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Sofia Marisa Alves Bergano
SER E TORNAR-SE MULHER: GERAO, EDUCAO E IDENTIDADE(S) FEMININA(S)
Dissertao de Doutoramento em Cincias da Educao, especializao em Educao
Permanente e Formao de Adultos, apresentada Faculdade de Psicologia e de
Cincias da Educao da Universidade de Coimbra, sob a orientao da Professora
Doutora Cristina Maria Coimbra Vieira.
Maro de 2012
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Ser e tornar-se mulher:
Educao, gerao e identidade de gnero
Sofia Marisa Alves Bergano
Dissertao de Doutoramento em Cincias da Educao,
especializao em Educao Permanente e Formao de
Adultos, apresentada faculdade de Psicologia e de Cincias da
Educao da Universidade de Coimbra, sob a orientao da
Professora Doutora Cristina Maria Coimbra Vieira.
Coimbra, 2012
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Dedicatria
Aos meus pais que sempre me ensinaram que
as pessoas, apesar da sua individualidade,
so sempre mais iguais do que diferentes.
minha famlia, especialmente s mulheres
sempre presentes na minha vida, que me
acompanharam e ajudaram a crescer, num
ambiente em que a diversidade dos modelos
femininos me ensinou que existem muitas
formas de sermos e de nos tornarmos
mulheres.
memria da minha av Maria.
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Agradecimentos
Neste longo processo o apoio das muitas das pessoas que preenchem o nosso
quotidiano relevou-se uma ajuda imensa, sem a qual os nossos objectivos no teriam
sido atingidos. A todas elas o meu muito obrigado. Estas ajudas assumiram as mais
diversas formas e todas elas se revelaram, em momentos diferentes, o impulso e a
confiana necessrios para levar a cabo esta tarefa, neste sentido, gostaramos de
expressar a nossa gratido, reconhecimento e admirao.
Professora Doutora Cristina Maria Coimbra Vieira, por tudo o que me
ensinou, pela integridade intelectual e cientfica que foi para ns um exemplo, pela
forma como sempre me apoiou e incentivou, mesmo nos momentos em que esta tarefa
nos pareceu maior do que as nossas capacidades, pelo entusiasmo com que acolheu o
nosso projecto e pelas oportunidades formativas que sempre colocou ao meu dispor, o
meu muito obrigada e um reconhecimento e admirao profundos.
Aos docentes do Departamento de Cincias de Educao da Escola Superior de
Educao do Instituto Politcnico de Bragana, pelo apoio e disponibilidade com que
partilharam os seus saberes e me apoiaram num percurso profissional que constituiu
uma oportunidade de desenvolvimento profissional e acadmico.
Ao Professor Doutor Henrique Ferreira, pelo apoio disponibilidade para nos
ouvir e acompanhar nas reflexes em torno das questes de gnero e da sua presena
nos quotidianos profissionais e de vida.
Mestre Graa Santos, pela amizade e apoio constantes, pelo exemplo de
conciliao da vida profissional e familiar e sobretudo pela serenidade e amabilidade
com que enfrenta as situaes adversas e ainda pela possibilidade que o trabalho em
equipa nos trouxe de consolidar uma amizade que tanto nos enriquece.
Mestre Carla Lima e Dr. Patrcia Bernardo, pela disponibilidade e apoio que
sempre demonstraram.
Neste grupo gostaria tambm de referir o Professor Doutor Jos Manuel Ribeiro
Alves que acompanhou os nossos primeiros anos de trabalho e foi um professor
inigualvel, do ponto de vista intelectual e acadmico, mas tambm pelas suas
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qualidades pessoais que constituem, para ns, um exemplo de determinao e de
superao.
minha famlia, especialmente aos meus pais, Carminda e Jos, por todo o
incentivo e especialmente porque mesmo penalizados com as minhas ausncias, nunca
me fizeram sentir que estava em falta.
Ao Nelson, pelo companheirismo e pela militncia exemplar no que se refere
igualdade de gnero na famlia e na partilha das responsabilidades familiares, atitude
fundamental para esta tarefa e para a nossa vida em comum.
minha irm Sandra e ao meu irmo Rui, pelo apoio e tambm pela
oportunidade da partilha dos nossos percursos de crescimento juntos, com a
cumplicidade dos irmos e imensa partilha de brincadeiras de meninas e tambm de
meninos, vivi com eles tantas coisas que agradeo e que nos tornam to parecidos e
simultaneamente to diferentes.
tia Rosa, tia So e tia Z pelos exemplos de que se pode ser mulher das
formas mais diversas e sempre solidrias.
Aos meus sobrinhos, Gonalo, Leonor e Julieta, pela alegria que s as crianas
trazem s nossas vidas.
s amigas Sandra Cabral e Ana Alves pela pacincia e incentivo constantes,
pelo nimo e sobretudo pela amizade e disponibilidade.
s mulheres que participaram no estudo, sem elas e sem a sua disponibilidade
para partilharem as suas vidas e as suas interpretaes acerca do que ser mulher, este
trabalho perderia todo o seu sentido. Gostaramos ainda de sublinhar que a sua simpatia
e o sentido de partilha foi uma inspirao que nos acompanhou e deu nimo para a
realizao deste trabalho.
Professora Doutora Conceio Ramos e Professora Doutora Sofia Neves
pela disponibilidade para analisarem o guio da entrevista por ns elaborado e pelo
enriquecimento que as suas sugestes trouxeram ao nosso estudo.
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Mestre Cristina Mesquita-Pires pela troca de impresses sobre a entrevista e
sobre a conduo da situao de entrevista, conselhos muito teis para a recolha e
tratamento dos nossos dados.
Aos nossos alunos e alunas das licenciaturas e dos mestrados que constituem o
verdadeiro desafio profissional que nos faz continuar a aprender.
A Direco da Escola Superior de Educao pelo apoio institucional e incentivo.
E especialmente Senhora Directora da Escola Superior de Bragana pelo exemplo de
liderana no feminino e pelo entusiasmo transmitido ao longo do desenvolvimento deste
trabalho.
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RESUMO
Neste trabalho a educao e formao de pessoas adultas na promoo da
igualdade de gnero assume-se como rea central para a qual pretendemos dar um
pequeno contributo. De acordo como a perspectiva que define a educao de adultos/as
num sentido lato, nossa inteno perceber, atravs da anlise do discurso de mulheres
adultas, como que as questes relacionadas com as aprendizagens de gnero
percorrem as suas vidas, participam na (re)construo da(s) sua(s) identidade(s)
enquanto mulheres e justificam as opes e oportunidades que tiveram ao longo do seu
trajecto.
De acordo com os objectivos do trabalho, a nossa opo metodolgica
enquadrvel num paradigma de investigao interpretativo. Neste sentido, o recurso a
uma estratgia qualitativa de pesquisa justifica-se sobretudo pelo objectivo de tentarmos
compreender a forma como as pessoas entrevistadas definem o ser mulher e tornar-se
mulher. Assim, na planificao da nossa investigao emprica, o estudo de casos
mltiplos afigurou-se como uma opo metodolgica que respeita os pressupostos
tericos e epistemolgicos que nos orienta nesta interpretao de significados. A
escolha de trs famlias diferentes, do ponto de vista econmico e sociocultural, e a
seleco de trs mulheres de diferentes geraes (av, me e neta) em cada uma dessas
famlias, permitiu-nos entrevistar directamente e de forma prolongada nove mulheres de
idades muito distintas.
A tcnica de recolha de dados seleccionada foi a entrevista semiestruturada. Esta
tcnica permite, de uma forma privilegiada, aceder aos discursos das participantes e
recolher informaes relativas aos seus sentimentos, opinies e especificidades das suas
vidas, que no seriam acessveis atravs de um instrumento de recolha de dados mais
estruturado, completamente pr-definido pela pessoa do investigador.
Com este desenho de investigao pretendemos perceber como as
particularidades dos contextos histricos, econmicos e socioculturais podem,
eventualmente, influenciar a interpretao que as participantes fazem de si enquanto
mulheres, e de que modo podem condicionar as possibilidades e oportunidades
subjacentes s decises relativas gesto das suas vidas. Torna-se, assim, tambm
possvel averiguar at que ponto se verificam mudanas ou semelhanas entre as trs
geraes de mulheres relativamente s questes da (re)construo da(s) identidade(s) de
gnero.
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Esta dissertao encontra-se dividida em duas partes. Na primeira
Enquadramento Terico feita a reviso da literatura cientfica em torno de trs
aspectos que consideramos fundamentais, a saber: (I) Do sexo ao gnero: as leituras da
diferena entre homens e mulheres; (II) (Re)construo da(s) identidade(s) de gnero; e
(III) Construo social dos esteretipos de gnero: das interpretaes tericas aos
indicadores reais. A segunda parte do trabalho descreve o estudo emprico levado a
cabo e est organizada em cinco captulos, designadamente: (I) Concepo,
planeamento e caracterizao metodolgica da investigao, em que se justificam e
fundamentam as opes metodolgicas que estruturam o estudo; (II) Metodologia, em
que se descrevem pormenorizadamente os procedimentos inerentes implementao e
conduo do estudo; (III) Construo das categorias de anlise, em que se descrevem a
lgica e os procedimentos relativos anlise de contedo dos discursos das nossas
participantes; (IV) Apresentao dos Resultados, que pretende ser a descrio da
informao obtida atravs das entrevistas, devidamente organizada em funo das
categorias de anlise definidas; e, por fim, (V) Nascer menina, tornar-se mulher, que
procura ser uma sntese interpretativa, construda a partir dos discursos das
participantes.
No que concerne s principais concluses do nosso estudo, parece-nos
importante realar que tanto a pertena a diferentes geraes como a pertena a
diferentes grupos socioculturais e econmicos parecem diferenciar as nossas
participantes, relativamente s motivaes para trabalhar fora de casa, diviso das
tarefas domsticas, interpretao das diferenas entre homens e mulheres e aos
sentimentos associados a estas diferenas. No entanto, parece no haver muitas
diferenas intergeracionais ou de pertena social no que respeita valorizao da
maternidade, que definida por todas as participantes como sendo o papel mais
importante na vida das mulheres, atribuio mulher das tarefas domsticas e de
cuidado com os/as filhos. Um outro aspecto que emergiu da anlise dos discursos das
nossas participantes a prevalncia, mais ou menos implcita, de estereotipias de gnero
relativamente s escolhas profissionais, s caractersticas psicolgicas atribudas a
homens e a mulheres e valorizao das caractersticas tidas como masculinas. No
seguimento destas constataes, consideramos que a educao de pessoas adultas se
assume como uma estratgia fundamental para a promoo da igualdade de gnero, no
sentido de eliminar todas as formas de discriminao (de gnero ou outras) ainda
vividas por mulheres e homens em diferentes esferas da vida.
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ABSTRACT
In this work, education and training of adults for the promotion of gender
equality is assumed as a central area in which we intend to give a small contribution.
According to the perspective that defines adult education in the broadest sense, we
intend to understand, through the analysis of the discourse of adult women, how the
issues related to gender learning traverse their lives, participating in (re)building their
identity(ies) as women and justify the choices and opportunities that they had along
their lives.
In accordance with the objectives of the work, our choice has fallen into a
methodology of interpretative research paradigm. In this sense, the use of a qualitative
research strategy is mainly justified by the objective of trying to understand how the
interviewees define what is being a women and becoming a woman. Thus, in the
planning of our empirical research, the study of multiple cases appeared as a
methodological approach that respects the theoretical and epistemological assumptions
that guides us in this interpretation of meanings. The choice of three different families,
from an economic and socialcultrul standpoint and the selection of three women of
different generations (grandmother, mother and grandmother) in each of these families
allowed us to interview directly and for a prolonged time, nine women of distinct ages.
The technique selected for data collection was the semi-structured interview.
This technique allows in a privileged manner, to access the speeches of the participants
and it also permits us to gather information about their feelings, opinions and
characteristics of their lives that would not be accessible if we used a more structured
tool for collecting data, completely pre-defined by the investigator.
With this research design we want to see how the particularities of the historical,
economic and socio-cultural contexts may eventually influence the interpretation that
the participants make of themselves as women, and how they might influence the
possibilities and opportunities underlying the decisions concerning the management of
their lives. It is therefore also possible to ascertain to what extent there are changes or
similarities between the three generations of women on the issue of (re)building gender
identity(ies).
This thesis is divided into two parts. In the first Theoretical Framework we
review the scientific literature on three aspects that we consider fundamental, namely:
(I) From sex to gender: the readings of the difference between men and women, (II)
(Re)Building gender identity(ies) and (III) Social construction of gender stereotypes:
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from theoretical interpretations to real indicators. The second part of the paper describes
the empirical study carried out, which is organized into five chapters, namely: (I)
Design, planning and characterization of the methodology of research, which justify and
underlie the methodological choices that shape the study, (II) Methodology, which
describes in detail the procedures involved in the implementation and conduct of the
study, (III) Construction of the categories of analysis, which describes the logic and
procedures of content analysis of speeches of our participants, (IV) Presentation of the
Results, which aims to be the description of the information obtained through interviews
properly organized according to categories of analysis defined, and finally, (V) Born as
a girl, becoming a Woman, which seeks to be an interpretive synthesis constructed from
the speeches of the participants.
Regarding the main conclusions of our study, it seems to us important to note
that belonging to different generations and to distinct socio-cultural and economic
groups appear both to differentiate our participants, on the motivations to work outside
the home, the division of housework, the interpretation of differences between men and
women and the feelings associated with these differences. However, there doesnt seem
to exist many intergenerational differences related to social belonging in what concerns
the appreciation of motherhood, which is defined by all participants as the most
important role in the lives of women. There are also similarities in discourses of the
participants in relation to the attribution to women related to the responsibilities of
domestic chores including caring for the children. Another aspect that emerged from the
analysis of our participants speeches is the prevalence of gender stereotypes with regard
to career choices, the psychological characteristics attributed to men and women and the
appreciation of features considered as masculine.
Following these findings, we believe that adult education and training should be
assumed as a key strategy for promoting gender equality and for the elimination all
forms of discrimination (gender based or others) that are still experienced by women
and men in different spheres of life.
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ndice
IINNTTRROODDUUOO GGEERRAALL ..................................................................................................... I
PPRRIIMMEEIIRRAA PPAARRTTEE EENNQQUUAADDRRAAMMEENNTTOO TTEERRIICCOO .......................................................................................................... 1133
CAPTULO I DO SEXO AO GNERO: AS LEITURAS DA DIFERENA ENTRE
HOMENS E MULHERES .................................................................................................... 15
INTRODUO ............................................................................................................. 17
1. Reflexes em torno do conceito de gnero ............................................................. 20
2. As diferenas entre homens e mulheres: o fundamento biolgico na
interpretao das diferenas entre homens e mulheres ................................................ 30
3. As diferenas de gnero na perspectiva psicanaltica: contributos e
limitaes .................................................................................................................. 34
4. As diferenas de gnero na perspectiva da psicomtrica: tentativas de
quantificar a diferena ............................................................................................... 41
5. A leitura sociolgica das diferenas de gnero: os papis sociais na
gnese da diferena .................................................................................................... 45
6. Da insuficincia da dualidade para a anlise do gnero ........................................... 49
7. A ideologia na diferenciao hierrquica de gnero ................................................ 55
8. A teoria do construcionismo social na compreenso das diferenas de
gnero ....................................................................................................................... 64
CONCLUSO .............................................................................................................. 68
CAPTULO II (RE)CONSTRUO DA(S) IDENTIDADE(S) DE GNERO ................................. 71
INTRODUO ............................................................................................................. 73
1. A identidade: das perspectivas essencialistas ao processo de
(re)construo do eu .................................................................................................. 74
2. A identidade de gnero .......................................................................................... 85
2.1. A classe social e Identidade de Gnero ................................................................ 88
2.2. O desenvolvimento da Identidade de Gnero ao Longo da Vida .......................... 91
2.3. O corpo, a sexualidade e a identidade de gnero ................................................ 106
CONCLUSO ............................................................................................................ 112
CAPTULO III CONSTRUO SOCIAL DOS ESTERETIPOS DE GNERO: DAS
INTERPRETAES TERICAS AOS INDICADORES REAIS .................................................. 115
INTRODUO ........................................................................................................... 117
1. Esteretipos de gnero: dos processos de estereotipia s suas
implicaes na vida de homens e mulheres .............................................................. 119
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viii
2. Dos esteretipos de gnero desigualdade na educao escolar ............................ 128
2.1. A responsabilidade da escola na promoo da igualdade de gnero.................... 138
3. A famlia como espao de desigualdade na socializao em funo do
gnero ..................................................................................................................... 143
3.1. A questo da conciliao trabalho-famlia ......................................................... 151
4. Indicadores de desigualdade de gnero em contexto laboral ................................. 155
5. As mulheres e a liderana poltica ........................................................................ 162
CONCLUSO ............................................................................................................ 168
SSEEGGUUNNDDAA PPAARRTTEE IINNVVEESSTTIIGGAAOO EEMMPPRRIICCAA ................................................................................................................ 117711
CAPTULO I CONCEPO, PLANEAMENTO E CARACTERIZAO
METODOLGICA DA INVESTIGAO ............................................................................. 173
INTRODUO ........................................................................................................... 175
1. A investigao qualitativa como opo metodolgica ........................................... 176
1.1. O percurso histrico e epistemolgico da investigao qualitativa ..................... 178
1.2. Os objectivos da investigao qualitativa .......................................................... 184
1.3. A investigao qualitativa e a tradio feminista ............................................... 186
1.4. A credibilidade da investigao qualitativa ........................................................ 192
2. O Desenho de investigao: estudo de casos mltiplos ......................................... 197
3. A tcnica de recolha de dados: a entrevista semiestruturada na
investigao qualitativa............................................................................................ 203
3. 1. Refleces e consideraes ticas associadas entrevista ................................. 211
4. O tratamento da informao recolhida: a opo pela anlise de contedo .............. 212
CONCLUSO ............................................................................................................ 218
CAPTULO II METODOLOGIA ........................................................................................ 221
INTRODUO ........................................................................................................... 223
1. Participantes: casos a estudar ............................................................................... 224
1.1. A classe social .................................................................................................. 225
1.2. A gerao ......................................................................................................... 232
1.3. Caracterizao das participantes ........................................................................ 233
1.3.1. Famlia 1 ........................................................................................................ 235
1.3.2. Famlia 2 ........................................................................................................ 237
1.3.3. Famlia 3 ........................................................................................................ 238
2. Tcnica de recolha de dados ................................................................................. 240
2.1.O processo de construo do guio de entrevista semiestruturada ....................... 240
2.2. A situao de entrevista .................................................................................... 242
2.3. As questes ticas emergentes no estudo ........................................................... 244
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ix
2.4. O processo de transcrio das entrevistas .......................................................... 245
CONCLUSO ............................................................................................................ 246
CAPTULO III CONSTRUO DAS CATEGORIAS DE ANLISE .......................................... 249
INTRODUO ........................................................................................................... 251
1. A lgica subjacente construo das categorias de anlise de contedo................ 252
CONCLUSO ............................................................................................................ 268
CAPTULO IV APRESENTAO DOS RESULTADOS ......................................................... 271
INTRODUO ........................................................................................................... 273
1. Ser mulher: a definio e interpretao da feminilidade ........................................ 274
1.1. Lentes de interpretao biofisiolgica das diferenas entre os sexos .................. 275
1.2. Lentes de interpretao psicolgica das diferenas entre os sexos ...................... 278
1.3. Lentes de interpretao dos papis sociais das diferenas entre os
sexos ....................................................................................................................... 284
2. Identidade de gnero: processos de (re)construo da(s) identidade(s) de
gnero ..................................................................................................................... 291
2.1. Perspectivas essencialistas na interpretao da identidade de gnero .................. 292
2.2. Perspectivas associadas aprendizagem social na interpretao da
identidade de gnero ................................................................................................ 293
2.2.1. A aprendizagem do gnero em contexto familiar ............................................ 293
2.2.2. A aprendizagem do gnero em contexto escolar ............................................. 300
2.2.3. A influncia dos mass media na aprendizagem do gnero ............................... 301
2.2.4. A influncia dos grupos de pares na aprendizagem do gnero ......................... 303
2.2.5. A influncia de outros modelos de feminilidade ou de masculinidade ............. 305
2.2.6. A percepo do conflito entre os modelos de feminilidade .............................. 306
2.3. As evidncias da interseccionalidade na definio da identidade de
gnero ..................................................................................................................... 307
2.4. A percepo das mudanas identitrias associadas s transies de
vida ......................................................................................................................... 316
2.5. A maturidade, o envelhecimento fsico e as transformaes
identitrias associadas .............................................................................................. 325
2.6. A interpretao do corpo, da intimidade e da sexualidade .................................. 326
3. Os esteretipos de gnero: a sua manuteno e reproduo ................................... 332
3.1. A escola e a sua participao na construo das desigualdades de
gnero ..................................................................................................................... 333
3.1.1. A organizao escolar .................................................................................... 333
3.1.2. As relaes com os/as professores/as .............................................................. 337
3.1.3. A percepo sobre o desempenho escolar ....................................................... 339
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x
3.1.4. O percurso escolar.......................................................................................... 341
3.1.5. O alheamento da escola ao combate s desigualdades de gnero ..................... 346
3.2. Os grupos de pares como espaos de aprendizagem de gnero ........................... 348
3.2.1. As interaces entre pares femininos .............................................................. 349
3.2.2. A interaces entre pares masculinos.............................................................. 350
3.2.3. As interaces entre pares mistos ................................................................... 351
3.2.4. A performatividade de gnero no grupo de pares ............................................ 354
3.2.5. A valorizao das amizades ............................................................................ 354
3.2.6. A valorizao do masculino no grupo de pares ............................................... 355
3.3. A famlia como espao gendrificado ................................................................. 357
3.3.1 A famlia durante a infncia ............................................................................ 357
3.3.1.1. A educao de meninas e meninos ............................................................... 357
3.3.1.2. A diferenciao das tarefas atribudas a meninos e meninas ......................... 360
3.3.1.3. A diferenciao das actividades ldicas ....................................................... 362
3.3.2. A famlia durante a adolescncia .................................................................... 363
3.3.2.1. A diferenciao das tarefas para rapazes e raparigas .................................... 364
3.3.2.2. A diferenciao percebida no processo de autonomizao
enquanto mulher (em termos individuais e sociais)................................................... 365
3.3.2.3. O sentimento face diferena em contexto familiar na
adolescncia ............................................................................................................ 369
3.3.3. A famlia na idade adulta................................................................................ 369
3.3.3.1. A diferenciao das tarefas atribudas a homens e mulheres ......................... 369
3.3.3.2. A conjugalidade .......................................................................................... 376
3.3.3.3. A conciliao da vida familiar com a vida profissional ................................ 379
3.3.3.4. O sentimento face diferena em contexto familiar na idade
adulta ...................................................................................................................... 384
3.3.3.5. A valorizao do masculino em contexto familiar ........................................ 387
3.3.4. A atribuio de significados aos papis familiares e hierarquizao
dos papis ................................................................................................................ 388
3.3.4.1. A mulher como filha ................................................................................... 390
3.3.4.2. A mulher como esposa ................................................................................ 392
3.3.4.3. A mulher como me .................................................................................... 394
3.3.4.5. A mulher como av e como neta ................................................................. 395
3.4. A percepo sobre a relao da mulher com o mundo do trabalho ..................... 396
3.4.1. As profisses consideradas femininas ............................................................. 396
3.4.2. As profisses consideradas masculinas ........................................................... 398
3.4.3. As profisses consideradas mistas .................................................................. 400
-
xi
3.4.4. As questes salariais ...................................................................................... 401
3.4.5. Os factores de desvantagem profissional para as mulheres .............................. 403
3.4.6. Os factores de vantagem profissional para as mulheres ................................... 404
3.4.7. As relaes com os colegas de trabalho .......................................................... 405
3.4.8. A valorizao da carreira por parte das mulheres ............................................ 406
3.4.9. O peso da famlia nas decises de carreira ...................................................... 409
3.4.10. O sentimento face diferena em contexto laboral ....................................... 410
3.5. As vises sobre a participao poltica e cvica das mulheres ............................. 413
3.5.1. A conscincia do percurso histrico desigual para homens e
mulheres .................................................................................................................. 413
3.5.2. A importncia da participao das mulheres ................................................... 414
3.5.3. O activismo poltico das mulheres .................................................................. 415
3.5.4. A opinio face Lei da Paridade .................................................................... 415
3.5.5 A participao cvica e comunitria das mulheres ............................................ 417
3.6. As actividades desportivas e de lazer ................................................................. 418
3.6.1. A constatao de diferenas entre os sexos ..................................................... 418
3.6.2. Os sentimentos face s diferenas entre rapazes e raparigas nas
actividades desportivas e de lazer ............................................................................. 420
3.7. Outros contextos de interaco social ................................................................ 421
3.7.1. Os sentimentos face diferena em contextos diversos da vida
social ....................................................................................................................... 423
CONCLUSO ............................................................................................................ 425
CAPTULO V NASCER MENINA, TORNAR-SE MULHER .................................................... 431
INTRODUO ........................................................................................................... 433
1. O que , afinal, ser mulher? ............................................................................. 434
2. O desenvolvimento da(s) identidade(s) de gnero das mulheres........................ 436
3. Os esteretipos de gnero na vida das mulheres ............................................... 441
4. Reflexes em torno das possveis implicaes educativas deste
estudo.................................................................................................................. 444
CONCLUSO ............................................................................................................ 449
CCOONNCCLLUUSSOO GGEERRAALL ...................................................................................................................................................................................................... 445511
RREEFFEERRNNCCIIAASS BBIIBBLLIIOOGGRRFFIICCAA ................................................................................................................................................................ 446699
AANNEEXXOOSS.................................................................................................................................................................................................................................................. 449955
ANEXO 1: GUIO DA ENTREVISTA ................................................................................ 497
ANEXO 2: CLASSIFICAO PORTUGUESA DAS PROFISSES ........................................... 503
-
xii
ANEXO 3: CONSENTIMENTO INFORMADO ..................................................................... 507
ANEXO 4: ESQUEMAS ORGANIZADORES DO PROCESSO DE CATEGORIZAO
DA ANLISE DE CONTEDO .......................................................................................... 511
ANEXO 5: ANLISE DE CONTEDO DAS ENTREVISTAS .................................................. 517
-
xiii
ndice de Quadros1
Quadro 1: Pressupostos Fundamentais para uma Cincia Construcionista Social...................... 64
Quadro 2: Idade Mdia da Me ao Nascimento do Primeiro Filho ......................................... 102
Quadro 3: Taxa de Natalidade ............................................................................................... 103
Quadro 4: Percentagem dos alunos matriculados ................................................................... 130
Quadro 5: Nvel de escolaridade da populao residente em Portugal com mais de
15 anos por sexo (%) ......................................................................................... 131
Quadro 6: Alunos do sexo feminino matriculadas no ensino superior: total e por
rea de educao e formao (%) ....................................................................... 132
Quadro 7: Obteno do grau de doutoramento por sexo (%) .................................................. 133
Quadro 8:Taxa de feminizao dos diplomados em Portugal por rea de educao e
formao ........................................................................................................... 140
Quadro 9: Taxa de actividade das mulheres com filhos .......................................................... 149
Quadro 10: Diviso das tarefas domsticas ............................................................................ 153
Quadro 11: Horas despendidas em tarefas domsticas em casais em que ambos
trabalham .......................................................................................................... 154
Quadro 12: Tempo de trabalho semanal da populao com emprego, por sexo ...................... 154
Quadro 13: Salrio mdio mensal dos trabalhadores por conta de outrem:
remunerao base e ganho por sexo ................................................................... 156
Quadro 14: Ganho mdio mensal dos trabalhadores do sexo feminino e do sexo
masculino por conta de outrem: por nvel de qualificao e do ganho
feminino em relao ao ganho masculino .......................................................... 157
Quadro 15: Populao empregada do sexo masculino e do sexo feminino: a tempo
completo e parcial em Portugal (%) .................................................................. 158
Quadro 16: Populao empregada a tempo parcial por sexo em Portugal e na Unio
Europeia (%) ..................................................................................................... 158
Quadro 17: Distribuio por sexo das lideranas nos negcios em 2008 (%) .......................... 159
Quadro 18: Distribuio por sexo dos membros dos mais altos rgos decisrios
das maiores empresas cotadas na bolsa em 2009 (%) ......................................... 159
Quadro 19: Queixas CITE, desagregadas por assunto (2006-2010) ..................................... 161
Quadro 20: Membros de direco eleitos para associao sindical e comisses de
trabalhadores, por sexo 2010 (%)....................................................................... 162
Quadro 21: Mandatos nas eleies para a Assembleia da Repblica em Portugal:
por sexo (%) ...................................................................................................... 167
1 A numerao dos quadros contnua em todo o trabalho.
-
xiv
Quadro 22: Indivduos eleitos no Governo Central, Ministros, Secretrios de
Estado, por Sexo ............................................................................................... 167
Quadro 23: Classificaes dos tipos de Anlise de Contedo ................................................. 214
Quadro 24: Caracterizao socioprofissional dos casais da primeira gerao de
participantes ...................................................................................................... 228
Quadro 25: Nvel de escolaridade dos casais da primeira gerao de participantes ................. 228
Quadro 26: Caracterizao socioprofissional dos casais da segunda gerao de
participantes ...................................................................................................... 229
Quadro 27: Nvel de escolaridade dos casais da segunda gerao de participantes ................. 229
Quadro 28: Caracterizao socioprofissional dos casais da terceira gerao de
participantes ...................................................................................................... 230
Quadro 29: Nvel de escolaridade dos casais da terceira gerao de participantes ................... 231
Quadro 30: Critrios de seleco dos participantes da investigao ........................................ 233
Quadro 31: Caracterizao das participantes quanto idade .................................................. 233
Quadro 32: Caracterizao das participantes quanto escolaridade........................................ 234
Quadro 33: Caracterizao das participantes quanto profisso ............................................. 234
Quadro 34: Local de realizao das entrevistas ...................................................................... 243
Quadro 35: Tempo das entrevistas e dimenso das transcries ............................................. 246
Quadro 36: Domnios de Anlise........................................................................................... 252
Quadro 37: Subcategorias da categoria Lentes de interpretao biofisiolgica ....................... 257
Quadro 38: Subcategorias da categoria Lentes de interpretao psicolgica .......................... 257
Quadro 39: Subcategorias da categoria Lentes de interpretao dos papis sociais ................ 258
Quadro 40: Subcategorias da categoria Perspectivas ligadas aprendizagem social .............. 259
Quadro 41: Subcategorias da categoria Interaco do gnero com outras
categorias ......................................................................................................... 260
Quadro 42: Subcategorias da categoria (Re)construo da identidade feminina .................... 261
Quadro 43: Subcategorias da categoria Interpretao do corpo, da intimidade e da
sexualidade ....................................................................................................... 261
Quadro 44: Subcategorias da categoria Escola....................................................................... 263
Quadro 45: Subcategorias da categoria Grupo de pares ......................................................... 263
Quadro 46: Subcategorias da categoria A famlia durante a infncia ...................................... 264
Quadro 47: Subcategorias da categoria A famlia durante a adolescncia .............................. 264
Quadro 48: Subcategorias da categoria A famlia na idade adulta .......................................... 265
Quadro 49: Subcategorias da categoria Atribuio de significado aos papis
familiares e hierarquizao dos papis .............................................................. 265
Quadro 50: Subcategorias da categoria Percepo sobre a relao da mulher com
o mundo do trabalho ......................................................................................... 266
-
xv
Quadro 51: Subcategorias da categoria Vises sobre a participao poltica e
cvica ................................................................................................................ 266
Quadro 52: Subcategorias da categoria Outros contextos de interaco social ....................... 267
Quadro 53: Subcategorias da categoria Actividades desportivas e de lazer ............................. 267
ndice de Figuras2
Figura 1: Esquema organizador das categorias e subcategorias do domnio Ser
mulher ................................................................................................................... 253
Figura 2: Esquema organizador das categorias e subcategorias do domnio
Identidade de gnero .............................................................................................. 254
Figura 3: Esquema organizador das categorias e subcategorias do domnio
Domnios de reproduo dos esteretipos de gnero .............................................. 255
Figura 4: Categorias do domnio Ser mulher .......................................................................... 256
Figura 5: Categorias do domnio Identidade de gnero .......................................................... 259
Figura 6: Categorias do domnio Domnios de reproduo dos esteretipos de
gnero .................................................................................................................... 262
2 A numerao das figuras contnua em todo o trabalho.
-
IINNTTRROODDUUOO GGEERRAALL
-
INTRODUO GERAL
As diferenas entre homens e mulheres so uma temtica que tem interessado
no s a comunidade cientfica como tambm a sociedade em geral. O que define a
feminilidade ou a masculinidade tem sido alvo de muita teorizao, inspirado a
literatura, ao longo do tempo, e povoado o senso comum de um saber que procura
justificar as situaes da vida humana, de forma mais ou menos directa, atravs da
dualidade biolgica presente na espcie humana. A dualidade que marca o pensamento
ocidental est presente na interpretao das diferenas de gnero e conceptualiza a
humanidade como dividida em duas espcies com caractersticas prprias, separadas por
uma essncia inata, tambm ela distinta. Compreender estas diferenas tem sido o
objectivo de muita investigao e, neste processo de desenvolvimento terico, alguns
mitos ou ideias apriorsticas do senso comum tm sido postas em causa. cada vez
mais aceite que as diferenas que existem entre homens e mulheres so construdas
socialmente, uma vez que a diferena biolgica no justifica as diferenas observadas
nem a heterogeneidade intra-grupos, no que se refere s categorias homens e mulheres.
Neste trabalho, a educao de pessoas adultas assume-se como rea central para
a qual pretendemos dar um pequeno contributo. Consideramos a educao de adultos/as,
luz da definio proposta pela UNESCO (1976; 1998), como a totalidade dos
processos educativos organizados, qualquer que seja o seu contedo, nvel e mtodo,
quer prolonguem ou substituam a educao inicial em escolas, institutos ou
universidades, que compreendam qualquer aprendizagem, mediante os quais as pessoas
consideradas como adultas, pelas sociedades a que pertencem, desenvolvem as suas
capacidades, incrementam os seus conhecimentos, melhoram as suas qualificaes ou
modificam os seus comportamentos, na dupla perspectiva do seu desenvolvimento
pessoal pleno e da sua participao na vida social, econmica e cultural da comunidade
em que vivem. Nesta perspectiva, a educao de adultos compreende a educao
formal, a educao no formal e toda a gama de oportunidades de educao informal
existentes numa sociedade educativa multicultural.
De acordo com esta viso que define a educao de pessoas adultas num sentido
lato, nosso objectivo perceber atravs da anlise do discurso de mulheres adultas como
que as questes relacionadas com as aprendizagens de gnero percorrem as suas vidas,
participam na (re)construo da(s) sua(s) identidade(s) enquanto mulheres e justificam
as opes e oportunidades que tiveram ao longo do percurso.
-
4 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero
Um outro aspecto que nos parece muito relevante a tentativa de compreender
como que as mulheres, como educadoras, participam na educao das geraes mais
jovens relativamente s questes da mudana ou reproduo dos modelos de
feminilidade ou de masculinidade. Neste sentido, est aqui presente uma dupla
perspectiva de anlise que se, por um lado, procura dar nfase marca que os processos
educativos deixaram na forma como as participantes do nosso estudo se interpretam
como mulheres, por outro lado, visa tambm a indicao de reas de interveno no
domnio da educao de pessoas adultas que tenham como objectivo a promoo da
igualdade de gnero em todas as idades.
A preocupao com a promoo da igualdade de gnero em populaes adultas
decorre da nossa experincia profissional como docente do ensino superior na rea da
formao de professores/as e de educadores/as sociais. Neste contexto, em que
participam jovens adultos/as e adultos/as que retomaram os seus percursos de formao,
tanto a nvel de licenciatura como de mestrado, muitas tm sido as situaes em que
somos confrontada com exemplos em que, de forma mais ou menos implcita, parecem
persistir algumas estereotipias de gnero. Tem sido, para ns, motivo de reflexo o facto
de ver mulheres de todas as idades a condicionar as suas opes e projectos de futuro
pelo facto de serem mulheres. E, paradoxalmente, foi-nos dada oportunidade de poder
observar situaes em que algumas mulheres conciliam a famlia com os estudos e o
trabalho, com uma determinao e esforo dignos de registo, por vezes indicador de
alguma falta de estruturas de conciliao de todos estes domnios da vida, para que estas
mulheres tivessem a oportunidade de o fazer de uma forma mais tranquila e mais
compensadora.
Um outro aspecto que nos motivou para a escolha desta temtica de investigao
foi a constatao da persistncia de indicadores reais de desigualdade entre homens e
mulheres, designadamente, os que dizem respeito s desigualdades laborais,
subrepresentao das mulheres em determinadas reas de estudo no ensino superior (e
dos homens noutras), ainda parca participao das mulheres nas esferas de deciso
poltica, entre muitas outras. Neste sentido, pareceu-nos tambm que o investimento na
rea da educao se afigura como indispensvel para colmatar a insuficincia dos
mecanismos polticos para a promoo da igualdade de gnero, como por exemplo os
Planos Nacionais para a Igualdade.
-
5 Introduo Geral
Apesar de considerarmos que os Planos anteriormente referidos tm constitudo
uma importante fora dinamizadora da promoo da igualdade de gnero, consideramos
que a investigao centrada no discurso das mulheres, reveladora das suas percepes e
interpretaes, nos pode dar pistas importantes que visem uma interveno educativa
mais especfica e contextualizada neste domnios.
As questes de gnero so centrais neste trabalho, mais especificamente as que
dizem respeito construo da(s) identidade(s) feminina(s) ao longo da vida. Propomos
um percurso reflexivo que nos ajude a compreender a forma como as mulheres
interpretam a feminilidade, como se tornaram nas mulheres que dizem ser, e qual o peso
do poder simblico do gnero na organizao e direco dos seus percursos de vida.
Para atingir estes objectivos, ouvir mulheres a falar das suas vidas pareceu-nos o ponto
de partida essencial para esta reflexo e, deste modo, levmos a cabo uma investigao
qualitativa que pretende dar voz s mulheres que nela participam. Esta inteno tem
como pressuposto que as narrativas pessoais permitem um acesso privilegiado s
percepes que as pessoas tm sobre as diferenas entre os sexos, forma como so por
elas interpretadas e leitura que fazem da presena que as (des)igualdades tiveram, tm
e tero nas suas vidas. E, neste enquadramento, ouvir as mulheres em discurso directo,
afigura-se como fundamental para que se percebam quais as estratgias no domnio da
educao de pessoas adultas, especficas e adequadas s suas situaes concretas de
vida.
Deste modo, o objectivo central deste trabalho perceber como que a
educao formal, informal e no-formal participam na construo individual da(s)
identidade(s) de gnero e, neste sentido, importa analisar, no discurso das mulheres, o
papel conferido por elas aos processos educativos presentes no percurso relativo
construo das suas identidades.
Partimos, ento, do pressuposto de que os processos educativos formais,
informais e no-formais so os contextos fundamentais disponveis para a
(re)construo identitria. Assim, o objectivo de compreender os processos associados
construo da identidade de gnero, tanto em homens como em mulheres, no pode
deixar de fora a influncia dos contextos educativos vividos.
Alm disso, a educao tem sempre uma dimenso utpica, no sentido de um
projecto de construo de futuro e, por isso mesmo, acaba por ser no s uma possvel
forma de transmitir os esteretipos de gnero, mas tambm, e sobretudo, pode ser
-
6 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero
entendida como uma estratgia poderosa a utilizar para desocult-los e desconstru-los
em qualquer idade.
Perceber como as estratgias de manuteno dos conceitos culturalmente
definidos associados ao gnero mudam ou permanecem, comparando geraes, pode
dar-nos indicaes preciosas no sentido de contribuir para a construo crtica e
reflexiva de uma educao promotora de igualdade, nada fundamentadora de
estereotipias de gnero ou outras.
Um outro aspecto que gostaramos de salientar que a educao um processo
social que acompanha a pessoa durante toda a sua vida e em todos contextos em que se
movimenta, indo muito para alm da instituio escolar, ou de uma faixa etria
especfica. Neste sentido, a vida adulta assume um papel primordial neste trabalho, no
apenas porque as pessoas adultas participam activamente na educao das geraes
mais jovens, mas tambm porque, enquanto adultos/as, continuam a aprender e sofrer
transformaes que podem ser mediadas, em contextos variados, por processos de
educao e formao, uma vez que o desenvolvimento e a aprendizagem dos indivduos
so processos coextensivos ao prprio ciclo de vida (UNESCO, 2009).
A investigao no domnio dos estudos de gnero tem apontado para a
construo social do conceito de gnero e, consequentemente, para a sua distino do
sexo enquanto entidade de ordem biolgica. Assim, o gnero considerado como uma
elaborao cultural do sexo (Vale de Almeida, 1995), o que lhe atribui um nvel de
complexidade inerente intercepo dos conjuntos de factores sociais que pressupem a
interpretao do corpo sexuado e de um reportrio de comportamentos e normatividades
que distinguem a prpria performatividade inerente ao gnero (Butler, 1990).
Conhecer o percurso dos estudos realizados no mbito das diferenas entre os
sexos permite-nos perceber como tm sido conceptualizadas estas diferenas e
compreender a emergncia de novas questes que problematizam a diferena ao longo
do tempo. Um outro objectivo da anlise crtica dos desenvolvimentos tericos nesta
rea perceber a presena de uma ideologia de desigualdade nos estudos que se
fundamentam na viso dual das diferenas entre homens e mulheres e, tambm, a
manuteno dos seus argumentos no discurso do senso comum respeitante a estas
questes.
-
7 Introduo Geral
Os desenvolvimentos tericos que se tm registado neste domnio esto tambm
muito relacionados com os movimentos sociais que tm dinamizado um activismo
poltico centrado no combate s desigualdades de gnero, na orientao sexual, e
tambm nas reivindicaes de grupos de mulheres que experienciam mltiplas
discriminaes (e. g. Olesen, 2005; Gill, 1997; Butler, 1990).
De acordo com as perspectivas que questionam a essncia feminina e a
homogeneidade da categoria mulher (ou do homem), as questes relacionadas com a
identidade de gnero ganham relevo e, neste sentido, pertinente perceber como que
as pessoas, ao longo do seu percurso, se vo tornando mulheres (ou homens). A
identidade constitui, deste modo, um foco terico muito relevante neste trabalho e acaba
por ser fundamental para perceber as complexidades subjacentes forma como cada
pessoa se interpreta como ser gendrificado3.
Assim, importa compreender que a identidade no pode ser entendida numa
perspectiva essencialista, e portanto, como imutvel. A identidade deve ser percebida
como construda e susceptvel de ser reconstruda e, neste sentido, tributria da
influncia do meio e das circunstncias da vida de cada um/uma. neste sentido que
propomos uma abordagem conceptual que considere a possibilidade de esta ser
considerada no plural. A utilizao da expresso identidade(s) procura dar visibilidade a
duas premissas que nos parecem importantes: (1) a aceitao de que a pertena
categoria social de mulher (ou de homem) no traz consigo uma identidade essencial ou
outorgada comum a todas as pessoas que partilham a pertena a determinada categoria
biolgica; (2) que a identidade de cada pessoa resulta de uma narrativa construda que
incorpora a mudana e a integra, permitindo a cada um/uma a (re)construo de si
mesmo/a, considerando a possibilidade de se ser algum diferente do que se foi no
passado, mas que no absolutamente independente dele.
Um aspecto indelevelmente ligado a esta viso da identidade tem a ver com os
significados disponveis, num determinado contexto sociocultural, para organizar uma
narrativa pessoal que nunca isenta da pertena a uma das categorias sociais de mulher
ou de homem. E, neste processo, sublinhamos o peso decisivo que tm os esteretipos
de gnero, uma vez que acabam por constituir a matria-prima disponvel para
interpretar o gnero e, por isso mesmo, para construir ou redefinir, por parte de cada
pessoa, a prpria identidade de gnero.
3 Gendrificado designa algo que tem gnero ou que marcado por atributos de gnero.
-
8 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero
Desta forma, estes trs aspectos tericos so matriciais no nosso trabalho e
fundamentaram quer o enquadramento terico, que ser apresentado na primeira parte,
quer o estudo emprico desenvolvendo que descrito na segunda parte.
De acordo com os objectivos do trabalho e em conformidade com o
enquadramento terico, a opo metodolgica para o nosso estudo enquadrvel num
paradigma de investigao interpretativo. Neste sentido, a nossa opo metodolgica
pela investigao qualitativa justifica-se sobretudo pelo objectivo de compreender a
forma como as pessoas entrevistadas definem o ser mulher e tornar-se mulher. Devido
complexidade inerente (re)construo da(s) identidade(s) feminina(s), prope-se
uma viso holstica do contexto de vida das mulheres, de forma a que se possa aceder
interpretao destes processos, o que em nosso entender no seria possvel atravs de
estratgias quantitativas de anlise da realidade.
A opo pela investigao qualitativa est tambm relacionada com a tradio
dos estudos feministas e a sua ligao ao desenvolvimento da prpria pesquisa
qualitativa que no , naturalmente, independente dos assuntos estudados e das
epistemologias interpretativas e crticas que os fundamentam (Jrviluoma, Moisala e
Vilkko, 2003; Olesen, 2005). Como aprofundamos na segunda parte desta dissertao,
no captulo dedicado Concepo, planeamento e caracterizao metodolgica da
investigao, a investigao feminista tem, ainda que no exclusivamente, recorrido de
uma forma privilegiada investigao qualitativa, uma vez que atravs desta abordagem
de pesquisa so valorizadas as particularidades e idiossincrasias pessoais e contextuais
em que os pressupostos tericos destas reas assentam. Um outro aspecto que
gostaramos de sublinhar o reconhecimento do contributo que os estudos de gnero
tm dado ao desenvolvimento das metodologias qualitativas, principalmente no que se
refere perspectiva crtica, interpretativa e holstica que propem (e.g., Guba e Lincoln,
2005; Olesen, 2005).
Assim, na planificao da nossa investigao emprica, o estudo de casos
mltiplos afigurou-se como uma opo metodolgica que respeita os pressupostos
tericos e epistemolgicos que nos serviram de bssola. E, neste sentido, a escolha de
trs famlias diferentes do ponto de vista econmico e sociocultural e, em cada famlia,
a seleco de trs mulheres de diferentes geraes (av, me e neta), constituram os
casos seleccionados.
-
9 Introduo Geral
Com este desenho de investigao pretendemos perceber como as
particularidades dos contextos econmicos e socioculturais podem, eventualmente,
influenciar a interpretao que as mulheres fazem de si enquanto mulheres, e das
possibilidades e oportunidades subjacentes s decises relativas gesto da sua vida e,
tambm, averiguar at que ponto se verificam mudanas ou semelhanas entre as trs
geraes entrevistadas, relativamente s questes da (re)construo da(s) identidade(s).
Para alcanar este objectivo, a tcnica de recolha de dados que seleccionmos foi
a entrevista semiestruturada. Esta tcnica de recolha de dados permite, de uma forma
privilegiada, aceder aos discursos das participantes e recolher informaes relativas aos
seus sentimentos, opinies e especificidades das suas vidas, que no seriam acessveis
atravs de um instrumento de recolha de dados mais estruturado, completamente
pr-definido pela pessoa do investigador.
Neste enquadramento, entendemos que a entrevista semiestruturada nos permite
um maior conhecimento das participantes e o estabelecimento de uma relao
privilegiada com elas, que possibilita o aprofundamento das questes abordadas e a
clarificao de situaes e aspectos particulares referidos pelas prprias.
Esta dissertao encontra-se dividida em duas partes. Na primeira
Enquadramento Terico feita a reviso da literatura cientfica em torno de trs
aspectos que consideramos fundamentais, a saber: (I) Do sexo ao gnero: as leituras da
diferena entre homens e mulheres; (II) (Re)construo da(s) identidade(s) de gnero; e
(III) Construo social dos esteretipos de gnero: das interpretaes tericas aos
indicadores reais.
No primeiro captulo Do sexo ao gnero: as leituras da diferena entre
homens e mulheres procura-se a clarificao conceptual em torno do conceito de
gnero. Neste percurso nossa inteno dar conta do rico debate terico que deriva da
evoluo e complexificao da discusso em torno do constructo em anlise. Neste
processo referimos tambm algumas lentes de interpretao das diferenas entre homens
e mulheres, designadamente, a lente de interpretao biolgica, a lente de interpretao
psicanaltica, a lente de interpretao psicomtrica e a leitura sociolgica da
diferenciao com base na atribuio dos papis sociais. Posteriormente, propomos uma
reflexo acerca da insuficincia das anlises que assentam em perspectivas duais de
interpretao das diferenas entre os sexos e tambm a anlise da diferenciao
valorativa de gnero, que tende a desvalorizar as caractersticas normalmente atribudas
-
10 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero
s mulheres. Terminamos este captulo com uma breve abordagem ao construcionismo
social como lente de anlise das questes de gnero, que tende a fomentar uma viso
dialctica na interpretao dos comportamentos de gnero.
O segundo captulo do nosso enquadramento terico (Re)construo da(s)
identidade(s) de gnero pretende constituir um aprofundamento reflexivo em torno
do conceito de identidade. E, neste sentido, prope a considerao da evoluo do
conceito de identidade. Neste processo, partimos da anlise das perspectivas
essencialistas da identidade, que pressupem a existncia de uma essncia definidora do
Eu. Esta essncia perspectivada como una, indivisvel e imutvel. Posteriormente,
apresentamos vrias vises tericas que contestam o essencialismo, como, por exemplo,
o empirismo ou o marxismo. Neste enquadramento reflexivo, referimos tambm a
insuficincia das abordagens essencialistas e deterministas para compreender a
identidade em contextos actuais. J que nas sociedades dos nossos dias, torna-se
necessrio que a identidade seja interpretada de uma forma dinmica, que enquadre no
apenas uma dimenso de anlise contextual, mas tambm temporal. O eixo temporal
enquanto matriz que sustenta a narrativa que cada um/uma constri da sua vida
incorpora o passado e o futuro de cada pessoa, sendo que esta no se pode definir e
entender sem a considerao do seu passado e dos seus projectos de futuro. As reflexes
desenvolvidas em redor da complexidade do conceito de identidade conduziram-nos
adopo de uma viso plural do prprio conceito, como j tivemos oportunidade de
referir.
Terminamos a primeira parte deste trabalho com o captulo Construo social
dos esteretipos de gnero: das interpretaes tericas aos indicadores reais. Neste
captulo procuramos clarificar o conceito de esteretipo enquanto construo social e
clarificar o conceito de estereotipia e os seus processos de transmisso. So tambm
analisados diversos mbitos da vida quotidiana em que os conceitos culturalmente
definidos de gnero tendem a ser veiculados, como a escola, a famlia, o mercado de
trabalho e a liderana poltica. Nas seces que dedicamos a cada um destes domnios
feita a reviso da investigao e so tambm apresentados indicadores estatsticos
relativos ao nosso pas, que procuram demonstrar a situao de desigualdades com base
no gnero a que ainda se assiste, no obstante as importantes evolues que tm
ocorrido.
-
11 Introduo Geral
A segunda parte do trabalho descreve o estudo emprico levado a cabo e est
organizada em cinco captulos. So eles: (I) Concepo, planeamento e caracterizao
metodolgica da investigao, em que se justificam e fundamentam as opes
metodolgicas que estruturam o estudo; (II) Metodologia, em que se descrevem
pormenorizadamente os procedimentos inerentes implementao e conduo do
estudo; (III) Construo das categorias de anlise, em que se descrevem a lgica e os
procedimentos relativos anlise de contedo dos discursos das nossas participantes;
(IV) Apresentao dos Resultados, que pretende ser a descrio da informao obtida
atravs das entrevistas devidamente organizada, em funo das categorias de anlise
definidas; e, por fim, (V) Nascer menina, tornar-se mulher, que procura ser uma sntese
interpretativa construda a partir dos discursos das participantes.
No que concerne ao primeiro captulo Concepo, planeamento e
caracterizao metodolgica da investigao este dedicado apresentao e
justificao das decises metodolgicas subjacentes organizao do nosso estudo
emprico. Assim, nele so feitas algumas consideraes sobre os fundamentos
epistemolgicos da investigao qualitativa, designadamente no que diz respeito ao
desenvolvimento histrico da investigao qualitativa, aos objectivos gerais
preconizados pela abordagem qualitativa da pesquisa, e associao dos estudos
feministas e das metodologias qualitativas, na anlise dos contributos recprocos para o
seu desenvolvimento mtuo. Finalizamos esta parte do captulo com algumas
consideraes sobre a credibilidade da investigao qualitativa.
O desenho de investigao definido e justificado na segunda seco deste
captulo, que procura fundamentar a nossa opo em relao escolha do estudo de
casos mltiplos. Posteriormente, na seco seguinte, abordamos a entrevista
semiestruturada como tcnica de recolha de dados, caracterizando-a, identificando os
seus principais objectivos e ainda, efectuando uma reflexo acerca das preocupaes
ticas associadas a esta estratgia de recolha de dados. Para terminar este captulo
dedicado planificao do nosso estudo, fazemos uma breve abordagem tcnica de
tratamento de dados seleccionada a anlise de contedo.
O segundo captulo da parte emprica deste trabalho dedicado Metodologia.
Nele procuramos de uma forma pormenorizada dar conta da conduo do processo de
investigao na sua dimenso emprica. Neste sentido, so descritos todos os passos
dados para a seleco das participantes do nosso estudo e feita a caracterizao das
pessoas entrevistadas. No que diz respeito tcnica de recolha de dados, tambm
-
12 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero
descrito o processo de construo do guio de entrevista, so explicitadas as condies
de realizao das entrevistas, feita uma reflexo acerca de alguns aspectos ticos
inerentes situao e so referidos os procedimentos de transcrio das entrevistas.
Dedicamos o terceiro captulo, desta segunda parte da dissertao, descrio da
lgica subjacente construo das categorias de anlise de contedo da informao
recolhida atravs da entrevista, clarificando a organizao das categorias e
subcategorias de anlise, assim como os indicadores referentes a cada uma delas.
A apresentao dos resultados da nossa investigao feita no quarto captulo e
organiza-se em funo da construo das categorias de anlise de dados apresentada no
captulo anteriormente referido. Assim, distinguem-se trs grandes domnios segundo os
quais foram organizadas as informaes recolhidas, a saber: (1) Ser mulher: a definio
e interpretao da feminilidade; (2) Identidade de gnero: percursos de (re)construo
da(s) identidade(s) de gnero e (3) Os esteretipos de gnero: a sua manuteno e
reproduo. Neste captulo, eminentemente descritivo, e por isso o mais longo desta
parte da dissertao, procuramos ser fiis ao(s) discurso(s) das nossas participantes,
dando visibilidade aos significados que nos pareceram estar presentes naquilo que
ouvimos.
No ltimo captulo deste trabalho, procuramos fazer uma sntese reflexiva a
partir de uma viso geral da informao recolhida, arriscando uma perspectiva
interpretativa dos discursos das entrevistadas. Ainda neste captulo dedicamos a ltima
seco do mesmo s implicaes das nossas concluses para o domnio da educao e
formao de pessoas adultas tendo em vista a promoo da igualdade de oportunidades
e a abolio de eventuais formas de discriminao baseadas no gnero ou outras.
Na concluso geral desta tese falamos das limitaes metodolgicas do trabalho
que desenvolvemos e deixamos tambm em aberto sugestes para estudos futuros neste
domnio.
Com este trabalho propomos um percurso que parte da experincia de vida de
nove mulheres e que atravs da anlise dos seus discursos, das suas semelhanas e das
suas idiossincrasias, procura um aprofundamento reflexivo em torno da educao e
formao de pessoas adultas no sentido da promoo da igualdade de oportunidades e
do combate s discriminaes baseadas no gnero, em todas as idades.
-
PPRRIIMMEEIIRRAA PPAARRTTEE
EENNQQUUAADDRRAAMMEENNTTOO TTEERRIICCOO
-
Captulo I
Do sexo ao gnero: as leituras da
diferena entre homens e mulheres
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Captulo I
Do Sexo ao Gnero: as leituras da diferena entre Homens
e Mulheres
INTRODUO
O gnero, enquanto elaborao cultural do sexo, um vector fundamental na
construo da identidade de qualquer pessoa. Em funo do sexo da criana comeam a
ser tomadas decises que mais no so do que o incio de um longo processo de
construo de gnero, que se prolonga pela vida fora.
Mesmo antes de nascer, o nome prprio4 a dar criana definido em funo do
sexo anatmico do beb, e acompanh-lo- como marca distintiva da sua unicidade, e
como elemento identificativo num determinado contexto social, permitindo a
auto-identificao e a hetero-identificao.
A par da escolha do nome, outras decises, aparentemente mais subtis, vo
sendo tomadas em funo do sexo da criana, construindo o ambiente em que a criana
se vai desenvolver, as cores das roupas, a decorao do quarto do beb e at a escolha
dos brinquedos oferecidos criana. E, desta forma que o sexo interpretado
culturalmente dando lugar ao gnero.
Assim, a diferena anatmica interpretada e as crianas crescem em contextos
que, de uma forma mais ou menos subtil, evidenciam concepes tradicionais ou
hegemnicas de feminilidade ou de masculinidade e, partindo das diferenas biolgicas,
constroem-se outras diferenas de cariz cultural.
Contudo, a construo da identidade de gnero no um processo que termine
na infncia ou na adolescncia; um processo que acompanha toda a existncia dos
indivduos.
4 Em Portugus, d-se a designao de nome prprio ao nome escolhido e, normalmente, pelo qual a
pessoa tratada, pelo menos em contextos prximos e familiares, que ser completado pelo apelido, ou
sobrenome, que se constitui pela associao do nome de famlia da me e pelo nome de famlia do pai. Na
vida adulta, por vezes o apelido substitui o primeiro nome no tratamento interpessoal, principalmente nas
relaes de carcter mais formal, e este facto, a verificar-se, ocorre sobretudo nos homens e s muito
raramente nas mulheres.
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18 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero
Ao longo da vida, as lentes de gnero esto sempre presente e a forma como o
gnero interpretado pode condicionar as escolhas e aspiraes dos indivduos, os seus
comportamentos e atitudes. Neste sentido, abordar o desenvolvimento humano de
determinada pessoa, , tambm abordar o gnero e as questes que lhe esto associadas,
num mbito que se estende muito para alm do sexo ou da sexualidade.
O aprofundamento desta questo impe a chamada de ateno para a
inevitabilidade da distino entre sexo e gnero. Uma das razes da importncia da
utilizao do conceito de gnero e a sua distino da palavra sexo foi, na perspectiva de
Gisela Bock (2008), a insistncia em que os estudos das mulheres no dizem respeito
sexualidade, ao seu papel como esposas, maternidade, mas sim s mulheres em todos
os passos das suas vidas (p. 85), salientando, ainda, que os estudos sobre as mulheres
referem-se no apenas s mulheres mas a toda a humanidade, uma vez que o gnero
relacional e portanto uma questo que envolve homens e mulheres.
Neste primeiro captulo pretende-se, num primeiro momento, clarificar a
distino entre sexo, enquanto varivel biolgica, e gnero, enquanto construo social.
E, seguidamente, procuram analisar-se diferentes propostas tericas que tm como
objectivo interpretar, compreender e explicar as diferenas entre homens e mulheres.
Assim, e tentando dar cumprimento a estes objectivos, comeamos por reflectir
em torno do conceito de gnero e a sua complexidade, iniciando esta reflexo com
referncias a alguns autores/as que se debruaram sobre esta temtica, como por
exemplo, Lewis Terman e Catharine Miles (1936), Simone de Beauvoir (1946/2009)5,
Anne Constantinople (1973), Sandra Bem (1974) e Janet Spence (1985), Joan Scott
(1986), Judith Butler (1990) e Susan Bordo (1990). A diversidade das perspectivas
apresentadas tem como finalidade o aprofundamento de questes que vo sendo
levantadas na discusso em torno do conceito de gnero.
Esta discusso tem sido muito rica, por nela participarem autores/as de reas de
conhecimento distintas, mas interligadas, como a psicologia, a histria, a sociologia, a
filosofia e a poltica, o que confere aos estudos de gnero um carcter que de acordo
com Joo Oliveira (2019) particularmente til para compreender e ler um mundo
onde se perdeu a iluso da estabilidade identitria (p. 26). Por outro lado, a par dos
desenvolvimentos tericos e disciplinares, alguns movimentos sociais, como os grupos
5 A obra consultada e referida ao longo deste trabalho uma reedio de 2009, da Quetzal
Editores.
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19 Do Sexo ao Gnero: as leituras da diferena entre Homens e Mulheres
feministas ou os grupos de reivindicao dos direitos dos homossexuais e transexuais,
tm contribudo com importantes consideraes que, muitas vezes, se constituem como
desafios que se vo colocando na tentativa de definir o gnero.
Esta reflexo continua na anlise de algumas perspectivas tericas que se
propem compreender e explicar as diferenas de gnero. Iniciamos com a anlise das
diferenas biolgicas entre homens e mulheres, sublinhando a forma como, ao longo do
tempo, tm sido apresentados argumentos biolgicos para legitimar as assimetrias de
gnero e a desvalorizao social da mulher.
Referimos, a seguir, a leitura psicanaltica das diferenas de gnero. E, no
quadro da psicanlise, destacamos a teoria freudiana, a escola francesa de orientao
lacaniana e a escola anglo-americana.
Na perspectiva psicomtrica da abordagem das diferenas de gnero muito
influenciada pela tradio positivista dos estudos cientficos em Psicologias, referimos
um conjunto de pesquisas que procuraram avaliar, atravs de questionrios e
inventrios, as diferenas entre homens e mulheres. Estes trabalhos deram um grande
contributo para o desenvolvimento do constructo de gnero, porque permitiram um
progressivo afastamento conceptual do sexo biolgico. A medio das caractersticas
masculinas e femininas possibilitou, desde os trabalhos de Lewis Terman e Catharine
Miles (1936) at aos de Janet Spence (1985), uma enorme evoluo que se repercutiu
nas formas como tm sido vistas as questes de gnero.
As perspectivas sociolgicas so tambm referidas, designadamente, as de cariz
funcionalista, que interpretam as diferenas entre homens e mulheres como resultado da
organizao familiar e social. Assumia-se, neste enquadramento, que a gnese das
diferenas estaria nas diferentes funes desempenhadas por homens e mulheres no
interior da famlia e, tambm, na esfera pblica. Referimos, neste ponto, os trabalhos de
Talcott Parsons e Robert Bales (1956) e de Franoise Hritier (1998).
No ponto relativo Insuficincia da Dualidade para a Anlise do Gnero
tecem-se algumas consideraes crticas acerca das vises dualistas e polarizadas de
gnero, questionando alguns dos fundamentos tradicionais subjacentes prpria
dualidade.
Seguidamente, propem-se a anlise da diferenciao valorativa de gnero,
referindo a ideologia que legitima a desvalorizao do feminino. Neste ponto, as
questes do poder so equacionadas assim como a diminuta representatividade das
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20 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero
mulheres nas esferas do poder e no topo de carreiras profissionais de elevado estatuto
social.
Para concluir a reflexo em torno do gnero, abordaremos o construcionismo
social e a sua anlise das questes de gnero. Esta perspectiva terica prope a
desconstruo do conhecimento tradicionalmente apresentado e, a partir deste exerccio
de desconstruo, analisa os diferentes discursos dos actores sociais, valorizando a
atribuio de significado.
A preocupao subjacente a abordagem terica destas questes est relacionada
com os objectivos propostos para o nosso estudo emprico, na medida em que o guio
de entrevista proposto prev um conjunto de questes sobre o que ser mulher e como
so interpretadas as diferenas entre homens e mulheres.
1. Reflexes em torno do conceito de gnero
A fim de aprofundarmos a reflexo acerca do conceito de gnero relevante o
conhecimento do percurso histrico do pensamento feminista. O pensamento feminista
tem-se caracterizado por um desenvolvimento que reflecte o contexto social, econmico
e poltico em que surge e em que se desenvolve, e ilustra uma grande diversidade, quer
a nvel conceptual, quer a nvel das prticas e reivindicaes das mulheres.
Os primeiros movimentos organizados de defesa dos direitos das mulheres,
tributrios dos ideais da Revoluo Francesa, aparecem em meados do sculo XIX,
reivindicando direitos civis para as mulheres, designadamente, direitos polticos, direito
educao e ao emprego. A palavra igualdade , ento, constituda como a palavra de
ordem, deixando perceber a tomada de conscincia da penalizao e excluso,
sobretudo da esfera pblica, subjacente pertena ao sexo feminino (Saavedra, 2005).
Paralelamente, afirmao da necessidade de efectivar a igualdade entre os sexos no
acesso a direitos civis, reivindicao das mulheres pertencentes burguesia, e
profundamente inspirada nos pressupostos individualistas das ideologias Liberais,
surgem, sobretudo nos meios de mulheres das classes trabalhadoras, reivindicaes de
igualdade, entre os sexos, no que se refere melhoria das condies econmicas e
sociais, sendo clara a inspirao nas ideologias Socialistas/Marxistas. Assim, e de forma
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21 Do Sexo ao Gnero: as leituras da diferena entre Homens e Mulheres
sinttica, podemos afirmar que estes movimentos de primeira vaga6 centram o seu
discurso na igualdade entre sexos.
A principal caracterstica do feminismo de segunda vaga a conceptualizao
da classe feminina como grupo oprimido7. De acordo com esta perspectiva, a opresso
de que as mulheres eram vtimas afectava no s a esfera pblica como, tambm, a
esfera privada. A anlise social das diferenas de gnero e a crtica sociedade
patriarcal, enquanto a mais importante estrutura de desigualdade social, constituem as
bandeiras ideolgicas desta segunda vaga que so, terica e ideologicamente,
sustentadas pelo feminismo radical.
A terceira vaga questiona a concepo da mulher como categoria de
caractersticas fixas, essencialistas e imutveis. Consideram-se, agora, as novas
perspectivas referentes construo social das diferenas de gnero e os seus aspectos
dinmicos e contextuais.
As novas abordagens estrutura e organizao do poder questionam a
perspectiva da opresso das mulheres pela diviso do trabalho, defendendo que o poder
no especfico de determinados grupos, mas difuso, descentralizado e horizontal,
percorrendo todas as relaes e interaces sociais (Foucault, 2003).
Esta nova perspectiva valoriza sobretudo a diferena entre as mulheres,
propondo outros vectores de subordinao e privilgio para alm do gnero, como a
raa, a classe social, a idade e as preferncias sexuais (Saavedra, 2005).
Assim, foi durante a segunda vaga de feminismo que a distino entre sexo e
gnero se assumiu como uma tentativa de separar o sexo biolgico do social: o gnero.
De acordo com Conceio Nogueira, Sofia Neves e Carlos Barbosa (2005) esta
distino veio permitir a crtica social.
, tambm, importante destacar que os movimentos feministas da dcada de 70,
do sculo XX, deram ao conceito de gnero o estatuto de categoria de anlise.
Fizeram-no, distinguindo o sexo, de natureza biolgica e anatmica, do gnero, sendo
este um constructo relacionado com aspectos culturais utilizados para justificar
6 Para melhor compreender o Feminismo enquanto Teoria e Crtica Social recorremos diviso deste
movimento em trs vagas de acordo como o proposto por Alexandra Kaplan (1992): feminismo de
primeira vaga, que se inicia em meados do sculo XIX; feminismo de segunda vaga, situado entre as
dcadas de 60 e 80 do sculo XX; e feminismo de terceira vaga, a partir de meados da dcada de 80
(Kaplan, 1992, citada por Nogueira, 2001, pp. 131-142). 7 A referncia ao grupo das mulheres como grupo social marcado pela opresso est, particularmente,
presente nas abordagens marxistas do feminismo.
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22 Ser e tornar-se mulher: Educao, gerao e identidade de gnero
comportamentos ditos como femininos ou masculinos. De acordo com Gisela Bock
(2008), o conceito de gnero entendido como uma categoria social, cultural e poltica
que exprime a noo de que a subordinao feminina no tem origem natural, mas sim
cultural, histrica e poltica.
O gnero construdo socialmente e incorpora as justificaes culturais, e
portanto contextuais, presentes nos discursos sobre a diferenciao entre homens e
mulheres. Desta forma, sublinhado que, apesar das diferenas entre homens e
mulheres, do ponto de vista biolgico, serem inegveis, elas no justificam as diferenas
culturais supostamente inerentes feminilidade ou masculinidade.
O discurso feminista recorre ao conceito de gnero para evidenciar as diferenas
entre o biolgico e cultural, no que diz respeito aos factores de diferenciao entre
homens e mulheres. , neste sentido, que Ana Correia (2009) afirma que a utilizao do
conceito de gnero tem como objectivo argumentar que as diferenas biolgicas,
embora reais, no justificavam as diferenas em termos de papis sociais que a partir
delas as sociedades patriarcais tinham institudo, com o objectivo de criar na sociedade
e nas prprias mulheres uma noo de identidade que as associava ao espao privado e
s tarefas domsticas (p. 29). Seguindo esta perspectiva, Miguel Vale de Almeida
(1995) afirma, tambm, que o gnero a elaborao cultural do sexo (p. 128), o que
se consubstancia na variao cultural dos papis femininos e masculinos, bem como nos
traos de personalidade-tipo tidos como normais para cada sexo em cada cultura.
A percepo da necessria distino entre os aspectos biolgicos e os aspectos
culturais na anlise das diferenas entre homens e mulheres , contudo, anterior s
teorias feministas dos anos 70, do sculo XX. A antroploga Margaret Mead, em 1935,
defendeu que o sexo biolgico mas o comportamento sexual uma construo social,
o que implicitamente prope a diferena entre sexo e gnero.
Da mesma forma, Simone de Beauvoir, em 1946, chamaria a ateno para o
facto de, na ordem simblica, a diferena sexual no ser acidental. Ningum nasce
mulher: torna-se mulher, escrevia Beauvoir, numa formulao que se tornaria famosa
nos estudos feministas. Sublinhava, desta forma, o carcter social e cultural da
feminilidade, e tornava evidente que ser mulher resulta de um processo de construo
social, que vai muito para alm dos atrib