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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL
UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL (UAB)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA)
INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO (ILC)
FACULDADE DE LETRAS (FALE)
COORDENAÇÃO DO CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA
PORTUGUESA MODALIDADE A DISTÂNCIA.
OCIVALDO PINHEIRO BAIA E VANUZA FERNANDES SILVA
NARRADOR E PERSONAGEM
DO ROMANCE A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR.
PARAUAPEBAS
JANEIRO/2013
SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL
UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL (UAB)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA)
INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO (ILC)
FACULDADE DE LETRAS (FALE)
COORDENAÇÃO DO CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS, LÍNGUA
PORTUGUESA MODALIDADE A DISTÂNCIA
OCIVALDO BAIA E VANUZA FERNANDES
NARRADOR E PERSONAGEM
DO ROMANCE A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR.
ORIENTADORA: PROFª. D
Rª. MARIA DE FÁTIMA DO
NASCIMENTO
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado como
requisito parcial para obtenção do grau de Licenciado em
Letras, Língua Portuguesa Modalidade a Distância, sob
orientação da Professora Doutora Maria de Fátima do
Nascimento.
PARAUAPEBAS
JANEIRO/2013
RESUMO
Este Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) tem como objeto de estudo o romance A hora da
estrela, de Clarice Lispector, visando fazer um breve estudo sobre o narrador e a personagem,
especialmente, o narrador Rodrigo S.M. e Macabéa, a principal personagem feminina do
romance estudado. A ficcionista Clarice Lispector destaca-se em nossa literatura pela sua
característica intimista, deslocando o leitor primeiramente para o mundo interior de suas
personagens, deixando a realidade exterior como pano de fundo, ou em segundo plano. A
obra estudada apresenta uma estrutura bastante complexa e inovadora, na qual a autora cria
um escritor fictício para tecer uma narrativa composta por três histórias: a vida de uma
nordestina numa cidade toda feita contra ela; a história de Rodrigo S.M, que de escritor, vira
narrador-personagem; e por fim a reflexão deste último sobre o seu modo de escrever a
história.
PALAVRAS-CHAVE: Clarice Lispector, A hora da estrela, narrador, personagem.
ABSTRACT
This Labor Completion of course has as its object of study the novel THE TIME STAR,
Clarice Lispector, aiming to give a brief study on the character-narrator Rodrigo SM Macabéa
the main female character of the novel studied. The work studied structure is quite complex
and innovative, in which the author creates a fictional writer to weave a narrative composed
of three stories: the life of a whole town in northeastern made against it, the story of Rodrigo
SM, who as a writer, turns narrator-character, and finally the latter reflection on its way of
writing history.
KEYWORDS: The Hour of the Star, Clarice Lispector, and Rodrigo SM Macabéa
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ---------------------------------------------------------------------------------------- 05
1 CLARICE LISPECTOR E A LITERATURA BRASILEIRA ----------------------------08
2 DIFERENÇA ENTRE PESSOA E PERSONAGEM DE ROMANCE ----------------16
2.1 TIPOS DE PERSONAGENS E NARRADOR. ---------------------------------------------19
3 UMA LEITURA DO ROMANCE “A HORA DA ESTRELA”,
DE CLARICE LISPECTOR. --------------------------------------------------------------------- 24
3.1 ALGUMAS ANOTAÇÕES SOBRE O ROMANCE A HORA DA ESTRELA. ------24
3.2 O NARRADOR-ESCRITOR RODRIGO S. M. -------------------------------------------- 38
3.3 A PERSONAGEM MACABÉA: MIGALHAS E SOLIDÃO -------------------------- 41
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS -------------------------------------------------------------------- 45
5 BIBLIOGRAFIA ------------------------------------------------------------------------------------48
5
INTRODUÇÃO
Os meus livros não se preocupam com os fatos em si, porque para
mim o importante não são os fatos em si, mas a repercussão dos fatos
no indivíduo. [...] Acho que, sob esse ponto de vista, eu também faço
livros comprometidos com o homem e a realidade do homem, porque
realidade não é um fenômeno puramente externo.1
(Clarice Lispector)
A partir da leitura da fortuna crítica das obras de Clarice Lispector e do seu romance A
hora da estrela, pretendemos neste trabalho, estudar alguns aspectos do narrador e da
principal personagem feminina da citada obra, da referida escritora brasileira. Para
concretizarmos este estudo lemos três obras que tratam da ficção clariceana, isto é, A
literatura no Brasil, (2001), de Afrânio Coutinho, História concisa da literatura brasileira
(2004), de Alfredo Bosi, e O drama da linguagem, (1989), de Benedito Nunes para sabermos
o que esses estudiosos disseram sobre as obras de Lispector, quase concomitantes às
publicações dessas produções literárias, além das seguintes obras sobre personagem e
narrador, a saber: A personagem de ficção (2005), de Antonio Candido, A personagem
(2004), de Beth Brait. Assim sendo, nosso trabalho está dividido em três capítulos, o primeiro
traz informações biográficas sobre Clarice Lispector, assim como um diálogo teórico sobre
Lispector e alguns críticos da Literatura Brasileira. O segundo capítulo aborda o conceito e as
diferenças entre pessoa e personagem do romance, elencando também, alguns tipos de
personagens e narradores. O último capítulo trata do estudo sobre o romance A hora da
estrela, levando em consideração os pontos e as características mais relevantes do referido
romance, com ênfase em seus personagens principais: Macabéa e Rodrigo S.M.
Clarice Lispector, ficcionista naturalizada brasileira, nasceu em Tchetchelnik, pequeno
povoado da Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920. Seu nascimento ocorreu durante a viagem
de emigração da família em direção à América, fugindo da perseguição contra os judeus.
A data de nascimento de Clarice Lispector, nas Histórias da Literatura, nas
Enciclopédias e em outras obras de síntese, varia estranhamente entre os seguintes anos: 1924,
1925, 1926 ou 1927. Mesmo depois da morte, continuamos a encontrar dados não
coincidentes. Por exemplo, em a História concisa da literatura brasileira, São Paulo, Cultrix,
1 Declaração de Clarice Lispector ao jornal carioca Correio da manhã, publicada no dia 2 de novembro de 1971
na matéria ―Clarice: um mistério sem muito mistério‖. Citada nos Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo:
Instituto Moreira Salles, 2004. nº 17 e 18. p. 62.
6
de autoria de Alfredo Bosi, numa reimpressão do ano de 1997, registra-se a data de 1926 para
o nascimento da escritora brasileira.
Até em livros recentemente publicados, encontramos referência a 1925 como data de
nascimento (ainda que o livro, como o resto da obra que vem sendo publicada na editora
Rocco, contenha uma ficha biobibliográfica com as datas corretas: 1920-1977). Pode-se dizer
que esta proliferação de datas é consequência mais ou menos direta de um jogo de ocultações
e desvelamentos que a autora desde muito cedo pôs em marcha.
Clarice Lispector veio para o Brasil com um ano e seis meses de idade. Aportaram em
Maceió (AL), logo migraram para o Recife (PE) em 1925, onde ocorreu o falecimento da
mãe, quando Lispector estava com apenas nove anos de idade. A mudança para o Rio de
Janeiro, então capital Federal, ocorreu em 1935.
Neste período, a família lutava pela sobrevivência. Clarice Lispector entrou no curso
de Direito da Universidade do Brasil, em 1939, e durante o curso, dava aulas particulares,
fazia traduções e escrevia para jornais, ao mesmo tempo em que efetivava sua carreira como
escritora. Ainda na faculdade, conheceu Maury Gurgel Valente com quem se casou. Naquele
período, Lispector empenhava-se em terminar seu primeiro romance: Perto do coração
selvagem, publicando-o aos 23 anos de idade.
Depois de formada, Clarice Lispector acompanhou o marido diplomata, vivendo como
embaixatriz na Itália, Suíça, Inglaterra e nos Estados Unidos durante 15 anos. Separou-se do
marido em 1959 e voltou ao Brasil. Tinha 39 anos e já era uma escritora de méritos
reconhecidos tanto aqui como no exterior. Seguiu como jornalista e tradutora, mantendo
sempre as atividades literárias como principal foco de seus interesses. Faleceu em 1977, às
vésperas de completar 57 anos, no Rio de Janeiro. Morria em plena atividade literária e
gozando do prestígio de ser uma das mais importantes vozes da literatura brasileira. (ver
Gotlib, 2009, p.27-48)
A autora foi agraciada com vários prêmios literários, entre eles: o Graça Aranha, em
1944, por Perto do coração selvagem; Carmem Dolores, em 1956, por A maçã no escuro; O
Calunga, da Companhia Nacional da Criança, em 1967, por O mistério do coelho pensante; o
Golfinho de Ouro, em 1969 do Museu da Imagem e do Som, , por Uma aprendizagem ou O
livro dos prazeres; no X Concurso Literário Nacional da Fundação Cultural de Brasília, 1976,
pelo conjunto de sua obra; e o Jabuti, em 1978, por A hora da estrela.
Lispector começou a escrever muito cedo, sabe-se que o seu legado literário é
bastante extenso, dele fazem parte nove romances, sete livros de contos, quatro livros infantis,
7
além das coletâneas de correspondência, crônicas e entrevistas publicadas nos periódicos da
época, que ainda hoje são reorganizados e/ou republicados.
Quando Clarice Lispector estreou na literatura brasileira, sobressaía-se no panorama
da literatura nacional a ficção dos anos 30, na linha do “romance nordestino” de José Lins do
Rêgo, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz e Jorge Amado, ficção essa que assumia um
caráter de denúncia por sua temática social, no entanto, Lispector caracterizava-se por
apresentar em sua narrativa características modernas, além de introduzir na literatura
brasileira uma forma inovadora e particular de narrar.
Registrava-se a presença também, no mesmo período, de uma narrativa intimista e
psicológica de autores como Cornélio Penna, Cyro dos Anjos, Lúcio Cardoso e o próprio
Guimarães Rosa, o qual Lispector vem se associar. Segundo Bosi:
Na ficção o grande inovador do período foi João Guimarães Rosa, artista de primeira
plana no cenário das letras modernas: experimentador radical, não ignorou, porém,
as fontes vivas das linguagens não-letradas: ao contrário, sob explorá-las e pô-las a
serviço de uma prosa complexa em que o natural, o infantil e o místico assumem
uma dimensão ontológica que transfigura os materiais de base. (BOSI, 2004, P.
388).
Nesse sentido, a ficcionista Clarice Lispector aproxima-se do estilo de Guimarães
Rosa ao usar uma linguagem mais descontraída, solta e mais próxima da linguagem popular,
porém sem deixar de lado a linguagem poética. Assim, Lispector seguia inovando e
introduzindo outras características às narrativas brasileiras e graças às inovações formais que
introduz no romance e à originalidade de seu estilo, a autora é capaz de intensificar a
sondagem interior e psicológica de suas personagens, e distingue-se dos outros nomes da
ficção intimista no Brasil.
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1 CLARICE LISPECTOR E A LITERATURA BRASILEIRA.
Em a Literatura no Brasil, no capítulo 51 “O Modernismo na Ficção”, a obra de
Clarice Lispector é citada em duas seções: a primeira ocorre quando Afrânio Coutinho (2001,
p. 277) está discutindo sobre a “classificação da ficção modernista” e a introduz nessa
classificação afirmando que: “No caso de Clarice Lispector, é a tentativa de valorizar os
produtos do sonho e da fantasia, na criação de uma atmosfera sem densidade real, mas de
forte conteúdo emotivo e linguagem metafórica, fugindo assim para uma variedade de
realismo mágico”.
Ao lermos o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, não encontramos no
enredo nenhum “realismo mágico”, nem o “sobrenatural”, pois o narrador Rodrigo S. M.
narra o comum e o cotidiano de forma natural, ou seja, a saga medíocre vivida por uma
jovem nordestina, Macabéa, uma imigrante alagoana órfã, virgem e solitária, criada por sua
tia beata, que a leva para trabalhar de datilógrafa no Rio de Janeiro, onde a personagem
vegeta por falta de qualificações mais apropriadas para conviver num grande centro urbano,
conforme o narrador Rodrigo S. M., que a considera feia, ignorante, por isso é humilhada pela
colega, pelo namorado e pela existência. Porém, ela terá o seu momento glorioso, a sua "hora
de estrela", conforme lhe profetiza uma cartomante, quando no fim do relato é atropelada e
morta por um automóvel.
Ainda na obra de Afrânio Coutinho, Luis Costa Lima (2001, p. 475) observa que a
autora está classificada entre os escritores instrumentalistas, "que, a partir de 45 [...], se
preocuparam em realizar sua obra através de uma redução da ficção à pesquisa formal e de
linguagem, e [...] se voltam para os seus instrumentos de trabalho".
Costa Lima analisa as seguintes obras de Clarice Lispector: Perto do coração
selvagem (1944), O lustre (1946), A maçã no escuro (1961) e o livro de contos Laços de
família (1960). Segundo o autor, os personagens de Lispector: “[...] parecem antes figuras de
pensamento que entes humanos, o falseamento consequente da sua conduta, pela falta de
respeito à autonomia do personagem e pela redução da realidade à sua dimensão subjetivo-
intelectualizante [...]”. (2001, p. 530). Assim as suas personagens apresentam a
impossibilidade de irem além de si mesmas, ou seja, não passando do plano subjetivo pelo
fato de Lispector ter uma prosa mais afim do poético, na qual prevalece o caráter subjetivo e
consequentemente a diminuição da realidade.
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Nesse sentido, é inevitável a relação de A hora da estrela com os outros textos de
Clarice Lispector, porque há neles traços comuns com aquela que é considerada a sua obra-
prima. Exemplos desta relação são as personagens femininas, o intimismo e o
aprofundamento psicológico. Contudo, no romance A hora da estrela, Lispector inova ao
criar um escritor para contar a história e também o seu material romanceável faz parte da
realidade exterior, ou seja, além de manter sua característica intimista preocupou-se em
denunciar os problemas sociais que assolam a sociedade brasileira.
Costa Lima (2001), ainda observa que estilisticamente a romancista Clarice Lispector
está no primeiro plano dos escritores brasileiros e seu renome na Literatura Brasileira deve-
se, sobretudo, à raridade, entre nós, da linha do “fluxo de consciência”, a qual a autora segue.
Na ficção de Lispector destaca-se a introspecção, a escritora se volta para o mundo interior
das personagens, fazendo-as divagar sobre o sentido de sua existência. Assim, considerando
todos os comentários dos críticos a respeito das obras de Clarice Lispector, contata-se o
elevado valor literário de suas obras. Suas obras despertam acentuado interesse no sentido de
ser objeto de conhecimento e um rico material de estudo literário.
A ficcionista Clarice Lispector escreveu várias obras importantes, que enriquecem o
mundo literário, suas obras foram alvos de muitas críticas e opiniões, segundo Alfredo Bosi,
sua estreia na literatura, com o romance Perto do coração selvagem, logo chamou a atenção
da crítica, na voz de Álvaro Lins, que o apontou como nosso primeiro romance com o uso da
técnica de Joyce e Virgínia Woolf.
Bosi (2004, p. 424) em sua obra citada destaca as experiências de Clarice Lispector,
observando que ela:
[...] se manteria fiel às suas primeiras conquistas formais. O uso intensivo da
metáfora insólita, a entrega ao fluxo de consciência a ruptura com o enredo factual
têm sido constantes do seu estilo de narrar que na sua manifesta heterodoxia, lembra
o modelo batizado por Umberto Eco “opera aperta”. Modelo que já aparece, material
e semanticamente, nos últimos romances, A Paixão Segundo G.H. e Uma
Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres.
Os analistas á caça de estruturas não deixarão tão cedo em paz os textos complexos e
abstratos de Clarice Lispector que parecem às vezes escritos adrede para provocar
esse gênero de deleitação crítica. Limito-me aqui a ensaiar algumas ideias sobre o
que me parece ser o significado da sua obra no contexto da nova literatura brasileira.
Há na gênese dos seus contos e romances tal exacerbação do momento interior que,
há certo momento do seu itinerário, a própria subjetividade entra em crise. O
espirito, perdido no labirinto da memória e da alto-análise, reclama um novo
equilíbrio. Que se fará pela recuperação do objeto. Não mais na esfera
convencional de algo-que-existe-para-o-eu (nível psicológico), mas na esfera da sua
própria e irredutível realidade. O sujeito só “se salva” aceitando o objeto como tal;
como a alma que, para todas as religiões, deve reconhecer a existência de um Ser
que a transcende para beber nas fontes da sua própria existência. Trata-se de um
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salto do psicológico para o metafisico, salto plenamente amadurecido na consciência
da narradora.
O que Bosi afirma a respeito das “primeiras conquistas formais, o uso intensivo da
metáfora insólita, a entrega ao fluxo de consciência” e “a ruptura com o enredo factual” que
“tem sido constantes” no “estilo de narrar” de Clarice Lispector pode ser constatada em seu
último romance A hora da estrela, no qual a escritora brasileira criou o narrador-escritor:
Rodrigo S. M., que se considera como “um dos mais importantes” personagens da história
que ele escreve de forma fragmentária, história esta, que de início informa ao leitor que não
viveu, mas “numa rua do Rio de Janeiro” pegou “no ar de relance o sentimento de perdição no
rosto de uma moça nordestina” (LISPECTOR, 1998, p. 12).
Assim é que Rodrigo S. M., narrador da história (NASCIMENTO, MIMEO, p. 10),
além de assumir a condição de escritor do romance em causa, reflete também sobre a própria
criação literária, isto é, sobre a escrita do citado romance, principalmente sobre a dificuldade
de encontrar as palavras certas para criar sua principal personagem feminina: Macabéa, “a
nordestina”, conforme palavras do narrador-escritor:
[...] Bem, é verdade que também eu não tenho piedade do meu personagem
principal, a nordestina: é um relato que desejo frio. Mas tenho o direito de ser
dolorosamente frio, e não vós. Por tudo isso é que não vos dou a vez. Não se trata
apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira. [...].
O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça
entre milhares delas. É dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a
vida. (LISPECTOR, 1998, p. 13).
O narrador-escritor tenta convencer o leitor de que sua história embora inventada é
verdadeira, porque se trata de uma personagem feminina verossímil, que, ao longo do
romance, vai sendo chamada de “moça”, “jovem”, “nordestina”, “datilógrafa”, quase até a
metade do livro, momento em que ela se apresenta a Olímpico, seu primeiro namorado, com o
nome de Macabéa. Essa personagem, que Rodrigo S. M. tem dificuldade de caracterizá-la,
vive na mais extrema miséria econômica, passando fome. Miséria esta que engloba também
sua pobreza física e intelectual. Essas questões vão sendo disseminadas aos poucos pelo
narrador, que além de discutir várias questões acerca das categorias do romance, a exemplo
de: narrador, personagem, matéria narrada, tempo e linguagem, dialoga com o leitor
denunciando os problemas sociais, principalmente a miséria enfrentada pelas mulheres
nordestinas e outras mulheres desvalidas que ganham baixos salários, os quais eram
11
insuficientes para sobreviverem, como ocorre com a própria história da personagem Macabéa,
que o narrador faz questão de contar de uma forma “triste”, crua (NASCIMENTO, MIMEO,
2002, p. 11):
De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a
criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu. Cuidai dela
porque meu poder é só mostrá-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve
por causa da esvoaçada magreza. E se for triste a minha narrativa? Depois na certa
escreverei algo alegre, embora alegre por quê? Porque também sou um homem de
hosanas e um dia, quem sabe, cantarei loas que não as dificuldades da nordestina
(LISPECTOR, 1998, p. 19).
Como outro exemplo do que pontuou Bosi, pode-se citar o uso da metáfora insólita,
uma vez que Lispector ao narrar a insignificância de Macabéa, nas palavras do narrador
Rodrigo S. M., ela é comparada ao capim. “[...] Ela era subterrânea e nunca tinha tido
floração. Minto: ela era capim” (LISPECTOR, 1998, p. 31).
Os autores citados acima, até pelo fato da data de publicação de seus livros, não
abordaram especificamente neles a obra A hora da estrela, porém Benedito Nunes (1989, p.
161), que vem a ser a principal referência sobre a obra da autora brasileira, é um dos
primeiros estudiosos a observar que o romance A hora da estrela é composto de três tramas: a
da moça nordestina, personagem que surpreendeu o narrador; a história da própria narrativa, e
a do narrador personagem Rodrigo S.M.. Na narrativa central da obra, Rodrigo S.M. conta a
história de Macabéa, uma nordestina que ele viu, de relance, em uma esquina no Rio de
Janeiro, conforme suas palavras:
Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda desconheço, já que nunca o
vivi? É que numa rua o Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de
perdição no rosto de uma moça nordestina. (LISPECTOR, 1998, p. 12).
O que é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre
milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida.
(LISPECTOR, 1998, p. 13).
Limito-me a humildemente – mas sem fazer estardalhaços de minha humildade que
já não seria humilde – limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa
cidade toda feita contra ela. Ela que devia ter ficado no Sertão de Alagoas com
vestido de chita e sem nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o
terceiro ano primário. (LISPECTOR, 1998, p. 15).
No romance, Rodrigo S.M, também nos conta a história dele mesmo, sendo que esta
narrativa dá-se sob a forma de encaixe, ou seja, paralela à história de Macabéa e “entremeada”
12
por toda a narrativa sob a forma de comentários e desvendamentos do narrador que se mostra,
se oculta e se exibe diante dos olhos do leitor: “Desculpai-me mas vou continuar a falar de
mim que sou meu desconhecido, e ao escrever me surpreendo um pouco pois descobri que
tenho um destino. Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?”
(LISPECTOR, 1998, p. 15). O romance apresenta também, mais uma história, ou seja, as
reflexões do narrador sobre a produção do livro que ele mesmo escreve, nesse sentido, a
escrita do narrador buscará definir a história do próprio romance:
Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar as
palavras que vos sustentam. A história - determino com falso livre arbítrio
(LISPECTOR, 1998, p. 12-13)
Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas
como aços espelhados. (LISPECTOR, 1998, p. 19).
Portanto, A hora da estrela é constituída por três histórias que se intercruzam, não
sendo possível separá-las, pois formam um todo indissociável, sendo que esta última é
responsável pela ligação entre todas as histórias que formam o enredo do romance.
Nesse sentido, no romance A hora da estrela, observamos as reflexões do narrador-
escritor Rodrigo S.M, percebemos as preocupações do narrador, em vários momentos do
enredo, em contar uma história explícita sobre sua personagem “desvalida”, no mesmo
momento em que ele dialoga também, consigo mesmo, fazendo questionamentos, afirmativas
e negações, se reafirmando enquanto escritor que de certo modo, “tem mais dinheiro do que
os que passam fome”, ou ainda que é um homem que sofre, ama e também precisa de solidão.
Rodrigo faz uso do discurso indireto livre para contar o que a personagem diz ou pensa,
mesclando com sua própria fala, de modo a confundir os pensamentos da personagem e os do
próprio narrador.
Ligia Chiappini, em sua obra O foco narrativo, discute sobre a análise mental, o
monólogo interior e o fluxo de consciência, estilo muito presente no século XX, e
consequentemente contemplado no estilo de Clarice Lispector.
A análise mental [...] Trata-se, como o próprio texto diz, do aprofundamento nos
processos mentais das personagens, mas feito de maneira indireta, por uma espécie
de narrador onisciente que, ao mesmo tempo, os expõe e os analisa [...]
O MONÓLOGO funciona como forma direta e clara de apresentação dos
pensamentos e sentimentos das personagens [...]
Já o MONÓLOGO INTERIOR implica um aprofundamento maior nos processos
mentais típico da narrativa deste século [...]
13
O FLUXO DE CONSCIÊNCIA, na acepção de Bowling, é expressão direta dos
estados mentais, mas articulada, em que se perde a sequencia lógica e onde parece
manifesta-se diretamente o inconsciente. Trata-se de um “desenrolar ininterrupto dos
pensamentos” das personagens ou do narrador. (CHIAPPINI, 2004, p. 67-68).
Segundo Chiappini, essa centralização na consciência contribui para a digressão, a
fragmentação dos episódios e o desencadeamento do “fluxo de consciência”, isto é, a
expressão direta dos estados mentais, nos quais parece manifestar-se diretamente o
inconsciente, do que resulta certa perda de sequência lógica.
No romance A hora da estrela, Clarice Lispector utilizou-se pouco da técnica do fluxo de
consciência, somente em algumas passagens, quando o narrador fala principalmente da
personagem Macabéa, colocando palavras em seu pensamento, como no momento em que ela
pensa num creme para o corpo, mas devido passar tanta fome pensa em comê-lo: “[...]
Executando o fatal cacoete que pegara de piscar os olhos, ficava só imaginando com delícia: o
creme era tão apetitoso que se tivesse dinheiro para compra-lo, não seria boba. Que pele, que
nada, ela o comeria, isso sim, as colheradas no pote mesmo”. (LISPECTOR, 1998, P.38).
E ao refletir sobre o titulo de um livro do Senhor Raimundo Silveira que vira sobre a
mesa cujo titulo era “humilhados e ofendidos”: “[...] Ficou pensativa. Talvez tivesse pela
primeira vez se definido numa classe social. Pensou, pensou e pensou, chegou á conclusão de
que na verdade ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era porque as coisas são assim
mesmo e não havia luta possível, para que lutar?” ( LISPECTOR, 1998. p. 40)
Do estilo clariceano, constatamos também em A hora da estrela, que o romance
apresenta uma narrativa fragmentária, pelo fato do narrador ir contando a história de Macabéa
e a sua própria história, nesse ir e voltar às histórias dos dois personagens há cortes no relato
dos fatos, um dos exemplos flagrantes é quando o Rodrigo S.M. está cansado de suas
personagens, afirmando que:
Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. Se ainda
escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. [...]
Quanto a mim, estou cansado. Talvez da companhia de Macabéa, Glória, Olímpico.
O médico me enjoou com a sua cerveja. Tenho que interromper esta história por uns
três dias’ (LISPECTOR, 1998, p. 70).
E é como se interrompesse o seu trabalho por três dias, pois na sequência desse relato
ele afirma o seguinte:
14
Nestes últimos três dias, sozinho, sem personagens, despersonalizo-me e tiro-me de
mim como quem tira uma roupa. Despersonalizo-me a ponto de adormecer”. E agora
emerjo e sinto falta de Macabéa. Continuemos:
- É muito caro? (LISPECTOR, 1998, P. 70).
Como se vê, o narrador Rodrigo S. M. dá um salto da história da vida dele para a da
vida de Macabéa, em um momento em que ela esta conversando com Glória sobre a ida à casa
da cartomante. Assim, percebe-se que em A hora da estrela Clarice Lispector, mais uma vez,
mantém o seu estilo de narrar, fazendo suas denúncias ao mundo exterior da sociedade
burguesa de uma forma impar com significações raras e profundidade psicológica em seus
personagens.
O crítico literário Benedito Nunes, um dos principais estudiosos sobre a obra de
Clarice Lispector, começa a estudar sobre a autora em 1966 quando publica “O mundo de
Clarice Lispector”, livro no qual estuda quatro obras da escritora brasileira: Perto do
Coração Selvagem (1944), A paixão segundo G.H. (1964), A Maçã no Escuro (1961) e Laços
de Família (1960). Entre todos os ficcionistas estudados por Nunes, Lispector é o centro de
suas atenções. Benedito Nunes publica mais três livros sobre a escritora em foco: O dorso do
tigre (1969), Leitura de Clarice Lispector (1973) e O drama da linguagem: uma leitura de
Clarice Lispector (1989). (NASCIMENTO, 2012, p. 5). Porém é somente no livro, “O drama
da linguagem”, que Nunes faz o estudo sobre o romance A hora da estrela, no qual discute
sobre a característica introspectiva da autora e o jogo de identidade entre seus personagens.
[...] o ponto de vista introspectivo [...] ofereceria o conduto para a problematização
das formas narrativas tradicionais em geral e da posição do próprio narrador, em
suas relações com a linguagem e a realidade, por meio de um jogo de identidade da
ficcionista consigo mesma e com seus personagens [...] (NUNES, 1989, p.161).
Podemos observar esse jogo de identidade, envolvendo um narrador interposto,
intrinsecamente ligado a sua criatura, quando Rodrigo S.M diz: “Vejo a nordestina se olhando
ao espelho e – um rufar de tambor – no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto
nós nos intertrocamos.” (LISPECTOR, 1998, p. 22). É, portanto, essa nordestina, criada pelo
narrador, que lhe servirá de espelho, dela não consegue se dissociar, pois ao narrar a vida de
Macabéa, também narra a sua própria história, constituindo assim, espelho narrativo um do
outro, ou seja, ele é o seu narrador e se espelha em Macabéa, o eu narrado. Verifica-se, então,
um jogo de identidade entre Rodrigo S.M. e Macabéa, que conforme Benedito Nunes, “O
15
olhar no espelho já assinala o desdobramento do sujeito, que se vê como um outro.” (1989, p.
107).
Assim, ao refletir-se em Macabéa, o narrador também se revelava, ou seja, sua vida
era contada a partir da vida da moça nordestina. Na verdade, o narrador Rodrigo S.M., não só
dá voz e existência à Macabéa, como também se desdobra em vários planos, acabando por se
tornar o próprio reflexo da moça. As suas vidas se relacionam, até mesmo, em suas origens,
uma vez que, os dois são nordestinos, ela de Alagoas, ele do Recife.
[...](Vai ser difícil escrever esta história. Apesar de eu não ter nada a ver com a
moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus. Os fatos são
sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro o que me impressiona).
(LISPECTOR, 1998, p. 24 ).
Rodrigo S. M., sendo escritor capaz de dar destino aos seus personagens, poderia, por
essa razão, colocar-se em um nível de existência superior ao de Macabéa, tão incapacitada
pela pobreza e condições sociais, mas não faz, pois sabe que será tão vítima, quanto ela diante
do destino maior e irrevogável, no qual desembocará a narrativa.
16
2 DIFERENÇA ENTRE PESSOA E PERSONAGEM DE ROMANCE.
Diferenciar pessoa e personagem, realidade e ficção é uma tarefa um tanto complexa,
principalmente quando analisamos os romances de Clarice Lispector, uma vez que a autora
alcança a profundidade psicológica em seus personagens, apresentando características
existenciais que levam o leitor, até mesmo, a materializar essas personagens como seres
concretos. De fato, em uma primeira leitura, sem um conhecimento teórico mais aprofundado
sobre pessoa e personagem, acabamos por confundir personagem de ficção do romance com
seres reais, pois a criação da primeira se dá a partir das características concretas da segunda,
desta forma, as grandes semelhanças levam o leitor a confundi-las.
Segundo Beth Brait, em seu livro A personagem, é comum observarmos que leitores
menos críticos confundam pessoa e personagem, pois ocorre que eles apresentam dificuldades
de distinguir a ficção da realidade. Dado que as obras ficcionais mantêm uma relação de
verossimilhança com a realidade. Devido à verossimilhança abranger as personagens, não é
estranho que alguns leitores acreditem que as personagens são seres reais com vida própria
além dos livros.
Para que não ocorra equívocos, primeiramente deveremos associar pessoas à
realidade e personagem à ficção, no entanto, essa separação é apenas em caráter de
conceituação de cada elemento, pois em um romance elas estão imbricadas e entrelaçadas de
tal maneira, ficando quase impossível distinguir pessoa de personagem e realidade de ficção.
O crítico literário Antonio Candido em seu livro – A personagem de ficção – aborda o
assunto da seguinte forma:
A personagem é um ser fictício, - expressão que soa como paradoxo. De fato, como
pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No entanto a criação
literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance
depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação
da fantasia, comunica a impressão de mais lídima verdade existencial, num certo
tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem,
que é a concretização deste. (CANDIDO, 2005, p. 55).
Diante do exposto, percebemos que há uma grande afinidade entre personagem (ser
fictício) e pessoa (ser vivo, real), assim, o romance baseia-se numa relação entre o ser vivo
(pessoa) e o ser fictício (personagem). Verificamos também, que há diferenças importantes,
17
que deverão ser conhecidas para que não caiamos no erro de confundirmos o conceito de
pessoa e personagem. Assim, tanto as diferenças, quanto as semelhanças são importantes para
criarmos o sentimento de verdade que denominamos como a verossimilhança.
Fazer a distinção entre personagem e pessoa é fundamental durante a análise de um
romance. Para não articularmos fielmente o imaginário ao real, devemos ter bem claro alguns
conceitos de pessoa que refere-se ao indivíduo pertencente ao espaço humano, enquanto que
as personagens, por sua vez, representam pessoas segundo modalidades próprias da ficção. A
personagem nos parece real devido a sua capacidade de verossimilhança, pois pelo fato da
mesma referir-se a uma pessoa real, faz com que ela se torne real aos olhos do leitor. Por isso
podemos definir que a personagem é a imitação, quase sempre pura e fiel do ser humano, mas
não é real devido não ter vida fora da imaginação do escritor, do leitor e dos livros.
Ainda segundo o estudo de Beth Brait, a personagem não existe fora das palavras, é
um ser de papel. Nessa construção o autor dá voz as suas personagens e através delas expressa
a sua visão de mundo. Brait, ainda destaca a importância do trabalho linguístico quando diz
que: “[...] a materialidade desses seres só pode ser atingida através de um jogo de linguagem
que torne tangível a sua presença e sensíveis os seus movimentos”. (BRAIT, 2005, p.52), e é
a análise dessa materialidade que torna possível descobrir de que forma o autor se valeu desse
jogo de linguagem para criar a personagem.
Antonio Candido, quando escreveu A personagem do romance no livro acima
referido, diferenciou personagem como “ser fictício” e pessoa como “ser de existência real”.
Essa diferenciação entre pessoa e personagem é bastante relativa, dependendo do ângulo de
análise de autores e do objetivo do estudo. Segundo ele, a principal diferença entre
personagens e pessoas é que as pessoas são ilimitadas, ou seja, podemos apreender todo o seu
físico, mas não toda sua personalidade, por que está em constante desenvolvimento e
transformação e por que alguns traços psicológicos são imperceptíveis até mesmo para si
mesmas, enquanto que, as personagens são limitadas, têm personalidades bem definidas,
inseridas no todo do romance e que não vão além de sua existência dentro da narrativa.
Assim, a personagem é somente o que está exposto no romance, nada mais do que as palavras
a definiram, enquanto que, a pessoa é um ente que está em um processo de evolução e
transformação, que nem mesmo ela própria é capaz de conhecer-se e enumerar suas
características.
A complexidade do estudo das personagens e pessoas está muito mais presente em
nossas vidas do que imaginamos, por isso é comum que ao lermos um romance, como A hora
18
da estrela, sejamos induzidos a imaginarmos a personagem Macabéa como um ser real devido
suas características serem muito semelhantes ao de um ser humano. Desta forma, o leitor
acaba fazendo uma articulação do real ao imaginário e confundindo personagem fictícia com
pessoas reais.
Já em outros momentos, somos levados a transformar pessoas reais em personagens.
Pois, na vida, estamos tão acostumados a visualizar fragmentos que por vezes os tomamos
como o todo de um ser, ou seja, transformamos as pessoas que conhecemos em personagens,
pois a caracterizamos e a definimos apenas por uma de suas características.
Essa prática, um tanto quanto errônea, não deve ser aplicada aos seres humanos, pois
como vimos, as pessoas são entes ilimitados e indefinidos, formados por uma infinidade de
características, não podendo ser caracterizadas simplesmente por um fragmento de sua
existência. Já na ficção, os fragmentos são o que basta para termos uma visão do todo, pois as
personagens não têm passado nem futuro além do romance, elas são limitadas com
características que podem ser enumeradas, no entanto, é válido lembrar que nem sempre essas
características estão explicitas no texto.
As informações a respeito das características das personagens podem ser diretas ou
indiretas. No primeiro caso, o relato das informações pode vir através da voz do narrador, de
outra personagem ou da própria personagem. Essas informações são explícitas e não requerem
dedução por parte do leitor. Já às predicações indiretas envolvem a interpretação a partir das
falas, pensamentos e ações das personagens.
Por isso, o texto é o único elemento capaz de nos fornecer as informações sobre a
personagem e a maneira utilizada pelo autor para a sua criação e construção dentro do
romance. Assim, segundo Beth Brait, “se o texto é o produto final da criação do autor, então
ele é o único dado concreto capaz de fornecer os elementos utilizados pelo escritor para dar
consistência à sua criação e estimular as reações do leitor” (BRAIT, 2005, p. 53).
É possível detectarmos através da análise de uma narrativa, as estratégias utilizadas
pelo autor para caracterizar as personagens, tornando-as vivas na mente do leitor. A única
maneira de sabermos a respeito da personagem é encarando a construção do texto como um
todo, observando a maneira que o autor encontrou para dar “vida” às suas criaturas. Assim,
conseguiremos vasculhar a existência da personagem dentro do espaço extratextual. Podemos
dizer que o autor “cria uma imagem”, reproduzindo e inventando seres humanos por meio dos
seus recursos de linguagem. Nesse sentindo Antonio Candido parafraseando Forster diz que:
19
A personagem deve dar a impressão de que vive, de que é como um ser vivo. Para
tanto, deve lembrar um ser vivo, isto é, manter certas relações com a realidade do
mundo, participando de um universo de ação e sensibilidade que se possa equiparar
ao que conhecemos na vida. (CANDIDO, 2005, p. 64).
No entanto, é necessário que tenhamos muito cuidado com essa aproximação da
personagem com o mundo real, uma vez que a personagem não pode ser transplantada
integralmente da realidade, pois neste caso se estaria dispensando a criação artística e também
por que é impossível captar a totalidade do modo de ser de uma pessoa. Assim, mesmo que
um autor busque um modelo de personagem na realidade, ele sempre acrescenta, ou omiti
características de acordo com sua ideia de criação. Desta forma, de acordo com Candido, no
romance, a personagem “[... é criada, estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor, que
delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é, na vida o
conhecimento do outro...]” (CANDIDO, 2005, p. 58).
De acordo com o autor, podemos afirmar que a personagem é mais lógica e
determinada, embora não mais simples, do que o ser vivo. Nesse sentido, verificamos que a
vantagem do ser fictício sobre o ser humano está na intensidade com que ele vive cada
momento e cada paixão, e a vantagem do ser humano sobre o ser fictício está na “aventura
sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro”.
Finalizamos esse tópico dizendo que a diferença profunda entre pessoa e
personagem, reside no fato que, as personagens nunca alcançam a determinação completa da
pessoa, e que a ficção, jamais passará de uma mera recriação da realidade, só ganhando
existência no mundo imaginário do autor e do leitor, enquanto que a realidade são as ações
reais e concretas vividas pelos seres humanos no dia a dia em sociedade.
2.1 TIPOS DE PERSONAGENS E NARRADOR.
Antonio Candido, na sua abordagem sobre a personagem em consonância com outros
autores, observa também dois tipos de personagens, as de costumes e as de naturezas. Sendo
que definiu as personagens de costumes como as dominadas por características invariável e
logo reveladas, manifestando simplicidade na caracterização. As personagens de natureza, por
20
sua vez, são apresentadas pelo seu modo íntimo de ser e pela profundidade psicológica. O
romancista “de natureza” vê o ser humano no que ele tem de mais profundo, no que não se
mostra à observação corrente, nem se explica pelo mecanismo das relações.
Pode-se dizer que o romancista de costume vê o homem pelo seu comportamento
em sociedade, pelo tecido das relações e pela visão normal que temos do próximo.
Já o romancista de natureza o vê à luz da sua existência profunda, que não se
patenteia à observação coerente, nem se explica pelo mecanismo das relações.
(CANDIDO: 2005, p. 62).
Assim, analisando o romance, A hora da estrela da ficcionista Clarice Lispector,
verificamos que suas personagens principais, o narrador Rodrigo S. M. e Macabéa, são
marcadas pelas características das personagens de natureza, pois a romancista, não mostra
apenas as características simples de uma personagem, mas a profundidade íntima do ser de
cada uma. Nesse sentindo, Lispector também se caracteriza como uma romancista de natureza
por caracterizar a existência profunda de seus personagens, mostrando não só suas
características sociais, mas aquilo que está no interior do ser humano.
Ao caracterizar uma personagem, o escritor leva em conta os modelos literários da
sua época, e a maneira particular de ver e retratar a realidade. Dessa forma o autor-criador,
incorpora nas personagens esse discurso, e por meio dele, vê a realidade, associando-os aos
modelos de tradição literária.
Em relação ao narrador, Beth Brait (2004) diz que, se a personagem é um ser
ficcional que adquire existência somente nos textos, é no próprio texto que verificaremos os
modos através dos quais o escritor constrói, dá forma e caracteriza suas personagens.
De acordo com Brait, a realização de uma análise que permita identificar o modo
empregado pelo escritor para caracterização das suas personagens pressupõe considerar a
questão do narrador, instância que apresenta ao leitor o universo ficcional da obra literária. O
foco narrativo deve ser considerado, pois é através dele que a personagem é construída e
materializada.
Quando um narrador é uma personagem que está envolvida direta ou indiretamente
com os fatos narrados é classificado como narrador em primeira pessoa; porém, se ele
constituir um elemento alheio aos acontecimentos da narrativa é considerado narrador em
terceira pessoa. Seja qual for a qualificação, o narrador constituirá um aspecto relevante à
apresentação e caracterização das personagens.
21
O narrador em terceira pessoa assume a posição de observador não-materializado na
narrativa, podendo apresentar não só os atos e os movimentos, mas também os sentimentos e
os pensamentos das personagens. O leitor torna-se capaz de conhecer a vida, as atitudes, as
emoções e os pensamentos das personagens porque há um narrador que lhe proporciona o
contato com os acontecimentos e com as características das personagens, mesmo não sendo
uma delas, mesmo não sendo elemento participante na narrativa.
Na narrativa em primeira pessoa, segundo Beth Brait, o narrador está envolvido na
história narrada; o narrador em primeira pessoa é, portanto, uma personagem. Nesse caso, o
leitor entra em contato com os recursos utilizados pelo escritor para construir, descrever e
caracterizar as personagens através de uma delas. O conhecimento da história narrada, das
personagens e de outros elementos da narrativa é adquirido através da ótica da personagem.
Desse modo, o narrador expõe os aspectos e características de todas as personagens, inclusive
a de si mesma.
O narrador do romance, tanto em primeira pessoa, quanto em terceira pessoa, poderá
apresentar a personagem principal da narrativa, configurando-se em testemunha que participa
dos acontecimentos narrados. O narrador é uma personagem secundária que conduz o leitor
ao conhecimento da figura da protagonista; ele traça o perfil da personagem principal, já que
conhece suas características e é testemunha dos acontecimentos com ela ocorridos. No
decorrer da narração, pode o narrador incluir o discurso direto e o discurso indireto a fim de
registrar também a fala, a linguagem, a dicção da personagem, permitindo atingir
paulatinamente a construção total da personagem.
A narração em primeira pessoa ou em terceira pessoa, as descrições, os discursos
direto, indireto ou indireto livre, diálogos e também monólogos são recursos empregados
pelos escritores para dar existência e caracterizar suas personagens. O uso de um, ou de outro,
bem como o predomínio de um deles e o modo de utilização dependem da habilidade e da
intenção do escritor.
Em seu livro O foco narrativo, Ligia Chiappini, seguindo a classificação e as análises
de Normam Friedman, discute sobre algumas categorias de narradores presentes no romance.
Uma das categorias de narradores trata-se do “Autor onisciente intruso”. Esse tipo de
narrador tem a liberdade de narrar à vontade, de colocar-se acima, para além dos limites de
tempo e espaço. Seu traço característico é a intrusão, ou seja, seus comentários sobre a vida,
os costumes, os caracteres, a intimidade, que podem ou não estar entrosados com a história
narrada. Ele também se caracteriza pela sua interferência, comentando os acontecimentos,
22
freando a história e procurando se colocar do ponto de vista do leitor, para apreciar de fora as
ações e reações das personagens, consegue também, certo distanciamento irônico que acaba
chamando a atenção para os implícitos da história. O narrador onisciente intruso é um eu que
tudo segue, tudo sabe e tudo comenta, analisa e critica, sem nenhuma neutralidade. A partir da
leitura do romance A hora da estrela, observamos que o narrador desse romance assemelha-se
com várias características presentes na categoria de narrador autor onisciente intruso, no
entanto sua tipologia vai além dessas características.
Outro tipo de narrador, estudado por Chiappini, trata-se do "Eu" como testemunha, o
qual, segundo Friedmam, “O narrador-testemunha” narra em 1ª pessoa, mas é um "eu" já
interno à narrativa, que vive os acontecimentos aí descritos como personagem secundária que
pode observar, desde dentro, os acontecimentos, e, portanto, dá-los ao leitor de modo mais
direto, mais verossímil. No caso do "eu" como testemunha, o ângulo de visão é,
necessariamente, mais limitado. Como personagem secundária, ele narra da periferia dos
acontecimentos, não consegue saber o que se passa na cabeça dos outros, apenas pode inferir,
lançar hipóteses, servindo-se também de informações, de coisas que viu ou ouviu.
No caso da categoria chamada de “Narrador-protagonista”, o narrador personagem
central, não tem acesso ao estado mental das demais personagens. Narra de um centro fixo,
limitado quase que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos. Desta
forma, a distância entre história e leitor pode ser próxima, distante ou, ainda, mutável. Em
vários trechos do romance A hora da estrela o narrador Rodrigo S.M. se porta como um
narrador-protagonista no momento em que se coloca como centro do romance, narrando
exclusivamente sua própria história. No entanto não podemos o caracterizar como
protagonista do romance pelo fato de sua história não ser o centro do romance, mas sim, a
história de Macabéa contada por ele.
Lígia Chiappini também trata do tipo de narrador, chamado por Friedman de
“Onisciência seletiva múltipla”, no qual consiste a passagem do narrador onisciente para o
narrador-testemunha, e para o narrador-protagonista. Nesta categoria de narrador perde-se a
onisciência, ou seja, se perde o "alguém" que narra. Não há propriamente um narrador, a
história vem diretamente, através da mente das personagens, das impressões que fatos e
pessoas deixam nelas. Difere da onisciência porque agora o autor traduz os pensamentos,
percepções e sentimentos, filtrados pela mente das personagens, detalhadamente, enquanto o
narrador onisciente os resume depois de terem ocorrido. O que predomina no caso da
onisciência múltipla.
23
Chiappini aborda outra categoria de narrador denominada “Onisciência seletiva”,
sendo que esta é uma categoria semelhante à Onisciência seletiva múltipla, porém trata-se
apenas de uma só personagem e não de muitas. É, como no caso do narrador-protagonista, a
limitação a um centro fixo. O ângulo é central, e os canais são limitados aos sentimentos,
pensamentos e percepções da personagem central, sendo mostrados diretamente. Nesta
categoria de narrador podemos classificar Clarice Lispector, já no seu primeiro romance Perto
do coração selvagem, como mestras no estilo indireto livre e na onisciência seletiva.
Na categoria de narrador “Modo dramático”, uma vez que já se eliminou o autor e,
depois, o narrador, eliminam-se os estados mentais e limita-se a informação ao que as
personagens falam ou fazem. Ao leitor cabe deduzir as significações a partir dos movimentos
e palavras das personagens. O ângulo é frontal e fixo, e a distância entre a história e o leitor, é
pequena, já que o texto se faz por uma sucessão de cenas.
Por último, Chiappini trás à estudo a categoria de narrador “Câmera”, esta última
categoria de Friedman significa o máximo em matéria de "exclusão do autor". Esta categoria
serve àquelas narrativas que tentam transmitir flashes da realidade como se apanhados por
uma câmera, arbitrária e mecanicamente. Porém, o autor afirma que a câmera não é neutra,
pois sempre há alguém que seleciona e combina os resultados a serem mostrados. No cinema,
por exemplo, não há um registro sem controle, mas, pelo contrário, sempre existe um
responsável pela montagem das imagens que serão mostradas. Portanto, também através da
câmera cinematográfica, podemos ter um ponto de vista onisciente, dominando tudo, ou
centrado numa ou várias personagens, o que pode acontecer é que se queira dar a impressão
de imparcialidade e neutralidade.
A partir do estudo do romance A hora da estrela, enfatizando o narrador Rodrigo S.M.
percebemos que este passeia por todas as categorias elencadas por Lígia Chiappini, no
entanto, não se detém especificamente a uma delas. Rodrigo S.M., por ser “escritor fictício”,
narrador e personagem do romance, foge a uma única caracterização de narrador pelo fato de
narrar as histórias do romance de diferentes ângulos e posições. O fato do enredo do romance
entrelaçar três histórias também torna complexo a caracterização do narrador Rodrigo S.M.,
uma vez que, em cada uma das história o narrador apresenta-se e posiciona-se de maneira
diferente.
24
3- UMA LEITURA DO ROMANCE “A HORA DA ESTRELA”, DE CLARICE
LISPECTOR.
3.1. ALGUMAS ANOTAÇÕES SOBRE O ROMANCE A HORA DA ESTRELA.
A hora da estrela (1977) apresenta a história de Macabéa, uma nordestina pobre,
raquítica e semi-analfabeta. Diferente de suas personagens anteriores, que inseridas no vazio
de um quotidiano pequeno burguês, vivem um tédio confortável, Macabéa é só, sem laços de
família e que mal tem forças para lutar pela sua sobrevivência em uma cidade grande.
Um dos aspectos importantes e constantemente explorados na literatura e, sobretudo
na obra clariceana, é a questão da linguagem. Neste caso, sabemos que na escrita de Clarice
Lispector, especialmente, em A hora da estrela, este elemento vem caracterizado pelo próprio
discurso do narrador Rodrigo S. M. em relação a sua personagem feminina principal. No caso
de Macabéa, ela é apresentada principalmente através de duas vozes: a do narrador Rodrigo S.
M e a sua.
São personagens principais do romance A hora da estrela, a moça nordestina Macabéa
e Rodrigo S. M. (o narrador). Além deles, temos as personagens secundárias, Glória, Madame
Carlota, Hans, Raimundo Silveira, porém com maior destaque para, o também nordestino,
Olímpico de Jesus, namorado de Macabéa.
A primeira impressão que temos ao ler a obra, A hora da estrela, é que esta é
basicamente, um relato de uma história regionalista, pois o enredo discorre sobre as
fracassadas aventuras de uma moça nordestina em uma cidade toda feita contra ela e também
deixa transparecer o processo de migração do povo nordestino para a região sudeste do país.
Porém, quando lemos a obra com um olhar mais crítico, encontramos características
marcantes da autora como: a análise psicológica mais profunda dos personagens, a ruptura
com a sequência linear da narrativa, o intimismo, o predomínio do tempo psicológico, uma
linguagem elaborada com presença de digressões, metáforas, metalinguagem e neologismos.
Podemos, então, afirmar que a história relatada no romance não é apenas mais uma história de
um nordestino que vem tentar a sorte na região sudeste do Brasil, mas o ponto forte do
romance é o estilo inovador adotado pela autora, um estilo que, além de contemplar as
características do modernismo, abarca suas características próprias como a profundidade
psicológica dos personagens, o intimismo, a criação de um narrador- escritor que também será
personagem.
25
O romance A hora da estrela é considerada a última obra de Clarice Lispector. Vale
esclarecer que na realidade trata-se do último romance revisado e publicado pela autora em
vida. Enquanto escrevia esse romance, Lispector também preparava Um sopro de vida
(pulsações), publicado postumamente. Nessa época, Lispector já contava com mais de trinta
anos de carreira e construíra uma obra com estilo literário marcante, composta por
personagens, sobretudo do gênero feminino, marcados pelas “questões existenciais” (NUNES,
1966, p.11). Em A hora da estrela, Lispector busca adentrar no universo psíquico, no
inconsciente de seus personagens, revelando em sua obra ficcional, os anseios, as aflições,
emoções e sensações, mais profundas de suas personagens, especialmente no discurso de
Rodrigo S. M. sobre Macabéa.
Antes do início da história, são apresentados treze possíveis títulos do referido
romance. Esses títulos são intercalados pela conjunção “ou”. Entre o quarto “Direito ao grito”
e o quinto títulos “Quanto ao futuro”, há o nome da autora: Clarice Lispector em forma de
assinatura. Essas observações nos permitem ter uma ideia do tom em que a história será
contada e o seu desdobramento, demonstrando que o material do escritor é a palavra, contudo
ele faz escolhas, conforme se verifica no exercício de escrever treze títulos e a dificuldade do
narrador para escrever o romance, especialmente para falar de Macabéa e ainda quando ao
final do livro o narrador Rodrigo S. M escolhe apenas um dos títulos para intitular sua
narrativa. Dentre os possíveis títulos do romance temos:
A CULPA É MINHA
OU
A HORA DA ESTRELA
OU
ELA QUE SE ARRANJE
OU
O DIREITO AO GRITO
Clarice Lispector
QUANTO AO FUTURO
OU
LAMENTO DE UM BLUE
OU
ELA NÃO SABE GRITAR
OU
UMA SENSAÇÃO DE PERDA
OU
ASSOVIO NO VENTO ESCURO
OU
EU NÃO POSSO FAZER NADA
OU
REGISTRO DOS FATOS ANTECEDENTES
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OU
HISTÓRIA LACRIMOGÊNICA DE CORDEL
OU
SAÍDA DISCRETA PELAS PORTAS DO FUNDO. (LISPECTOR, 1998, p. 07).
Alguns dos títulos acima são citados ao longo do enredo, tomando lugar na narrativa, a
exemplo do título: “- Quanto ao futuro.” (LISPECTOR, 1998 p. 85). “[...] (Quando penso que
eu podia ter nascido ela – e por que não? – estremeço. E parece-me covarde fuga de eu não
ser, sinto culpa como disse num dos títulos)” (LISPECTOR, 1998 p.39). Também logo no
início do livro, quando o narrador Rodrigo S. M. hesita em contar a história de Macabéa e
afirma que a história trata de uma invenção, ele aborda outro título sugerido à obra: “Porque
há direito ao grito. Então eu grito”. (LISPECTOR, 1998, p.13). Assim, esse direito ao grito é
o poder do narrador de falar sobre as questões sociais, e, portanto, sobre Macabéa e os
desvalidos. Percebemos isso também, quando Rodrigo S.M. afirma: “Há poucos fatos a narrar
e eu mesmo não sei ainda o que estou denunciando” (LISPECTOR, 1998, p. 28); “Devo dizer
que [...] através dessa jovem dou meu grito de horror à vida” (LISPECTOR, 1998, p.33).
Nesse sentido, o narrador vai justificando sua afirmação, além de mostrar sua liberdade de
escritor, criador de uma história, e que tem a liberdade de escrever o que quiser, isto é, sobre o
que quiser.
Também na página 13, o narrador cita mais um título: “QUANTO AO FUTURO”, que
é repetido ao final da narrativa. Na primeira citação, ele atenta para o fato de que a afirmação
é precedida de um ponto final e seguida de outro ponto final, o que nos leva a inferir uma
ironia, pois não há presente e futuro nenhum, não há perspectivas.
Outro título presente na narrativa é “ELA QUE SE ARRANJE [...]”: “Penalizava-se
com Macabéa, mas ela que se arranjasse, quem mandava ser tola?” (LISPECTOR, 1998, p.
64-65). Fica claro que por mais que alguém pudesse ser solidário à Macabéa, era ela que
deveria tentar mudar o rumo da sua vida. Pois ninguém, nem mesmo Rodrigo S.M, poderia
fazer algo de concreto por ela, ao não ser denunciar os problemas que a jovem enfrenta,
sugerindo que estes também são vividos pela população brasileira: “Como a nordestina, há
milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões
trabalhando até a estafa.[...]Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não
saber a quem. Esse quem será que existe?”(LISPECTOR, 1998, p. 14). Com essa afirmativa,
o narrador traz à baila questões importantes para o centro de sua narrativa, sugerindo ser
necessário que alguém se importe com os menos favorecidos, com a população carente,
chamando a atenção daqueles que seriam responsáveis (governos) no que diz respeito, a
27
educação, saúde, alimentação e moradia, bens sociais e culturais que não só a personagem
Macabéa não tem, como suas colegas de quarto (as Marias) que trabalham até a estafa sem
saber a quem recorrer. Por esta última citação, podemos afirmar que há no romance A hora da
estrela uma contundente denuncia social, não só quanto a falta de políticas públicas, mas
também da desestrutura familiar, especialmente sobre a situação degradante em que vivem
as mulheres, como podemos observar pela sugestão da história da personagem Macabéa, que
veremos mais a frente.
A estrutura da narrativa empregada por Lispector em A hora da estrela era até então
inédita em suas obras, uma vez que ela cria um narrador-escritor para contar a história de
Macabéa. No entanto, há certa semelhança entre A hora da estrela e Um sopro de vida
(pulsações), isto é, nas duas obras, a autora apresenta escritores-narradores do sexo masculino
que contam a história de personagens femininas criadas por eles. Porém, se Macabéa é feia e
pobre, Ângela Pralini, personagem de Um sopro de vida, por sua vez, é bonita, rica e
articulada.
Nesse sentido, Rodrigo S. M., o narrador-escritor de A hora da estrela, ironicamente,
classifica a obra que ele escreve como um “relato”, “desabafo”, “literatura de cordel”, parece
que essa classificação tem relação com a história que ele conta, ou seja, a história de uma
personagem que vem de uma camada social economicamente desprivilegiada, completamente
diferente das histórias de personagens as quais Rodrigo S.M., como escritor, costuma
escrever, conforme suas palavras; “[...] (Eu bem avisei que era literatura de cordel, embora eu
me recuse a ter qualquer piedade) (LISPECTOR, 1998, p. 33), “[...] Como é chato lidar com
fatos, o cotidiano me aniquila, estou com preguiça de escrever esta história que é um desabafo
apenas [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 72)
Assim, muitos trechos da narrativa nos revelam que Rodrigo S.M. para escrever a
história de Macabéa precisa se despir de si mesmo para relatar detalhadamente o jeito de “ser”
da miserável moça. Rodrigo S.M começa o romance falando do seu tipo de narrativa e de sua
existência, à medida que cria e narra a história de Macabéa ele também vai se fazendo
conhecer. A sua narrativa é cheia de cortes e digressões, pois este faz uma alternância na
apresentação dos fatos do enredo, ora conta a história da moça nordestina pobre, ora conta sua
própria história e ora conta sobre seu próprio modo de criação do romance. O narrador
Rodrigo S.M aparece no romance, pelo menos, de duas maneiras, a saber: como um escritor
que conta a história de Macabéa, bem como escritor de sua própria história, isto é, como
narrador e personagem do romance que escreve.
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O livro de Clarice Lispector começa com o narrador dialogando sobre o começo das
coisas, que “tudo no mundo começa com um sim”, que antes das coisas começarem ou
existirem, um dia elas já existiram, levantando um questionamento de “como começar pelo
início, se as coisas acontecem antes de acontecer?” Ele logo na primeira página faz uso da
linguagem metafórica para explicar como irá construir sua história e seu drama diante da vida.
No primeiro momento o narrador ainda não se identifica como Rodrigo S.M e fica apenas
adiando o inicio da história falando de si próprio e da forma como irá compor sua obra.
Os questionamentos do narrador são muitos, afirmando que a história que irá escrever
é resultado de uma visão gradual que há dois anos e meio vem descobrindo. No entanto, deixa
transparecer que não sabe toda a verdade e nem os porquês da obra. Mas logo afirma-se como
conhecedor de tudo quando diz: “[...]Como que estou escrevendo na hora mesma que sou
lido.[...]”, aqui faz um primeiro prenúncio do enredo e do final da obra quando afirma: “Só
não inicio pelo fim que justificaria o começo – como a morte parece dizer sobre a vida -
porque preciso registrar os fatos antecedentes. Escrevo neste instante com algum prévio pudor
por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita [...]”, (Lispector. 1998, p.
12). Com as informações acima, o narrador Rodrigo S.M, já nos dar pistas sobre o final da
romance, isto é, a morte prevalecerá sobre a vida.
Após o narrador- escritor fazer um prenúncio de sua narrativa, relata que a história terá
uns sete personagens e ele, Rodrigo S.M será um dos principais. Relata que sua história será
constituída de inicio, meio e fim e seguido de silêncio e chuva caindo. Pela última frase
constatamos, mais uma vez, uma espécie de onisciência do narrador sobre sua criação. O
narrador Rodrigo S.M. continua sua narrativa antecipando alguns fatos sobre Macabéa,
personagem principal da história, deixando a entender que não sabe muito bem como começar
e nem como será a história sobre esta pobre imigrante alagoana. Porém se sente obrigado a
contar a história dessa moça, talvez seja pelo fato dela só ganhar vida com as palavras do
narrador.
O romance A hora da estrela conta a história de Macabéa uma moça do sertão
nordestino, nascida em uma região de extrema pobreza de Alagoas. Seus pais morrem quando
ela tem apenas dois anos de idade, desde então, é criada por sua tia, única parente no mundo,
que tem certo prazer em castigar Macabéa com cascudos na cabeça, forma que encontra para
educar a sobrinha. Porém, às vezes bate sem motivo, só porque ao bater goza de grande
prazer sensual, ela não cansa de bater por nojo, como também porque acha seu dever. Esta
também, a privava de seu único desejo, o de comer goiabada com queijo. Assim, depois de
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uma infância miserável e sem amor, destituída de qualquer conforto, sem ter amigos ou
animais de estimação, há não ser as pulgas, criada pela tia beata, moralista, supersticiosa,
malvada e cheia de tabus, a sobrinha que absorve tudo dos outros, herda algumas dessas
características e agora vai sofrer ainda as misérias da cidade grande num subemprego, que
mal dar para se alimentar direito.
A moça nordestina cresce acreditando que as coisas acontecem porque tem que
acontecer, porque desde a sua infância fora acostumada a não questionar o que os outros lhe
impunham e a sociedade em que vivia não lhe dar chance de existir como um ser útil
socialmente. Macabéa sem reclamar de nada sempre aceita as provações que lhe sobrevém, só
prestando atenção nas coisas insignificantes, sendo que, ela própria, é um ser insignificante
que ninguém nota, “A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na
rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham”.
(LISPECTOR,1988,p.16)
Macabéa representa também a história daqueles que são excluídos socialmente, que
vivem marginalizados, destituídos de seus direitos humanos básicos como: moradia digna,
comida, saúde, educação. Isso é demostrado a partir do momento em que Macabéa muda de
Alagoas, por motivos que nem ela sabia, para o Rio de Janeiro, indo morar em uma pensão na
rua do Acre, uma região portuária, próximo do Mangue, local onde mora as prostitutas que
servem os marinheiros. A moça passa então a dividir, um quarto com mais quatro moças,
todas Marias: Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria José e uma quarta que era apenas
Maria, que trabalham como balconistas nas Lojas Americanas e uma delas trabalhava
também, vendendo produtos de beleza Coty.
Ao procurar trabalho, Macabéa consegue um emprego de datilógrafa em um pequeno
escritório por que ninguém queria aquela vaga de emprego, mas ela tem muito orgulho da sua
“profissão”. Lá divide o espaço com o chefe, Senhor Raimundo Silveira, o dono da firma e
Glória. Nas horas vagas, Macabéa dedica-se a escutar a Rádio Relógio Federal que, além de
informar as horas, oferece um pouco de saber descontextualizado. É através dessas
curiosidades apresentadas no programa que a personagem tenta estabelecer um diálogo com
os demais, porém essas tentativas só evidenciam sua incomunicabilidade.
A personagem Macabéa mal tem consciência de existir, é apática, ingênua, sofredora,
mas tem um sonho: tornar-se estrela de cinema, assim admira com certa dose de melancolia
Marylin Monroe e Greta Garbo. No fim da trama, de certa forma, acaba conseguindo realizar
o seu sonho de ser uma estrela de cinema, já que o título do romance A hora da estrela condiz
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com o momento de sua morte, pois depois de atropelada por um carro de luxo, caída na
calçada, vira atração de “Algumas pessoas” que “brotaram no beco não se sabe de onde e
haviam se agrupado em torno de Macabéa sem nada fazer assim como antes pessoas nada
haviam feito por ela, só que agora pelo menos a espiavam, o que lhe dava uma existência”
(LISPECTOR, 1998, p. 81).
Anônima na cidade grande, frágil, magricela, assim é Macabéa, presença silenciosa
num mundo feito todo contra ela: “Incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar.
Só vagamente tomava conhecimento da espécie de ausência que tinha de si mesma. Se fosse
criatura que se exprimisse diria: “[...] o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim”.
(LISPECTOR,1988, p.24).
Na verdade, o mundo é que não está preparada para receber Macabéa, já que ela
incomoda por sua humildade, por sua inconsciência da infelicidade. Incomoda porque não
reclama, incomoda porque não obedece, incomoda porque tem olhos de quem pergunta sem
fazer perguntas, ela que sabe que nada tem resposta. Macabéa acumula no corpo franzino
“herança do sertão”, todas as formas de repressão cultural, o que a deixa alheia de si e da
sociedade. É, ironicamente conforme o narrador, um verdadeiro “parafuso indispensável” na
sociedade técnica em que vive.
O perfil de Macabéa traçado por Rodrigo S. M. é impiedoso, mas é justamente essa
impiedade que desperta em nós um sentimento de compaixão pela personagem e pelos
homens desvalidos de um modo geral. Macabéa é nordestina, feia, miserável, raquítica,
solitária, ignorante e tuberculosa, tudo leva a crer, que essa situação da personagem se
assemelha aos homens, que vivem em extrema pobreza, e que por falta de políticas públicas
que atendam as suas necessidades básicas, sofrem as mesmas agruras da personagem citada.
O quadro pintado por Rodrigo S.M. não poderia ser mais cruel e melancólico. Talvez pior do
que ao nos depararmos face a face com uma pessoa de carne e osso parecida com a
personagem que o narrador Rodrigo S. M. descreve. Aí está a grandeza da literatura, que é
capaz de mostrar as personagens, a exemplo de Macabéa tão verossímil que suas
características parecem não ser fictícias, mas se veem multiplicadas por aí, em milhares de
brasileiros abandonados a sua própria sorte, espalhados pelo Brasil afora.
Afirmamos brasileiros porque ao contrário do que nos é incutido pela mídia, sobretudo
a do eixo Rio-São Paulo, a pobreza, a ignorância e o desamparo não são características
exclusivamente nordestinas, pelo contrário, elas estão presentes em todo o território nacional.
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Quando se refere a Macabéa, o escritor afirma: “Maca, porém nunca disse frases, em
primeiro lugar por ser de parca palavra. E acontece que não tinha consciência de si e não
reclamava nada, até pensava que era feliz”.(LISPECTOR,1998, p.69). O escritor continua:
“[...] O seu diálogo era sempre oco. Dava-se conta longinquamente que nunca dissera uma
palavra verdadeira. E “amor” ela não chamava de amor, chamava de não sei o
quê”.(LISPECTOR,1998, p.54).
Assim, o quadro que nos é apresentado é de uma personagem desprovida de toda e
qualquer possibilidade de reflexão. Embora a frase inicial do romance seja “Tudo no mundo
começou com um sim.” (LISPECTOR, 1998, p. 11), paradoxalmente a saga de Macabéa é
puro “não”. Macabéa é pura negação. A personagem foge à lógica burguesa do “ser” e do
“ter”. Macabéa “não tem” e “não é”. E é através da negação que a moça nordestina nos é
descrita: ela não é bonita, não é inteligente, não é culta, não tem laços afetivos, não tem saúde,
não tem família. E quando algo é afirmado, tem conotação negativa: “[...] ninguém a quer [...]
não faz falta a ninguém.[...] (LISPECTOR,1988, p.14); Ela nascera com maus antecedentes e
agora parece uma filha de um “não sei o quê” com ar de se desculpar por ocupar espaço.” [...]
(LISPECTOR,1998, p, 27).
Macabéa não desperta interesse ao namorado, nem nas colegas de quarto que a
achavam esquisita, com um cheiro estranho. Há apenas um momento de afirmação, quando
Macabéa se define:
E quando acordava? Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que
pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então
vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel
de ser. (LISPECTOR, 1998, p.36)
Assim, Macabéa tende a esquecer "suas raízes" absorvendo a cultura do local onde
mora, numa realidade totalmente diferente da qual ela estava acostumada, ou seja, ela sai do
sertão, região desfavorecida economicamente e vai para a metrópole que está em processo de
inovações. Dessa maneira, Macabéa sente-se um ser inferior em relação aos outros, ela é uma
estrela que não cintila, que não sabe o que era futuro.
Os dezenove anos de Macabéa não foram vividos, foram existidos. E como
percebemos neste trecho a seguir, foi só na hora da morte que ela encontrou sua hora de
estrela: “Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de
glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes”.
(LISPECTOR, 1998, p. 29) e Macabéa que até então vive “num limbo impessoal, sem
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alcançar nem o melhor, nem o pior” (p.23), não se sente muito gente, e cuja existência é um
eterno presente. Macabéa tem medo ou desconhecimento das palavras, somente pouco antes
de seu último suspiro pôde enfim afirmar de um jeito “bem pronunciado e claro”: “quanto ao
futuro”.
A moça nordestina tem sono artificial por causa do resfriado e da tosse que sufoca
com o travesseiro para não acordar as colegas de quarto. Tem mal cheiro, pois raramente toma
banho. Quase sempre antes de dormir sente fome e fica meio alucinada pensando em coxa de
vaca, mas disfarça a fome mastigando e engolindo pedacinhos de papeis. Apesar de todo seu
sofrimento, Macabéa tem alguns luxos, vai uma vez por mês ao cinema, pinta as unhas das
mãos de vermelho escarlate, gosta de filme de terror, ler recortes de anúncios de jornais
velhos e toma coca-cola. Esses seus hábitos e manias são o que aliviam um pouco a solidão e
o vazio de sua existência. Além do mais, todas as madrugadas entretinha-se ouvindo o rádio
emprestado por uma de suas companheiras de quarto. Ouve o som do rádio bem baixinho para
não incomodar as suas colegas. A rádio relógio transmite cultura inútil, anúncios comerciais -
que por sinal ela adora – e quase não toca nenhuma música.
No trabalho o senhor Raimundo lhe avisara com brutalidade que iria manter apenas
sua amiga Glória no emprego, e quanto a ela, seria despedida pela sua incompetência, errava
demais na datilografia, além de sujar o papel com gordura. Macabéa com sua natural
humildade responde se desculpando pelo aborrecimento causado. Surpreso com a reação, o
chefe se compadece e resolve não despedi-la imediatamente, embora contrariado.
Em um certo dia, Macabéa quis descansar e inventa a mentira que iria arrancar um
dente. No dia 7 de Maio ela falta ao trabalho, para poder aproveitar a liberdade da solidão e
fazer algo diferente. Assim que as quatro Marias saem para trabalhar, ela coloca uma música
alta, dança e toma café que pedira emprestado. Ela se sente tão contente. Não devia nada a
ninguém e ninguém lhe devia nada e até se dá ao luxo de se entediar. Nesse mesmo dia,
durante uma chuva de final de tarde, encontra seu primeiro e único namorado Olímpico de
Jesus. Assim que ele e Macabéa se olham por entre a chuva e se reconhecem como dois
nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejam. Ele a olha enxugando o rosto molhado
com as mãos, aproxima-se e a convida para passear. Ela basta vê-lo para se apaixonar e mais
que rapidamente disse sim ao convite do rapaz que estranha o nome dela, achando que parece
nome de doença de pele.
Olímpico é operário de uma metalúrgica, não se considera operário, mas sim
metalúrgico, trabalha o dia inteiro com barras de metal, mora de favor numa guarita em obras
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de demolição, por camaradagem do vigia. Torna-se o namorado da principal personagem
feminina do romance em estudo. Ele não tem pai, por isso acrescenta por conta própria o
sobrenome Moreira Chaves. Nos cafundós do sertão mata um homem com um canivete,
talvez por isso tenha imigrado para o Rio de Janeiro. Também no nordeste junta dinheiro para
arrancar um canino perfeito e trocá-lo por um dente de ouro, este lhe dar posição na vida. Tem
grandes sonhos, diz que um dia será muito rico, adora ouvir discursos, sonha em ser deputado
e tem como desejo secreto ser toureiro. É considerado cabra safado, além de já ter matado um
homem, rouba os colegas de trabalho e até o vigia que lhe dar abrigo em uma guarita.
Olímpico tem grande talento para desenhar rapidamente caricaturas ridículas dos retratos dos
poderosos e para esculpir figuras de santos que eram tão bonitas que ele não as vende.
O passeio dos namorados é sempre seguido de chuvas e programas gratuitos, como em
ir à praça, sentar-se e conversar. As poucas conversas entre os namorados é quase sempre
sobre farinha, carne de sol, carne seca, rapadura e melado, pois esse é o assunto contido no
passado dos dois. Em seus outros diálogos curtos, Macabéa relata informações esparsas
ouvidas na rádio relógio e Olímpico, ou repete seus sonhos de grandezas, ou se irrita com as
perguntas que a moça faz, o que a leva constantemente a se desculpar. Ela não quer perdê-lo,
apesar de ele a tratar mal, toda vez que os dois se encontram, sempre chove. Um dia,
Olímpico perde a forçada educação que vinha mostrando e diz a ela:“-Você também só sabe é
mesmo chover!” “-Desculpe.” (LISPECTOR, 1998, p.44) acrescenta a moça que já amava
tanto, que não sabia mais como livrar-se dele.
Um dia Olímpico para mostrar que é forte, levanta Macabéa com um só braço; mas
não aguenta o peso da moça por muito tempo e ela cai de cara na lama. Ela ainda com o nariz
sangrando disse para ele não se incomodar, pois fora apenas uma pequena queda. Ele fica
emburrado, senti que seu brio fora atingindo e passa vários dias sem procurar Macabéa.
Quando Olímpico volta a procurar moça, os dois entram em um açougue, para ela o cheiro da
carne é um perfume e imagina comer; quanto a ele, tem inveja do açougueiro. Meter a faca na
carne o excita. Macabéa não dar despesas a Olímpico a não ser quando uma vez toma um
cafezinho com leite que ela enche de açúcar, e porém quase chega a vomitar.
Depois de certo tempo juntos, Olímpico de Jesus já não demostra mais nenhuma
vontade de namorar Macabéa, pois a moça não tem força de raça, classe e nem perspectiva de
futuro. No entanto, Glória amiga de Macabéa, tem classe, seus cabelos são crespos, pintados
de amarelo, possui todo o charme e “carnes” que a outra não tem. “Carioca da gema”, razão
forte pela qual Olímpico atrai-se por ela, “Glória tem um caminhar amaneirado por causa do
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sangue africano, é branca, mas de força mulata. O fato de ser loura é um degrau a mais para
Olímpico. “[...] apesar de feia, Glória era bem alimentada. E isso fazia dela material de boa
qualidade” (LISPECTOR,1998, p.59);
Apesar de feia, e da falta de higiene, Glória tem muitos atrativos que Macabéa não
possui, ou seja, ela tem corpo e discurso. A colega de trabalho da nordestina possui formosura
e exuberância com seus cabelos loiros, loiro como o da Marylin Monroe - uma referência ao
mundo pop que Macabéa admira. Glória é bem nutrida, filha de açougueiro, além do nome
imperioso, tem comida farta em casa, e possui lábia para justificar suas faltas no trabalho sem
causar desconfiança.
Glória tem tudo o que falta à Macabéa: dinheiro, corpo e comportamentos sedutores,
família estruturada e desenvoltura profissional. Podemos perceber através destes trechos a
“superioridade” de Glória em relação a Macabéa. Ela nos é apresentada com uma exuberância
que Macabéa não possui:
Macabéa entendeu uma coisa: Glória era um estardalhaço de existir. E tudo devia ser
porque Glória era gorda. A gordura sempre fora o ideal secreto de Macabéa, pois em
Maceió havia escutado um rapaz dizer para uma gorda que passava na rua: “tua
gordura é formosura!”. (LISPECTOR, 1998, p. 61)
Pelos quadris adivinhava-se que seria boa parideira. Enquanto Macabéa lhe pareceu
ter em si mesma o seu próprio fim. (LISPECTOR, 1998, p.60)
Glória era toda contente consigo mesma: dava-se grande valor. Sabia que tinha o
sestro molengole de mulata, uma pintinha marcada junto da boca, só para dar uma
gostosura, e um buço forte que ela oxigenava. [...](LISPECTOR, 1998, p. 64).
Glória tinha um traseiro alegre e fumava cigarro mentolado para manter um hálito
bom nos seus beijos intermináveis com Olímpico. Ela era muito satisfatona: tinha
tudo o que seu pouco anseio lhe dava. E havia nela um de desafio que se resumia
em: “ninguém manda em mim”.[...] (LISPECTOR, 1998, p. 65).
Quando analisamos a forma como o narrador descreve detalhadamente essa
personagem, observamos que ela é demonstrada exteriormente, “gorda”, com “cabelos louros
oxigenados”, possuía uma marquinha pintada, junto a boca, “buço forte”, é namoradeira e
muito cobiçada, é forte, pelos quadris, conforme o narrador, seria mãe de muitos filhos, fator
importante para uma mulher na época. Glória tem vícios, é realizada, feliz e independente. É
uma personagem de aparências gloriosas, diferente de Macabéa, comprovando que é o lado
exterior que importa, nessa sociedade em que vivem esses entes ficcionais, assemelhando-se
as pessoas de uma sociedade.
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Diante das qualidades de Glória e ainda mais quando soube que o pai da moça é
açougueiro, Olímpico decide romper o namoro com Macabéa para ficar com sua colega. Ao
despedir-se Olímpico diz a Macabéa que ela é “um cabelo na sopa”, por isso não dar vontade
de comer. Ele pede que a desculpe pela ofensa, mas esta sendo sincero. A moça fala que não
está ofendida e pede que ele logo diga adeus. Na hora em que Olímpico lhe “dar o fora”, a
reação dela veio de repente inesperada e pôs-se a rir. “Ria por não ter lembrado de chorar”
(LISPECTOR, 1998, p. 61). Surpreso, Olímpico sem entender nada, pôs-se a sorrir também.
Em um domingo, Glória querendo redimir-se por ter roubado o namorado da colega,
convidou-a para uma refeição em sua casa. Macabéa aproveita o chocolate grosso com leite,
come roscas açucaradas e bolos. De tanto comer, no outro dia, a moça passa mal e decide,
pela primeira vez na vida, procurar um médico que lhe dissera que está com começo de
tuberculose.
O médico sem objetivo nenhum com a medicina lhe aconselha comer espaguete e
evitar álcool. A medicina para o médico é apenas para ganhar dinheiro e nunca por ética à
profissão nem aos doentes. É desatento e acha a pobreza uma coisa feia. Trabalha para os
pobres mesmo detestando lidar com eles. Para ele os pobres são o rebotalho de uma sociedade
muito alta à qual também ele não pertence. Sabe que está desatualizado na medicina e nas
novidades clínicas, mas para trabalhar com os pobres serve. O médico encerra sua
participação na narrativa de forma ignorante, mandando Macabéa para o “raio que o parta”,
após a moça não entender as suas orientações.
Glória, talvez por remorsos ou sentindo-se culpada, aconselha e empresta dinheiro
para que Macabéa procure uma cartomante para saber de sua sorte. Macabéa toma coragem e
inventa que está com dor de dente e pede licença ao chefe. Chegando a casa da gentil
Madame Carlota, fica impressionada com o requinte da casa da senhora e com tanto carinho.
Carlota que é uma ex-prostituta que fazia sucesso quando jovem, ex-cafetina e atual
cartomante. É gorda e gosta de se enfeitar com exagero, “[...] era enxundiosa, pintava a
boquinha rechonchuda com vermelho vivo e punha nas faces oleosas duas rodelas de ruge
brilhoso. Parecia um bonecão de louça meio quebrado” (LISPECTOR,1998, p.72)
A cartomante trabalhara na zona e, conforme determinadas realidades que se conhece
sustentara um cafetão, a quem amava. Tornara-se cafetina quando começara a engordar e
perder os dentes. Macabéa, ao chegar à casa da cartomante é recebida sem espanto, pois esta
lhe olhou naturalmente, e logo é tratada de “queridinha”, e de muitos outros adjetivos no
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diminutivo como: “florzinha, queridinha, docinho, coisinha, engraçadinha, benzinho” etc. Um
carinho exagerado que ninguém jamais dirigiu a ela.
Durante a consulta, a cartomante passa bastante tempo contando detalhes da sua vida
a Macabéa, fala mais da sua própria vida do que tira cartas à cliente. O narrador coloca
Madama Carlota como o ponto alto da existência de Macabéa, já que é a informante do seu
futuro, aquela que anuncia as mudanças que ocorreriam em sua vida, uma vez que, prevê o
futuro reluzente da moça.
Percebemos que na narrativa de Rodrigo S.M, Madama Carlota é irônica em suas
palavras sedutoras, fala que as mudanças na vida de Macabéa se dariam a partir do momento
em que ela saísse de sua casa, seria bem sucedida financeiramente, tudo mudaria em sua vida:
seria notada, bajulada, ficaria gorda, se vestiria bem, até o seu cabelo mudaria. Todos esses
benefícios, que Macabéa passaria a ter, a partir do momento em que deixasse a casa da
cartomante, retratam os valores exigidos pela sociedade moderna, demonstrando que a
felicidade está em ter e não em ser, e Macabéa não se encaixa naquele contexto das cidades
grande do sul do país, pois viveu em estados desprovidos dos bens materiais, sociais e
culturais próprios dos centros urbanos “considerados mais importantes” do país e por isso a
tendência é que os governos invistam mais neles e os outros mais distantes desses centros
ficam esquecidos.
Após Madama Carlota falar tudo sobre sua vida de prostituta e cafetina manda
Macabéa cortar as cartas com a mão esquerda e então relata primeiramente o passado horrível
de Macabéa e pede que Jesus tenha pena da moça. Quanto ao presente, Madama Carlota diz
que está horrível também. Porém, em um instante, a cartomante com seu discurso sedutor,
convence Macabéa de que ela pode ter um destino bom, coisa que ela nem sabia que existia.
Como aceita e acredita em tudo o que lhe dizem, Macabéa se deslumbra. É através dessa
fluência, que Madama Carlota reverte os fracassos de Macabéa em perspectivas de felicidade,
quando afirma:
- Macabéa! Tenho grandes notícias para lhe dar! Preste atenção, minha flor, porque
é da maior importância o que vou lhe dizer. É uma coisa muito séria e muito alegre:
sua vida vai mudar completamente! E digo mais: vai mudar a partir do momento em
que você sair da minha casa! Você vai se sentir outra. Fique sabendo, minha
florzinha, que até o seu namorado vai voltar e propor casamento, ele está
arrependido! E seu chefe vai lhe avisar que pensou melhor e não vai mais lhe
despedir! (LISPECTOR, 1998, p.76)
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Segundo Madame Carlota, até um dinheiro grande iria entrar pela porta de Macabéa,
trazido por um estrangeiro. Por fim, Madama Carlota diz que é com o próprio Hans,
estrangeiro alourado, de olhos azuis ou verdes que a moça iria se casar. Hans é o rico
ocupante do Mercedes Benz, dono do carrão amarelo. Sua participação é bastante distinta na
narrativa, na verdade, só ganha existência nas mãos de Madama Carlota.
Macabéa, quando sai da casa de Madame Carlota, ao dar o primeiro passo da descida
da calçada para atravessar a rua é atropelada pelo Mercedes amarelo. Ela cai ao chão e fica
inerte no canto da rua, algumas pessoas aglomeraram-se em torno dela, mas ninguém lhe
oferece socorro. Então ela acomoda o corpo em posição fetal, vomita um pouco de sangue e
morre. Em fim a coroação. Com sua morte chega a hora da estrela.
3.2 - O NARRADOR-ESCRITOR RODRIGO S. M.
No romance “A hora da estrela” Clarice Lispector inova em seu estilo de narrar
utilizando o recurso, até então inédito em suas obras, a presença do narrador-escritor. Este, no
romance, escreve sobre uma personagem feminina, com a qual desenvolve uma relação que
vai da indiferença, passando pela ternura e do ódio ao afeto.
A autora do romance, inova não só ao criar um narrador-escritor, mas também ao dar-
lhe o nome de Rodrigo S.M. A presença do narrador nas narrativas do século XX é bastante
comum, porém estes não são identificados, ou seja, nomeados. Assim, Clarice Lispector ao
criar e nomear o narrador de seu romance introduz uma nova característica em seu estilo de
narrar.
Observamos, no romance em tela, que, antes de começar a sua narrativa, o narrador-
escritor justifica o fato de que esta deve ser escrita por um escritor homem, conforme suas
palavras, “[...] teria que ser homem porque escritora-mulher pode lacrimejar piegas”
(LISPECTOR,1998, p. 14), Essa informação parece sugerir uma crítica de Clarice Lispector,
aos críticos brasileiros, em especial a Álvaro Lins, que segundo NASCIMENTO (2011, p12. )
fez críticas negativas a respeito da primeira obra da escritora brasileira Perto do coração
selvagem (1944). O narrador seria alter ego de Clarice Lispector? Assim, após vários
momentos de hesitação, Rodrigo S.M. inicia a saga de Macabéa e suas, “fracas aventuras”,
esta narração oscilará entre a onisciência e a observação. Segundo o mesmo:
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A história – determino com falso livre-arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu
sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S.M. Relato antigo, este,
pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim
é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e “gran
finale” seguido de silêncio e de chuva caindo (LISPECTOR, 1998, p.13)
Como Rodrigo S. M. muitas vezes fala de si mesmo, ele acaba por tornar-se também
personagem da história “um dos mais importantes” como ele se auto-denomina. Ele também
critica a falta de importância e de valorização do literato na sociedade e trava uma batalha
existencialista com o seu próprio ser, além de banalizar sua existência no mundo da escrita.
Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra
dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais
a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria
simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela
saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu
desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui. (LISPECTOR,
1998, p. 21)
O narrador Rodrigo S.M. elege a ironia como um forte elemento construtivo do
romance A hora da estrela. O escritor ironiza sua própria classe, para ele, o escritor é
marginalizado socialmente, pois afinal, trilhar pelos caminhos da literatura, na maioria das
vezes, é um processo árduo, doloroso e nem sempre reconhecido, de acordo com sua
observação: “[...]Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem
como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a
classe baixa nunca vem a mim” (LISPECTOR,1998, p. 19).
Pelas palavras do narrador, podemos compreender o significado da literatura e do
escritor na sociedade. Desde Platão até a contemporaneidade existe uma questão posta sobre o
criador ficcional, ou seja, de que o poeta é um ser sem lugar, assim como na obra de Lispector
em estudo, em que o narrador se sente também como um ser marginalizado. Nesse sentido, o
romancista torna-se também um “monstro esquisito” na medida em que utiliza sua obra para
fazer denúncias e questionar valores sociais que favorecem apenas uma minoria, enquanto a
maioria da população convive com muitas mazelas. A classe média, com maior facilidade de
acesso à educação, a melhores empregos e ambicionando um degrau a mais na sociedade,
teme qualquer um que possa comprometer o seu objeto de valor, com isso, preocupa-se com o
escritor, pois este pode desequilibrá-la com suas denuncias e alertas contra uma sociedade
capitalista opressora. Já para classe baixa, o escritor não existe, “nunca vem a mim”. Ou seja,
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o povo da classe menos favorecida não conhece o escritor, pois esta classe, não tem direito
garantido de acesso à educação e a leitura da literatura, por isso são excluídos do direito de
ler. Muitos não têm a oportunidade e nem o direito de estudar, suas vidas, como, por exemplo,
a vida de Macabéa e de suas companheiras de pensão são preenchidas apenas por muito
trabalho.
A esse respeito, Antonio Candido em seu livro Vários escritos, aborda o direito à
literatura como um bem incompreensível, assim como a alimentação, moradia, vestuário,
saúde, liberdade etc., pois estes garantem, não só a sobrevivência física em níveis decentes,
mas garantem a integridade espiritual e o bem estar social.
Vista deste modo a literatura aparece claramente como manifestação universal de
todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver
sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de
fabulação. Assim como todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro
horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado (CANDIDO,
1995, p. 242).
Antonio Candido nos diz que, ninguém fica vinte e quatro horas sem mergulhar no
universo da ficção e da poesia, assim sendo, a literatura é considerada como uma necessidade
fundamental, que precisa ser entendida e garantida como um direito inalienável e universal.
Porém, no romance A hora da estrela, observamos, que o narrador, por meio da personagem
Macabéa, traça, de certo modo, o perfil da classe menos favorecida da sociedade brasileira,
classe esta que está alheia a este direito, assim como a outros. Macabéa, enquanto imigrante
nordestina ficcional: “[...] – e é claro que a história é verdadeira embora inventada –
[...](LISPECTOR, 1998, p. 12) espelha o retrato vivo de uma barbárie contra os direitos
humanos dessa sociedade, pois a nordestina, de acordo com o narrador, é destituída de
qualquer direito mesmo os mais básicos. O narrador do romance em questão, aparentemente
se mostra indiferente com a forma de organização politica e social, mas adotando a ironia,
questiona a cultura dominante e procura denunciar os preconceitos e a situação degradante
dos pobres e humilhados, considerando o motivo que o leva a escrever, de “força maior”,
“Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de força maior [...]”
(Lispector,1998, p. 18).
No fragmento acima citado, o narrador demonstra em A hora da estrela uma de suas
principais características que é a denúncia da situação marginalizada de uma grande parte da
população brasileira. É válido lembrar que Antonio Candido faz uma abordagem sobre o
direito à arte e à literatura, fazendo o seguinte questionamento:
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Mas a fruição da arte e da literatura estaria mesmo nesta categoria? Como noutros
casos, a resposta só pode ser dada se pudermos responder a uma questão prévia, isto
é, elas só poderão ser consideradas bens incompreensíveis segundo uma organização
justa da sociedade se corresponderem a necessidades profundas do ser humano, a
necessidades que não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desorganização
pessoal, ou pelo menos de frustação mutiladora.[...] (Candido, 1995, p. 241).
A partir desse questionamento, pode-se pensar que a história de Macabéa assemelha-se
a história de muitos brasileiros que não têm direito a escolaridade, podemos constatar que a
alienação da classe menos favorecida ao direito à literatura, tornando-se indivíduos
desorganizados interiormente, frustrados e sem forças para reivindicarem seus direitos.
Assim, a literatura é um fator indispensável de humanização e talvez sem ela não haja
equilíbrio social, pois ela tem na vida do ser humano, segundo Candido, importância
equivalente aos direitos básicos como a alimentação, a educação familiar e escolar.
Podemos considerar o romance de Clarice Lispector como uma metacrítica ficcional,
pois a autora, nessa obra, elenca subjetivamente e criticamente as diversas situações do
cotidiano como: a imigração, o consumismo, a luta de classes, a industrialização, a
modernização, as crenças, os costumes, a valorização da mulher e da cultura letrada, e enfim,
a vida desajustada do povo brasileiro nas décadas 50 a 70 do século XX. A autora, por meio
do seu escritor fictício, Rodrigo S.M., tem o propósito de captar a alma de suas personagens e
com isso, descortina a fragilidade, a trágica vida da população menos favorecida e a pobreza
que assola a grande maioria dos brasileiros. Apesar da autora dar maior destaque as
desigualdades sociais, ela também dá enfoque a outros temas como, o papel social do escritor
contemporâneo e a grandeza do ser humano na humildade de Macabéa.
Rodrigo S.M., constrói uma narrativa cheia de idas e vindas, afinal, ele mescla três
histórias importantes no enredo, sendo que a mais importante é a história da moça nordestina,
além de entrelaçar na obra inúmeros temas vigentes na sociedade como: a imigração e a
situação de abandono da maioria da população. Desta forma, o romance não possui uma
linearidade, mas nem por isso torna-se de difícil compreensão. O recurso utilizado pelo
narrador de quebrar a sequência lógica do enredo, de escrever uma história não iniciando pelo
começo é que faz da obra A hora da estrela um romance impar. Que em um primeiro
momento, causou estranheza aos leitores e a crítica literária pelo fato de fugir dos padrões
canônicos e abraçar um estilo próprio, que contempla não só o estilo contemporâneo, como
também os demais estilos literários pré-existente.
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3.3 A PERSONAGEM MACABÉA: MIGALHAS E SOLIDÃO.
No romance A hora da estrela conta-se a história de pessoas abandonadas e excluídas
socialmente por não enquadrarem-se aos padrões pré-estabelecidos em uma cidade moderna
cheia de requintes e glamour, modernidade esta, longe do alcance de Macabéa, que: “Vez
por outra ia para a zona sul e ficava olhando as vitrines faiscantes de joias e roupas
acetinadas- só para se mortificar um pouco. É que ela sentia falta de encontrar-se consigo
mesma e sofrer um pouco era um encontro”.(LISPECTOR,1998, p. 34-35)
Percebemos na citação acima, que Macabéa, essa nordestina que vive na mais extrema
pobreza, sem a formação necessária para galgar melhor emprego e melhorar a sua vida,
jamais poderia adquirir tais luxos, o máximo que ela consegue é olhar as vitrines e quando
isso acontece encontra-se consigo mesma num momento de sofrimento.
Também compreendemos que é uma narrativa, na qual as personagens vivem
mentiras , angústias existenciais. Glória (a colega de trabalho de Macabéa) espera pelo amor
dos homens casados com quem se relaciona, mas só encontra migalhas. Olímpico (o
namorado de Macabéa) anseia pelo dia em que o ouvirão e o reconhecerão. Madama Carlota
(a vidente) parece querer purificar-se do passado de prostituta enfeitando o futuro de suas
clientes com profecias tão doces, quanto falsas. Rodrigo S.M. espera que, enfim, consiga
traduzir em linguagem esse excesso de si mesmo e suas inquietações em relação a história do
romance. E Macabéa que não almeja nada, não é associada a nada de positivo, segundo as
pessoas que com ela convivem. Sua cor (“a cara amarela”), seu cheiro (que as colegas
afirmavam ser estranho) e seu gosto (“Macabéa, você é um cabelo na sopa, não dá vontade de
comer”) como afirma Olímpico, motivam a rejeição da moça.
Esses aspectos também servem para evidenciar o isolamento de Macabéa em relação
ao meio em que vive. Sua postura é de submissão com os ombros curvados e o olhar voltado
para o chão. Essa forma de se portar se repete independentemente de qual contexto ela se
apresente (casa, trabalho, rua). Observando a caracterização da personagem, não há nada que
a destaque, mas é essa situação de pobreza extrema de um “ser” miserável, insignificante e
invisível socialmente, que não possui consciência de existir, que a torna a principal
personagem feminina dessa história ficcional, que se assemelha a realidade.
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Assim, o quadro que nos é apresentado é de uma personagem desprovida de toda e
qualquer significância ou brilho, ficando evidente, que Macabéa se confunde com a escuridão
da pensão onde vive, com a cinza da estação do metrô, por onde passa todos os dias
(inclusive aos domingos), com a poluição das ruas por onde anda e com a chuva que cai
durante os encontros com Olímpico. É o “tal do mimetismo” cujo significado ela tenta
descobrir (e cujo sentido é tão pertinente na obra clariceana).
Quanto a sua função de datilógrafa, que exerce na pequena empresa onde trabalha, é
somente bater à máquina o que está escrito nos documentos da empresa, documentos estes os
quais são entregues a ela pelo chefe Raimundo Silveira. Aqui não há espaço para a reflexão
ou a criatividade. Há apenas o gesto mecânico de reproduzir o discurso dos outros. A única
marca pessoal que Macabéa deixa neste trabalho é a sujeira da gordura de cachorro-quente,
que ela come, enquanto datilografa. A profissão nos revela também que Macabéa ocupa-se
apenas em reproduzir as palavras dos outros, sem questioná-las, ainda que não as compreenda
muito bem. Este aspecto é importantíssimo na construção de Macabéa, Rodrigo S.M retrata a
incapacidade de reflexão da moça quando afirma:
Maca, porém jamais disse frases, em primeiro lugar por ser de parca palavra. E
acontece que não tinha consciência de si e não reclamava nada, até pensava que era
feliz.[...] (LISPECTOR, 1998, p. 69)
Ainda quanto a sua incapacidade comunicativa e reflexiva de Macabéa o narrador
declara que:
Todas as madrugadas ligava o rádio emprestado por uma colega de moradia, Maria
da Penha, ligava bem baixinho para não acordar as outras, ligava invariavelmente
para a Rádio Relógio, que dava “hora certa e cultura”, [...] curtos ensinamentos [...]
informações [...]. (LISPECTOR,1998, p.37)
O aparelho de rádio eternamente sintonizado na Rádio Relógio Federal reforça a não
reflexão da personagem. E constantemente Macabéa faz uso do discurso alheio. No trabalho,
ela repete esse discurso na forma escrita. Na fala, como não tem o que dizer, ela repete o
conteúdo da Rádio Relógio, mesmo ignorando o significado do que é falado pelos locutores.
Rodrigo S.M ao narrar a história de Macabéa, ainda toma emprestado o olhar
hegemônico do Sudeste justamente para reforçar a sua crítica a respeito da falta de políticas
governamentais positivas para a região nordeste, políticas estas que possam minorar o
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sofrimento de tantas pessoas, extensivo também a toda uma população que sofre os mesmos
problemas.
Embora o discurso do narrador pareça preconceituoso por compor a figura da
personagem Macabéa destituída de quase tudo, o discurso da personagem silenciado em
vários momentos ou por falta de compreensão dela mesma ou de outros personagens, a
exemplo da conversa que ele tem com Olímpico, quando ela pergunta a ele “se um buraco era
caro”, pensando em um “poço”, e ele não compreende e a repreende, reforça a ironia que é
empregada em vários momentos no romance, marca de uma crítica feroz do narrador que não
se cala e pode dizer tudo aquilo que diz e que dificilmente os excluídos da época poderiam
dizer.
O discurso dos excluídos e dos desconhecidos por viverem em regiões distantes dos
centros culturais reconhecidos como “mais importantes no Brasil” entram em circulação pela
literatura brasileira, mas está o acolhe tardiamente, porém desde o século XIX a crítica
literária vem discutindo essa questão, e quase todos os estudiosos de crítica literária apostam
nas obras em que os escritores vivenciam as questões as quais tratam em seus livros, talvez
por isso o narrador Rodrigo S. M se põe em posição, quase idêntica, a de Macabéa, para poder
descrevê-la, compreendê-la e narrar com mais sentimento de verdade a história da nordestina:
Agora não é confortável: para falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias
e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão, sou um
trabalhador manual. Além de vestir-me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me
pôr no nível da nordestina.[...] (LISPECTOR, 1998, p.19)
Percebemos que o narrador-escritor Rodrigo S.M, para escrever essa narrativa, afirma
que, de certo modo, vai experimentar viver um pouco desse mundo de Macabéa, mudando a
expressão do rosto, o vestuário e vivendo sua rotina de trabalho de uma forma diferente para
que possa contar de maneira, mais verossímil possível, a história dessa miserável criatura.
A personagem Macabéa também é o retrato do pobre submisso e conformado com seu
destino (que ignora). Ao lermos a saga de Macabéa, nos deparamos com um ser que é incapaz
de inserir-se no contexto onde vive, haja vista, ter nascido e sido criada no nordeste, onde
estava acostumada à miséria, com a vida comparada a de um animal e de onde não deveria ter
saído. Observemos os seguintes trechos:
Quero nesse instante falar da nordestina. É o seguinte: ela como uma cadela vadia
era teleguiada exclusivamente por si mesma. Pois reduzira-se a si.[...] (LISPECTOR,
1998, p.18)
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[...] Nascera inteiramente raquítica, herança do sertão – os maus antecedentes de que
falei. Com dois anos de idade lhe haviam morrido os pais de febres ruins no sertão
de Alagoas, lá onde o diabo perdera as botas. Muito depois fora para Maceió com a
tia beata, única parenta sua no mundo (LISPECTOR, 1998, p.27-28).
O narrador ao retratar Macabéa, também faz uma denuncia ao preconceito, pois a
moça é o próprio retrato dos preconceitos de uma sociedade burguesa. Sua vida é tão parca e
oca que nem é capaz de falar sobre si e nem se acha muito gente, daí a necessidade de uma
voz alheia, que quase sempre, precisa “traduzir” seus pensamentos, pois a história de
Macabéa “Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira”
[...] um material “parco e singelo demais” (LISPECTOR,1998, p.13-14). No livro, são as
vozes masculinas que comandam: Rodrigo S.M. e Olímpico que legitimam a existência de
moça, que é incapaz de impor-se tamanha sua precariedade.
Lispector encerra a saga da personagem atestando o fracasso da existência de
Macabéa. Sua tentativa em viver na cidade grande e a busca de uma existência mais digna. A
personagem que só respira e ocupa espaço, que não sabe o que é cultura, que não é capaz de
verbalizar o que é, o que quer ou que sente, só conseguiu ver-se na hora da sua morte.
Prestou de repente um pouco de atenção para si mesma. O que estava acontecendo
era um surdo terremoto? Tinha-se aberto em fendas a terra de Alagoas. Fixava, só
por fixar, o capim. Capim na grande Cidade do Rio de Janeiro. À toa. Quem sabe se
Macabéa já teria alguma vez sentido que também ela era à toa na cidade
inconquistável.[...] (LISPECTOR, 1998, p. 80,81)
A morte atesta sua vida inconquistável, a cidade grande inconquistável e um futuro
impossível. Mais um nordestino que é engolido pela máquina do desenvolvimento e da
modernidade e de onde pode-se tirar a lição, segundo o narrador, de que o melhor era
Macabéa não ter saído de seu sertão, pois foi justamente um dos símbolos da modernidade e
da industrialização (o carro importado) que a destrói.
A hora da estrela é uma obra prima da literatura brasileira, e continua sendo uma
inesgotável fonte de estudo para que possamos compreender a vida, a arte de Clarice
Lispector e seu estilo inovador de narrar.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Após termos realizado o estudo do romance A hora da estrela, de Clarice Lispector,
com ênfase dada ao narrador Rodrigo S.M e Macabéa, a principal personagem feminina da
citada obra, detectam-se alguns aspectos e características bastante peculiares da referida obra
da autora brasileira, a partir dessas considerações, é possível indicar as inovações observadas
no processo narrativo dessa obra de Clarice Lispector, bem como a importância e significação
de sua produção literária.
Mediante o estudo realizado sobre os personagens acima citados, observa-se como
principal inovação, a presença do narrador-escritor Rodrigo S.M., ou seja, Lispector abdica
do narrador onisciente tradicional, e cria um narrador-escritor para contar a história da
emigrante nordestina. A narrativa é predominantemente em primeira pessoa, Rodrigo conta a
história de Macabéa, encaixando também, no enredo do romance, sua própria história e o
processo de construção da sua narrativa. O narrador elege a ironia e a metalinguagem como
principal recurso para tecer seu texto, dividindo ainda, com o leitor o processo de construção
de sentido da obra, conferindo ao romance, A hora da estrela, o caráter de modernidade que
lhe é tão peculiar. Desta feita, na narrativa clariceana, o leitor é peça fundamental para a
concretização da obra. Está em suas mãos perceber as sutilezas do processo de construção do
texto literário.
Desse modo, o que se vê em A hora da estrela, também de fundamental importância, é
o relato da vida de uma jovem nordestina que vive desajustada e quase ao desamparo na
cidade do Rio de Janeiro, e cuja existência é contada por um narrador que, se vê
inconformado com o rumo dado por Macabéa à sua vida, ao mesmo tempo em que reflete
sobre os sonhos, as manias e os conflitos internos da garota. A história de Macabéa, a criação
de escritor fictício, assim como, a abordagem das questões sociais são elementos de suma
importância na obra de Clarice Lispector. Porém, o que faz a diferença neste romance é a
forma como a autora organizou esta história.
O processo de construção do romance ocorre por meio de um procedimento, no qual o
narrador Rodrigo S.M, ora é o agente que narra, ora é o agente narrado, assim como também,
acaba se espelhando na história da própria Macabéa. Com esse jogo de identidade, Rodrigo S.
M. vai criando a história praticamente à vista do leitor, a história que ele conta é o resultado
gradual de uma descoberta que foi fazendo aos poucos, movido, de certo modo, pela
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lembrança e por descobertas intuitivas. E assim como a personagem Macabéa, o narrador
também está em busca de si mesmo, em busca de uma identidade; ao mesmo tempo em que se
identifica com a realidade da moça, sente também estranhamento ao interagir com ela, oscila
entre identificação e afastamento.
Ainda falando do narrador do romance, outro aspecto diferenciador da obra de
Lispector é a sua técnica narrativa, na qual ela por meio do seu narrador-escritor vai
mostrando as personagens aos poucos, em flashes, dando ao leitor retratos, como ele mesmo
declara, de Macabéa, em meio as reflexões sobre sua vida e sobre o ato de escrever.
Desta feita, Clarice Lispector em seu romance A hora da estrela, inventa adjetivo,
cria palavras, modifica verbos, para dar “vida” às suas personagens fictícias, narradas tão
profundamente que realidade e ficção se confundem, atestando ao romance um caráter de
verossimilhança muito forte nesta obra clariceana.
Observamos também na obra estudada que, por meio da caracterização de Macabéa, são
denunciadas as mazelas sofridas pelos pobres desamparados. No isolamento social da moça
nordestina percebe-se o isolamento de toda uma classe social, especialmente as das mulheres
trabalhadoras que não conseguem sobreviver dignamente com os seus salários. Ao narrá-la,
Rodrigo trás a tona algumas questões como: a fome, a miséria, a dor, a invisibilidade social, e
fato de milhares de pessoas sofrerem com uma vida desajustada, não só nordestinos, mas
milhares de brasileiros.
Em A hora da estrela, Lispector retrata um pouco mais a realidade social, não de
forma tão explícita, mas sim nas entrelinhas do texto. Pode-se notar isso, por exemplo,
quando fala do médico de pobres, do consumismo, da prostituição da mulher e também, na
própria história de Macabéa, que é a história de milhares de nordestinos, que vão para a
cidade grande tentar uma vida melhor, mas acabam, na maioria das vezes, passando por
situações bem piores do que as vividas em sua terra natal. Se essas pessoas são insignificantes
onde vivem, serão mais ainda na cidade grande. Assim é a história de Macabéa, uma moça
nordestina em uma cidade toda feita contra ela, o Rio de Janeiro.
Por fim, na obra A hora da estrela, Clarice Lispector a partir de um olhar perspicaz
para as questões sociais, que afligem especialmente o mundo feminino, assume também a
postura de que a obra literária é feita de palavras, mas estas trazem um sentido secreto que as
ultrapassam, portanto com uma linguagem literária assumida como tal pôde demonstrar por
meio da personagem Macabéa as dificuldades que os imigrante e outros indivíduos que não
tiveram educação formal suficiente nem emprego digno vivem e sentem em um contexto
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social abalado pela modernização emergente. Ao apresentar a personagem Macabéa, o
narrador traz para o centro de sua discussão esse ser excluído, denunciando toda carga de
preconceito que está por trás dos estereótipos construídos em torno dessa figura. A imagem de
Macabéa retratada no romance A hora da estrela demonstra o quanto a propagação de
estereótipos sobre determinados grupos resultam em efeitos negativos na trajetória social
desses sujeitos. Assim, a trajetória de Macabéa na cidade grande, corresponde às
classificações reducionistas e pejorativas que nos fazem refletir sobre os estereótipos que
causam a exclusão social de tantos indivíduos espalhados pelo mundo afora.
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