muito tempo. Os cabelos brancos agora so mais evidentes com a blusa

    vermelha que ela usa. Arlete no s uma me guerreira, referncia em

    todo o Paran por tanto tempo. Ainda tenta ser a me de uma causa que

    batalha para no cair no esquecimento.

    ***

    Quando a movimentao pela busca do filho comeou a se

    organizar, o ponto de partida de Arlete foi descobrir que no estava s.

    Havia outras famlias tambm desesperadas pelo desaparecimento dos

    filhos, 12 histrias que acabaram por unir pessoas de vrias localidades

    no Estado. Os pais passaram a procur-la em vez de irem polcia. O

    descrdito alusivo ao governamental crescia. E Arlete como referncia

    para as famlias dos desaparecidos tambm aumentou ela passou a

    orientar, da maneira que podia, qual era o procedimento mais indicado

    diante do problema, norteando os primeiros passos de quem j no queria

    MUDANA DE RUMOS

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    dar mais nenhum.

    O primeiro espao usado para expressar o desapontamento com

    a constante demora nas aes policiais e governamentais foi a avenida

    XV de novembro, regio central de Curitiba. Inaugurada em 1972 como

    a primeira passagem exclusiva para pedestres, a calada da rua XV,

    como chamada, tem 3.300 metros cercados por edifcios de arquitetura

    clssica, construes centenrias, canteiros de flores e uma devotada

    movimentao dos curitibanos transeuntes na extenso. A frequente

    circulao de pessoas era a ateno necessria que as famlias buscavam

    para a causa que at ento carregavam sozinhos. Defronte popular

    confraria Cavaleiros da Boca Maldita de Curitiba personagens estes

    que outrora se reuniam para destrinchar as informaes publicadas pelos

    peridicos locais naquela regio -, a unio daquelas famlias representava

    ali novos cavaleiros, dessa vez de todo o Paran, que enfrentavam uma

    ininterrupta batalha.

    Palco da interao de msicos e artistas de rua, a Boca Maldita,

    localizada logo no incio do calado, tambm serviu de palco para os

    desabafos dos parentes dos desaparecidos. Ali foi realizada a primeira de

    muitas manifestaes, que passaram a ser organizadas quinzenalmente

    por Arlete Carams.

    Em Maring, trs famlias foram unidas pela dor comum e pelo ano

    que jamais esqueceriam em 1992, Delva Fiuza Palma, Vera Lcia Pereira

    da Silva e Elisete Maria dos Santos j no eram completamente estranhas

    entre si. Na primeira vez que as trs embarcaram em um nibus de linha

    abafado, levavam a esperana na mala e a expectativa de que a viagem

    longa resultasse em boas novas para trazerem de volta o conforto de que

    a luta no era em vo. Era difcil pregar os olhos durante o trajeto e a

    identificao entre as trs por conta da saudade que tinham dos filhos foi

    motivo suficiente para que se tornassem amigas. Sem muitos recursos, o

    trio s conseguia tornar visvel a prpria dor com o auxlio do CriDesPar,

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    que oferecia as passagens e a hospedagem para as mes do interior.

    Natural do Rio de Janeiro, a carioca Delva estranhou a primeira vez o frio

    da capital paranaense e se arrependeu por no ter levado mais blusas na

    bolsa. As lembranas dessas idas e vindas foram se dissipando conforme

    o tempo se arrastava, mas a inteno e os contatos que Delva fez ao

    longo dos 426 km at Curitiba foram capazes de atenuar o desespero que

    enfrentou sozinha.Ostentando de cartazes com fotografias e informaes daqueles

    que foram tirados abruptamente do prprio lar, homens e mulheres

    sustentavam olhares perdidos e destroados com o passar dos encontros.

    O apelo era para chamar a ateno da populao em geral para que,

    de alguma maneira, as pessoas pudessem se solidarizar com a causa.

    Escancarar o problema que crescia para a imprensa da poca tambm era

    uma misso importante, visto que nem sempre o desaparecimento de

    crianas soava como uma pauta de interesse dos jornais, principalmente

    do interior do Estado, que mal noticiavam o fato e, quando o faziam, o

    espao dedicado era nfimo. Quando Ednilton Palma desapareceu, uma

    breve nota de duas colunas no maior jornal de Maring, O Dirio do Norte

    do Paran, informava o sumio do garoto. Em outro, O Jornal, na mesma

    cidade, apenas uma coluna tmida. Com as reunies na capital, a fora era

    maior e resultava notcias estampadas frequentemente nos jornais. Os

    protestos no foram em vo: o governo no podia ficar em silncio por

    muito tempo diante daquela realidade. Dos protestos, que tiveram incio

    em 1992, trs anos se passaram at que houvesse algum resultado.

    Teve um deputado na poca [Ricardo Chab] que se mobilizou

    tambm, pediu para que a gente fosse Assembleia

    [Legislativa] dar um depoimento. Eu fui com outros pais,

    mas fui eu quem deu o depoimento. Consegui sensibilizar

    o governo que precisava ter um rgo centralizador da

    questo. Porque era uma coisa totalmente diferente do que

    MUDANA DE RUMOS

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    tinha a. No era homicdio, no tinha um corpo para dizer

    que era homicdio, nada. Pedamos que criassem um rgo

    de busca, entende? Porque ns, pais, no temos esse poder

    de polcia. Tanto que a ONG [CriDesPar] foi criada no sentido

    de preveno, prevenir as pessoas, orientar. Virei, na poca,

    uma fonte de referncia. Ao invs de irem polcia, eles

    vinham a mim, queriam saber como que fazia e tal. Eu tive a

    sorte porque eu trabalhava no Banestado na poca, quando

    meu filho desapareceu. Digo que tive sorte porque ningum

    quer dispor de nada nesse perodo. Ningum quer ajudar

    a fazer um cartaz e distribuir, e o Banestado me ajudou

    muito. Tanto que mandei um cartaz para todo o Brasil. E

    conseguimos sensibilizar o governo do Jaime Lerner [que

    havia assumido o mandato em janeiro daquele ano]. A gente

    queria uma secretaria dedicada, mas disseram que ia onerar

    muito a estrutura. A criaram um servio de investigao que

    funciona e muito bem.

    (Arlete Carams Tiburtius, me do Guilherme e presidente

    do CriDesPar)

    O projeto original foi apresentado em maro do ano passado

    pelo deputado Ricardo Chab (PSDB), e aprovado pelos

    deputados no primeiro sem