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Sofia Marisa Alves Bergano SER E TORNAR-SE MULHER: GERAÇÃO, EDUCAÇÃ E IDENTIDADE(S) FEMININA(S) Dissertação de Doutoramento em Ciências da Educação, especialização em Educação Permanente e Formação de Adultos, apresentada à Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, sob a orientação da Professora Doutora Cristina Maria Coimbra Vieira. Março de 2012

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    Sofia Marisa Alves Bergano

    SER E TORNAR-SE MULHER: GERAO, EDUCAO E IDENTIDADE(S) FEMININA(S)

    Dissertao de Doutoramento em Cincias da Educao, especializao em Educao

    Permanente e Formao de Adultos, apresentada Faculdade de Psicologia e de

    Cincias da Educao da Universidade de Coimbra, sob a orientao da Professora

    Doutora Cristina Maria Coimbra Vieira.

    Maro de 2012

  • Ser e tornar-se mulher:

    Educao, gerao e identidade de gnero

    Sofia Marisa Alves Bergano

    Dissertao de Doutoramento em Cincias da Educao,

    especializao em Educao Permanente e Formao de

    Adultos, apresentada faculdade de Psicologia e de Cincias da

    Educao da Universidade de Coimbra, sob a orientao da

    Professora Doutora Cristina Maria Coimbra Vieira.

    Coimbra, 2012

  • Dedicatria

    Aos meus pais que sempre me ensinaram que

    as pessoas, apesar da sua individualidade,

    so sempre mais iguais do que diferentes.

    minha famlia, especialmente s mulheres

    sempre presentes na minha vida, que me

    acompanharam e ajudaram a crescer, num

    ambiente em que a diversidade dos modelos

    femininos me ensinou que existem muitas

    formas de sermos e de nos tornarmos

    mulheres.

    memria da minha av Maria.

  • Agradecimentos

    Neste longo processo o apoio das muitas das pessoas que preenchem o nosso

    quotidiano relevou-se uma ajuda imensa, sem a qual os nossos objectivos no teriam

    sido atingidos. A todas elas o meu muito obrigado. Estas ajudas assumiram as mais

    diversas formas e todas elas se revelaram, em momentos diferentes, o impulso e a

    confiana necessrios para levar a cabo esta tarefa, neste sentido, gostaramos de

    expressar a nossa gratido, reconhecimento e admirao.

    Professora Doutora Cristina Maria Coimbra Vieira, por tudo o que me

    ensinou, pela integridade intelectual e cientfica que foi para ns um exemplo, pela

    forma como sempre me apoiou e incentivou, mesmo nos momentos em que esta tarefa

    nos pareceu maior do que as nossas capacidades, pelo entusiasmo com que acolheu o

    nosso projecto e pelas oportunidades formativas que sempre colocou ao meu dispor, o

    meu muito obrigada e um reconhecimento e admirao profundos.

    Aos docentes do Departamento de Cincias de Educao da Escola Superior de

    Educao do Instituto Politcnico de Bragana, pelo apoio e disponibilidade com que

    partilharam os seus saberes e me apoiaram num percurso profissional que constituiu

    uma oportunidade de desenvolvimento profissional e acadmico.

    Ao Professor Doutor Henrique Ferreira, pelo apoio disponibilidade para nos

    ouvir e acompanhar nas reflexes em torno das questes de gnero e da sua presena

    nos quotidianos profissionais e de vida.

    Mestre Graa Santos, pela amizade e apoio constantes, pelo exemplo de

    conciliao da vida profissional e familiar e sobretudo pela serenidade e amabilidade

    com que enfrenta as situaes adversas e ainda pela possibilidade que o trabalho em

    equipa nos trouxe de consolidar uma amizade que tanto nos enriquece.

    Mestre Carla Lima e Dr. Patrcia Bernardo, pela disponibilidade e apoio que

    sempre demonstraram.

    Neste grupo gostaria tambm de referir o Professor Doutor Jos Manuel Ribeiro

    Alves que acompanhou os nossos primeiros anos de trabalho e foi um professor

    inigualvel, do ponto de vista intelectual e acadmico, mas tambm pelas suas

  • viii

    qualidades pessoais que constituem, para ns, um exemplo de determinao e de

    superao.

    minha famlia, especialmente aos meus pais, Carminda e Jos, por todo o

    incentivo e especialmente porque mesmo penalizados com as minhas ausncias, nunca

    me fizeram sentir que estava em falta.

    Ao Nelson, pelo companheirismo e pela militncia exemplar no que se refere

    igualdade de gnero na famlia e na partilha das responsabilidades familiares, atitude

    fundamental para esta tarefa e para a nossa vida em comum.

    minha irm Sandra e ao meu irmo Rui, pelo apoio e tambm pela

    oportunidade da partilha dos nossos percursos de crescimento juntos, com a

    cumplicidade dos irmos e imensa partilha de brincadeiras de meninas e tambm de

    meninos, vivi com eles tantas coisas que agradeo e que nos tornam to parecidos e

    simultaneamente to diferentes.

    tia Rosa, tia So e tia Z pelos exemplos de que se pode ser mulher das

    formas mais diversas e sempre solidrias.

    Aos meus sobrinhos, Gonalo, Leonor e Julieta, pela alegria que s as crianas

    trazem s nossas vidas.

    s amigas Sandra Cabral e Ana Alves pela pacincia e incentivo constantes,

    pelo nimo e sobretudo pela amizade e disponibilidade.

    s mulheres que participaram no estudo, sem elas e sem a sua disponibilidade

    para partilharem as suas vidas e as suas interpretaes acerca do que ser mulher, este

    trabalho perderia todo o seu sentido. Gostaramos ainda de sublinhar que a sua simpatia

    e o sentido de partilha foi uma inspirao que nos acompanhou e deu nimo para a

    realizao deste trabalho.

    Professora Doutora Conceio Ramos e Professora Doutora Sofia Neves

    pela disponibilidade para analisarem o guio da entrevista por ns elaborado e pelo

    enriquecimento que as suas sugestes trouxeram ao nosso estudo.

  • ix

    Mestre Cristina Mesquita-Pires pela troca de impresses sobre a entrevista e

    sobre a conduo da situao de entrevista, conselhos muito teis para a recolha e

    tratamento dos nossos dados.

    Aos nossos alunos e alunas das licenciaturas e dos mestrados que constituem o

    verdadeiro desafio profissional que nos faz continuar a aprender.

    A Direco da Escola Superior de Educao pelo apoio institucional e incentivo.

    E especialmente Senhora Directora da Escola Superior de Bragana pelo exemplo de

    liderana no feminino e pelo entusiasmo transmitido ao longo do desenvolvimento deste

    trabalho.

  • RESUMO

    Neste trabalho a educao e formao de pessoas adultas na promoo da

    igualdade de gnero assume-se como rea central para a qual pretendemos dar um

    pequeno contributo. De acordo como a perspectiva que define a educao de adultos/as

    num sentido lato, nossa inteno perceber, atravs da anlise do discurso de mulheres

    adultas, como que as questes relacionadas com as aprendizagens de gnero

    percorrem as suas vidas, participam na (re)construo da(s) sua(s) identidade(s)

    enquanto mulheres e justificam as opes e oportunidades que tiveram ao longo do seu

    trajecto.

    De acordo com os objectivos do trabalho, a nossa opo metodolgica

    enquadrvel num paradigma de investigao interpretativo. Neste sentido, o recurso a

    uma estratgia qualitativa de pesquisa justifica-se sobretudo pelo objectivo de tentarmos

    compreender a forma como as pessoas entrevistadas definem o ser mulher e tornar-se

    mulher. Assim, na planificao da nossa investigao emprica, o estudo de casos

    mltiplos afigurou-se como uma opo metodolgica que respeita os pressupostos

    tericos e epistemolgicos que nos orienta nesta interpretao de significados. A

    escolha de trs famlias diferentes, do ponto de vista econmico e sociocultural, e a

    seleco de trs mulheres de diferentes geraes (av, me e neta) em cada uma dessas

    famlias, permitiu-nos entrevistar directamente e de forma prolongada nove mulheres de

    idades muito distintas.

    A tcnica de recolha de dados seleccionada foi a entrevista semiestruturada. Esta

    tcnica permite, de uma forma privilegiada, aceder aos discursos das participantes e

    recolher informaes relativas aos seus sentimentos, opinies e especificidades das suas

    vidas, que no seriam acessveis atravs de um instrumento de recolha de dados mais

    estruturado, completamente pr-definido pela pessoa do investigador.

    Com este desenho de investigao pretendemos perceber como as

    particularidades dos contextos histricos, econmicos e socioculturais podem,

    eventualmente, influenciar a interpretao que as participantes fazem de si enquanto

    mulheres, e de que modo podem condicionar as possibilidades e oportunidades

    subjacentes s decises relativas gesto das suas vidas. Torna-se, assim, tambm

    possvel averiguar at que ponto se verificam mudanas ou semelhanas entre as trs

    geraes de mulheres relativamente s questes da (re)construo da(s) identidade(s) de

    gnero.

  • xii

    Esta dissertao encontra-se dividida em duas partes. Na primeira

    Enquadramento Terico feita a reviso da literatura cientfica em torno de trs

    aspectos que consideramos fundamentais, a saber: (I) Do sexo ao gnero: as leituras da

    diferena entre homens e mulheres; (II) (Re)construo da(s) identidade(s) de gnero; e

    (III) Construo social dos esteretipos de gnero: das interpretaes tericas aos

    indicadores reais. A segunda parte do trabalho descreve o estudo emprico levado a

    cabo e est organizada em cinco captulos, designadamente: (I) Concepo,

    planeamento e caracterizao metodolgica da investigao, em que se justificam e

    fundamentam as opes metodolgicas que estruturam o estudo; (II) Metodologia, em

    que se descrevem pormenorizadamente os procedimentos inerentes implementao e

    conduo do estudo; (III) Construo das categorias de anlise, em que se descrevem a

    lgica e os procedimentos relativos anlise de contedo dos discursos das nossas

    participantes; (IV) Apresentao dos Resultados, que pretende ser a descrio da

    informao obtida atravs das entrevistas, devidamente organizada em funo das

    categorias de anlise definidas; e, por fim, (V) Nascer menina, tornar-se mulher, que

    procura ser uma sntese interpretativa, construda a partir dos discursos das

    participantes.

    No que concerne s principais concluses do nosso estudo, parece-nos

    importante realar que tanto a pertena a diferentes geraes como a pertena a

    diferentes grupos socioculturais e econmicos parecem diferenciar as nossas

    participantes, relativamente s motivaes para trabalhar fora de casa, diviso das

    tarefas domsticas, interpretao das diferenas entre homens e mulheres e aos

    sentimentos associados a estas diferenas. No entanto, parece no haver muitas

    diferenas intergeracionais ou de pertena social no que respeita valorizao da

    maternidade, que definida por todas as participantes como sendo o papel mais

    importante na vida das mulheres, atribuio mulher das tarefas domsticas e de

    cuidado com os/as filhos. Um outro aspecto que emergiu da anlise dos discursos das

    nossas participantes a prevalncia, mais ou menos implcita, de estereotipias de gnero

    relativamente s escolhas profissionais, s caractersticas psicolgicas atribudas a

    homens e a mulheres e valorizao das caractersticas tidas como masculinas. No

    seguimento destas constataes, consideramos que a educao de pessoas adultas se

    assume como uma estratgia fundamental para a promoo da igualdade de gnero, no

    sentido de eliminar todas as formas de discriminao (de gnero ou outras) ainda

    vividas por mulheres e homens em diferentes esferas da vida.

  • ABSTRACT

    In this work, education and training of adults for the promotion of gender

    equality is assumed as a central area in which we intend to give a small contribution.

    According to the perspective that defines adult education in the broadest sense, we

    intend to understand, through the analysis of the discourse of adult women, how the

    issues related to gender learning traverse their lives, participating in (re)building their

    identity(ies) as women and justify the choices and opportunities that they had along

    their lives.

    In accordance with the objectives of the work, our choice has fallen into a

    methodology of interpretative research paradigm. In this sense, the use of a qualitative

    research strategy is mainly justified by the objective of trying to understand how the

    interviewees define what is being a women and becoming a woman. Thus, in the

    planning of our empirical research, the study of multiple cases appeared as a

    methodological approach that respects the theoretical and epistemological assumptions

    that guides us in this interpretation of meanings. The choice of three different families,

    from an economic and socialcultrul standpoint and the selection of three women of

    different generations (grandmother, mother and grandmother) in each of these families

    allowed us to interview directly and for a prolonged time, nine women of distinct ages.

    The technique selected for data collection was the semi-structured interview.

    This technique allows in a privileged manner, to access the speeches of the participants

    and it also permits us to gather information about their feelings, opinions and

    characteristics of their lives that would not be accessible if we used a more structured

    tool for collecting data, completely pre-defined by the investigator.

    With this research design we want to see how the particularities of the historical,

    economic and socio-cultural contexts may eventually influence the interpretation that

    the participants make of themselves as women, and how they might influence the

    possibilities and opportunities underlying the decisions concerning the management of

    their lives. It is therefore also possible to ascertain to what extent there are changes or

    similarities between the three generations of women on the issue of (re)building gender

    identity(ies).

    This thesis is divided into two parts. In the first Theoretical Framework we

    review the scientific literature on three aspects that we consider fundamental, namely:

    (I) From sex to gender: the readings of the difference between men and women, (II)

    (Re)Building gender identity(ies) and (III) Social construction of gender stereotypes:

  • xiv

    from theoretical interpretations to real indicators. The second part of the paper describes

    the empirical study carried out, which is organized into five chapters, namely: (I)

    Design, planning and characterization of the methodology of research, which justify and

    underlie the methodological choices that shape the study, (II) Methodology, which

    describes in detail the procedures involved in the implementation and conduct of the

    study, (III) Construction of the categories of analysis, which describes the logic and

    procedures of content analysis of speeches of our participants, (IV) Presentation of the

    Results, which aims to be the description of the information obtained through interviews

    properly organized according to categories of analysis defined, and finally, (V) Born as

    a girl, becoming a Woman, which seeks to be an interpretive synthesis constructed from

    the speeches of the participants.

    Regarding the main conclusions of our study, it seems to us important to note

    that belonging to different generations and to distinct socio-cultural and economic

    groups appear both to differentiate our participants, on the motivations to work outside

    the home, the division of housework, the interpretation of differences between men and

    women and the feelings associated with these differences. However, there doesnt seem

    to exist many intergenerational differences related to social belonging in what concerns

    the appreciation of motherhood, which is defined by all participants as the most

    important role in the lives of women. There are also similarities in discourses of the

    participants in relation to the attribution to women related to the responsibilities of

    domestic chores including caring for the children. Another aspect that emerged from the

    analysis of our participants speeches is the prevalence of gender stereotypes with regard

    to career choices, the psychological characteristics attributed to men and women and the

    appreciation of features considered as masculine.

    Following these findings, we believe that adult education and training should be

    assumed as a key strategy for promoting gender equality and for the elimination all

    forms of discrimination (gender based or others) that are still experienced by women

    and men in different spheres of life.

  • ndice

    IINNTTRROODDUUOO GGEERRAALL ..................................................................................................... I

    PPRRIIMMEEIIRRAA PPAARRTTEE EENNQQUUAADDRRAAMMEENNTTOO TTEERRIICCOO .......................................................................................................... 1133

    CAPTULO I DO SEXO AO GNERO: AS LEITURAS DA DIFERENA ENTRE

    HOMENS E MULHERES .................................................................................................... 15

    INTRODUO ............................................................................................................. 17

    1. Reflexes em torno do conceito de gnero ............................................................. 20

    2. As diferenas entre homens e mulheres: o fundamento biolgico na

    interpretao das diferenas entre homens e mulheres ................................................ 30

    3. As diferenas de gnero na perspectiva psicanaltica: contributos e

    limitaes .................................................................................................................. 34

    4. As diferenas de gnero na perspectiva da psicomtrica: tentativas de

    quantificar a diferena ............................................................................................... 41

    5. A leitura sociolgica das diferenas de gnero: os papis sociais na

    gnese da diferena .................................................................................................... 45

    6. Da insuficincia da dualidade para a anlise do gnero ........................................... 49

    7. A ideologia na diferenciao hierrquica de gnero ................................................ 55

    8. A teoria do construcionismo social na compreenso das diferenas de

    gnero ....................................................................................................................... 64

    CONCLUSO .............................................................................................................. 68

    CAPTULO II (RE)CONSTRUO DA(S) IDENTIDADE(S) DE GNERO ................................. 71

    INTRODUO ............................................................................................................. 73

    1. A identidade: das perspectivas essencialistas ao processo de

    (re)construo do eu .................................................................................................. 74

    2. A identidade de gnero .......................................................................................... 85

    2.1. A classe social e Identidade de Gnero ................................................................ 88

    2.2. O desenvolvimento da Identidade de Gnero ao Longo da Vida .......................... 91

    2.3. O corpo, a sexualidade e a identidade de gnero ................................................ 106

    CONCLUSO ............................................................................................................ 112

    CAPTULO III CONSTRUO SOCIAL DOS ESTERETIPOS DE GNERO: DAS

    INTERPRETAES TERICAS AOS INDICADORES REAIS .................................................. 115

    INTRODUO ........................................................................................................... 117

    1. Esteretipos de gnero: dos processos de estereotipia s suas

    implicaes na vida de homens e mulheres .............................................................. 119

  • viii

    2. Dos esteretipos de gnero desigualdade na educao escolar ............................ 128

    2.1. A responsabilidade da escola na promoo da igualdade de gnero.................... 138

    3. A famlia como espao de desigualdade na socializao em funo do

    gnero ..................................................................................................................... 143

    3.1. A questo da conciliao trabalho-famlia ......................................................... 151

    4. Indicadores de desigualdade de gnero em contexto laboral ................................. 155

    5. As mulheres e a liderana poltica ........................................................................ 162

    CONCLUSO ............................................................................................................ 168

    SSEEGGUUNNDDAA PPAARRTTEE IINNVVEESSTTIIGGAAOO EEMMPPRRIICCAA ................................................................................................................ 117711

    CAPTULO I CONCEPO, PLANEAMENTO E CARACTERIZAO

    METODOLGICA DA INVESTIGAO ............................................................................. 173

    INTRODUO ........................................................................................................... 175

    1. A investigao qualitativa como opo metodolgica ........................................... 176

    1.1. O percurso histrico e epistemolgico da investigao qualitativa ..................... 178

    1.2. Os objectivos da investigao qualitativa .......................................................... 184

    1.3. A investigao qualitativa e a tradio feminista ............................................... 186

    1.4. A credibilidade da investigao qualitativa ........................................................ 192

    2. O Desenho de investigao: estudo de casos mltiplos ......................................... 197

    3. A tcnica de recolha de dados: a entrevista semiestruturada na

    investigao qualitativa............................................................................................ 203

    3. 1. Refleces e consideraes ticas associadas entrevista ................................. 211

    4. O tratamento da informao recolhida: a opo pela anlise de contedo .............. 212

    CONCLUSO ............................................................................................................ 218

    CAPTULO II METODOLOGIA ........................................................................................ 221

    INTRODUO ........................................................................................................... 223

    1. Participantes: casos a estudar ............................................................................... 224

    1.1. A classe social .................................................................................................. 225

    1.2. A gerao ......................................................................................................... 232

    1.3. Caracterizao das participantes ........................................................................ 233

    1.3.1. Famlia 1 ........................................................................................................ 235

    1.3.2. Famlia 2 ........................................................................................................ 237

    1.3.3. Famlia 3 ........................................................................................................ 238

    2. Tcnica de recolha de dados ................................................................................. 240

    2.1.O processo de construo do guio de entrevista semiestruturada ....................... 240

    2.2. A situao de entrevista .................................................................................... 242

    2.3. As questes ticas emergentes no estudo ........................................................... 244

  • ix

    2.4. O processo de transcrio das entrevistas .......................................................... 245

    CONCLUSO ............................................................................................................ 246

    CAPTULO III CONSTRUO DAS CATEGORIAS DE ANLISE .......................................... 249

    INTRODUO ........................................................................................................... 251

    1. A lgica subjacente construo das categorias de anlise de contedo................ 252

    CONCLUSO ............................................................................................................ 268

    CAPTULO IV APRESENTAO DOS RESULTADOS ......................................................... 271

    INTRODUO ........................................................................................................... 273

    1. Ser mulher: a definio e interpretao da feminilidade ........................................ 274

    1.1. Lentes de interpretao biofisiolgica das diferenas entre os sexos .................. 275

    1.2. Lentes de interpretao psicolgica das diferenas entre os sexos ...................... 278

    1.3. Lentes de interpretao dos papis sociais das diferenas entre os

    sexos ....................................................................................................................... 284

    2. Identidade de gnero: processos de (re)construo da(s) identidade(s) de

    gnero ..................................................................................................................... 291

    2.1. Perspectivas essencialistas na interpretao da identidade de gnero .................. 292

    2.2. Perspectivas associadas aprendizagem social na interpretao da

    identidade de gnero ................................................................................................ 293

    2.2.1. A aprendizagem do gnero em contexto familiar ............................................ 293

    2.2.2. A aprendizagem do gnero em contexto escolar ............................................. 300

    2.2.3. A influncia dos mass media na aprendizagem do gnero ............................... 301

    2.2.4. A influncia dos grupos de pares na aprendizagem do gnero ......................... 303

    2.2.5. A influncia de outros modelos de feminilidade ou de masculinidade ............. 305

    2.2.6. A percepo do conflito entre os modelos de feminilidade .............................. 306

    2.3. As evidncias da interseccionalidade na definio da identidade de

    gnero ..................................................................................................................... 307

    2.4. A percepo das mudanas identitrias associadas s transies de

    vida ......................................................................................................................... 316

    2.5. A maturidade, o envelhecimento fsico e as transformaes

    identitrias associadas .............................................................................................. 325

    2.6. A interpretao do corpo, da intimidade e da sexualidade .................................. 326

    3. Os esteretipos de gnero: a sua manuteno e reproduo ................................... 332

    3.1. A escola e a sua participao na construo das desigualdades de

    gnero ..................................................................................................................... 333

    3.1.1. A organizao escolar .................................................................................... 333

    3.1.2. As relaes com os/as professores/as .............................................................. 337

    3.1.3. A percepo sobre o desempenho escolar ....................................................... 339

  • x

    3.1.4. O percurso escolar.......................................................................................... 341

    3.1.5. O alheamento da escola ao combate s desigualdades de gnero ..................... 346

    3.2. Os grupos de pares como espaos de aprendizagem de gnero ........................... 348

    3.2.1. As interaces entre pares femininos .............................................................. 349

    3.2.2. A interaces entre pares masculinos.............................................................. 350

    3.2.3. As interaces entre pares mistos ................................................................... 351

    3.2.4. A performatividade de gnero no grupo de pares ............................................ 354

    3.2.5. A valorizao das amizades ............................................................................ 354

    3.2.6. A valorizao do masculino no grupo de pares ............................................... 355

    3.3. A famlia como espao gendrificado ................................................................. 357

    3.3.1 A famlia durante a infncia ............................................................................ 357

    3.3.1.1. A educao de meninas e meninos ............................................................... 357

    3.3.1.2. A diferenciao das tarefas atribudas a meninos e meninas ......................... 360

    3.3.1.3. A diferenciao das actividades ldicas ....................................................... 362

    3.3.2. A famlia durante a adolescncia .................................................................... 363

    3.3.2.1. A diferenciao das tarefas para rapazes e raparigas .................................... 364

    3.3.2.2. A diferenciao percebida no processo de autonomizao

    enquanto mulher (em termos individuais e sociais)................................................... 365

    3.3.2.3. O sentimento face diferena em contexto familiar na

    adolescncia ............................................................................................................ 369

    3.3.3. A famlia na idade adulta................................................................................ 369

    3.3.3.1. A diferenciao das tarefas atribudas a homens e mulheres ......................... 369

    3.3.3.2. A conjugalidade .......................................................................................... 376

    3.3.3.3. A conciliao da vida familiar com a vida profissional ................................ 379

    3.3.3.4. O sentimento face diferena em contexto familiar na idade

    adulta ...................................................................................................................... 384

    3.3.3.5. A valorizao do masculino em contexto familiar ........................................ 387

    3.3.4. A atribuio de significados aos papis familiares e hierarquizao

    dos papis ................................................................................................................ 388

    3.3.4.1. A mulher como filha ................................................................................... 390

    3.3.4.2. A mulher como esposa ................................................................................ 392

    3.3.4.3. A mulher como me .................................................................................... 394

    3.3.4.5. A mulher como av e como neta ................................................................. 395

    3.4. A percepo sobre a relao da mulher com o mundo do trabalho ..................... 396

    3.4.1. As profisses consideradas femininas ............................................................. 396

    3.4.2. As profisses consideradas masculinas ........................................................... 398

    3.4.3. As profisses consideradas mistas .................................................................. 400

  • xi

    3.4.4. As questes salariais ...................................................................................... 401

    3.4.5. Os factores de desvantagem profissional para as mulheres .............................. 403

    3.4.6. Os factores de vantagem profissional para as mulheres ................................... 404

    3.4.7. As relaes com os colegas de trabalho .......................................................... 405

    3.4.8. A valorizao da carreira por parte das mulheres ............................................ 406

    3.4.9. O peso da famlia nas decises de carreira ...................................................... 409

    3.4.10. O sentimento face diferena em contexto laboral ....................................... 410

    3.5. As vises sobre a participao poltica e cvica das mulheres ............................. 413

    3.5.1. A conscincia do percurso histrico desigual para homens e

    mulheres .................................................................................................................. 413

    3.5.2. A importncia da participao das mulheres ................................................... 414

    3.5.3. O activismo poltico das mulheres .................................................................. 415

    3.5.4. A opinio face Lei da Paridade .................................................................... 415

    3.5.5 A participao cvica e comunitria das mulheres ............................................ 417

    3.6. As actividades desportivas e de lazer ................................................................. 418

    3.6.1. A constatao de diferenas entre os sexos ..................................................... 418

    3.6.2. Os sentimentos face s diferenas entre rapazes e raparigas nas

    actividades desportivas e de lazer ............................................................................. 420

    3.7. Outros contextos de interaco social ................................................................ 421

    3.7.1. Os sentimentos face diferena em contextos diversos da vida

    social ....................................................................................................................... 423

    CONCLUSO ............................................................................................................ 425

    CAPTULO V NASCER MENINA, TORNAR-SE MULHER .................................................... 431

    INTRODUO ........................................................................................................... 433

    1. O que , afinal, ser mulher? ............................................................................. 434

    2. O desenvolvimento da(s) identidade(s) de gnero das mulheres........................ 436

    3. Os esteretipos de gnero na vida das mulheres ............................................... 441

    4. Reflexes em torno das possveis implicaes educativas deste

    estudo.................................................................................................................. 444

    CONCLUSO ............................................................................................................ 449

    CCOONNCCLLUUSSOO GGEERRAALL ...................................................................................................................................................................................................... 445511

    RREEFFEERRNNCCIIAASS BBIIBBLLIIOOGGRRFFIICCAA ................................................................................................................................................................ 446699

    AANNEEXXOOSS.................................................................................................................................................................................................................................................. 449955

    ANEXO 1: GUIO DA ENTREVISTA ................................................................................ 497

    ANEXO 2: CLASSIFICAO PORTUGUESA DAS PROFISSES ........................................... 503

  • xii

    ANEXO 3: CONSENTIMENTO INFORMADO ..................................................................... 507

    ANEXO 4: ESQUEMAS ORGANIZADORES DO PROCESSO DE CATEGORIZAO

    DA ANLISE DE CONTEDO .......................................................................................... 511

    ANEXO 5: ANLISE DE CONTEDO DAS ENTREVISTAS .................................................. 517

  • xiii

    ndice de Quadros1

    Quadro 1: Pressupostos Fundamentais para uma Cincia Construcionista Social...................... 64

    Quadro 2: Idade Mdia da Me ao Nascimento do Primeiro Filho ......................................... 102

    Quadro 3: Taxa de Natalidade ............................................................................................... 103

    Quadro 4: Percentagem dos alunos matriculados ................................................................... 130

    Quadro 5: Nvel de escolaridade da populao residente em Portugal com mais de

    15 anos por sexo (%) ......................................................................................... 131

    Quadro 6: Alunos do sexo feminino matriculadas no ensino superior: total e por

    rea de educao e formao (%) ....................................................................... 132

    Quadro 7: Obteno do grau de doutoramento por sexo (%) .................................................. 133

    Quadro 8:Taxa de feminizao dos diplomados em Portugal por rea de educao e

    formao ........................................................................................................... 140

    Quadro 9: Taxa de actividade das mulheres com filhos .......................................................... 149

    Quadro 10: Diviso das tarefas domsticas ............................................................................ 153

    Quadro 11: Horas despendidas em tarefas domsticas em casais em que ambos

    trabalham .......................................................................................................... 154

    Quadro 12: Tempo de trabalho semanal da populao com emprego, por sexo ...................... 154

    Quadro 13: Salrio mdio mensal dos trabalhadores por conta de outrem:

    remunerao base e ganho por sexo ................................................................... 156

    Quadro 14: Ganho mdio mensal dos trabalhadores do sexo feminino e do sexo

    masculino por conta de outrem: por nvel de qualificao e do ganho

    feminino em relao ao ganho masculino .......................................................... 157

    Quadro 15: Populao empregada do sexo masculino e do sexo feminino: a tempo

    completo e parcial em Portugal (%) .................................................................. 158

    Quadro 16: Populao empregada a tempo parcial por sexo em Portugal e na Unio

    Europeia (%) ..................................................................................................... 158

    Quadro 17: Distribuio por sexo das lideranas nos negcios em 2008 (%) .......................... 159

    Quadro 18: Distribuio por sexo dos membros dos mais altos rgos decisrios

    das maiores empresas cotadas na bolsa em 2009 (%) ......................................... 159

    Quadro 19: Queixas CITE, desagregadas por assunto (2006-2010) ..................................... 161

    Quadro 20: Membros de direco eleitos para associao sindical e comisses de

    trabalhadores, por sexo 2010 (%)....................................................................... 162

    Quadro 21: Mandatos nas eleies para a Assembleia da Repblica em Portugal:

    por sexo (%) ...................................................................................................... 167

    1 A numerao dos quadros contnua em todo o trabalho.

  • xiv

    Quadro 22: Indivduos eleitos no Governo Central, Ministros, Secretrios de

    Estado, por Sexo ............................................................................................... 167

    Quadro 23: Classificaes dos tipos de Anlise de Contedo ................................................. 214

    Quadro 24: Caracterizao socioprofissional dos casais da primeira gerao de

    participantes ...................................................................................................... 228

    Quadro 25: Nvel de escolaridade dos casais da primeira gerao de participantes ................. 228

    Quadro 26: Caracterizao socioprofissional dos casais da segunda gerao de

    participantes ...................................................................................................... 229

    Quadro 27: Nvel de escolaridade dos casais da segunda gerao de participantes ................. 229

    Quadro 28: Caracterizao socioprofissional dos casais da terceira gerao de

    participantes ...................................................................................................... 230

    Quadro 29: Nvel de escolaridade dos casais da terceira gerao de participantes ................... 231

    Quadro 30: Critrios de seleco dos participantes da investigao ........................................ 233

    Quadro 31: Caracterizao das participantes quanto idade .................................................. 233

    Quadro 32: Caracterizao das participantes quanto escolaridade........................................ 234

    Quadro 33: Caracterizao das participantes quanto profisso ............................................. 234

    Quadro 34: Local de realizao das entrevistas ...................................................................... 243

    Quadro 35: Tempo das entrevistas e dimenso das transcries ............................................. 246

    Quadro 36: Domnios de Anlise........................................................................................... 252

    Quadro 37: Subcategorias da categoria Lentes de interpretao biofisiolgica ....................... 257

    Quadro 38: Subcategorias da categoria Lentes de interpretao psicolgica .......................... 257

    Quadro 39: Subcategorias da categoria Lentes de interpretao dos papis sociais ................ 258

    Quadro 40: Subcategorias da categoria Perspectivas ligadas aprendizagem social .............. 259

    Quadro 41: Subcategorias da categoria Interaco do gnero com outras

    categorias ......................................................................................................... 260

    Quadro 42: Subcategorias da categoria (Re)construo da identidade feminina .................... 261

    Quadro 43: Subcategorias da categoria Interpretao do corpo, da intimidade e da

    sexualidade ....................................................................................................... 261

    Quadro 44: Subcategorias da categoria Escola....................................................................... 263

    Quadro 45: Subcategorias da categoria Grupo de pares ......................................................... 263

    Quadro 46: Subcategorias da categoria A famlia durante a infncia ...................................... 264

    Quadro 47: Subcategorias da categoria A famlia durante a adolescncia .............................. 264

    Quadro 48: Subcategorias da categoria A famlia na idade adulta .......................................... 265

    Quadro 49: Subcategorias da categoria Atribuio de significado aos papis

    familiares e hierarquizao dos papis .............................................................. 265

    Quadro 50: Subcategorias da categoria Percepo sobre a relao da mulher com

    o mundo do trabalho ......................................................................................... 266

  • xv

    Quadro 51: Subcategorias da categoria Vises sobre a participao poltica e

    cvica ................................................................................................................ 266

    Quadro 52: Subcategorias da categoria Outros contextos de interaco social ....................... 267

    Quadro 53: Subcategorias da categoria Actividades desportivas e de lazer ............................. 267

    ndice de Figuras2

    Figura 1: Esquema organizador das categorias e subcategorias do domnio Ser

    mulher ................................................................................................................... 253

    Figura 2: Esquema organizador das categorias e subcategorias do domnio

    Identidade de gnero .............................................................................................. 254

    Figura 3: Esquema organizador das categorias e subcategorias do domnio

    Domnios de reproduo dos esteretipos de gnero .............................................. 255

    Figura 4: Categorias do domnio Ser mulher .......................................................................... 256

    Figura 5: Categorias do domnio Identidade de gnero .......................................................... 259

    Figura 6: Categorias do domnio Domnios de reproduo dos esteretipos de

    gnero .................................................................................................................... 262

    2 A numerao das figuras contnua em todo o trabalho.

  • IINNTTRROODDUUOO GGEERRAALL

  • INTRODUO GERAL

    As diferenas entre homens e mulheres so uma temtica que tem interessado

    no s a comunidade cientfica como tambm a sociedade em geral. O que define a

    feminilidade ou a masculinidade tem sido alvo de muita teorizao, inspirado a

    literatura, ao longo do tempo, e povoado o senso comum de um saber que procura

    justificar as situaes da vida humana, de forma mais ou menos directa, atravs da

    dualidade biolgica presente na espcie humana. A dualidade que marca o pensamento

    ocidental est presente na interpretao das diferenas de gnero e conceptualiza a

    humanidade como dividida em duas espcies com caractersticas prprias, separadas por

    uma essncia inata, tambm ela distinta. Compreender estas diferenas tem sido o

    objectivo de muita investigao e, neste processo de desenvolvimento terico, alguns

    mitos ou ideias apriorsticas do senso comum tm sido postas em causa. cada vez

    mais aceite que as diferenas que existem entre homens e mulheres so construdas

    socialmente, uma vez que a diferena biolgica no justifica as diferenas observadas

    nem a heterogeneidade intra-grupos, no que se refere s categorias homens e mulheres.

    Neste trabalho, a educao de pessoas adultas assume-se como rea central para

    a qual pretendemos dar um pequeno contributo. Consideramos a educao de adultos/as,

    luz da definio proposta pela UNESCO (1976; 1998), como a totalidade dos

    processos educativos organizados, qualquer que seja o seu contedo, nvel e mtodo,

    quer prolonguem ou substituam a educao inicial em escolas, institutos ou

    universidades, que compreendam qualquer aprendizagem, mediante os quais as pessoas

    consideradas como adultas, pelas sociedades a que pertencem, desenvolvem as suas

    capacidades, incrementam os seus conhecimentos, melhoram as suas qualificaes ou

    modificam os seus comportamentos, na dupla perspectiva do seu desenvolvimento

    pessoal pleno e da sua participao na vida social, econmica e cultural da comunidade

    em que vivem. Nesta perspectiva, a educao de adultos compreende a educao

    formal, a educao no formal e toda a gama de oportunidades de educao informal

    existentes numa sociedade educativa multicultural.

    De acordo com esta viso que define a educao de pessoas adultas num sentido

    lato, nosso objectivo perceber atravs da anlise do discurso de mulheres adultas como

    que as questes relacionadas com as aprendizagens de gnero percorrem as suas vidas,

    participam na (re)construo da(s) sua(s) identidade(s) enquanto mulheres e justificam

    as opes e oportunidades que tiveram ao longo do percurso.

  • 4 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero

    Um outro aspecto que nos parece muito relevante a tentativa de compreender

    como que as mulheres, como educadoras, participam na educao das geraes mais

    jovens relativamente s questes da mudana ou reproduo dos modelos de

    feminilidade ou de masculinidade. Neste sentido, est aqui presente uma dupla

    perspectiva de anlise que se, por um lado, procura dar nfase marca que os processos

    educativos deixaram na forma como as participantes do nosso estudo se interpretam

    como mulheres, por outro lado, visa tambm a indicao de reas de interveno no

    domnio da educao de pessoas adultas que tenham como objectivo a promoo da

    igualdade de gnero em todas as idades.

    A preocupao com a promoo da igualdade de gnero em populaes adultas

    decorre da nossa experincia profissional como docente do ensino superior na rea da

    formao de professores/as e de educadores/as sociais. Neste contexto, em que

    participam jovens adultos/as e adultos/as que retomaram os seus percursos de formao,

    tanto a nvel de licenciatura como de mestrado, muitas tm sido as situaes em que

    somos confrontada com exemplos em que, de forma mais ou menos implcita, parecem

    persistir algumas estereotipias de gnero. Tem sido, para ns, motivo de reflexo o facto

    de ver mulheres de todas as idades a condicionar as suas opes e projectos de futuro

    pelo facto de serem mulheres. E, paradoxalmente, foi-nos dada oportunidade de poder

    observar situaes em que algumas mulheres conciliam a famlia com os estudos e o

    trabalho, com uma determinao e esforo dignos de registo, por vezes indicador de

    alguma falta de estruturas de conciliao de todos estes domnios da vida, para que estas

    mulheres tivessem a oportunidade de o fazer de uma forma mais tranquila e mais

    compensadora.

    Um outro aspecto que nos motivou para a escolha desta temtica de investigao

    foi a constatao da persistncia de indicadores reais de desigualdade entre homens e

    mulheres, designadamente, os que dizem respeito s desigualdades laborais,

    subrepresentao das mulheres em determinadas reas de estudo no ensino superior (e

    dos homens noutras), ainda parca participao das mulheres nas esferas de deciso

    poltica, entre muitas outras. Neste sentido, pareceu-nos tambm que o investimento na

    rea da educao se afigura como indispensvel para colmatar a insuficincia dos

    mecanismos polticos para a promoo da igualdade de gnero, como por exemplo os

    Planos Nacionais para a Igualdade.

  • 5 Introduo Geral

    Apesar de considerarmos que os Planos anteriormente referidos tm constitudo

    uma importante fora dinamizadora da promoo da igualdade de gnero, consideramos

    que a investigao centrada no discurso das mulheres, reveladora das suas percepes e

    interpretaes, nos pode dar pistas importantes que visem uma interveno educativa

    mais especfica e contextualizada neste domnios.

    As questes de gnero so centrais neste trabalho, mais especificamente as que

    dizem respeito construo da(s) identidade(s) feminina(s) ao longo da vida. Propomos

    um percurso reflexivo que nos ajude a compreender a forma como as mulheres

    interpretam a feminilidade, como se tornaram nas mulheres que dizem ser, e qual o peso

    do poder simblico do gnero na organizao e direco dos seus percursos de vida.

    Para atingir estes objectivos, ouvir mulheres a falar das suas vidas pareceu-nos o ponto

    de partida essencial para esta reflexo e, deste modo, levmos a cabo uma investigao

    qualitativa que pretende dar voz s mulheres que nela participam. Esta inteno tem

    como pressuposto que as narrativas pessoais permitem um acesso privilegiado s

    percepes que as pessoas tm sobre as diferenas entre os sexos, forma como so por

    elas interpretadas e leitura que fazem da presena que as (des)igualdades tiveram, tm

    e tero nas suas vidas. E, neste enquadramento, ouvir as mulheres em discurso directo,

    afigura-se como fundamental para que se percebam quais as estratgias no domnio da

    educao de pessoas adultas, especficas e adequadas s suas situaes concretas de

    vida.

    Deste modo, o objectivo central deste trabalho perceber como que a

    educao formal, informal e no-formal participam na construo individual da(s)

    identidade(s) de gnero e, neste sentido, importa analisar, no discurso das mulheres, o

    papel conferido por elas aos processos educativos presentes no percurso relativo

    construo das suas identidades.

    Partimos, ento, do pressuposto de que os processos educativos formais,

    informais e no-formais so os contextos fundamentais disponveis para a

    (re)construo identitria. Assim, o objectivo de compreender os processos associados

    construo da identidade de gnero, tanto em homens como em mulheres, no pode

    deixar de fora a influncia dos contextos educativos vividos.

    Alm disso, a educao tem sempre uma dimenso utpica, no sentido de um

    projecto de construo de futuro e, por isso mesmo, acaba por ser no s uma possvel

    forma de transmitir os esteretipos de gnero, mas tambm, e sobretudo, pode ser

  • 6 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero

    entendida como uma estratgia poderosa a utilizar para desocult-los e desconstru-los

    em qualquer idade.

    Perceber como as estratgias de manuteno dos conceitos culturalmente

    definidos associados ao gnero mudam ou permanecem, comparando geraes, pode

    dar-nos indicaes preciosas no sentido de contribuir para a construo crtica e

    reflexiva de uma educao promotora de igualdade, nada fundamentadora de

    estereotipias de gnero ou outras.

    Um outro aspecto que gostaramos de salientar que a educao um processo

    social que acompanha a pessoa durante toda a sua vida e em todos contextos em que se

    movimenta, indo muito para alm da instituio escolar, ou de uma faixa etria

    especfica. Neste sentido, a vida adulta assume um papel primordial neste trabalho, no

    apenas porque as pessoas adultas participam activamente na educao das geraes

    mais jovens, mas tambm porque, enquanto adultos/as, continuam a aprender e sofrer

    transformaes que podem ser mediadas, em contextos variados, por processos de

    educao e formao, uma vez que o desenvolvimento e a aprendizagem dos indivduos

    so processos coextensivos ao prprio ciclo de vida (UNESCO, 2009).

    A investigao no domnio dos estudos de gnero tem apontado para a

    construo social do conceito de gnero e, consequentemente, para a sua distino do

    sexo enquanto entidade de ordem biolgica. Assim, o gnero considerado como uma

    elaborao cultural do sexo (Vale de Almeida, 1995), o que lhe atribui um nvel de

    complexidade inerente intercepo dos conjuntos de factores sociais que pressupem a

    interpretao do corpo sexuado e de um reportrio de comportamentos e normatividades

    que distinguem a prpria performatividade inerente ao gnero (Butler, 1990).

    Conhecer o percurso dos estudos realizados no mbito das diferenas entre os

    sexos permite-nos perceber como tm sido conceptualizadas estas diferenas e

    compreender a emergncia de novas questes que problematizam a diferena ao longo

    do tempo. Um outro objectivo da anlise crtica dos desenvolvimentos tericos nesta

    rea perceber a presena de uma ideologia de desigualdade nos estudos que se

    fundamentam na viso dual das diferenas entre homens e mulheres e, tambm, a

    manuteno dos seus argumentos no discurso do senso comum respeitante a estas

    questes.

  • 7 Introduo Geral

    Os desenvolvimentos tericos que se tm registado neste domnio esto tambm

    muito relacionados com os movimentos sociais que tm dinamizado um activismo

    poltico centrado no combate s desigualdades de gnero, na orientao sexual, e

    tambm nas reivindicaes de grupos de mulheres que experienciam mltiplas

    discriminaes (e. g. Olesen, 2005; Gill, 1997; Butler, 1990).

    De acordo com as perspectivas que questionam a essncia feminina e a

    homogeneidade da categoria mulher (ou do homem), as questes relacionadas com a

    identidade de gnero ganham relevo e, neste sentido, pertinente perceber como que

    as pessoas, ao longo do seu percurso, se vo tornando mulheres (ou homens). A

    identidade constitui, deste modo, um foco terico muito relevante neste trabalho e acaba

    por ser fundamental para perceber as complexidades subjacentes forma como cada

    pessoa se interpreta como ser gendrificado3.

    Assim, importa compreender que a identidade no pode ser entendida numa

    perspectiva essencialista, e portanto, como imutvel. A identidade deve ser percebida

    como construda e susceptvel de ser reconstruda e, neste sentido, tributria da

    influncia do meio e das circunstncias da vida de cada um/uma. neste sentido que

    propomos uma abordagem conceptual que considere a possibilidade de esta ser

    considerada no plural. A utilizao da expresso identidade(s) procura dar visibilidade a

    duas premissas que nos parecem importantes: (1) a aceitao de que a pertena

    categoria social de mulher (ou de homem) no traz consigo uma identidade essencial ou

    outorgada comum a todas as pessoas que partilham a pertena a determinada categoria

    biolgica; (2) que a identidade de cada pessoa resulta de uma narrativa construda que

    incorpora a mudana e a integra, permitindo a cada um/uma a (re)construo de si

    mesmo/a, considerando a possibilidade de se ser algum diferente do que se foi no

    passado, mas que no absolutamente independente dele.

    Um aspecto indelevelmente ligado a esta viso da identidade tem a ver com os

    significados disponveis, num determinado contexto sociocultural, para organizar uma

    narrativa pessoal que nunca isenta da pertena a uma das categorias sociais de mulher

    ou de homem. E, neste processo, sublinhamos o peso decisivo que tm os esteretipos

    de gnero, uma vez que acabam por constituir a matria-prima disponvel para

    interpretar o gnero e, por isso mesmo, para construir ou redefinir, por parte de cada

    pessoa, a prpria identidade de gnero.

    3 Gendrificado designa algo que tem gnero ou que marcado por atributos de gnero.

  • 8 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero

    Desta forma, estes trs aspectos tericos so matriciais no nosso trabalho e

    fundamentaram quer o enquadramento terico, que ser apresentado na primeira parte,

    quer o estudo emprico desenvolvendo que descrito na segunda parte.

    De acordo com os objectivos do trabalho e em conformidade com o

    enquadramento terico, a opo metodolgica para o nosso estudo enquadrvel num

    paradigma de investigao interpretativo. Neste sentido, a nossa opo metodolgica

    pela investigao qualitativa justifica-se sobretudo pelo objectivo de compreender a

    forma como as pessoas entrevistadas definem o ser mulher e tornar-se mulher. Devido

    complexidade inerente (re)construo da(s) identidade(s) feminina(s), prope-se

    uma viso holstica do contexto de vida das mulheres, de forma a que se possa aceder

    interpretao destes processos, o que em nosso entender no seria possvel atravs de

    estratgias quantitativas de anlise da realidade.

    A opo pela investigao qualitativa est tambm relacionada com a tradio

    dos estudos feministas e a sua ligao ao desenvolvimento da prpria pesquisa

    qualitativa que no , naturalmente, independente dos assuntos estudados e das

    epistemologias interpretativas e crticas que os fundamentam (Jrviluoma, Moisala e

    Vilkko, 2003; Olesen, 2005). Como aprofundamos na segunda parte desta dissertao,

    no captulo dedicado Concepo, planeamento e caracterizao metodolgica da

    investigao, a investigao feminista tem, ainda que no exclusivamente, recorrido de

    uma forma privilegiada investigao qualitativa, uma vez que atravs desta abordagem

    de pesquisa so valorizadas as particularidades e idiossincrasias pessoais e contextuais

    em que os pressupostos tericos destas reas assentam. Um outro aspecto que

    gostaramos de sublinhar o reconhecimento do contributo que os estudos de gnero

    tm dado ao desenvolvimento das metodologias qualitativas, principalmente no que se

    refere perspectiva crtica, interpretativa e holstica que propem (e.g., Guba e Lincoln,

    2005; Olesen, 2005).

    Assim, na planificao da nossa investigao emprica, o estudo de casos

    mltiplos afigurou-se como uma opo metodolgica que respeita os pressupostos

    tericos e epistemolgicos que nos serviram de bssola. E, neste sentido, a escolha de

    trs famlias diferentes do ponto de vista econmico e sociocultural e, em cada famlia,

    a seleco de trs mulheres de diferentes geraes (av, me e neta), constituram os

    casos seleccionados.

  • 9 Introduo Geral

    Com este desenho de investigao pretendemos perceber como as

    particularidades dos contextos econmicos e socioculturais podem, eventualmente,

    influenciar a interpretao que as mulheres fazem de si enquanto mulheres, e das

    possibilidades e oportunidades subjacentes s decises relativas gesto da sua vida e,

    tambm, averiguar at que ponto se verificam mudanas ou semelhanas entre as trs

    geraes entrevistadas, relativamente s questes da (re)construo da(s) identidade(s).

    Para alcanar este objectivo, a tcnica de recolha de dados que seleccionmos foi

    a entrevista semiestruturada. Esta tcnica de recolha de dados permite, de uma forma

    privilegiada, aceder aos discursos das participantes e recolher informaes relativas aos

    seus sentimentos, opinies e especificidades das suas vidas, que no seriam acessveis

    atravs de um instrumento de recolha de dados mais estruturado, completamente

    pr-definido pela pessoa do investigador.

    Neste enquadramento, entendemos que a entrevista semiestruturada nos permite

    um maior conhecimento das participantes e o estabelecimento de uma relao

    privilegiada com elas, que possibilita o aprofundamento das questes abordadas e a

    clarificao de situaes e aspectos particulares referidos pelas prprias.

    Esta dissertao encontra-se dividida em duas partes. Na primeira

    Enquadramento Terico feita a reviso da literatura cientfica em torno de trs

    aspectos que consideramos fundamentais, a saber: (I) Do sexo ao gnero: as leituras da

    diferena entre homens e mulheres; (II) (Re)construo da(s) identidade(s) de gnero; e

    (III) Construo social dos esteretipos de gnero: das interpretaes tericas aos

    indicadores reais.

    No primeiro captulo Do sexo ao gnero: as leituras da diferena entre

    homens e mulheres procura-se a clarificao conceptual em torno do conceito de

    gnero. Neste percurso nossa inteno dar conta do rico debate terico que deriva da

    evoluo e complexificao da discusso em torno do constructo em anlise. Neste

    processo referimos tambm algumas lentes de interpretao das diferenas entre homens

    e mulheres, designadamente, a lente de interpretao biolgica, a lente de interpretao

    psicanaltica, a lente de interpretao psicomtrica e a leitura sociolgica da

    diferenciao com base na atribuio dos papis sociais. Posteriormente, propomos uma

    reflexo acerca da insuficincia das anlises que assentam em perspectivas duais de

    interpretao das diferenas entre os sexos e tambm a anlise da diferenciao

    valorativa de gnero, que tende a desvalorizar as caractersticas normalmente atribudas

  • 10 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero

    s mulheres. Terminamos este captulo com uma breve abordagem ao construcionismo

    social como lente de anlise das questes de gnero, que tende a fomentar uma viso

    dialctica na interpretao dos comportamentos de gnero.

    O segundo captulo do nosso enquadramento terico (Re)construo da(s)

    identidade(s) de gnero pretende constituir um aprofundamento reflexivo em torno

    do conceito de identidade. E, neste sentido, prope a considerao da evoluo do

    conceito de identidade. Neste processo, partimos da anlise das perspectivas

    essencialistas da identidade, que pressupem a existncia de uma essncia definidora do

    Eu. Esta essncia perspectivada como una, indivisvel e imutvel. Posteriormente,

    apresentamos vrias vises tericas que contestam o essencialismo, como, por exemplo,

    o empirismo ou o marxismo. Neste enquadramento reflexivo, referimos tambm a

    insuficincia das abordagens essencialistas e deterministas para compreender a

    identidade em contextos actuais. J que nas sociedades dos nossos dias, torna-se

    necessrio que a identidade seja interpretada de uma forma dinmica, que enquadre no

    apenas uma dimenso de anlise contextual, mas tambm temporal. O eixo temporal

    enquanto matriz que sustenta a narrativa que cada um/uma constri da sua vida

    incorpora o passado e o futuro de cada pessoa, sendo que esta no se pode definir e

    entender sem a considerao do seu passado e dos seus projectos de futuro. As reflexes

    desenvolvidas em redor da complexidade do conceito de identidade conduziram-nos

    adopo de uma viso plural do prprio conceito, como j tivemos oportunidade de

    referir.

    Terminamos a primeira parte deste trabalho com o captulo Construo social

    dos esteretipos de gnero: das interpretaes tericas aos indicadores reais. Neste

    captulo procuramos clarificar o conceito de esteretipo enquanto construo social e

    clarificar o conceito de estereotipia e os seus processos de transmisso. So tambm

    analisados diversos mbitos da vida quotidiana em que os conceitos culturalmente

    definidos de gnero tendem a ser veiculados, como a escola, a famlia, o mercado de

    trabalho e a liderana poltica. Nas seces que dedicamos a cada um destes domnios

    feita a reviso da investigao e so tambm apresentados indicadores estatsticos

    relativos ao nosso pas, que procuram demonstrar a situao de desigualdades com base

    no gnero a que ainda se assiste, no obstante as importantes evolues que tm

    ocorrido.

  • 11 Introduo Geral

    A segunda parte do trabalho descreve o estudo emprico levado a cabo e est

    organizada em cinco captulos. So eles: (I) Concepo, planeamento e caracterizao

    metodolgica da investigao, em que se justificam e fundamentam as opes

    metodolgicas que estruturam o estudo; (II) Metodologia, em que se descrevem

    pormenorizadamente os procedimentos inerentes implementao e conduo do

    estudo; (III) Construo das categorias de anlise, em que se descrevem a lgica e os

    procedimentos relativos anlise de contedo dos discursos das nossas participantes;

    (IV) Apresentao dos Resultados, que pretende ser a descrio da informao obtida

    atravs das entrevistas devidamente organizada, em funo das categorias de anlise

    definidas; e, por fim, (V) Nascer menina, tornar-se mulher, que procura ser uma sntese

    interpretativa construda a partir dos discursos das participantes.

    No que concerne ao primeiro captulo Concepo, planeamento e

    caracterizao metodolgica da investigao este dedicado apresentao e

    justificao das decises metodolgicas subjacentes organizao do nosso estudo

    emprico. Assim, nele so feitas algumas consideraes sobre os fundamentos

    epistemolgicos da investigao qualitativa, designadamente no que diz respeito ao

    desenvolvimento histrico da investigao qualitativa, aos objectivos gerais

    preconizados pela abordagem qualitativa da pesquisa, e associao dos estudos

    feministas e das metodologias qualitativas, na anlise dos contributos recprocos para o

    seu desenvolvimento mtuo. Finalizamos esta parte do captulo com algumas

    consideraes sobre a credibilidade da investigao qualitativa.

    O desenho de investigao definido e justificado na segunda seco deste

    captulo, que procura fundamentar a nossa opo em relao escolha do estudo de

    casos mltiplos. Posteriormente, na seco seguinte, abordamos a entrevista

    semiestruturada como tcnica de recolha de dados, caracterizando-a, identificando os

    seus principais objectivos e ainda, efectuando uma reflexo acerca das preocupaes

    ticas associadas a esta estratgia de recolha de dados. Para terminar este captulo

    dedicado planificao do nosso estudo, fazemos uma breve abordagem tcnica de

    tratamento de dados seleccionada a anlise de contedo.

    O segundo captulo da parte emprica deste trabalho dedicado Metodologia.

    Nele procuramos de uma forma pormenorizada dar conta da conduo do processo de

    investigao na sua dimenso emprica. Neste sentido, so descritos todos os passos

    dados para a seleco das participantes do nosso estudo e feita a caracterizao das

    pessoas entrevistadas. No que diz respeito tcnica de recolha de dados, tambm

  • 12 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero

    descrito o processo de construo do guio de entrevista, so explicitadas as condies

    de realizao das entrevistas, feita uma reflexo acerca de alguns aspectos ticos

    inerentes situao e so referidos os procedimentos de transcrio das entrevistas.

    Dedicamos o terceiro captulo, desta segunda parte da dissertao, descrio da

    lgica subjacente construo das categorias de anlise de contedo da informao

    recolhida atravs da entrevista, clarificando a organizao das categorias e

    subcategorias de anlise, assim como os indicadores referentes a cada uma delas.

    A apresentao dos resultados da nossa investigao feita no quarto captulo e

    organiza-se em funo da construo das categorias de anlise de dados apresentada no

    captulo anteriormente referido. Assim, distinguem-se trs grandes domnios segundo os

    quais foram organizadas as informaes recolhidas, a saber: (1) Ser mulher: a definio

    e interpretao da feminilidade; (2) Identidade de gnero: percursos de (re)construo

    da(s) identidade(s) de gnero e (3) Os esteretipos de gnero: a sua manuteno e

    reproduo. Neste captulo, eminentemente descritivo, e por isso o mais longo desta

    parte da dissertao, procuramos ser fiis ao(s) discurso(s) das nossas participantes,

    dando visibilidade aos significados que nos pareceram estar presentes naquilo que

    ouvimos.

    No ltimo captulo deste trabalho, procuramos fazer uma sntese reflexiva a

    partir de uma viso geral da informao recolhida, arriscando uma perspectiva

    interpretativa dos discursos das entrevistadas. Ainda neste captulo dedicamos a ltima

    seco do mesmo s implicaes das nossas concluses para o domnio da educao e

    formao de pessoas adultas tendo em vista a promoo da igualdade de oportunidades

    e a abolio de eventuais formas de discriminao baseadas no gnero ou outras.

    Na concluso geral desta tese falamos das limitaes metodolgicas do trabalho

    que desenvolvemos e deixamos tambm em aberto sugestes para estudos futuros neste

    domnio.

    Com este trabalho propomos um percurso que parte da experincia de vida de

    nove mulheres e que atravs da anlise dos seus discursos, das suas semelhanas e das

    suas idiossincrasias, procura um aprofundamento reflexivo em torno da educao e

    formao de pessoas adultas no sentido da promoo da igualdade de oportunidades e

    do combate s discriminaes baseadas no gnero, em todas as idades.

  • PPRRIIMMEEIIRRAA PPAARRTTEE

    EENNQQUUAADDRRAAMMEENNTTOO TTEERRIICCOO

  • Captulo I

    Do sexo ao gnero: as leituras da

    diferena entre homens e mulheres

  • Captulo I

    Do Sexo ao Gnero: as leituras da diferena entre Homens

    e Mulheres

    INTRODUO

    O gnero, enquanto elaborao cultural do sexo, um vector fundamental na

    construo da identidade de qualquer pessoa. Em funo do sexo da criana comeam a

    ser tomadas decises que mais no so do que o incio de um longo processo de

    construo de gnero, que se prolonga pela vida fora.

    Mesmo antes de nascer, o nome prprio4 a dar criana definido em funo do

    sexo anatmico do beb, e acompanh-lo- como marca distintiva da sua unicidade, e

    como elemento identificativo num determinado contexto social, permitindo a

    auto-identificao e a hetero-identificao.

    A par da escolha do nome, outras decises, aparentemente mais subtis, vo

    sendo tomadas em funo do sexo da criana, construindo o ambiente em que a criana

    se vai desenvolver, as cores das roupas, a decorao do quarto do beb e at a escolha

    dos brinquedos oferecidos criana. E, desta forma que o sexo interpretado

    culturalmente dando lugar ao gnero.

    Assim, a diferena anatmica interpretada e as crianas crescem em contextos

    que, de uma forma mais ou menos subtil, evidenciam concepes tradicionais ou

    hegemnicas de feminilidade ou de masculinidade e, partindo das diferenas biolgicas,

    constroem-se outras diferenas de cariz cultural.

    Contudo, a construo da identidade de gnero no um processo que termine

    na infncia ou na adolescncia; um processo que acompanha toda a existncia dos

    indivduos.

    4 Em Portugus, d-se a designao de nome prprio ao nome escolhido e, normalmente, pelo qual a

    pessoa tratada, pelo menos em contextos prximos e familiares, que ser completado pelo apelido, ou

    sobrenome, que se constitui pela associao do nome de famlia da me e pelo nome de famlia do pai. Na

    vida adulta, por vezes o apelido substitui o primeiro nome no tratamento interpessoal, principalmente nas

    relaes de carcter mais formal, e este facto, a verificar-se, ocorre sobretudo nos homens e s muito

    raramente nas mulheres.

  • 18 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero

    Ao longo da vida, as lentes de gnero esto sempre presente e a forma como o

    gnero interpretado pode condicionar as escolhas e aspiraes dos indivduos, os seus

    comportamentos e atitudes. Neste sentido, abordar o desenvolvimento humano de

    determinada pessoa, , tambm abordar o gnero e as questes que lhe esto associadas,

    num mbito que se estende muito para alm do sexo ou da sexualidade.

    O aprofundamento desta questo impe a chamada de ateno para a

    inevitabilidade da distino entre sexo e gnero. Uma das razes da importncia da

    utilizao do conceito de gnero e a sua distino da palavra sexo foi, na perspectiva de

    Gisela Bock (2008), a insistncia em que os estudos das mulheres no dizem respeito

    sexualidade, ao seu papel como esposas, maternidade, mas sim s mulheres em todos

    os passos das suas vidas (p. 85), salientando, ainda, que os estudos sobre as mulheres

    referem-se no apenas s mulheres mas a toda a humanidade, uma vez que o gnero

    relacional e portanto uma questo que envolve homens e mulheres.

    Neste primeiro captulo pretende-se, num primeiro momento, clarificar a

    distino entre sexo, enquanto varivel biolgica, e gnero, enquanto construo social.

    E, seguidamente, procuram analisar-se diferentes propostas tericas que tm como

    objectivo interpretar, compreender e explicar as diferenas entre homens e mulheres.

    Assim, e tentando dar cumprimento a estes objectivos, comeamos por reflectir

    em torno do conceito de gnero e a sua complexidade, iniciando esta reflexo com

    referncias a alguns autores/as que se debruaram sobre esta temtica, como por

    exemplo, Lewis Terman e Catharine Miles (1936), Simone de Beauvoir (1946/2009)5,

    Anne Constantinople (1973), Sandra Bem (1974) e Janet Spence (1985), Joan Scott

    (1986), Judith Butler (1990) e Susan Bordo (1990). A diversidade das perspectivas

    apresentadas tem como finalidade o aprofundamento de questes que vo sendo

    levantadas na discusso em torno do conceito de gnero.

    Esta discusso tem sido muito rica, por nela participarem autores/as de reas de

    conhecimento distintas, mas interligadas, como a psicologia, a histria, a sociologia, a

    filosofia e a poltica, o que confere aos estudos de gnero um carcter que de acordo

    com Joo Oliveira (2019) particularmente til para compreender e ler um mundo

    onde se perdeu a iluso da estabilidade identitria (p. 26). Por outro lado, a par dos

    desenvolvimentos tericos e disciplinares, alguns movimentos sociais, como os grupos

    5 A obra consultada e referida ao longo deste trabalho uma reedio de 2009, da Quetzal

    Editores.

  • 19 Do Sexo ao Gnero: as leituras da diferena entre Homens e Mulheres

    feministas ou os grupos de reivindicao dos direitos dos homossexuais e transexuais,

    tm contribudo com importantes consideraes que, muitas vezes, se constituem como

    desafios que se vo colocando na tentativa de definir o gnero.

    Esta reflexo continua na anlise de algumas perspectivas tericas que se

    propem compreender e explicar as diferenas de gnero. Iniciamos com a anlise das

    diferenas biolgicas entre homens e mulheres, sublinhando a forma como, ao longo do

    tempo, tm sido apresentados argumentos biolgicos para legitimar as assimetrias de

    gnero e a desvalorizao social da mulher.

    Referimos, a seguir, a leitura psicanaltica das diferenas de gnero. E, no

    quadro da psicanlise, destacamos a teoria freudiana, a escola francesa de orientao

    lacaniana e a escola anglo-americana.

    Na perspectiva psicomtrica da abordagem das diferenas de gnero muito

    influenciada pela tradio positivista dos estudos cientficos em Psicologias, referimos

    um conjunto de pesquisas que procuraram avaliar, atravs de questionrios e

    inventrios, as diferenas entre homens e mulheres. Estes trabalhos deram um grande

    contributo para o desenvolvimento do constructo de gnero, porque permitiram um

    progressivo afastamento conceptual do sexo biolgico. A medio das caractersticas

    masculinas e femininas possibilitou, desde os trabalhos de Lewis Terman e Catharine

    Miles (1936) at aos de Janet Spence (1985), uma enorme evoluo que se repercutiu

    nas formas como tm sido vistas as questes de gnero.

    As perspectivas sociolgicas so tambm referidas, designadamente, as de cariz

    funcionalista, que interpretam as diferenas entre homens e mulheres como resultado da

    organizao familiar e social. Assumia-se, neste enquadramento, que a gnese das

    diferenas estaria nas diferentes funes desempenhadas por homens e mulheres no

    interior da famlia e, tambm, na esfera pblica. Referimos, neste ponto, os trabalhos de

    Talcott Parsons e Robert Bales (1956) e de Franoise Hritier (1998).

    No ponto relativo Insuficincia da Dualidade para a Anlise do Gnero

    tecem-se algumas consideraes crticas acerca das vises dualistas e polarizadas de

    gnero, questionando alguns dos fundamentos tradicionais subjacentes prpria

    dualidade.

    Seguidamente, propem-se a anlise da diferenciao valorativa de gnero,

    referindo a ideologia que legitima a desvalorizao do feminino. Neste ponto, as

    questes do poder so equacionadas assim como a diminuta representatividade das

  • 20 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero

    mulheres nas esferas do poder e no topo de carreiras profissionais de elevado estatuto

    social.

    Para concluir a reflexo em torno do gnero, abordaremos o construcionismo

    social e a sua anlise das questes de gnero. Esta perspectiva terica prope a

    desconstruo do conhecimento tradicionalmente apresentado e, a partir deste exerccio

    de desconstruo, analisa os diferentes discursos dos actores sociais, valorizando a

    atribuio de significado.

    A preocupao subjacente a abordagem terica destas questes est relacionada

    com os objectivos propostos para o nosso estudo emprico, na medida em que o guio

    de entrevista proposto prev um conjunto de questes sobre o que ser mulher e como

    so interpretadas as diferenas entre homens e mulheres.

    1. Reflexes em torno do conceito de gnero

    A fim de aprofundarmos a reflexo acerca do conceito de gnero relevante o

    conhecimento do percurso histrico do pensamento feminista. O pensamento feminista

    tem-se caracterizado por um desenvolvimento que reflecte o contexto social, econmico

    e poltico em que surge e em que se desenvolve, e ilustra uma grande diversidade, quer

    a nvel conceptual, quer a nvel das prticas e reivindicaes das mulheres.

    Os primeiros movimentos organizados de defesa dos direitos das mulheres,

    tributrios dos ideais da Revoluo Francesa, aparecem em meados do sculo XIX,

    reivindicando direitos civis para as mulheres, designadamente, direitos polticos, direito

    educao e ao emprego. A palavra igualdade , ento, constituda como a palavra de

    ordem, deixando perceber a tomada de conscincia da penalizao e excluso,

    sobretudo da esfera pblica, subjacente pertena ao sexo feminino (Saavedra, 2005).

    Paralelamente, afirmao da necessidade de efectivar a igualdade entre os sexos no

    acesso a direitos civis, reivindicao das mulheres pertencentes burguesia, e

    profundamente inspirada nos pressupostos individualistas das ideologias Liberais,

    surgem, sobretudo nos meios de mulheres das classes trabalhadoras, reivindicaes de

    igualdade, entre os sexos, no que se refere melhoria das condies econmicas e

    sociais, sendo clara a inspirao nas ideologias Socialistas/Marxistas. Assim, e de forma

  • 21 Do Sexo ao Gnero: as leituras da diferena entre Homens e Mulheres

    sinttica, podemos afirmar que estes movimentos de primeira vaga6 centram o seu

    discurso na igualdade entre sexos.

    A principal caracterstica do feminismo de segunda vaga a conceptualizao

    da classe feminina como grupo oprimido7. De acordo com esta perspectiva, a opresso

    de que as mulheres eram vtimas afectava no s a esfera pblica como, tambm, a

    esfera privada. A anlise social das diferenas de gnero e a crtica sociedade

    patriarcal, enquanto a mais importante estrutura de desigualdade social, constituem as

    bandeiras ideolgicas desta segunda vaga que so, terica e ideologicamente,

    sustentadas pelo feminismo radical.

    A terceira vaga questiona a concepo da mulher como categoria de

    caractersticas fixas, essencialistas e imutveis. Consideram-se, agora, as novas

    perspectivas referentes construo social das diferenas de gnero e os seus aspectos

    dinmicos e contextuais.

    As novas abordagens estrutura e organizao do poder questionam a

    perspectiva da opresso das mulheres pela diviso do trabalho, defendendo que o poder

    no especfico de determinados grupos, mas difuso, descentralizado e horizontal,

    percorrendo todas as relaes e interaces sociais (Foucault, 2003).

    Esta nova perspectiva valoriza sobretudo a diferena entre as mulheres,

    propondo outros vectores de subordinao e privilgio para alm do gnero, como a

    raa, a classe social, a idade e as preferncias sexuais (Saavedra, 2005).

    Assim, foi durante a segunda vaga de feminismo que a distino entre sexo e

    gnero se assumiu como uma tentativa de separar o sexo biolgico do social: o gnero.

    De acordo com Conceio Nogueira, Sofia Neves e Carlos Barbosa (2005) esta

    distino veio permitir a crtica social.

    , tambm, importante destacar que os movimentos feministas da dcada de 70,

    do sculo XX, deram ao conceito de gnero o estatuto de categoria de anlise.

    Fizeram-no, distinguindo o sexo, de natureza biolgica e anatmica, do gnero, sendo

    este um constructo relacionado com aspectos culturais utilizados para justificar

    6 Para melhor compreender o Feminismo enquanto Teoria e Crtica Social recorremos diviso deste

    movimento em trs vagas de acordo como o proposto por Alexandra Kaplan (1992): feminismo de

    primeira vaga, que se inicia em meados do sculo XIX; feminismo de segunda vaga, situado entre as

    dcadas de 60 e 80 do sculo XX; e feminismo de terceira vaga, a partir de meados da dcada de 80

    (Kaplan, 1992, citada por Nogueira, 2001, pp. 131-142). 7 A referncia ao grupo das mulheres como grupo social marcado pela opresso est, particularmente,

    presente nas abordagens marxistas do feminismo.

  • 22 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero

    comportamentos ditos como femininos ou masculinos. De acordo com Gisela Bock

    (2008), o conceito de gnero entendido como uma categoria social, cultural e poltica

    que exprime a noo de que a subordinao feminina no tem origem natural, mas sim

    cultural, histrica e poltica.

    O gnero construdo socialmente e incorpora as justificaes culturais, e

    portanto contextuais, presentes nos discursos sobre a diferenciao entre homens e

    mulheres. Desta forma, sublinhado que, apesar das diferenas entre homens e

    mulheres, do ponto de vista biolgico, serem inegveis, elas no justificam as diferenas

    culturais supostamente inerentes feminilidade ou masculinidade.

    O discurso feminista recorre ao conceito de gnero para evidenciar as diferenas

    entre o biolgico e cultural, no que diz respeito aos factores de diferenciao entre

    homens e mulheres. , neste sentido, que Ana Correia (2009) afirma que a utilizao do

    conceito de gnero tem como objectivo argumentar que as diferenas biolgicas,

    embora reais, no justificavam as diferenas em termos de papis sociais que a partir

    delas as sociedades patriarcais tinham institudo, com o objectivo de criar na sociedade

    e nas prprias mulheres uma noo de identidade que as associava ao espao privado e

    s tarefas domsticas (p. 29). Seguindo esta perspectiva, Miguel Vale de Almeida

    (1995) afirma, tambm, que o gnero a elaborao cultural do sexo (p. 128), o que

    se consubstancia na variao cultural dos papis femininos e masculinos, bem como nos

    traos de personalidade-tipo tidos como normais para cada sexo em cada cultura.

    A percepo da necessria distino entre os aspectos biolgicos e os aspectos

    culturais na anlise das diferenas entre homens e mulheres , contudo, anterior s

    teorias feministas dos anos 70, do sculo XX. A antroploga Margaret Mead, em 1935,

    defendeu que o sexo biolgico mas o comportamento sexual uma construo social,

    o que implicitamente prope a diferena entre sexo e gnero.

    Da mesma forma, Simone de Beauvoir, em 1946, chamaria a ateno para o

    facto de, na ordem simblica, a diferena sexual no ser acidental. Ningum nasce

    mulher: torna-se mulher, escrevia Beauvoir, numa formulao que se tornaria famosa

    nos estudos feministas. Sublinhava, desta forma, o carcter social e cultural da

    feminilidade, e tornava evidente que ser mulher resulta de um processo de construo

    social, que vai muito para alm dos atrib