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"Sequestro no tempo": gênero, poder e a reconstrução da memória colonial em Kindred Dandara Ribeiro 1 Sara Ramos 2 Palavras-Chave: Kindred, memória, necropolítica, violência, tempo. Resumo: O presente trabalho tem como objeto de estudo Kindred: Laços de Sangue, da escritora negra estadunidense Octavia Butler, publicado originalmente em 1979. Kindred é narrado em primeira pessoa por Dana, uma escritora negra de 26 anos que se vê bruscamente transportada para outro tempo e espaço sempre com o intuito inicial de salvar a vida de um antepassado branco. Salvá-lo significava garantir a sua própria existência. Investigam-se, aqui, as relações de poder que incidem sobre o microcosmo fictício da colônia narrada; de que forma se dá a experiência da mulher com a escravidão; de que maneiras o poder escravocrata incide sobre Dana, de corpo e mente livres e como esse corpo interfere nas vidas e no cotidiano dos que ali vivem, ao passo em que também é afetado. Essas interseções serão trabalhadas, sobretudo, a partir dos pensamentos de bell hooks a respeito de raça e gênero; Achille Mbembe, em A Crítica da Razão Negra e Necropolítica, além dos pensamentos de Frantz Fanon e Grada Kilomba, no que diz respeito às violências e poderes coloniais. Introdução Kindred: Laços de Sangue foi publicado originalmente em 1979. Apenas em 2017, ganha a sua versão para o português, sendo a primeira obra da autora a ser publicada no Brasil. Octavia Butler, conhecida como “a grande dama da ficção científica”, publicou catorze livros de ficção – gênero até então extremamente masculinizado e branco. Seu trabalho não se esquivou de evocar temáticas como as de raça e gênero: “Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco.” Com esta frase, Butler abre Kindred. Com certa frequência, a ficção científica traz à tona a temática da viagem no tempo, seja esta o centro do enredo ou percurso para o desenrolar da narrativa. Kindred narra a história da personagem Dana, uma escritora negra estadunidense de vinte e seis anos que se vê subitamente transportada para uma fazenda escravagista do período colonial. Na trama, a protagonista acabara de se mudar para uma casa própria com seu companheiro branco, Kevin, também escritor. Durante a organização dos livros, Dana sente náuseas, sua visão fica borrada e a sala começa a desaparecer é quando percebe que havia se locomovido para um outro lugar: havia uma mata, um rio e um menino que se afogava. A escritora salva a vida do garoto, de nome Rufus Weylin e, quando percebe, o pai do menino aponta um rifle em sua direção. Dana é, então, transportada de volta para casa. A partir desse momento, Dana e o leitor começam a ser levados, sem aviso prévio e contra a vontade, para a fazenda que, posteriormente, a protagonista passa a 1 Professora. UFRJ. 2 Pesquisadora. UFRJ.

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Page 1: Sequestro no tempo: gênero, poder e a reconstrução da ... · importando de que forma tenham acontecido, até o momento da primeira viagem de Dana no tempo. Entender que Dana é

"Sequestro no tempo": gênero, poder e a reconstrução da memória colonial em Kindred Dandara Ribeiro1 Sara Ramos2 Palavras-Chave: Kindred, memória, necropolítica, violência, tempo. Resumo: O presente trabalho tem como objeto de estudo Kindred: Laços de Sangue, da escritora negra estadunidense Octavia Butler, publicado originalmente em 1979. Kindred é narrado em primeira pessoa por Dana, uma escritora negra de 26 anos que se vê bruscamente transportada para outro tempo e espaço sempre com o intuito inicial de salvar a vida de um antepassado branco. Salvá-lo significava garantir a sua própria existência. Investigam-se, aqui, as relações de poder que incidem sobre o microcosmo fictício da colônia narrada; de que forma se dá a experiência da mulher com a escravidão; de que maneiras o poder escravocrata incide sobre Dana, de corpo e mente livres e como esse corpo interfere nas vidas e no cotidiano dos que ali vivem, ao passo em que também é afetado. Essas interseções serão trabalhadas, sobretudo, a partir dos pensamentos de bell hooks a respeito de raça e gênero; Achille Mbembe, em A Crítica da Razão Negra e Necropolítica, além dos pensamentos de Frantz Fanon e Grada Kilomba, no que diz respeito às violências e poderes coloniais.

Introdução

Kindred: Laços de Sangue foi publicado originalmente em 1979. Apenas em

2017, ganha a sua versão para o português, sendo a primeira obra da autora a ser publicada no Brasil. Octavia Butler, conhecida como “a grande dama da ficção científica”, publicou catorze livros de ficção – gênero até então extremamente masculinizado e branco. Seu trabalho não se esquivou de evocar temáticas como as de raça e gênero: “Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco.” Com esta frase, Butler abre Kindred.

Com certa frequência, a ficção científica traz à tona a temática da viagem no tempo, seja esta o centro do enredo ou percurso para o desenrolar da narrativa. Kindred narra a história da personagem Dana, uma escritora negra estadunidense de vinte e seis anos que se vê subitamente transportada para uma fazenda escravagista do período colonial.

Na trama, a protagonista acabara de se mudar para uma casa própria com seu companheiro branco, Kevin, também escritor. Durante a organização dos livros, Dana sente náuseas, sua visão fica borrada e a sala começa a desaparecer – é quando percebe que havia se locomovido para um outro lugar: havia uma mata, um rio e um menino que se afogava. A escritora salva a vida do garoto, de nome Rufus Weylin e, quando percebe, o pai do menino aponta um rifle em sua direção. Dana é, então, transportada de volta para casa.

A partir desse momento, Dana e o leitor começam a ser levados, sem aviso prévio e contra a vontade, para a fazenda que, posteriormente, a protagonista passa a

1 Professora. UFRJ. 2 Pesquisadora. UFRJ.

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entender que era o “lar” de seus antepassados. Um deles era o menino branco, Rufus. Sua locomoção possui como gatilho a iminência de morte do garoto. A intervenção da personagem era essencial, porque garantir a sobrevivência dele era garantir a sua própria existência.

O tempo na narrativa aparece como mecanismo de transformação da subjetividade de Dana. Mas essa transformação não se dá de maneira abrupta, ela acontece gradualmente à medida que Dana vai compreendendo o lugar e o tempo para onde ela viajava recorrentemente. Ao passo que compreende que sua “viagem no tempo” não é uma viagem e sim um retorno e o que envolve este retorno, Dana, compreende também que esse retorno é de natureza totalmente inesperada e inexplicável, mas não por isso impossível. Pensar o provérbio nagô “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje” (SODRÉ, 2017, p. 171) por um viés filosófico e literário, diferentemente do que propõe Muniz Sodré em seu livro Pensar Nagô, contribui para a busca da percepção do tempo, tão importante na narrativa.

O enunciado em tela referente a Exu bem poderia ser interpretado como um axioma moral que busca no presente a chave motriz das ações desencadeadas no passado em contraposição reflexiva à lei de causa e efeito ou à ideia ocidental de progresso como efeito de ações passadas. Seria, portanto, uma valorização do passado, do vigor de fundação do grupo. (SODRÉ, 2017 p. 171)

Desse modo, Dana seria então aquilo que Muniz Sodré chamou de “chave motriz”, ou seja, o que impulsionou e ocasionou o movimento dos acontecimentos passados. Não importando de que forma tenham acontecido, até o momento da primeira viagem de Dana no tempo. Entender que Dana é o resultado de um passado e que esse fruto, agora, carregado para o passado, pertence à sua história e é essencial para a manutenção da sua existência, revela algum tipo de conexão ancestral que pede ajuda ao seu próprio futuro. Esse dinamismo espaçotemporal, cuja capacidade de transportar corpos é conferida somente a Dana, é a comunicação direta existente entre esses dois tempos distantes.

A ‘comunicação’ não pode acontecer a partir de um ser pleno e intacto para um outro: ela precisa estar naquele ponto em que se encontre posto em jogo o ser – em si mesmo – no limite da morte, do nada (néant). (BATAILLE, 1970, p. 51 apud SODRÉ, 2017 p. 176).

Essa comunicação a que se refere Bataille e que Sodré se utiliza para falar da “comunicação inerente à relação entre deuses e homens, portanto, nos termos da cosmogonia iorubá, entre o espaço supressensível (orun) e o natural (aiê)” (SODRÉ, 2017, p. 177), aqui nos serve perfeitamente para demonstrar de que forma se dá a comunicação entre os dois tempos em Kindred. Mesmo sem a compreensão de que tipo de mecanismo universal é capaz de transportá-la para o passado, Dana entende que a comunicação entre seu presente e seu passado, dois tempos distintos, só acontecem onde está “posto em jogo o ser”, “no limite da morte”. É a partir da descoberta de que sua viagem é desencadeada por um pedido de ajuda, mesmo que inconsciente, que o tempo passa a ser o mecanismo de transformação da subjetividade de Dana. Achille Mbembe afirma que “tempo e sujeito mantêm uma conexão interna e que, consequentemente, analisar o tempo é ter acesso à estrutura concreta e íntima da subjetividade” (MBEMBE, 2014, p. 214), ou seja, o “quem sou eu?” depende

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diretamente da passagem do tempo e, no caso de Dana, do “em que tempo estou?”. Mbembe afirma ainda:

Poderemos facilmente adaptar à memória, e até à recordação, aquilo que Merleau-Ponty afirma acerca do tempo: que memória e recordação são, fundamentalmente, formas de presença do passado (dos seus traços, dos seus restos e fragmentos) na consciência, quer seja uma consciência racional ou uma consciência onírica e imaginária. (MBEMBE, 2014, p. 207)

Dessa forma, experienciar um tempo outro seria semelhante a recordar. Mas ainda que a memória e lembrança mantenham essa ligação com a subjetividade, não seriam capazes de transformá-la da mesma maneira que uma viagem no tempo, que um retorno ao convívio junto de seus antepassados. Caberia à consciência e aos saberes da Dana do presente, resgatar a Dana que vive agora em seu próprio passado, ao passo em que seu tempo presente continua no avanço em direção ao futuro.

“Está vendo como as pessoas são escravizadas com facilidade?” (BUTLER, 2017, p. 283

Butler realiza, pela ficção, uma representação direta e fria das atrocidades da

escravidão. A falta de controle de Dana quanto à viagem no tempo é sintomática. Na colônia, o corpo negro não tinha conhecimento prévio e muito menos controle de para onde (ou quando) poderia ser levado. Traficantes negreiros e senhores não levavam em conta parentescos ou laços entre os negros na hora de capturá-los em África ou de comercializá-los entre as fazendas americanas. Após a primeira travessia, um terror se instala em Dana: a incerteza e a falta de controle sobre seu corpo, a possibilidade de ser levada novamente a qualquer momento:

Temi que a tontura pudesse voltar enquanto eu estivesse no chuveiro, temi cair e rachar a cabeça no azulejo ou voltar para aquele rio, seja lá onde fosse, e acabasse entre desconhecidos. Ou aparecer em algum outro lugar, nua e totalmente vulnerável. (BUTLER, 2017, p. 31)

Durante a travessia pelo atlântico e também nas fazendas, mulheres negras

eram constantemente submetidas à nudez e à violência sexual. Quando castigadas ou punidas, à diferença dos homens negros, eram quase sempre desnudadas. A nudez forçada era como uma ameaça e um aviso prévio de que seus corpos poderiam ser, a qualquer momento, violados, causando nas escravas essa sensação de completa vulnerabilidade:

A nudez da mulher africana servia como um lembrete constante de sua vulnerabilidade sexual. O estupro era um frequente método de tortura que os traficantes utilizavam para dominar mulheres negras desobedientes. A ameaça

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de violação sexual ou outra brutalidade física estimulava o terror psíquico nas africanas deslocadas.3 (HOOKS, 2015, p.18, tradução nossa).

Em seu segundo retorno, Dana descobre estar no ano de 1815. Ainda a 48 anos da abolição da escravidão nos Estados Unidos. E, além disso, toma consciência da razão principal de seu retorno:

“Era por isso que eu estava aqui? Não apenas para garantir a sobrevivência de um menininho que sempre estava perigo, mas também para garantir a sobrevivência de minha família, meu próprio nascimento?

[...]

A vida dele não podia depender das atitudes de uma descendente nem sequer concebida.

[...]

Para que eu vivesse, para que os outros vivessem, ele tinha que viver. Eu não ousava testar o paradoxo. (BUTLER, 2017, p. 47, grifo nosso)

Não testar o paradoxo significava não arriscar a própria vida e a vida de todos os que pudessem ser envolvidos ou condenados por qualquer mudança no curso da história. Ou seja, Dana precisaria viver e sobreviver numa época de 161 anos antes do seu tempo, salvar seu tataravô e garantir que ele tivesse uma filha com sua tataravó. E, além disso, precisaria fingir ser uma escravizada, anulando sua verdadeira eu livre e futurístico para aquele tempo e vivendo seu papel ao mesmo tempo em que seria espectadora de um período histórico. Apesar de provavelmente experienciar o racismo e outros tipos de violência e preconceito em seu próprio tempo, nada se compararia à vida colonial.

Esse lugar em que Dana se encontra, sem saída de volta para o seu tempo e sem saída no próprio tempo, como já dito anteriormente, em muito se assemelha à condição dos negros escravizados que eram arrancados de suas terras e carregados para outro continente. Os agentes do colonialismo que inventaram o negro e fizeram dessa invenção um motivo para a exploração, em muito se aproximam de Rufus, que aponta de maneira violenta a negritude de Dana: “– Só uma preta desconhecida. Ela e papai sabiam que nunca tinham visto você.” (Ibidem, p. 41). Fica clara a emancipação de Dana enquanto mulher negra quando ela explica para Rufus como ela deve e quer ser chamada, ainda sem saber em que tempo está “– Sou negra, Rufe. Se quiser me chamar de qualquer outra coisa que não seja meu nome, é o que deve dizer.” (Ibidem, p. 41).

Além de designar uma realidade heteróclita e múltipla, fragmentada – em fragmentos de fragmentos sempre novos -, este nome [negro] designava uma série de experiências históricas desoladoras, a realidade de uma vida vazia; o

3 Original: “The nakedness of the African female served as a constant reminder of her sexual vulnerability. Rape

was a common method of torture slavers used to subdue recalcitrant black women. The threat of rape or other

physical brutalization inspired terror in the psyches of displaced african females.”

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assombramento, para milhões de pessoas apanhadas nas redes da dominação de raça, de verem funcionar os seus corpos e pensamentos a partir de fora, e de terem sido transformadas em espectadores de qualquer coisa que era e não era a sua própria vida.” (MBEMBE, 2014, p.19)

Ser uma mulher negra em 1976 seria completamente diferente de ser uma mulher negra em 1815. Viver esse duplo, além de doloroso, poderia ser a perdição. Restava a Dana sobreviver nesse estado de alerta até que essa força decidisse sua hora de voltar para casa.

Segundo Crummel, o ponto de partida de um pensamento sobre o ‘tempo vindouro’ é o reconhecimento do facto de não podermos viver no passado. O passado pode servir como motivo de inspiração. Pode-se aprender com o passado, mas os conceitos morais como dever e responsabilidade, ou ainda obrigação, decorrem directamente do nosso entendimento do futuro. O tempo do futuro é o da esperança. O presente é o tempo do dever.” (MBEMBE, 2014 p. 163)

A partir do momento em que o tempo presente de Dana passa a ser seu tempo passado, ela entende que seu dever é contribuir positivamente e o máximo possível para a vida dos negros escravizados que ali viviam. Reencontrar o caminho que a levasse de volta, com a compreensão da responsabilidade e da obrigação que ela tinha para com a vida e a existência daquelas pessoas e para a manutenção de seu próprio futuro. Viver no passado, para continuar vivendo no futuro. Se naquele momento seu passado era seu presente, aquele era o momento do dever.

Na terceira vez que Dana fora chamada por Rufus, Kevin a abraçou e acabou se transportando também. O menino, que já era anos mais velho, havia caído de uma árvore e quebrado uma perna. Apesar de querer Kevin longe daquele lugar, Dana sabia que com ele, disfarçado de seu “dono”, teria mais chances de sobreviver. Kevin conseguiu emprego com Tom Weylin, pai de Rufus, como tutor do menino. Dana, então, assume o papel de escravizada.

Tom Weylin era de praxe, um Senhor de escravos brutal e impiedoso. A violência com que tratava Rufus - criança se aproximava da violência com que tratava seus servos. Dana, então, enxerga no garoto que um dia teria a autoridade do pai a garantia de sua sobrevivência em vindas futuras. Busca influenciá-lo, “para impedir que ele se torne uma versão ruiva de seu pai”. (BUTLER, 2017, p. 130).

O contato de Dana com a família Weylin era conflituoso. Não bastasse o fator racial, os outros escravizados a alertaram que a família branca não suportava uma “preta educada”:

– Por que cê tenta fala igual os branco? – Perguntou Nigel

– Não tento – respondi, surpresa. – É assim mesmo que eu falo.

– Mais igual os branco que alguns branco. [...]

– Vai ter problema - disse ele. – O Senhô Tom já não gosta d’ocê. Fala certo demais e veio de um estado livre.

– Por que essas coisas seriam importantes para ele? Não pertenço a ele.

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O menino sorriu.

– Ele não qué preto nenhum aqui falando mais direito do que ele, enfiando a ideia de liberdade na nossa cabeça. (Ibidem, p. 119)

Kevin confirma, mais tarde, o que havia dito Nigel: “– Weylin não gosta do seu jeito de falar. Acho que ele próprio nunca estudou muito, e ele não gosta de você por isso.” (Ibidem, p. 119). Dana precisava estar muito consciente de como conduzia seu corpo naquele ambiente e, principalmente, de como elaborar ou não a sua fala. Butler, nesse sentido, trabalha as autorizações concedidas a um corpo negro em contexto colonial, reverberando, também, elementos autobiografais: quando a autora, aos treze anos, conta à família que queria escrever, ouve de uma tia: “Querida, negros não podem ser escritores”. A problemática em torno da fala, da autorização da fala ou de qualquer tipo de intelectualidade negra é, ainda, uma herança colonial latente nas vidas negras. A escritora, teórica, e psicóloga Grada Kilomba, em Plantation Memories, trata da máscara do silenciamento, analisando o famoso retrato de uma escrava brasileira chamada Anastácia.

Figura 1: Jacques Arago. “Escrava Anastácia”, 1817 – 1818

A máscara, ou freio, a que Anastácia é submetida representa, para Kilomba (2010), “o colonialismo como um todo” 4, porque além de causar a dor (tortura) e impedir que os escravos se alimentassem da plantação que eles mesmos cultivavam, a máscara interditava, igualmente, a voz:

A boca é um órgão muito especial, ela simboliza a fala e a enunciação. No âmbito do racismo, a boca torna-se o órgão da opressão por excelência, ela representa o órgão que os (as) brancos(as) querem - e precisam - controlar e, consequentemente o órgão que, historicamente, tem sido severamente repreendido.5 (Ibidem, p. 16, tradução livre).

4 Origjnal: “The mask represents, in this sense, colonialism as a whole.” 5 Original: “The mouth is a very special organ, it symbolizes speech and enunciation. Within racism it becomes the

organ of oppression par excellence, it represents the organ whites want – and need – to control, and therefore, the

organ which historically has been severely confined.”

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Não era aceitável que um corpo rebaixado à animalização e mercantilização nutrisse qualquer tipo de articulação, intelectualidade ou subjetividade. Quando Dana é flagrada por Tom Weylin lendo um livro de sua biblioteca, sabia que havia transgredido os limites do que era tolerável: “– Você lê para o meu menino, e permito que faça isso – disse ele. – Mas já basta de leitura. [...] – E fique longe dos livros!” (BULTER, 2017, p. 158)

Com o passar do tempo, Dana e Kevin parecem se encaixar na rotina daquele período histórico: “Quando pensava nisso, também me incomodava. A facilidade com que aparentemente nos adaptamos.”. (Ibidem, p. 157) A protagonista buscava, ao máximo, não dar motivos para ser punida, mas não podia deixar de aceitar o pedido de Nigel: ele queria aprender a ler e escrever. No fim de uma das aulas com o garoto escravizado, Tom Weylin aparece e vê, mais uma vez, Dana com um livro na mão; e, então, o chicote. A ideia de que Dana, uma escrava, pudesse estar lendo é o que culmina seu primeiro açoitamento, que a leva para casa sem Kevin

A relação de Dana e seu companheiro Kevin, apesar de bastante baseada na confiança e na segurança durante toda narrativa, é também atravessada por relações de poder. Quando se conheceram, descobriram uma característica em comum que os aproximou: o gosto pela escrita e o desejo quase secreto de viver dela. Antes de morarem juntos, Kevin queria que Dana datilografasse sempre seus textos, o que ela fez uma vez sem reclamar, mesmo odiando a tarefa. Quando foi novamente solicitada, Dana disse não e Kevin pediu que ela fosse embora. No dia seguinte, Dana retornou à casa de Kevin, mas ainda certa de que não escreveria os textos. Kevin a deixou entrar e um tempo depois a pediu em casamento. Kevin tinha apenas uma pessoa da família com quem mantinha contato, sua irmã mais velha. E Dana, tinha um tio e uma tia que a haviam criado como filha. Conversaram sobre o fato de a relação ser um problema para ambas as famílias: Kevin acreditava que sua irmã não encararia como um problema o fato de Dana ser negra: “[...] Ela vai adorar você, pode acreditar.” (BUTLER, 2017, p. 177); Dana, por sua vez, tinha dúvidas acerca da reação dos tios. “[...] Tenho receio de que meu tio e minha tia não adorem você.” (Ibidem, p. 177). Dana já esperava que a irmã de Kevin o surpreendesse e ela o surpreendeu, afirmando inclusive que proibiria a entrada de Dana em sua casa e a de Kevin também, se ele realmente se casasse com ela. Os tios de Dana, por sua vez, foram menos cruéis, mas nem por isso “melhores”. A tia de Dana aceitou o casamento pela possibilidade de um sobrinho de pele mais clara. O tio de Dana ficou decepcionado e magoado, pois esperava que Dana escolhesse alguém como ele para se casar e disse que não daria nenhum de seus apartamentos para o casal, pois se recusaria a ver o patrimônio da família cair em mãos brancas. Esclarecida a posição racista da irmã de Kevin, o colorismo no olhar da tia de Dana e a recusa do tio, um passou a ser, a partir daí, a família do outro.

A diferença da vivência de um negro e um branco é diferente em qualquer época, pois

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“Humilhado e profundamente desonrado, o negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa, e o espírito, em mercadoria – a cripta viva do capital.” (MBEMBE, 2014, p. 19, grifo nosso).

Tendo em vista esse histórico cruel, interpretar qualquer atitude minimante desrespeitosa de Kevin em relação a Dana por um viés racial, faz todo sentido para a compreensão das diferenças desses dois modos distintos de existir. Em 1976, apesar de mais sutis e pouco comparáveis, o poder conservado em Kevin (mesmo que, talvez inconsciente, mas nem por isso justificável) aparece em algumas passagens. Como no início do livro quando ele deixa Dana sozinha arrumando os livros que pertencem aos dois para tentar escrever trancado em seu escritório ou quando ele reage de forma grosseira quando ela se nega a datilografar seus textos ou quando ele desconfia da história que Dana conta sobre sua primeira viagem no tempo e ela se vê obrigada a convencê-lo de que foi real. Em um momento da narrativa Kevin chega supor que a primeira viagem de Dana seria nada mais nada menos do que uma alucinação, mesmo vendo que ela estava à sua frente, toda molhada e suja de lama. A interpretação sobre essas atitudes muda quando sabemos que Kevin é um homem branco de olhos azuis.

– Deixe passar. – Ele se levantou e pegou a toalha suja de lama de minha mão. – Me parece o melhor a fazer, não importa se foi real ou não. Deixe pra lá. (BUTLER, 2017, p. 29, grifo nosso)

Um homem branco desacreditando e descreditando as experiências de uma mulher negra soa bastante possível de acontecer em qualquer parte do mundo ou tempo.

Frantz Fanon explica, em Pele negra, Máscaras Brancas, a relação entre a mulher de cor e o branco a partir de dois vieses distintos: a) a mulher negra que busca a salvação através do casamento com o branco; b) a mulher negra imbuída de intelectualidade que se julga superior e afirma “ser livre para escolher marido”. (FANON, 2008) Ambas a direções parecem ser validadas por exemplos da literatura na obra de Fanon, mas nem por isso devem ser tratadas como ilegítimas. Pensando o lugar de Dana, uma mulher negra, estadunidense, intelectual e independente, encaixá-la em um desses lugares descritos por Fanon não seria difícil. Mas entendendo sua subjetividade e a trajetória da narrativa, é possível perceber que o relacionamento de Dana e Kevin atravessa outras questões que não necessariamente as descritas por Fanon. Butler traz uma relação inter-racial imperfeita, mas repleta de companheirismo, amizade e amor. Dana é uma personagem firme e Kevin, mesmo que de maneira torta, entende sua firmeza.

Já em 1815, o período colonial que se mostra tão bárbaro, desumano e atroz com Dana, recebe Kevin quase que de braços abertos. E é aí que se percebe uma transformação no relacionamento do casal. Dana vive a escravidão ao passo que Kevin vive uma experiência mágica, o sonho da viagem no tempo. A relação do casal passa a ser, as vistas das pessoas daquele tempo, uma relação de poder e submissão onde Kevin é o “senhor” e Dana sua escrava. Mas, escondidos dos olhares, os dois conversam, se organizam e compartilham seus medos e anseios. Dana pede que Kevin esteja sempre por perto caso ela seja surpreendida por uma ameaça que a leve de

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volta ao seu tempo. Kevin teme que o pior aconteça com Dana e faz de tudo para protegê-la das mãos de Tom Weylin. Mas a vida de Kevin no período colonial, apesar da preocupação com Dana, é bem mais simples e fácil de levar. Kevin passa a ser o convidado de Tom Weylin, tem acesso a todos os cômodos da casa, nenhum atributo que ele possua o torna uma pessoa desconfiável. As características do “ser homem branco” não haviam mudado tanto afinal. A cantora negra estadunidense Nina Simone tem uma frase tocante acerca da liberdade: “Liberdade para mim é não ter medo.” Kevin era livre pela simples convicção de não precisar temer por si próprio.

Em contrapartida, Dana. À primeira vista, uma mulher negra “vestida de homem” que “fala igual aos brancos”. Tudo em Dana seria passível de desconfiança. Mbembe afirma sobre o fim da escravidão que

A passagem da escravidão à liberdade não exigia apenas um tratamento sutil da memória. Requeria ainda uma reformulação das inclinações e dos gostos. Ao sair da escravidão, a reconstrução do indivíduo implicava, pois, um enorme trabalho sobre si mesmo, trabalho este que consistia em inventar uma nova interioridade. (MBEMBE, 2014, p. 168)

No caso de Dana, dava-se o contrário. Ainda assim, com os mesmos efeitos. Deixar de ser livre para tornar-se uma mulher escravizada requeria, se não uma reformulação das inclinações e dos gostos, uma busca pelo que seria mais adequado para o disfarce tão atrelado a pele, metafórica e literalmente.

“Perdi um braço na minha última volta para casa” é a frase que inicia o enredo

em Kindred. Dana estava em um hospital, acompanhada de Kevin – trata-se, na verdade, de um início pelo fim da cronologia narrativa. O leitor só compreenderá o motivo da perda do braço com o desenrolar da ficção. No entanto, o que nos chama a atenção é o membro perdido de Dana. Curiosamente, a amputação e o desmembramento são frequentes alegorias, na arte ou na pesquisa, para tratar dos efeitos do racismo ou da escravidão na subjetividade negra. Em Pele Negra, Máscaras Brancas, Fanon escreve: “Eu acenava para o mundo e o mundo amputava meu entusiasmo. Exigiam que eu me confinasse, que encolhesse”. (FANON, 2008, p. 107) A retirada de humanidade como desintegração de um corpo subjetivo – um corpo tanto individual quanto relacional/coletivo. Mbembe, ao tratar do conceito de reparação no tocante às vidas negras, traz igualmente à tona a temática do desmembramento:

O conceito de reparação, para além de ser uma categoria econômica, remete para a reunião de partes que foram amputadas, para a reparação de laços que foram quebrados. [...] a construção do comum é inseparável da reinvenção da comunidade. (MBEMBE, 2014, p. 304-305, grifo nosso).

Bhabha, em O Local da Cultura, pontua que é o olhar do homem branco que desintegra e destroça o corpo negro. Nesse desmantelamento, como se integrariam corpo e mente? Como falar em identidade e subjetividade? Na violência epistemológica do branco, “seu próprio quadro de referência é transgredido, seu campo de visão perturbado.” (BHABHA, 2014, p. 80). As partes desintegradas de um corpo negro que

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já foi expulso da humanidade são ainda contabilizadas e etiquetadas numa linguagem animal, criada pelo colonizador, e que infecta a todos. Em sintonia com Bhabha, o poeta Aimé Césaire (1955) igualmente afirmava que, no hábito de ver o outro como animal, na prática de tratar o outro como animal, o colonizador acabava por se transformar, ele mesmo, em um animal.

Uma outra narrativa que também elabora o trauma da raça, da vida no corpo do Outro como desmembramento físico é o romance Beloved, de Toni Morrison. A protagonista Sethe, uma mulher negra ex-escravizada, recorda-se de um episódio que não havia contado a ninguém – partes do indizível:

[...] eu não podia deixar de ouvir o que ouvi aquele dia. Ele estava sentado com os alunos dele e ouvi ele dizer: “com quem vocês estão fazendo? ”. E um dos rapazes respondeu: “Com a Sethe”. [...]Eu estava quase indo, virando para ir embora e ir lá buscar o véu, quando escutei ele dizer: “Não, não. Não é desse jeito. Falei para você colocar as características humanas dela à esquerda; as animais à direita. E não esqueça de alinhar todas.” Comecei a andar para trás [...]. Quando bati numa árvore estava com o cabelo arrepiado. (MORRISON, 2011, p. 276-277).

Nas páginas finais de Beloved, o personagem Paul D. se propõe a preparar um banho para Sethe, que estava inerte após uma série de traumas. Ela o pergunta, numa linguagem do delírio, se ele contaria as pernas delas e aborda, também, a desintegração corporal, questionando: “E se [Paul D] lhe der banho por partes, será que as partes se mantém juntas?”. (Ibidem, p. 383)

Entre os retornos de Dana, muito tempo se passava para Rufus Weylin. A

protagonista percebe que não havia conseguido influenciá-lo: poderia ser mais cruel que o próprio pai. A primeira vez que bateu em Dana, ela cortou os pulsos para voltar para casa. Em seu último retorno, que resultou na perda do braço, Rufus estava prestes a estuprá-la. Aquela era a violência que Dana não conseguiria suportar e, então, assassina seu ancestral que se deitava sobre ela:

Eu o afastei de alguma forma – tudo, mas sua mão continuava em meu braço. Então convulsionei, tomada por um enjoo terrível e forte. [...]

Algo mais pesado e mais forte que a mão de Rufus prendeu meu braço, apertando, agarrando, pressionando, sem doer, a princípio, derretendo-o, esmagando-o como se, de alguma maneira, meu braço estivesse sendo absorvido para dentro de algo. Algo frio e sem vida. (BUTLER, 2017, p. 417)

O braço de Dana estava preso à parede de sua casa, como se “crescesse dela ou para dentro dela”, no ponto exato em que Rufus havia segurado. Quando Dana puxa o braço para fora da parede, ressoa como uma final desvinculação daquele passado de barbáries e, no entanto, será seu lembrete diário daquilo que perdeu. Do trauma. De uma parte de si que ainda está presa entre o passado e o presente. Em Grada Kilomba, lemos:

Fanon utiliza a linguagem do trauma, como a maioria da pessoas Negras quando falam sobre experiências cotidianas de racismo, indicando um doloroso impacto corporal e a perda característica de um colapso traumático, pois no

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racismo o indivíduo é cirurgicamente retirado e violentamente separado de qualquer identidade que ele/ela possa realmente ter. [...] (KILOMBA, 2010, p. 175-176)

“Eu sentia lâminas de facas me abrindo de dentro para fora… Eu não conseguia mais rir” (1967, p. 112), observa Fanon. À diferença das narrativas da metáfora, em Kindred, a relação do trauma do corpo negro com a amputação e o desmembramento não é apenas insinuada, como é efetivada.

A criação de um ambiente em que a violência, o medo e a tortura são cotidianas implicava, para Fanon, a sensação de uma “morte incompleta” no corpo negro (FANON, 1959 apud MBEMBE, 2014, p. 277). Mbembe, um grande reeleitor de Fanon, afirma igualmente que “a vida do escravo é, em muitos aspectos, uma forma de morte-em-vida” (MBEMBE, 2018, p. 29)

Dentro dessa perspectiva e a partir da base foucaultiana de biopoder, Mbembe apresenta o conceito de necropolítica. Um necropoder: a detenção excepcional do poder nas mãos de quem pode autorizar a vida e a morte: “a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer.” (Ibidem, p. 5).

Aplicando a necropolítica ao contexto comercial do Atlântico, nota-se que a conquista colonial revelou um potencial de violência até então desconhecido. (Ibidem, p. 32). A colônia faz surgir “uma forma peculiar de terror. A característica mais original dessa formação de terror é a concatenação entre biopoder, o estado de exceção e o estado de sítio” e a raça seria o elo fundamental de tal relação (MBEMBE, 2018, p.31). A raça como “condição para aceitabilidade do fazer morrer” não submete o direito de matar a nenhuma regra ou lei – a raça é o critério. O poder à margem era a regra e, portanto, para o sucesso desse projeto colonial, a violência era “um componente da etiqueta” (MBEMBE, 2018, p. 29):

Eu me lembrava da expressão dele [Tom Weylin] ao surrar o escravo do campo. Não era uma expressão de raiva, de ódio, nem mesmo de interesse. Era como se estivesse partindo lenha. Ele não era sádico, não fugia de suas “tarefas” como dono de fazenda. (BUTLER, 2017, p.151-152)

Num cenário paradoxal em que a morte significa a posse da vida, não surpreende a quantidade absurda de suicídios e infanticídios entre os negros escravizados. A própria Dana corta os pulsos a fim de retomar a Dana livre, de 1976. A protagonista sobrevive, mas não é o caso de sua antepassada, Alice. Logo no segundo retorno de Dana, ela conhece a Alice-criança e sua mãe. Elas eram livres e viviam numa casa na floresta, perto da fazenda dos Weylin. Rufus dizia que Alice era sua amiga.

A segunda vez que Dana encontra Alice, Rufus a havia estuprado (ou tentado), e seu marido, Isaac, surrava Rufus. Graças a Dana, Isaac deixa Rufus viver e foge com Alice. A fuga não dura muito, os dois são capturados pelas autoridades e uma Alice semimorta é trazida à fazenda, dessa vez, não mais como uma mulher livre. Dana ajuda na recuperação de Alice e as duas desenvolvem uma relação quase parental, recheada de cuidado e provocações. Rufus, por outro lado, só deixa Alice em paz enquanto estava machucada:

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– Agora diz o que veio me dizê... que não qué dizê. Olhei para ela, assustada. – Acha que não te conheço depois de tanto tempo? Tá escrito na sua cara que ocê não qué ficá aqui. – Sim. Rufus me mandou falar com você. – Hesitei – Ele quer você hoje à noite. A expressão dela ficou mais séria. [...] – Eu devia leva uma faca comigo e cortá a garganta daquele maldito. (BUTLER, 2017, p. 266-267)

“Ela não matou, mas pareceu morrer um pouco” (Ibidem, p. 270), descreve Dana. A protagonista também não ia bem. Sentia-se enojada de Rufus e sentia saudades de Kevin, que havia viajado para o Norte em sua ausência de cinco anos em uma de duas voltas para casa. Tenta fugir e é capturada: “você vai ser chicoteada – disse ele [Rufus] – Você sabe disso.” Não era ódio, era um exemplo administrativo. Dana já compreendia isso o suficiente, tanto que as chibatadas não a levaram para casa, pois sabia que não iria morrer. Sob os cuidados de Alice, Dana parece compreender, de fato, o que significava a vida-em-morte do indivíduo escravizado:

Éramos um fracasso, eu e ela [Alice]. Nós duas tínhamos fugido e tínhamos sido trazidas de volta, ela depois de dias, eu, depois de algumas horas. Eu provavelmente sabia mais do que ela a respeito da disposição dos pontos da Costa Leste. [....]Eu sabia de cidades e rios a quilômetros de distância. , e esse conhecimento de nada tinha adiantado para mim! O que Weylin dissera? Que ser educada não significava ser esperta. Ele tinha certa razão. [...]

Porque eu continuava sendo escrava de um homem que retribuía por eu ter salvado sua vida quase me matando? [...]

Tentei fugir de meus pensamentos, mas eles não paravam de me atormentar.

Está vendo como as pessoas são escravizadas com facilidade? Eles me diziam. (BUTLER, 2017, p. 282-283)

Em seguida, Dana agradece internamente por não estar em posse de seus comprimidos; não sabia quantos poderia ter tomado.

A última vez que Dana viu o corpo de Alice, ele estava pendurado numa forca. Vestia suas melhores roupas e sapatos: havia se arrumado para receber a morte. Enquanto Dana estava em 1976, Alice tentara fugir novamente e Rufus, para castigá-la, levara seus dois filhos para morar com a irmã de sua mãe. Alice achava que eles haviam sido vendidos: para que, então, permanecer naquela “morte-em-vida”?

Sem adentrar em contornos morais acerca do suicídio, qual seria o simbolismo do suicídio negro? Para Mbembe (2014), na violência do colonizado existe uma dimensão ética na medida em que ela pode significar um processo emancipatório. Seja uma ação direta ao colonizador ou uma violência contra o sistema, como o suicídio, trata-se de uma “violência escolhida mais do que sofrida”, e é esta que permite ao sujeito escravizado embaralhar a lógica de poder associada à distribuição da morte, a necropolítica, operando, dessa forma, “uma reviravolta sobre si próprio.” Nota-se, assim, uma ressignificação política no ato de violência, a retomada de posse sobre si,

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ainda que seja através da própria morte, já que se instaura uma reciprocidade, “uma relativa igualdade perante a arbitrariedade suprema que é a morte” (Ibidem, p.273);

Ainda sobre o caráter emancipatório da violência do colonizado, Dana, igualmente, vê-se obrigada a proliferar a morte. Em Mbembe, lemos que:

a escalada no seio da Humanidade serve para o colonizado se transportar, pela sua própria força, até um lugar mais cimeiro do que aquele que lhe foi consignado, de acordo com a raça ou como consequência da submissão. O homem subjugado, ajoelhado e condenado ao grito, volta a agarrar-se a si mesmo, sobe a ladeira e ergue-se à sua altura e às dos outros homens, se preciso pela violência – aquilo que Fanon chamava de “práxis absoluta” (MBEMBE, 2014, p.281)

Prestes a ser estuprada por seu antepassado, a quem salvara tantas vezes a vida, Dana fraqueja:

[..] e lentamente eu percebi como seria fácil para mim ficar parada e perdoá-lo até por isso. Muito fácil, apesar de tudo que eu dizia. Mas seria muito difícil levantar a faca, enfiá-la na carne que tantas vezes eu havia salvado. Tão difícil matar...

Ele não estava me machucando, não me machucaria se eu permanecesse como estava. [...]

Não.

Senti a faca em minha mão, ainda escorregadia por causa do suor. Uma escrava era uma escrava. Qualquer coisa poderia ser feita com ela. (BUTLER, 2017, p. 416)

A reviravolta de seus pensamentos, ou seja, a violência escolhida de Dana é fundamental para a ruptura daquela “vida-em-morte”. Assassinar Rufus é como um lembrete de quem ela começava a esquecer-se sempre que retornava: a Dana livre. Ou, ainda, nas palavras de Fanon, é o entendimento de que “sua vida, sua respiração, as pulsações de seu coração são as mesmas do colono. [...] Se, com efeito, minha vida tem o mesmo peso que a do colono, seu olhar não me fulmina, não me imobiliza mais, sua voz já não me petrifica. [...] Na verdade eu o contrario.” (FANON, 1968, p. 34).

Nessa narrativa, a violência do colonizado não é apenas de um caráter epistemológico, pois efetua, concretamente, o fim do retorno de Dana a qualquer vínculo escravagista. Com a morte de Rufus, a Dana de 1800 não existe mais. O que restam, no entanto, para o presente e o futuro da protagonista são as feridas: as amputações figurativas e literais.

Eu tinha de olhar o homem branco nos olhos. Um peso desconhecido me oprimia. No mundo branco o homem de cor encontra dificuldades no desenvolvimento de seu esquema corporal. Eu era atacado por tantãs, canibalismo, deficiência intelectual, fetichismo, deficiências raciais... Transportei-me para bem longe de minha presença. O que mais me restava senão uma amputação, uma excisão, uma hemorragia que me manchava todo o corpo de sangue negro? (FANON, 1986, p. 110 - 112, apud BHABHA, 2014, p. 80)

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Considerações finais

É inegável que, muitas vezes, o discurso ficcional e o discurso histórico se confundem. Não se trata de pensar a literatura enquanto retrato fiel de uma realidade: sabe-se que seu papel é justamente ultrapassar o plano do vivido, redimensionando-o. No entanto, o pensar literário é, de todo modo, parte do amálgama de cada espaço-tempo em que se insere. De uma narrativa ficcional, pode-se revelar estruturas e segredos de uma sociedade. Da mesma forma, a literatura se comunica, também, através de suas ausências, daquilo que se quer oculto e recalcado. A história das narrativas, em se tratando de corpos e vivências negras, é recheada primeiramente de estereotipias e outragem e, segundamente, de silêncio. O texto de Octavia Butler analisado durante esse artigo, reconta a história colonial tantas vezes retratada partindo de um olhar do futuro, trazendo a ideia de que os negros existem no futuro e ainda são uma forma de resgatar o passado. Percebemos uma incessante investigação da história enquanto potência ficcional. Nesse movimento, Butler desafia a ausência de uma memória colonial, a falta de documentação, de nomes próprios, de enterramento. E, igualmente, a autora desafia a máscara do silenciamento que, por séculos, definiu quem estaria autorizado a falar sobre a barbárie do período colonial.

A ficção científica de Butler carrega característica de grande importância para a compreensão do período colonial norte americano. Afinal o que é a ficcionalidade se não essa costura entre o real e a criação e o imaginado? A partir disso, é compreensível a dificuldade existente em definir onde começa e onde termina a ficção. bell hooks, não à toa, afirma que, quando se trata dessas partes perturbadoras da história, “muitas vezes, é apenas no reino da ficção que essa realidade pode ser reconhecida, que o indizível pode ser dito.”6 (HOOKS, 1992, p. 187, tradução nossa).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BHABA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

6 Original: “Often it is only in the realm of fiction that this reality can be acknowledged, that the unspeakable can be

named.”

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BUTLER, Octavia Estelle. Kindred: Laços de Sangue. São Paulo: Editora Morro Branco, 2017.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1978. Disponível em: <https://anedotadasantilhas.files.wordpress.com/2015/09/cc3a9saire-discurso-sobre-o-colonialismo-capc3adtulos-1-e-2.pdf> Acesso em: novembro de 2018. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, BA: EDUFBA, 2008. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2013/08/Frantz_Fanon_Pele_negra_mascaras_brancas.pdf>. Acesso em: setembro de 2018. HOOKS, bell. Ain’t I a black woman: black women and feminism. Nova York: Routledge, 2015.

__________. Black looks: race and representation. Boston: South End Press, 1992. KILOMBA, Grada. Plantation memories. Münster: Unrast, 2010. Disponível em: <https://schwarzemilch.files.wordpress.com/2012/05/kilomba-grada_2010_plantation-memories.pdf>. Acesso em: setembro de 2017. MBEMBE, Achille. A crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014. ______________. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018. MORRISON, Toni. Amada. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2011.

SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.