sempre pelas franjas de impérios

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  • 7/23/2019 Sempre Pelas Franjas de Imprios

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    ... sempre pelas franjas de imprios ... e quase sempre em contra-mo ...

    Carvalho, Ruy Duarte de

    Se a habilidade autobiogrfica que me pedida visa situar aquilo que tenho

    escrito no espao ultramarino portugus de ontem e lusfono de hoje, ento o

    que me est a ser sugerido, de facto, que entre no jogo e aceite essa

    colocao como eixo do que possa vir a ter para dizer. Assim :

    Em meados dos anos 50 do sculo passado desembarquei em Lisboa com

    uma bicicleta e uma caixa de tintas a leo na bagagem. Eram preciosas

    prendas de que tinha conseguido no me separar, uma de aniversrio e outra

    por ter feito o 2 ano do liceu, quando por deciso familiar fui remetido de

    Momedes para fazer em Portugal, Santarm, num prazo de 5 anos, o curso

    de regente agrcola. Mas nem da bicicleta nem das tintas a leo nunca mais

    voltei a fazer uso. Passei esses 5 anos na condio de aluno interno, a residir

    no prprio estabelecimento escolar, e tanto as tintas a leo, que eram o

    reconhecimento dos meus mais evidentes talentos congnitos, como a

    bicicleta, que era uma adjectivao de gloriosas adolescncias coloniais, foram

    sacrificadas disciplina e ao programa da minha estadia em Portugal

    No estou, porm, claro, a contar a estria pelo princpio. Quando de facto fui

    embarcado em Momedes, eu estava tambm a ser remetido ao exacto local

    do meu nascimento biolgico e de onde, mais cedo portanto, tinha vindo com a

    famlia, que entretanto emigrava, parar a Momedes. O que me calhou assim

    na vida, de qualquer maneira, foi estar de volta a Angola com um curso mdio

    j feito quando a maioria dos sujeitos angolanos da minha classe etria com

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    recursos para estudar estava a ser, por sua vez, expedida para faculdades em

    Portugal e a ver-se colocada nos terrenos de uma placa giratria, dados os

    tempos que ento corriam, capaz de os envolver em oportunas dinmicas de

    esclarecimento ideolgico, aprendizagem poltica, encaminhamento militante e

    eufricas, redentoras e patriticas opes juvenis de rumo para a vida. Pelo

    menos duas consequncias maiores para o meu percurso biogrfico tero

    resultado desta configurao das coisas : a primeira que o lugar onde vim ao

    mundo sempre constituiu para mim, desde que me lembro a ruminar nas

    coisas, uma referncia de exlio; a segunda que tudo quanto pela vida fora se

    me foi revelando e determinando lugar no mundo, sempre acabou por ocorrer

    de maneira imediata, vivida, emprica, in vivo, a exigir, s vezes, e sem ser pela

    mo fosse do que ou de quem quer que fosse, opes e aces de vida ou de

    morte no pleno desenrolar dos acontecimentos. Elaboraes e ruminaes,

    teoria ajudando, foi quase sempre s depois.

    No me lembro de ter vindo ao mundo, evidentemente, mas em compensao

    lembro-me muito bem de ter mudado inteiramente, tanto de alma como de pele,

    uma meia dzia de vezes ao longo da vida. De que havia uma matriz

    geogrfica e de enquadramento existencial que essa que era a minha, dei

    conta a pelos doze anos a comer po e com um ataque de soluos no meio do

    deserto de Momedes, por alturas do Pico do Azevedo. Isso continua a vir-me

    sempre ideia de cada vez que ainda por l passo e se calhar para isso

    mesmo que ando sempre a ver se passo por l. E de que havia uma razo de

    Angola que colidia com a razo colonial portuguesa, disso dei definitivamente

    conta em condies muito brutais, com 19 anos e j a trabalhar como tcnico

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    responsvel nas matas do Uge, quando, em maro de 1961, eclodiu ali a

    sublevao nacionalista do norte. Sobrevivi justa e a tempo de me refazer de

    tanta perplexidade e do quadro de horror geral em que me tinha visto

    envolvido, fruto quer da feroz insurgncia quer da perversa e ainda mais feroz

    represso insurgncia, quando a seguir, numa noite em Luanda, a atravessar

    as ruas da baixa, houve quem me desse a saber, pela via de uns versos, de

    uma alma de Angola que vinha pronta sob medida para eu ajustar razo de

    Angola que o pesadelo do norte tinha acabado de me dar a entender. E a partir

    da passei a invocar esse novo nascimento para ver se conseguia forjar algum

    sentido para a condio de rfo do imprio a que a vida, apercebi-me logo,

    me iria destinar. O mximo que ento consegui, para actuar do lado em que

    passei desde ento e at hoje a situar-me, foi que alguns mais-velhos da luta

    clandestina, durante uns tempos em que habitei Luanda, me atribussem

    mnimas tarefas menores, como dactilografar, para distribuio nos muceques,

    poemas de revolta de autoria annima e de esclarecedora m qualidade,

    tambm. Mas depois foi uma data de gente presa e quando o instituto do caf

    me colocou, a seguir, primeiro na Gabela e mais tarde em Calulo, perdi e

    nunca mais consegui restabelecer ligaes polticas efectivas com a

    insurgncia nacionalista. O mximo, outra vez, que consegui ento, foi ser

    dado como persona non grata pela administrao do Libolo e afastado dali

    junto com um padre basco e um mdico portugus. Pouco para currculo

    poltico. Arranjei ento outro emprego e mudei para a Catumbela, para dirigir a

    pecuria de uma grande empresa aucareira. E foi nessa condio que levei tal

    volta passados trs anos de mim para mim e afundado a criar ovelhas no

    interior do imenso plat de Benguela -, levei ento tamanha volta que andei os

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    trs anos seguintes a derivar pelo mundo. Estive em Hamburgo, em

    Copenhaga e em Bruxelas sempre a ver se encontrava traos da insurgncia

    nacionalista, mas quando finalmente consegui chegar a Argel para colocar-me

    disposio da luta, ningum ali me levou a srio, ou ento desconfiaram, ou

    ento voluntaristas como eu j l tinham que chegasse e at nem sabiam o que

    que lhes haviam de fazer. Foi depois de ver-me assim perante a evidncia de

    que por ali tambm no ia dar, e de ter levado as coisas at onde podia, que

    acabei por encontrar-me um dia, no turbilho da voragem de tanta viagem, a

    exercer funes de chefe de fabricao de cerveja em Loureno Marques

    Maputo, e estive a seguir em Londres, com um dinheiro que pedi emprestado,

    a fazer um curso de realizao de cinema e de televiso. Na sequncia dessa

    volta toda que acabei por passar a noite de 10 para 11 de Novembro de 1975

    no municpio do Prenda, s zero horas, que foi uma hora zero, a filmar a

    bandeira portuguesa a ser arreada e a de Angola a subir ao mesmo tempo.

    J nessa altura, quando foi da independncia, tinha o primeiro livro de poesia

    publicado. Depois, de 75 at 81 fiz filmes para a televiso angolana e para o

    instituto angolano de cinema, e andei durante uns tempos muito entretido a

    filmar por Angola toda e a pensar que seria bem acolhida essa minha peregrina

    inteno de dar Angola a conhecer aos prprios angolanos, meus

    compatriotas. Quando vi que afinal no dava mesmo para continuar a querer

    fazer cinema, nem aquele que eu queria nem alis qualquer outro, escrevi um

    texto acadmico para juntar a um dos filmes que tinha feito no sul e obtive com

    isso o diploma da escola de altos estudos em cincias sociais, de Paris, que

    me deu imediato acesso condio de doutorando. Foi ento o tempo da

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    Samba e dos Axiluanda, de um fora de Luanda dentro de Luanda, e das teses.

    A partir de 87 passei a dar umas discretas e mal pagas aulas de antropologia

    social em Luanda e fui aproveitando sabticas para aceitar convites e ir dar

    aulas tambm e consumir bibliotecas em Paris, Bordus, So Paulo e Coimbra.

    E a partir de 92 arranjei maneira de ir estar, todos os anos, cinco meses com

    os pastores do Namibe. Decidi ento passar a disponibilizar essa informao

    sem ter de escrever naquele tom da escrita acadmica ou de relatrio, porque

    disso j tinha tido a minha dose. E foi assim que adoptei a maneira do Vou l

    visitar pastores que depois me ps na pista de uma meia-fico em que venho

    insistindo nos ltimos anos. E fui tambm deixando cada vez mais de escrever

    poemas tal e qual.

    Hoje continuo a no conseguir andar muito tempo por fora sem devolver-me ao

    murmrio de Luanda noite que sobe das traseiras da minha casa na

    Maianga, e sem continuar a dar de vez em quando um salto ao sul, para visitar

    pastores. E julgo, chegado a esta altura da vida, no poder deixar de ter que

    entender que o mundo, por toda a parte e no s aqui, se urde e se produz

    recorrendo sempre, ou quase sempre, ao uso e ao abuso da boa-f dos outros.

    Temo no conseguir nunca chegar, mesmo velhinho, a conformar-me com isso

    e a tornar-me no sujeito bem acabado, dissimulado, pirata, adaptvel e

    finalmente adaptado que nunca, durante toda a vida, consegui ser. Mas acho

    que tambm aprendi, entretanto, a rir-me de mim mesmo, das minhas

    incompetncias congnitas e do mau-feitio que neste mundo sou

    evidentemente o nico a ter. E tem uns intervalos em que tudo parece ficar

    virginalmente vivvel, bom e bonito, conforme pensa a ona quando, segundo

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    Guimares Rosa, no teme nada e vai, guiada s pela alma que tem.

    Luanda, Dezembro de 2005