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SEU CABELO NÃO NEGA”: QUANDO A DIFERENÇA É COLOCADA EM QUESTÃO NAS AULAS DE ARTE SILVA JUNIOR, Paulo Melgaço da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ CANEN, Ana Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ Resumo Trabalhar com periferias urbanas abre possibilidades de conhecer como determinados discursos e conceitos que circulam nos grandes centros são apropriados e reinventados. As relações de vizinhança persistem muito mais do que em bairros de classe média ou alta. As necessidades básicas, os espaços de sociabilidade, fazem com que sejam redesenhadas novas formas de perceber o mundo social O presente artigo aborda alguns modos pelos quais os alunos do 6º ano constroem suas identidades culturais, de raça e gênero e como estas são vivenciadas no ambiente escolar. Neste aspecto, buscamos captar como as/os jovens da periferia de Duque de Caxias se constroem como sujeitos criando novos significados para discursos legitimados pelo senso comum. Baseamos em Sommerville (2000) e Barnard (2004), que entendem que as questões de raça, sexualidades, gênero e classe social devem ser vistas como interseccionadas, ou seja, não podem ser dissociadas, uma vez que se deve olhar para o sujeito social como um todo e não apenas por um ângulo de suas subjetividades Para tal, realizamos uma pesquisa ação (FRANCO, 2005) durante as aulas de arte, realizadas ao longo do ano.. Além das aulas, os principais instrumentos para geração de dados foram a observação do cotidiano escolar e as anotações de conversas informais consideradas significantes. Propusemos trabalhar temas que propiciassem a discussão e desestabilização de conceitos e visões essencializadas durante as aulas de arte. Tal processo evidenciou que, ainda que nem todos tenham chegado ao nível de reconhecimento e valorização das diferenças, nossos estudantes aprenderam a respeitar o outro, a pensar neste como ser humano. Palavras chaves: Raça, Cotidiano Escolar e Interculturalidade Introdução Este estudo aborda alguns modos pelos quais alunos/as do 6º ano de uma escola da periferia de Duque de Caxias/RJ constroem suas identidades de culturais, de raça e gênero e como estas são vivenciadas no ambiente escolar. De acordo com Sodré (1999), Quijano (2001) Wilchins (2004) e Barnard (2004) a raça é uma abstração, uma fantasia móvel que não tem nada a ver com o determinismo biológico. Ao mesmo tempo que Sommerville (2000) e Barnard (2004), que entendem que as questões de raça, sexualidades, gênero e Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 03824

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“SEU CABELO NÃO NEGA”: QUANDO A DIFERENÇA É COLOCADA EM

QUESTÃO NAS AULAS DE ARTE

SILVA JUNIOR, Paulo Melgaço da

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

CANEN, Ana

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

Resumo

Trabalhar com periferias urbanas abre possibilidades de conhecer como determinados

discursos e conceitos que circulam nos grandes centros são apropriados e reinventados. As relações de vizinhança persistem muito mais do que em bairros de classe média ou alta.

As necessidades básicas, os espaços de sociabilidade, fazem com que sejam redesenhadas

novas formas de perceber o mundo social O presente artigo aborda alguns modos pelos

quais os alunos do 6º ano constroem suas identidades culturais, de raça e gênero e como

estas são vivenciadas no ambiente escolar. Neste aspecto, buscamos captar como as/os

jovens da periferia de Duque de Caxias se constroem como sujeitos criando novos

significados para discursos legitimados pelo senso comum. Baseamos em Sommerville

(2000) e Barnard (2004), que entendem que as questões de raça, sexualidades, gênero e

classe social devem ser vistas como interseccionadas, ou seja, não podem ser dissociadas,

uma vez que se deve olhar para o sujeito social como um todo e não apenas por um ângulo

de suas subjetividades Para tal, realizamos uma pesquisa ação (FRANCO, 2005) durante

as aulas de arte, realizadas ao longo do ano.. Além das aulas, os principais instrumentos

para geração de dados foram a observação do cotidiano escolar e as anotações de

conversas informais consideradas significantes. Propusemos trabalhar temas que

propiciassem a discussão e desestabilização de conceitos e visões essencializadas durante

as aulas de arte. Tal processo evidenciou que, ainda que nem todos tenham chegado ao

nível de reconhecimento e valorização das diferenças, nossos estudantes aprenderam a

respeitar o outro, a pensar neste como ser humano.

Palavras chaves: Raça, Cotidiano Escolar e Interculturalidade

Introdução

Este estudo aborda alguns modos pelos quais alunos/as do 6º ano de uma escola da

periferia de Duque de Caxias/RJ constroem suas identidades de culturais, de raça e gênero

e como estas são vivenciadas no ambiente escolar. De acordo com Sodré (1999), Quijano

(2001) Wilchins (2004) e Barnard (2004) a raça é uma abstração, uma fantasia móvel que

não tem nada a ver com o determinismo biológico. Ao mesmo tempo que Sommerville

(2000) e Barnard (2004), que entendem que as questões de raça, sexualidades, gênero e

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classe social devem ser vistas como interseccionadas, ou seja, não podem ser dissociadas,

uma vez que se deve olhar para o sujeito social como um todo e não apenas por um ângulo

de suas subjetividades.

De fato, como o primeiro autor é professor, pai e homem negro devemos revelar

que as questões raciais influenciam diretamente as questões de gênero, sexualidades e

masculinidades, e vice-versa. Cabe salientar a complexidade da questão racial no Brasili:

se por um lado, no senso comum, o/a negro/a tem sua identidade social construída de

maneira negativa e subalternizada, por outro vê sua sexualidade explorada, exaltada e

hipervalorizada. Ao longo da história da civilização brasileira, o/a negro/a vem sendo

marcado/a, tendo suas subjetividades construídas por meio de estigmas e mitos,

principalmente de maneira essencializada, fazendo com que muitos sujeitos tenham

dificuldade de se aceitar como pertencentes à raça. Uma reflexão atenta sobre esta questão

nos mostra que a educação e a escola podem tanto contribuir para a perpetuação do

racismo e a manutenção do status quo inferiorizante do/a negro/a em nossa sociedadeii,

como, também, pode ser de agente de transformação social e de luta contra o racismo.

Acreditamos que a escola pode oferecer uma grande contribuição, problematizando a

visões essencializadas de identidades raciais e de gênero e, com isso, colaborar para que

os/as estudantes reconheçam quão injustos são os sentimentos e atitude de racismo e

sexismo

Apropriamos do campo do multiculturalismoiii, entendido como a possibilidade de

promover uma educação para o reconhecimento do outro, para o diálogo entre os

diferentes grupos sociais e culturais (CANEN 2007, 2008; CANDAU, 2008, 2009,

WALSH, 2009) que pode contribuir para discutir a escola e seus diversos e complexos

atravessamentos culturais para problematizar as maneiras como estes/as jovens

constroem e revelam suas subjetividades no cotidiano escolar. O objetivo central da

pesquisa foi passar dos limites, desconfiar do que está posto e olhar de mau jeito o que

está posto; colocar em situação embaraçosa o que há de estável naquele corpo de

conhecimentos (LOURO 2004). Com isso, problematizar e de tentar promover mudanças

nas maneiras de conceber as possibilidades de se construir como sujeitos sociais, trazendo

à tona a necessidade de reconhecimento do “outro” como sujeito. Fabrício e Moita Lopes

(2010) destacam a importância da realização de pesquisas na área educacional que se

transformem em atividades relevantes e em oportunidades de aprendizagem. Assim, a

pesquisa se constitui em uma tentativa de contribuir para conceber e investigar o

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repertorio de significados e conceitos construídos a partir do senso comum e, com isso,

(tentar) desestabilizar visões congeladas de gênero e raça.

O artigo está estruturado da seguinte maneira: no primeiro momento as reflexões

iniciais. Logo após propomos uma breve reflexão sobre Escola, Periferia Urbana, culturas

e interculturalidade. Ao final, destacamos o contexto em que se desenvolveu o trabalho

que serviu como instrumento para esta pesquisa e, por fim, apresentamos as

considerações.

Reflexões iniciais

Muitos/as autores/as têm se debruçado a abordar a natureza reflexiva da

contemporaneidade. São apresentadas novas maneiras de viver e de se relacionar

socialmente. Com isso, antigos valores sociais perdem seus status. Surge agora um sujeito

fragmentado, múltiplo, contraditório em constante mutação. É a modernidade reflexiva

(GIDDENS, BECK & LASH, 1997) caracterizada pela busca, pela reflexão e o repensar

sobre quem somos e em quem poderemos nos tornar.

Neste sentido, a modernidade reflexiva, também, tem sido caracterizada por uma

explosão de identidades políticas centradas na ascensão do feminismo, nas identidades

gays, lésbicas e negras, na migração de antigas colônias dos países pobres para os países

ricos. Nesta pluralidade de vida social me interessa refletir sobre corpos negros, como

sujeitos que foram apagados pela modernidade e que sempre são apontados nos censos e

pesquisas como em situação de inferioridade.

É lugar comum afirmar que no que se diz respeito à raça, a sociedade brasileira é

constituída pelos discursos da escravidão, da abolição, da Ciência da Raça, da

Democracia Racial, da Miscigenação e da Negritude; além disto, os efeitos semânticos

de tais discursos podem ser percebidos em contextos distintos do país, respeitando as

particularidades de cada região. Com base neles e no racismo, muitos ainda constroem

negros/as como marginais, bandidos, não confiáveis, feios, não competentes, incapazes

para atividades intelectuais etc. (MELO, ROCHA e SILVA JUNIOR, 2013).

A nossa proposta é voltar o olhar para a escola e suas relações cotidianas de raça,

sexualidades, gênero e classe social. Esse local detém significativa importância na

construção das identidadesiv dos/as estudantes. A escola constitui o primeiro centro social

fora do núcleo familiar, onde a criança poderá colocar em questionamento ou confirmar

todas as informações e visões de mundo ensinadas pelos familiares. Conforme Moita

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Lopes (2002, p. 91) “as escolas, por exemplo, determinam em grande parte não somente

o que as pessoas fazem como também quem são, serão e podem ser”, tendo também a

função de “legitimar ou recusar essas identidades, entre outros significados previamente

construídos” (p. 204).

No que diz respeito à raça, é na escola que se aprende que a cor da pele negra é um

problema. Nesse espaço, meninos e meninas ouvem brincadeiras, xingamentos e críticas,

e são excluídos de diversas práticas sociais devido ao marcador corporal. Tais ações

acontecem de diversas maneiras: por um lado, o silêncio que invisibiliza a desigualdade

racial, desencorajando alunos/as de se posicionarem como negros/as. Por outro lado, nos

bancos escolares deparamo-nos com discursos que essencializam binarismos que podem

inferiorizar ou erotizar o/a negro/a.

Nessa perspectiva, a discussão sobre cabelos, para a aluna negra, serve como um

claro exemplo de questões que fazem parte do cotidiano escolar: eles devem ser alisados

ou permanecer naturais? Para Costa de Paula (2010), esta lógica binária – alisar ou não –

acaba por desvalorizar a mulher negra porque o que está em jogo aqui é a comparação

com o padrão de referência mulher branca. Ao propor estas duas alternativas não se está

considerando o direito de a mulher negra buscar sentir-se bonita do jeito que melhor lhe

convier. Já para o aluno negro, seus traços físicos (formato de rosto, nariz e o próprio

cabelo) são motivos de piada. Contudo, este mesmo corpo negro se torna um fetiche e é

visto como forma de sexualidade, sensualidade, vigor e força na prática de esportes.

Escolas, Periferias Urbanas, Culturas e interculturalidade

Vivemos atualmente em um cenário sócio-político-ideológico e econômico

bastante complexov, no qual o campo educacional (a escola) precisa problematizar as

práticas e discursos internalizados que produzem a subalternização de pessoas e grupos

culturais. Além disso, urge que a educação busque meios de provocar mudanças nas

interações cotidianas nas escolas e sociedades. Neste sentido, acreditamos que a educação

formal deva estar conectada às possibilidades de educação para a vida, o conviver, o

reconhecimento da natureza e dos saberes ancestrais como forma de conhecimento

escolar.

Determinados conceitos e discursos disseminados nos grandes centros urbanos são

reinventados, reconstruídos e readaptados nas periferias urbanas. As relações de

vizinhança e as redes sociais de apoio mútuo são características que marcam e que buscam

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driblar a precariedade de trocas humanas nas periferias urbanas. Com isso, as

necessidades básicas fazem com que sejam redesenhadas novas formas de perceber o

mundo social, muito presentes em um específico centro urbano periférico na região

metropolitana do Rio de Janeiro.

Nessa perspectiva, a educação multi/ intercultural se configura como um campo de

estudos que visa reconhecer a educação para a alteridade, valorizando o outro como

sujeito social e construtor de diversos saberes. Ao mesmo tempo, abre também

possibilidades para abordar as questões sócio-econômico-político-sociais e reconhecer as

diferenças (gênero, sexualidades, raça, classe social), buscando problematizá-las e

integrá-las ao contexto educacional, impedindo seu silêncio, hierarquização ou anulação.

Como há uma grande polissemia em relação à expressão intercultural. Desse modo,

e de acordo com Walsh (2009), podemos destacar três perspectivas da interculturalidade:

relacional, funcional e crítica. A perspectiva relacional propõe o contato e o intercâmbio

entre culturas, pessoas, práticas e saberes, e pode se dar em condições de igualdade ou

desigualdade. Esta vertente assume que a interculturalidade sempre existiu no continente,

pelas constantes relações entre índios e afrodescendentes com as diversas raças.

Já a perspectiva da interculturalidade funcional, ainda segundo Walsh (2009), se

preocupa com o reconhecimento da diversidade cultural com o objetivo de realizar a

inclusão desses sujeitos na estrutura social estabelecida. Aqui se busca promover o

diálogo, a tolerância, o respeito mútuo e a convivência pacífica entre os diferentes. É

relevante levar em consideração que esta perspectiva filosófica acabou sendo incorporada

pelas políticas públicas, porque sua proposta orienta a inclusão de indivíduos e grupos

sociais marginalizados e excluídos. Daí derivam as preocupações com as políticas e ações

afirmativas.

A terceira perspectiva, a interculturalidade críticavi, questiona a lógica do

capitalismo; seu foco central é a estrutura de poder, seu padrão de racialização e como a

diferença tem sido construída em função deste. Esta vertente busca fortalecer a construção

de identidades dinâmicas, abertas e plurais, assim como potencializar processos de

empoderamento de sujeitos inferiorizados e subalternizados e a construção da autoestima

e autonomia em um horizonte de emancipação social (CANDAU; RUSSO, 2011). Aqui

a diferença está associada ao processo de colonização, sendo denominada diferença

colonial, ou seja, o espaço que se desdobra a partir da colonialidade do poder. Nas

palavras de Mignolo (2003, p. 10),

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[...] a diferença colonial é o espaço onde histórias locais que estão inventando

e implementando os projetos globais encontram aquelas histórias locais que os

recebem; é o espaço onde os projetos globais são forçadas a adaptar-se,

integrar-se ou onde são adotados, rejeitados ou ignorados (MIGNOLO, 2003,

p. 10).

Para esse autor, este espaço pode ser físico ou imaginário, e nele atua a

colonialidade do poder que configura historicamente uma geopolítica do conhecimento,

na qual se destaca o privilégio de indivíduos localizados em determinados lugares geo-

históricos do globo. A colonialidade é parte constitutiva da modernidade, é seu lado

sombrio, oculto e silenciado (MIGNOLO, 2003). Ela determina a subalternização e a

dependência, processo que pode ser compreendido a partir de quatro eixos: do poder, do

ser, do saber e da mãe natureza. A matriz da colonialidade ocupa um lugar central nos

processos de dominação/ subordinação relacionados a raça, gênero e sexualidade, bem

como nos processos de construção das masculinidades (levando em conta tanto a estrutura

do patriarcado quanto o fetiche criado a partir do corpo negro). Daí a necessidade de se

problematizar a diferença colonial (MIGNOLO, 2003) produzida desde a colonização até

os dias atuais.

As noções de identidades de raça e de gênero em questão: metodologia,

desafios, contextos e realizações

A escola Experimentalvii, onde os dados do presente estudo foram gerados, está

localizada em um bairro da periferia da cidade da Baixada Fluminense - Duque de Caxias

- e oferece desde a educação infantil ao segundo segmento do ensino fundamental. A

escola possui cerca de 700 alunos/as, provenientes de classe trabalhadora e de baixa

renda. A turma na qual a pesquisa foi desenvolvida estuda no segundo turno, que funciona

das 11:00 às 15:00 horas. Para o desenvolvimento de tal proposta, optamos pela pesquisa-

ação que permite “caminhar junto quando se pretende a transformação da prática”

(FRANCO, p.495, 2005). A autora nos diz que a pesquisa-ação deve partir de uma

situação social concreta a modificar e mais do que isso deve se inspirar nos elementos

novos que surgem durante o processo e sob a influência da pesquisa.

Os temas eram introduzidos, pelo professor/ pesquisadorviii, a partir de textos,

filmes e músicas em geral, que permitissem provocar discussões a fim de desestabilizar

visões essencializadas. Destacamos que os encontros foram gravados e transcritos.

De acordo com o programa da disciplina de Arte elaborado para o 6º ano, o estudo

da cor deve acontecer ao longo do 3º bimestre. Programamos então, em conjunto com a

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orientadora educacional, as atividades do bimestre incluindo vídeos, músicas e a

teorização sobre cores. Para iniciar as discussões, no dia 31 de julho propusemos a

apresentação do vídeo Vista minha peleix. Estavam presentes na sala 18 meninos e 10

meninas. Como era o retorno das aulas (literalmente, o primeiro dia de aula após um curto

recesso), procuramos deixar a turma bem à vontade, pedimos para fazerem pipoca, levei

refrigerantes, tentamos reproduzir uma sala de cinema. Antes de começarmos fizemos o

convite para assistirem ao filme e destacamos que ele apresentava questões raciais muito

interessantes, às quais os/as alunos/as deveriam prestar atenção.

Iniciou-se o filme, e logo sentimos um certo estranhamento por parte da turma:

risinhos, alguns meninos se movimentando excessivamente nas cadeiras. Contudo,

ninguém se levantou ou saiu da sala durante a exibição. Não ouvimos piadas ou

comentários ao longo dos 25 minutos aproximados de apresentação. Apenas destacamos

no diário de notas que, durante a exibição, “os meninos ficaram mais inquietos e agitados

do que as meninas, que permaneceram em silêncio durante todo o vídeo”.

Ao terminar a exibição, o aluno Endison comentou: “Nossa é muito estranho ver

um filme assim, só negro”. Consideramos este momento um instante de desestabilização

do grupo, que não estava acostumado a ver filmes com protagonismo negro. Os/as

aluno/as não têm contato, em seu cotidiano, com negros/as em posição dominante. No

convívio diário eles/as assistem a negros/as recebendo ordens e trabalhando como

empregados em funções subalternas. Talvez os/as negros/as melhor posicionados

socialmente sejam os/as professores/as da escola.

Contudo, antes que pudéssemos disser algo, o aluno Andrew falou: “Você está

sendo preconceituoso, tem que saber respeitar”. Dalila rapidamente interveio: “É que....

é diferente, a gente não tá acostumada a ver filme assim”. Para reforçar nossa opinião,

perguntamos: “Assim como?” Por um minuto, silêncio na turma; depois de algum tempo,

Vitória se posicionou e disse: “Com negros fazendo papeis de ricos... e só com eles tendo

dinheiro ...olha as novelas em malhação e na avenida Brasil só são empregados... Só uma

negra faz papel principal e mesmo assim é empregue-te”x. A fala desta aluna reforçou

minha linha de pensamento acima, de que os/as alunos/as não possuem referencial de

negros no poder, principalmente no que se refere a intelectuaisxi.

A aluna Vitória destacou: “Mas eu acho que o vídeo também é preconceituoso

porque só mostra a maioria de negro. Não resolve deste jeito. Tem que ter os dois vivendo

iguais... com dinheiro e situação”. Este foi um ponto relevante, em que a aluna buscava a

valorização do convívio entre raças diferentes, uma discussão muito presente nas

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vertentes multiculturais pós-coloniais, interativas, críticas e interculturais (CANDAU,

2008,2009; CANEN, 2007, 2008, 2009). Entretanto, o aluno Wallace entrou na conversa

e citou um outro aspecto do vídeo: “As meninas são todas com cabelo durão, não são

bonitas”. Trata-se de um tema tabu entre as adolescentes negras, pois as questões relativas

ao cabelo fazem parte do cabedal de discursos das mulheres negras. Todo o processo de

colonização valorizou os modelos de beleza da mulher branca; em consequência, o

modelo de cabelo desejado é o comprido liso. Argumentei, então, que ele não achava as

meninas bonitas porque somos regidos pelos padrões de beleza do modelo branco

europeu.

Conforme mostra Costa de Paula (2010), a mulher negra pode se mostrar insegura

em relação à própria imagem por causa do cabelo. De fato, a aluna Joyce comentou: “É

por isso que temos que alisar os cabelos, senão todo mundo acha feio”. Iara se defendeu:

“Eu não gosto de cabelo escorrido, gosto do meu cacheado igual da Penhaxii, não me

importo com o que os outros falam.” “Mais você alisa do mesmo jeito, Iara seu cabelo é

ruim e o dela é implante”, comentou Natalia. A partir daí, os comentários sobre cabelos

tomaram uma grande proporção, com cada uma destacando como alisa o cabelo e a

vantagem que algumas brancas têm em ter cabelo liso. Entendemos que, no caso do

cabelo, a mulher negra e pobre sofre ainda mais que aquelas que possuem mais recursos

econômicos que permitem se submeter a tratamentos de beleza e a trabalhar a autoestima.

A maioria dos meninos não se interessou em participar da discussão. Apenas as

vozes de Wallace, Mauro, Endison e Andrew aparecem na gravação, mesmo assim na

forma de risos. Um dos poucos momentos em que se ouve a voz do Wallace é para dizer

que “pegar em cabelo liso é mais gostoso... é bom para ficar...” e fez o gesto como se

estivesse beijando e passando as mãos nos cabelos da outra pessoa. É lógico que uma fala

dessas, vinda de um menino considerado bonito, desestabiliza e inferioriza as meninas

negras.

Aproveitamos a discussão para problematizar o conceito de beleza da mulher e as

razões por que cabelo liso é considerado cabelo bom. Resolvemos perguntar-lhes quais

os adjetivos atribuídos a um cabelo considerado duro, e fomos listando as respostas no

quadro. Apareceram na relação, entre outros: “Cabelo bombril, ruim, espeto do inferno,

cabelo do diabo, sarará crioulo, nega maluca, coisa ruim, carapicho, ...” – todos negativos

e refletindo as formas como negros e negras foram construídos ao longo dos anos. Aqui

a proposta era problematizar os discursos essencializados sobre raça (SOMERVILLE,

2000; SULLIVAN, 2003; BARNARD, 2004;) e trazer à tona que determinadas

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

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características são traços das múltiplas identidades de raça (CANDAU, 2008; CANEN,

2009). Por isso, solicitamos à turma que refletisse sobre todos aqueles nomes escritos no

quadro, e sobre como eles depreciavam e subalternizavam o outro. Observamos que,

desde o processo de colonização, o negro veio sendo construído como inferior, e que as

diferenças foram marcadas em relação ao branco (MUNANGA, 1986; WALSH, 2009).

Mostramos que enquanto ser branco significa ser bonito, ser negro corresponde a ser feio;

que o cheiro do branco é bom, ao passo que o do negro fede, entre outras comparações

que quem é negro conhece muito bem, incluindo todos aqueles atributos relativos ao

cabelo, especialmente quando atribuídos à mulher negra.

Naquela ocasião, o objetivo era mostrar como o/a colonizado/a foi marcado/ pelas

relações de poder que o/a construíram (QUIJANO, 2007) e como nós, negros e negras,

carregamos esses discursos que se acomodam no corpo e que causam um sentimento de

inferiorização. Chamamos atenção para o fato de que já era hora de repensarmos as

formas como fomos historicamente construídos. Convocamos a turma a pensar na história

do Brasil desde a chegada dos portugueses, tentando trazer à tona a questão da diferença

colonial (MIGNOLO, 2003). Destacamos como o/a negro/a foi identificado/a e

subalternizado/a ao longo dos anos, e como era importante pensarmos nestas questões

para criarmos/ desenvolvermos maneiras positivas de identificação (SOMMERVILLE,

2000; BARNARD, 2004). A proposta era a de buscar reconhecer que todos aqueles

adjetivos citados no início da conversa serviam para desqualificar e inferiorizar uma raça,

atacando diretamente a autoestima das pessoas. Era então necessário realizar a

desidentificação, ou seja, livrar-nos dessas formas pejorativas com que fomos

comparados e nomeados enquanto negros e negras. Enfatizamos que, apesar de estarmos

falando principalmente de cabelos, nossa fala se estendia a todas as condições que

reduzem os/as negros/as ao inferior em diversos aspectos de suas subjetividades; e,

finalmente, que na realidade nos estávamos experimentando novas formas de

identificação que não fossem as relacionadas aos processos de determinismo biológico

ou social ( SOMMERVILLE, 2000; BARNARD, 2004).

A turma ouviu em silêncio. Reafirmamos nossa fala, salientando que se tratava de

uma questão cultural e que o vídeo mostrava isso. Lembramos que, se vivêssemos naquela

sociedade apresentada no filme, certamente os padrões de beleza seriam diferentes

daqueles que estávamos discutindo no momento; e que as relações de poder seriam outras,

sob as quais todas as diferenças seriam postas de maneira que a raça negra seria vista

como superior: mais inteligente, mais bonita etc.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

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Retomamos a discussão dos cabelos. Falamos sobre algumas mulheres negras

famosas que não os alisavam – como as atrizes Sheron Menezes e Luci Ramos e a cantora

Luciana Melo – e como o público, de um modo geral, as achava lindas. Ao mesmo tempo

mostramos que havia outras que alisavam os cabelos e que as pessoas também achavam

lindas – como a jornalista Gloria Maria e as atrizes Camila Pitanga e Thais Araújo –, e

ainda como as que usavam belos apliques – como a atriz Cris Vianna, que todos

conheciam por ter sido madrinha de bateria da escola de samba da cidade. Com isso,

reforçamos a importância de se valorizar as diferenças e a beleza da mulher negra,

destacando que a preocupação com os cabelos é geral entre as pessoas, uma vez que eles

marcam nossa aparência e funcionam como um cartão de visitas. No caso das meninas,

com base em Costa de Paula (2010), afirmamos que a inquietação com os cabelos é

comum a todas as afrodescendentes: algumas preferem alisá-los, outras os deixam

cacheados ou naturais, outras os raspam; no entanto, o que todas querem são cabelos

bonitos que as agradem e as façam se sentir seguras e lindas com a própria aparência.

Nesse dia conseguimos chamar atenção da turma para as questões raciais e mostrar outras

possibilidades de se constituir uma sociedade, independente de sermos negros ou brancos.

Algumas considerações

A proposta do presente estudo era mostrar como as marcas culturais influenciaram

nossas formas de agir e pensar, podendo inferiorizar algumas identidades, propondo uma

visão multicultural como caminho de viabilização da valorização identitária. A questão

foi retomada em outros momentos, tentando reforçar a importância de identificar as

formas negativas que marcam o outro, e como estas dadas características foram/ são

utilizadas como possibilidades de subalternizar ou enaltecer uma raça.

Essas discussões confirmaram a relevância de trazer, para a sala de aula, questões

relativas a gênero, raça e classe social. Neste sentido, o tema cabelo está diretamente

relacionado à construção do gênero feminino e à raça negra uma vez que, no caso

específico desta turma, os garotos negros não apresentaram nenhuma preocupação com

essa questão. Com isso, estamos certos que plantamos uma semente. Colocamos em

xeque visões essencializadas e congelamentos identitários, trouxemos o diferente, o

colonizado para a sala de aula e propusemos o diálogo entre as diferenças.

Referências

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 303833

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i No senso comum, encontramos ideias do determinismo biológico e do mito da democracia racial. O

primeiro mostra as características biológicas da raça negra: nasceu para as atividades que exigem força e

habilidades físicas. O segundo informa que em nosso país não existe racismo, que as oportunidades são

iguais para todos/as. Contudo, nesta investigação, compreendo que somos marcados e apontados

diariamente, seja pela falta de oportunidades seja pelo fetiche corporal. Exemplos são a letra da música do

grupo Rappa, “todo camburão tem um pouco do navio negreiro”; e a fala – muito popular entre

meus/minhas alunos/as das comunidades em que trabalho – de que “todo policial, porteiro ou segurança

sabe muito bem quem é negro/a e quem não é”, que desfazem o mito da igualdade racial ii Aqui abrimos um parêntese para destacar que muitos/as professores/as, no desejo de atender às exigências

da Lei 10.639/03 (que inclui a história e acultura da África nos currículos), acabam reforçando o papel do

negro como escravo liberto que tem eterna gratidão à Princesa Isabel, ou visões essencializadas do que é

ser negro. Tais atividades pouco contribuem para a autoestima dos/as alunos/as negros/as iii Referimos aqui ao multiculturalismo e suas múltiplas vertentes, ou seja, o interculturalismo e a

decolonidade (uma vertente da interculturalidade crítica). iv O termo identidade está sendo utilizado segundo a indicação de Silva (2000): sob rasura. Não me refiro

a uma identidade essencializada, e sim em momento constante, em fluxo. v Temos presenciado lutas de grupos sociais pelos seus direitos, ao mesmo tempo em que a globalização

provoca uma homogeneização de pensamentos, sonhos e culturas, com a mídia repetidamente exibindo

novas formas e possibilidades de sociabilidades; há ainda o plano econômico alargando, a cada dia, as

fronteiras entre os mais ricos e os pobres. vi Segundo Walsh (2009), essa perspectiva não parte do problema da diversidade ou da diferença, não se

preocupa com tolerância ou inclusão. vii O nome da escola e dos/das alunos/as são fictícios. O primeiro autor atua como professor de arte nesta

escola. viii A pesquisa foi desenvolvida pelo primeiro autor sob a orientação da segunda autora. ix Trata-se de um vídeo de 2003, disponível na internet e patrocinado pelo CEERT (Centro de Estudos das

Relações de Trabalho e Desigualdades), com roteiro de Joel Zito Araújo e Dandara e direção do primeiro.

A produção destina-se à discussão das questões raciais e apresenta uma inversão de papéis. Aqui os negros

são a classe dominante e os brancos são ex-escravos, assim como os países pobres são Alemanha e

Inglaterra, enquanto Moçambique é um país rico. x A aluna se referia à novela Cheias de Charme, da Rede Globo. xi Temos consciência que cabe a nós, professores/as, ampliar este repertório discente, mostrando diversos/as

intelectuais negros/as e desestabilizando as expectativas de papéis sociais para negros e negras. Como

professor negro, o primeiro autor acredita que pode se considerar como um exemplo de desestabilização,

dados os meios nos quais circula e nos quais tenta criar possibilidades para sua circulação. xii Personagem vivido pela atriz Thais Araújo na novela Cheias de Charme.

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