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Governo do Estado do Rio de JaneiroSecretaria de Estado de Planejamento e Gestão

Fundação Escola de Serviço Público

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Governador do Estado do Rio de JaneiroSérgio Cabral

Vice-Governador do Estado do Rio de JaneiroLuiz Fernando de Souza

Secretário de Estado de Planejamento e GestãoSérgio Ruy Barbosa Guerra Martins

Presidente da Fundação Escola de Serviço PúblicoCláudio Mendonça

Equipe da Fundação Escola de Serviço Público - FESP RJ

Janaína PiresAssessora de Intercâmbio e Eventos

Paulo DiasDiretor do Departamento de Programação Visual

Agradecimentos

Aos PalestrantesAntônio Carlos Gomes da CostaLucila MartinezMaria Cristina LealMaria Eulina Pessoa de CarvalhoVitor Henrique Paro

A Equipe do ExtraAmélia Gonzalez - Caderno Social InfogloboAlessandra Teixeira - Marketing InstitucionalEduardo Eauler - Chefe de Reportagem

Rio de Janeiro, Setembro de 2007

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A Fundação Escola do Serviço Público (Fesp), do Governo do Estado do Rio de

Janeiro, em parceria com o “Extra”, publicação da Infoglobo, empresa das Organizações

Globo, promoveu em 9 de agosto de 2007, no auditório do jornal, o seminário “A escola e

a família”.

Por que discutir o relacionamento escola/família/comunidade? Pesquisa feita pelo

Ibope em novembro de 2006 com pais e responsáveis por alunos de escolas públicas

municipais e estaduais do Estado do Rio revelou que:

• 81% concordam com provas de avaliação externa das escolas, como a Prova

Brasil;

• 71% não tiveram qualquer informação sobre o desempenho das escolas;

• 96% dos pais demonstraram interesse em receber essas informações;

• 96% acham que deve haver avaliação de desempenho dos professores;

• 68% acham que os professores deveriam ganhar de acordo com o mérito ou a

qualidade do desempenho;

• 72% acham que os diretores deveriam poder demitir os professores que não

tivessem desempenho de acordo com as exigências da escola.

Baseada nessas e outras informações, a Fesp idealizou o seminário com

especialistas no assunto.

A família está esquecida no contexto educacional e precisa que seu papel seja

valorizado, devido à importância estratégica, principalmente na educação infanto-juvenil.

Pesquisa feita pelo Ministério da Educação aponta uma relação clara entre o nível

socioeconômico dos pais e a capacidade deles de acompanhar a vida escolar dos filhos.

A tão propalada integração da escola com a comunidade precisa ir muito além do mutirão

de pais para pintar a escola. Acompanhar as notas, os trabalhos, o currículo escolar e o

dever de casa parece ser tarefa muito complexa para a grande maioria dos pais de

alunos de escolas públicas. Isso acontece porque 66% deles não completaram o Ensino

Fundamental e 73% ganham até três salários mínimos.

Apresentação

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Fundação Escola de Serviço Público FESP RJ

Ao mesmo tempo, a cobrança de pais preocupados com o futuro dos filhos nem

sempre é bem recebida por diretores e professores.

Estudos feitos pela Universidade de Lyon II, na França, apontam alguns

comportamentos familiares que tendem a trazer bons resultados na vida escolar das

crianças, independentemente de classe social. As famílias pesquisadas têm pais ou

responsáveis que estimulam as crianças a ler e a escrever histórias e que perguntam

freqüentemente sobre o que elas estão estudando.

Mesmo que não compreendam tudo o que os filhos fazem na escola, não

demonstram vergonha de se sentir inferiores e os escutam, prestam atenção no que

eles estão aprendendo e demonstram grande interesse pelas atividades escolares dos

filhos.

Esses pais evitam transmitir frustrações e experiências dolorosas que podem ter

acontecido na época em que freqüentavam a escola, além de desenvolver uma relação

familiar afetiva que valoriza o conhecimento para a solução de problemas do dia-a-dia.

O sucesso escolar depende de uma série de ações dos pais e responsáveis, que

devem trabalhar e lutar a favor da educação em todos os sentidos: o ingresso, o regresso,

em caso de evasão, a permanência e o sucesso.

Existem excelentes ferramentas para ajudar as crianças e os jovens a melhorar o

desempenho na leitura e na língua portuguesa: o dicionário e as palavras cruzadas. Ler

com o dicionário ao lado é uma ótima forma de melhorar o vocabulário, porque ajuda a

fixar e a entender os diversos significados de cada palavra.

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Antônio Carlos Gomes da Costa: pedagogo, diretor de Relações Institucionais da

Fundamig (Federação Mineira de Fundações de Direito Privado). Diretor da Modus Faciendi

– Agência de Responsabilidade Social, acumula larga experiência na formulação e

avaliação de políticas e programas sociais, adquirida ao longo de sua carreira no Unicef

e também como consultor externo de organizações como OIT e Unesco. É autor de

vários livros, entre os quais “Lições de Aprendiz” e “Organizações com Causa”, que

abordam o tema da responsabilidade social corporativa. Em 1998, ganhou o Prêmio

Nacional de Direitos Humanos, em reconhecimento ao seu importante trabalho em favor

dos direitos da criança e do adolescente. Tem o título Notório Saber concedido pelo Instituto

de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) em 2000. Participa também do

conselho de importantes organizações, entre as quais Ceats (Centro de Estudos em

Administração do Terceiro Setor – USP), Instituto Ayrton Senna, Fundação Iochpe,

Fundação Abrinq e Instituto Telemig Celular. É consultor da Comissão Executiva Nacional

do Programa Eleitor do Futuro, da Escola Judiciária Eleitoral (EJE/TSE). Atuou, como

docente, no Curso de Gestão Estratégica para Organizações do Terceiro Setor, na

Faculdade Salesiana de Vitória (ES), e no MBA Gestão e Empreendedorismo Social, na

USP. É instituidor e presidente da Fundação Antônio Carlos e Maria José Gomes da

Costa, que trabalha para a formação de líderes sociais. É um dos autores do Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA). Defende a “pedagogia da presença”, pela qual os pais

devem estabelecer uma relação de permanente abertura, reciprocidade e compromisso

com os filhos.

Lucila Martinez: educadora, especialista em planejamento da educação; pedagoga e

mestre em biblioteconomia e informação pelo Pratt Institute, de Nova York (Estados Unidos);

especialista em inovação e difusão tecnológica (Laboratório Nacional de Computação

Científica [LNCC], Brasil/Universidade de Córdoba, Colômbia), com vasta experiência na

formulação de políticas nacionais para o desenvolvimento do livro, de ambientes favoráveis

à leitura e de sistemas locais e regionais de inovação, na América Latina e no Caribe; na

Participantes do seminário

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Fundação Escola de Serviço Público FESP RJ

coordenação de projetos internacionais para Banco Mundial, Unesco, Cerlalc (Centro

Regional para Fomento do Livro na América Latina e Caribe), Pnud, OEA, BID; e no

planejamento e coordenação de redes de sistemas de bibliotecas escolares e públicas.

Radicada no Brasil desde 1986, além da consultoria internacional desenvolve e executa

projetos que usam material multimídia e de inclusão digital, para o estímulo à leitura,

educação e cidadania participativa. Planeja e coordena programas de educação continuada

para professores, gestores e líderes de educação, saúde, desenvolvimento social e meio

ambiente. Responde pela direção pedagógica e editorial do programa Crianças Criativas®.

Em 2003 fez parte da equipe contratada pelo Unicef para criar e produzir os conteúdos

dos álbuns seriados sobre “Fortalecimento das competências familiares na atenção às

crianças de 0 a 6 anos”, com o objetivo de atingir dez milhões de famílias brasileiras. O

projeto foi implantado por meio de agentes sociais de mudança (líderes, agentes

comunitários de saúde, Pastoral da Criança, ministérios e secretarias municipais e

estaduais de Saúde, Educação, Justiça e instituições e ONGs que se dedicam ao

desenvolvimento social e comunitário).

Maria Cristina Leal: graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (1973),

mestre em Ciência Política pela Sociedade Brasileira de Instrução (SBI/Iuperj [1982]) e

doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1990). Foi professora

visitante da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro de

2003 a 2007. Tem experiência em educação, com ênfase em educação brasileira, e atua

principalmente nos seguintes temas: política social; criança e adolescente; direitos

humanos; educação pública; e serviço social. É co-autora dos livros “Política social, família

e juventude – Uma questão de direitos”, “Educação e museu – A construção social do

caráter educativo do Museu de Ciências” e “Formação de professores: uma crítica à

razão e à política hegemônicas”. E dos relatórios de pesquisa “Política de assistência ao

estudante cotista”, “Ficando para trás: o Ensino Médio no Estado do Rio de Janeiro” e

“Relatório de atividades do bairro-escola de Nova Iguaçu – Avaliação formativa, dialógica

e institucional”.

Maria Eulina Pessoa de Carvalho é graduada em pedagogia pela Universidade Federal

da Paraíba (1978), mestre em Psicologia Educacional pela Universidade Estadual de

Campinas (1989) e doutora em Política Educacional, Currículo e Ensino pela Michigan

State University, nos Estados Unidos (1997). É professora associada da Universidade

Federal da Paraíba, onde leciona Pesquisa em Educação no Curso de Pedagogia e

Seminários de Pesquisa em Estudos Culturais, Gênero e Educação no Programa de

Pós-Graduação em Educação. Pesquisa e orienta nas áreas de política educacional,

relações escola-família, currículo, relações de gênero na escola e educação ambiental.

É autora de “Family-School Relations: A Critique of Parental Involvement in Schooling”,

publicado pela Lawrence Erlbaum Associates e contemplado com o American Educational

Studies Association Critic’s Choice Award de 2000. No Brasil tem publicado artigos sobre

as relações escola-família e o dever de casa.

Vitor Henrique Paro: doutor em Educação pela PUC-SP e livre-docente pela USP. Foi

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Seminário “ A Escola e a Família”

pesquisador sênior da Fundação Carlos Chagas e professor titular da PUC–SP. Atualmente

é professor titular da Faculdade de Educação da USP. Há mais de 30 anos faz pesquisas

na área da educação, com destaque para a democratização da gestão escolar. A relação

escola-comunidade está presente na maioria de seus livros, entre os quais se destacam

“Por dentro da escola pública”, “Gestão escolar, democracia e qualidade do ensino”,

“Escritos sobre educação” e “Qualidade do ensino: a contribuição dos pais”.

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Eduardo Auler, chefe de reportagem do “Extra”, deu as boas-vindas ao público em

nome do jornal e da Fesp. Foi o segundo seminário sobre educação promovido pelo

“Extra”.

“Gostaria de enaltecer a possibilidade de discutir esse tema, a relação escola-

família. Teremos hoje o privilégio de ouvir a experiência de diferentes educadores. Acho

que será uma discussão produtiva e espero que tenhamos a possibilidade de retomar

esse tema sempre”, ressaltou Auler.

O presidente da Fesp, Claudio Mendonça, abriu o seminário.

“Estive há alguns meses em São Gonçalo desenvolvendo uma ação de

responsabilidade social financiada por uma empresa privada em parceria com a Secretaria

Municipal de Educação. A secretária de Educação, Marina Esteves, está presente aqui.

Acredito que a maioria de vocês a conheça. Tentei convencer essa empresa de que uma

das causas do fracasso escolar, que não é a principal, nem a maior, nem a mais grave,

nem a estatisticamente mais relevante, é a falta de saúde visual das crianças das primeiras

séries. A criança tem dificuldade de enxergar a distância, de se concentrar na leitura, tem

dores de cabeça e muitas vezes desiste e fracassa na escola. Essa empresa decidiu,

então, fazer o que estado fez em anos anteriores. Os professores examinaram as 16 mil

crianças das duas primeiras séries e selecionaram 1.670 para descobrir quais precisavam

usar óculos ou até fazer uma cirurgia. Fui surpreendido no primeiro dia com uma abstenção

de 39%, mesmo com transporte, merenda, gratuidade, enfim, todas as condições para

que as crianças fossem à clínica. Das que compareceram, 42% precisavam ou de óculos

ou de outra intervenção. Comecei a conversar com o chefe da equipe de oftalmologistas

e ele me mostrou um menino de 11 anos, Rafael, que tem catarata, enxerga muito pouco

e está repetindo a 1ª série pela 4ª vez. Ele está numa classe de inclusão, todos consideram

que não tem capacidade de aprender, quando simplesmente não enxerga. A menina Alani

tem 6,5 graus de hipermetropia e 4,5 graus de astigmatismo. Os graus são tão altos que

ela não pode usar a lente de uma vez, vai ter que dividir o grau em dois momentos,

ÍNTEGRA DO SEMINÁRIO

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Fundação Escola de Serviço Público FESP RJ

colocar óculos provisórios e daqui a seis meses colocar os definitivos. Se ela colocar os

óculos de uma vez vai continuar sem enxergar. Saí de lá e fui ao Ministério Público falar

com a doutora Fernanda Laize, promotora da Infância e Juventude, para pedir que obriguem

esses pais a levar seus filhos para fazer o exame, porque a gente não pode tirar a criança

da escola e levar à clínica.

“Trouxe esse exemplo para compartilhar com vocês um nível de ansiedade que

todas as pessoas comprometidas com a infância e com a juventude do nosso país devem

ter todos os dias, a vontade de fazer com que aquela pessoa que precisa de ajuda consiga

se desenvolver. A Finlândia é o país com o melhor resultado no exame de avaliação que

reúne 40 países. Lá os professores dizem que escolheram a profissão por causa do

compromisso com a infância. O professor de história não escolhe a matéria porque

gosta do tema, o de biologia não escolhe a matéria porque ama o assunto, eles escolhem

porque amam a infância e a juventude do país deles. Isso chega a aparecer estranho.

Quando li isso a primeira vez, achei que não poderia repetir porque soa mal, soa mentiroso,

soa demagógico, não soa? Não é estranho? Pois é, mas isso existe.

“Na época dos exames de vista, vi uma professora e um grupo de crianças

aguardando o atendimento, 25 crianças numa sala 2x3, ela completamente zen,

executando um mantra, e as crianças brincando, puxando o cabelo uma das outras, e

ela ali em alfa. Fui à papelaria, comprei umas massinhas de modelar, R$ 1,40, uma

resma de papel, uns lápis de cor. Por quê? Porque sou educador? Não, não sou educador,

mas sei que não dá para botar um monte de crianças juntas, deixar quatro horas, 25

crianças numa sala 4x3, isso é tortura. Se você não propuser nada para a criança é uma

crueldade, porque ela aprende brincando, se desenvolve brincando e tem interesse em

aprender. Não existe criança que não tenha curiosidade, que não pergunte, que não tenha

interesse pela ciência, pela matemática, pela linguagem. Não existe criança que não

goste de contar história.

“O que o jornal ‘Extra’ está fazendo aqui não é uma iniciativa episódica, é o resultado

de várias reportagens que decidiu fazer. Quando falo em jornal, não é o de papel, mas

um jornal que tem uma redação, com editor, com redator, com jornalistas que decidiram

abraçar essa causa e que muitas vezes acabam perdendo outras oportunidades de

trabalho porque estão num seminário de educação, decidiram estudar educação, se

especializar em educação. Deve haver outras áreas mais rentáveis, outras formas de

ascensão mais fáceis no jornalismo do que nessa área. Mas é um jornal que faz séries

sobre educação.

“Vocês devem ter constatado que os países que tiveram sucesso na área

educacional fizeram uma revolução no sentido ideológico da palavra, as sociedades desses

países abraçaram ideologicamente a causa da educação. Nos países protestantes, ler a

Bíblia era a característica da revolução de Martinho Lutero. Quem não era alfabetizado

não casava, e naquela época casar era uma coisa séria; não freqüentava a igreja, e

naquela época não freqüentar a igreja era uma coisa seriíssima. Nos países católicos, a

Igreja foi enfrentada por intermédio da educação. Não foi assim na Revolução Francesa?

Não foi assim na Itália? E nos paises comunistas? É o princípio básico do comunismo

que o operário tenha acesso à informação, á propaganda e à ideologia. No Oriente, houve

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Seminário “ A Escola e a Família”

a revolução do Japão, a da Coréia para enfrentar o Japão, a da China. Todos esses

países só atingiram o grande desenvolvimento educacional porque a sociedade, as famílias,

as escolas, os governos, os meios de comunicação decidiram que isso era essencial

para o desenvolvimento da população. Quando falo em educação, não estou falando do

tênis, do uniforme, de dar sucrilhos na hora da merenda, de carteira escolar novinha.

Tudo isso é importante, o uniforme impecável, o esporte na quadra, a banda de música,

o jogral, mas isso nem sempre é educação, no sentido mais importante da palavra. O

mais importante em educação é aquilo que a gente não consegue ver, o essencial em

educação é invisível. É isso que os países estão fazendo e que não estamos fazendo. A

gente pode formar uma belíssima orquestra de violões, mas se a criança não sair dali

capaz de ler e interpretar um texto claramente, de fazer operações matemáticas, de sair

da aritmética e ingressar na álgebra, de solucionar problemas, esse cidadão será inapto

para a sociedade, para a felicidade e para o trabalho. Isso é que faz a diferença. Não

podemos achar que os pais e as famílias podem se limitar a dar um beijo na criança de

manhã, quando dão, pentear o cabelo da criança de manhã, quando penteiam, passar

por aquele portão da escola e dizer “está aí, fiz o meu papel”. O professor fica sozinho,

tem que desenvolver a habilidade e as competências e ensinar aquele menininho a não

morder o outro, porque morder é feio, porque morder é agressivo. A tarefa de impor

limites a uma criança não pode ser responsabilidade exclusiva da escola, porque até

para brincar a criança tem que ter limites. As famílias não podem ter aquela visão de

escola de que a criança chega em casa de banho tomado apenas para os carinhos dos

pais, me desculpem, não dá para ser assim. As famílias têm de participar efetivamente

do processo educacional dos seus filhos, e não só as letradas. Qualquer pai analfabeto

tem condições de olhar o caderno e ver se está limpo ou sujo, qualquer pai analfabeto

tem condições de entender que na hora do dever tem que desligar o rádio e a televisão,

que tem horário certo. Que a escola que não manda dever está errada, que ele não pode

ser chamado só para levar puxão de orelha. Se a criança estiver mal, ele tem que ir à

escola, e não esperar ser chamado. A escola tem a obrigação de dar as oportunidades

para que essa criança se desenvolva e se recupere e todo pai tem direito de chegar à

escola e perguntar o que vamos fazer, qual é a nossa estratégia para o desenvolvimento

dessa criança?

“Este seminário tem por objetivo oferecer a 250 mil pessoas que lêem o ‘Extra’

todos os dias reflexões sobre como a escola, a família e a sociedade podem se envolver

no processo de desenvolvimento de habilidades e competências das crianças e dos

jovens do Estado do Rio. Vamos ter, além da reportagem sobre o seminário no jornal,

dois produtos: um livreto (sei que a palavra cartilha é um palavrão em educação) para

orientar pais, orientadores educacionais, se é que essa função não está em extinção,

essas aves raras da educação, diretores de escolas, gestores, a sociedade em geral

sobre como participar do esforço nacional pelo desenvolvimento da educação. Esse

desenvolvimento tem o nome de nacional, mas tem que acontecer na casa de cada um.

O segundo produto será um texto de maior fôlego, que vai demorar a sair porque vai ser

a compilação de tudo que for falado aqui e incluir os textos dos expositores, já entregues

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Fundação Escola de Serviço Público FESP RJ

à Fesp. Esse material será uma contribuição para as políticas públicas nacionais,

estaduais e municipais.

“Gostaria muito de agradecer aos palestrantes, que aceitaram o convite para

compartilhar suas experiências, seu conhecimento, seu talento com os leitores do jornal

‘Extra’, com as pessoas aqui presentes, e parabenizá-los pelo que fazem pela educação

do nosso país. Cada um deles está num lugar diferente, desenvolvendo uma tarefa na

prática, ou redigindo um texto, ou elaborando uma massa critica e temos aqui hoje diretores

de escolas, pais, alunos que vão dividir suas ansiedades, suas perplexidades na mesa-

redonda no fim do seminário. O debate será mediado por Eduardo Auler, hoje um dos

jornalistas do Rio e do país que mais se especializaram na área da educação. Isso é

essencial, porque a formação da opinião pública que é feita pelos jornais precisa de

pessoas que conheçam muito desse assunto, para que a gente não corra o risco de

distribuir programas, projetos ou ações em que falte o entendimento da sociedade em

relação ao que se está querendo fazer.

“É com muita satisfação que convido o primeiro palestrante, o doutor Antônio Carlos

Gomes da Costa, um dos maiores especialistas brasileiros em políticas para infância e

juventude. Tenho orgulho de ser amigo dele e de já ter aprendido muito com ele em

palestras a que assisti na época em que eu trabalhava no programa da Unesco

(Organização das Nações Unidas para Cultura, Ciência e Educação) no Rio. Ele sempre

me emocionou muito com a sua fala, com a forma com que encara a infância e a juventude,

a educação, como compreende o momento da adolescência, que é algo extremamente

importante. Ele está no rol dos grandes professores que tive. Professor Antônio Carlos

Gomes da Costa, por favor, a palavra é sua”.

Antônio Carlos Gomes da Costa

“Sobre a relação escola-família-comunidade, é interessante observar as LDBs (Leide Diretrizes e Bases) brasileiras. A Lei 9.394, de 1996, a última LDB, tem um artigo

primeiro diferente do artigo primeiro de todas as outras, elaboradas desde 1961. Uma

vez, num debate, o professor Darci Ribeiro disse que só ele poderia ter escrito esse

artigo, porque era antropólogo, porque aquele artigo não poderia ter sido escrito por

pedagogo, porque os pedagogos tinham a cabeça escolarizada demais. O artigo primeiro

da LDB é uma definição magnífica de educação. Estabelece que a educação abrange

todos os processos formativos, que ocorrem na família, nas instituições de ensino e

pesquisa, no mundo do trabalho, nos movimentos sociais, nas organizações da sociedade

e nas atividades culturais. Essa é uma visão ampla de educação. O artigo segundo foi

redigido por Anísio Teixeira em 1948, sempre foi o artigo primeiro de todas as LDBs e

passou a ser o segundo. Fala que educação é direito de todos e dever da família e do

Estado; que tem por base os princípios de liberdade e os ideais de solidariedade humana;

e que tem por fim a formação plena do educando, sua preparação para o exercício da

cidadania e sua qualificação para o trabalho. Esses são os três fins da educação, pessoa,

cidadão e trabalhador. O que é a formação plena do educando, o que vem a ser isso?

Várias vezes refleti sobre isso, escrevi alguns textos, mas a resposta a essa pergunta

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Seminário “ A Escola e a Família”

encontrei ouvindo um samba de Gilberto Gil, “Aquele abraço”. “Meu caminho pelo mundo/

Eu mesmo traço/A Bahia já me deu/Graças a Deus/Régua e compasso”. Acho que uma

pessoa com formação plena não é a que tem o Ensino Fundamental, ou o Ensino Médio,

ou superior, ou pós-graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado. A pessoa com

formação plena é aquela capaz de traçar seu caminho pelo mundo, ter um projeto de

vida e realizá-lo. Morei sozinho em São Paulo dois anos, tinha uma empregada que um

dia foi anotar um recado, fez uns rabiscos ininteligíveis, ela não dominava a leitura nem a

escrita, mas o marido trabalhava no condomínio, ela era diarista, fazia suas limpezas

diárias, ganhava até bem, porque tinha dia em que ela limpava dois apartamentos. Eles

viviam uma vida, digamos, de pobreza remediada e ela falava: “Eu não tenho letra”, essa

foi a expressão, “mas meus filhos estão no Ensino Médio e um já vai para a faculdade”.

Ela falava com um sentido de auto-realização muito grande. “Meu caminho pelo mundo”

é o projeto de vida que a pessoa desenha, a pessoa tem uma proposta. “A Bahia já me

deu régua e compasso”. Para que serve a régua? Para unir dois pontos, tenho um ponto

A, um ponto B, se quiser uni-los da melhor maneira uso uma régua. Essa régua, em

termos de educação para a vida, é o que une o ser ao querer ser, cada um de nós tem

um ser e um querer ser. Para que serve o compasso? Para a gente traçar a figura de

360º, para a gente fazer um círculo, e o circulo é a expressão da totalidade. A Bahia, nos

versos do compositor, é a educação, escolar, familiar, comunitária, porque a educação é

que nos dá régua e compasso.

“Resumi aquele livro do Amartya Sen (hindu, Prêmio Nobel de Economia 1998), ‘O

desenvolvimento como liberdade’, em alguns preceitos básicos para fazer palestra, tirei

algumas leis básicas do livro. A primeira observação que li é sobre o universalismo, sobre

o direito à vida, o mais amplo, profundo e universal dos valores. Se a vida fosse respeitada,

o mundo teria paz, justiça. O segundo princípio é que todos os seres humanos nascem

com potencial e têm o direito de desenvolvê-lo. Então, o que é educação? É o conjunto

de atividades que dão à pessoa as oportunidades formativas. Lembrando Darcy Ribeiro,

a educação abrange todos os processos formativos que levam as pessoas a desenvolver

o seu potencial, a transformar o seu potencial em capacidades, habilidades, atitudes

diante da vida, para isso serve a educação. Mas para desenvolver seu potencial as pessoas

precisam de oportunidades, ninguém desenvolve seu potencial se não tiver oportunidades.

As únicas oportunidades que desenvolvem verdadeiramente o potencial do ser humano

são as educativas. As demais criam condições para isso, saúde, transporte, remédio,

alimento, casa, tudo isso cria condições para o desenvolvimento do potencial, mas na

verdade o que desenvolve o potencial do ser humano são as oportunidades educativas.

Tudo que cada um de nós se torna ao longo da vida depende de duas coisas: das

oportunidades que tivemos e das escolhas que fizemos. Os países têm que prover

oportunidades para as novas gerações de crianças, adolescentes e jovens. O que somos

depende das oportunidades que tivemos e das escolhas que fizemos. A educação para

valores, que está nas mãos das famílias e não depende da escolaridade dos pais, é a

capacidade de avaliar situações e de tomar decisões diante delas. Quando a gente tem

filho e ele vai fazer uma viagem sozinho ou vai estudar sozinho numa outra cidade, a

única coisa que nós pais queremos é que ele saiba avaliar situações e tomar decisões

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diante delas. Quando vejo os meninos na escola de adolescentes infratores, não sei o

que eles fizeram para estar ali, mas sei que eles não souberam avaliar situações e

tomaram decisões erradas diante delas. Tampouco adianta avaliar situações e fazer

escolhas certas se você não tiver oportunidades.

“Agora, de quem é a responsabilidade por essa educação, no sentido de EPV

(Educação Para Valores)? ‘Se as coisas existem, os valores valem’, disse Max Tiller. O

valor valer é o quê? É o valor pesar na hora em que temos que tomar decisões na vida. A

indisciplina escolar, a violência, o delito juvenil, a gravidez precoce, o problema das drogas,

as doenças sexualmente transmissíveis, tudo isso vem de situações mal analisadas e

decisões diante delas mal tomadas. Tudo isso vem da incapacidade de avaliar

corretamente as situações e tomar decisões certas diante delas.

“Que formas de contribuição ou investimento familiar são desejáveis e viáveis?

Quem define essas formas de contribuição? A escola, a família ou ambas, em diálogo,

caso a caso? Que formas de contribuição familiar costumam ser prescritas pela escola?

Que formas de investimento na educação dos filhos são praticadas pelas famílias,

considerando seus diversos arranjos, condições socioeconômicas e culturais. Quais os

limites específicos da escola e da família como instituições educativas? Elas têm limites?

Quais os desafios da escola para implementar eficazmente essa parceria e quais as

dificuldades da família para exercer a parceria a contento? Quem é o responsável por

essa educação?

“Aí volto ao Darcy Ribeiro, a educação abrange todos os processos formativos,

que se dão na família, nas instituições de ensino e pesquisa, no mundo do trabalho, nos

movimentos sociais, nas organizações da sociedade e nas atividades culturais. Aí que

ele localiza a educação, e depois coloca um parágrafo falando assim: mas essa lei vai

tratar da educação escolar, vai restringir, ele abre um leque depois fecha para tratar

especificamente da educação escolar.

“Mas a LDB tem três artigos fundamentais: o 12 trata dos deveres do

estabelecimento de ensino, o 13 trata dos deveres do professor e o 14 trata da gestão

democrática da escola. É nesses três artigos da LDB que vamos ver a relação escola-

família. Tive a felicidade de ser membro do Comitê Internacional dos Direitos da Criança,

em Genebra, por conta de ter participado da redação do Estatuto da Criança e do

Adolescente aqui no Brasil. Lá, em 1992, houve um seminário de preparação do Ano

Internacional da Família. Alguém aqui sabe dizer qual foi o Ano Internacional da Família?

Foi 1994, a única coisa importante que tivemos no Brasil foi que a família foi tema da

Campanha da Fraternidade, da CNBB, em 1994, fora disso tivemos um evento da UIOF

(União Internacional dos Organismos de Família) em Curitiba, e o Ano Internacional da

Família passou praticamente em branco no Brasil. Lá no comitê, eles definiram família.

Primeiro vou fazer um desenho aqui no ar, o símbolo do Ano Internacional da Família foi

um coração, só que esse coração não fechava, igual a esse coração que tem no baralho,

que é fechadinho, era um coração incompleto, um coração aberto, com um telhado

japonês em cima, porque foi um designer japonês que ganhou o concurso para fazer a

marca, um telhado japonês em cima, um telhado de pagode, o que significava isso? Ele

explicou o seguinte: a família é um enlace humano, que tem vínculos entre si, e esses

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Seminário “ A Escola e a Família”

vínculos são afetivos, por isso o coração em todas as culturas é a sede do afeto, esses

vínculos são vínculos biológicos e o coração é a bomba que impulsiona a circulação do

sangue, o coração está incompleto, ele não fecha porque a família é um fenômeno que

não acabou de acontecer, a família é uma construção social que está acontecendo. Por

exemplo, vão surgindo tipos novos de famílias, a adoção internacional criou famílias

transculturais, o menino nasce numa cultura e migra para outra, a inseminação artificial,

os bancos de sêmen, os bancos de embrião, geraram outros tipos de família, temos as

famílias migrantes, temos a família nuclear tradicional, temos a família ampliada, que não

é só pais, mães e filhos, mas também tem avós, tios, todos convivem juntos, às vezes

debaixo do mesmo teto, então existem muitos tipos de família, e a família está acontecendo

ainda, a família é uma construção social ainda inacabada e que talvez só vai acabar com

o fim da história humana, a família está sempre em transformação. Hoje no Brasil temos

grande número de famílias monoparentais femininas, temos famílias monoparentais

masculinas, assim foi definida a família, um enlace humano. Agora, o que tem nos artigos

12, 13 e 14 da LDB? Lá diz: entre os deveres do estabelecimento de ensino está estabelecer

relações com a família e a comunidade em que o estabelecimento de ensino está inserido,

nos deveres do professor fala que o professor deve cooperar com atividades de integração

família-comunidade, escola-comunidade, o envolvimento das famílias, o entorno

sociofamiliar, o professor deve colaborar com essas relações. O artigo 14, que trata da

gestão democrática da escola, fala de as famílias participarem dessas associações e

colegiados, conselhos escolares.

“O tema da família, desde os anos 90 pra cá, vem assumindo um significado novo

no Brasil. Qual foi a principal modificação na política de saúde do Brasil nos anos 90? Foi

o PSF, o Programa de Saúde da Família, o Brasil tem hoje milhares de médicos de

família e muitos médicos brasileiros foram fazer mestrado e doutorado em medicina

familiar no Canadá e outros países, em Cuba inclusive. Na política de assistência social,

a família também foi ressignificada, a principal mudança foram os programas de renda

familiar mínima, que hoje resultam no Bolsa-Família, houve uma evolução nesses

programas, começou em Campinas com o prefeito Roberto Magalhães, depois em Brasília

tivemos o Bolsa-Escola do Cristovam Buarque, e o país foi amadurecendo nessa direção,

de fazer programas de bolsa-família. As Nações Unidas, o Ano Internacional da Família,

ele recomendou quatro atividades, quatro grandes linhas de ação, esse ano internacional

é muito esquecido, por isso gosto de falar sobre ele, escrevi dois livros sobre família, um

coletivo que se chama ‘Família, a base de tudo’, e outro individual, ‘A criança, o adolescente

e a família na política social do município’. Na medicina, o programa de saúde da família,

na assistência social, os programas de bolsa-família e na educação, qual foi a grande

mudança? Foi a mudança da participação ativa da família na vida escolar de seus filhos.

Lembro aqui os artigos 53 a 58 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que são

interessantes, a LDB trata do direito da educação com base na oferta da educação, o

Estatuto da Criança e do Adolescente trata do direito à educação com base na demanda

por educação de qualidade para todos e lá fala que os pais têm direito de ter ciência dos

processos pedagógicos da escola, da proposta pedagógica da escola. Isso é um direito

dos pais que está na lei do Brasil.

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“A gente vai falando tudo isso em termos normativos, agora vamos baixar, vamos

pôr a rodinha no chão e falar da realidade. Qual a realidade da relação escola e família

hoje no Brasil? Fiz uma pequena taxionomia, uma pequena classificação das relações

escola e família no Brasil, não existe lugar que tenha 100% de integração entre a escola

e a família, e não existe lugar que tem 0% de integração entre a escola e a família, a

realidade está entre esse 0 e esse 100, e descobri, fui diretor de escola, secretário

municipal de Educação de Belo Horizonte, e vendo as relações escola-família observei

que as melhores escolas da rede municipal eram escolas assumidas pelo seu entorno,

eram escolas que o entorno sócio-familiar-comunitário tinha grande atuação na vida da

escola, então observei o seguinte, vários padrões de relação, quando era secretário,

relação escola-família, e fiz uma pequena taxionomia, uma pequena classificação dessas

relações. O primeiro padrão na relação escola-família é o burocrático formal. O que é o

padrão burocrático formal? A escola se relaciona com a família num relacionamento feio,

formal e triste, o relacionamento com a família são aqueles momentos da matrícula,

momentos da formatura, algumas festas durante o ano, algum conselho de classe

obrigatório e às vezes chamar os pais para orientar em relação aos problemas dos filhos,

para reclamar do filho, esse é o padrão de relacionamento burocrático-formal, a escola

se relaciona com a família de uma maneira burocrática e de uma maneira formal,

cumprindo exatamente aquilo que prevê a lei, aliás nem isso, porque hoje a lei prevê

muito mais do que isso. O segundo padrão, se a gente for pegar numa régua, o segundo

estágio dessa régua é a relação tutelar escola-família, o que é relação tutelar? A escola

vê nos pais uma extensão dos educandos, principalmente em lugares pobres, periferias

urbanas, áreas rurais pauperizadas, os pais são pais educandos, e eles são chamados

à escola para serem doutrinados e orientados sobre o modo como educar seus filhos, o

pai é um pai-aluno da escola, a extensão do educando. Não gosto da palavra aluno,

porque significa sem luz, igual a amoral, sem moral, aluno é aquele sem luz, os pais são

pais educandos, eles são uma extensão dos filhos. A escola procura trabalhar com esses

pais visando a trabalhar melhor os filhos e a escola procura orientar esses pais, instruir

esses pais. O terceiro padrão é um padrão que existe em muitas escolas da periferia ou

não, da zona rural ou da zona urbana, que é o padrão pragmático utilitário. Qual é o

relacionamento da escola com a família? A escola procura usar o entorno sociofamiliar

como fonte de recursos e fonte de trabalho voluntário para fazer coisas que precisam ser

feitas na escola. Uma diretora fala assim: ‘Aqui existe a maior integração escola-família’,

e quando você vai ver ela faz quermesse, ela chama pais voluntários para ajudar na

escola, ela tem uma relação extrativa de recursos e mão-de-obra para o trabalho escolar,

esse é um terceiro estágio da relação escola-família. O quarto estágio seria a gestão

democrática da escola, seria a família participar verdadeiramente da educação e aqui eu

vou falar uma coisa interessante, falo educadores familiares, educadores escolares,

educadores comunitários e educadores mediáticos, por que falar educador familiar? Hoje

ser pai é uma condição biológica, ser educador familiar é assumir um papel na vida de

seu filho, há muitos pais que não são educadores familiares e há muitos educadores

familiares que não são pais, então prefiro falar em educador familiar do que falar em pais.

Quantos pais assumem realmente a educação dos seus filhos? Para ser um bom pai ou

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uma boa mãe, a educação escolar, o nível de escolaridade é útil, ajuda, mas não é

essencial, o essencial é o exemplo de vida e o interesse. Escrevi uma cartilha para os

pais, aí é uma cartilha mesmo, fizemos um programa na Escola Rodrigues Alves. A

cartilha tem dez atitudes que favorecem o desenvolvimento escolar das crianças, dez

atitudes dos pais que favorecem o desenvolvimento das crianças na família e na escola.

E que atitudes são essas? Primeiro, desejar que o filho aprenda muito na escola. Quando

ele chegar da escola, perguntar como foi o dia dele, o que aprendeu, o que aconteceu na

escola de bom, do que gostou mais, do que não gostou. Depois estabelecer horário de

estudo e condições de estudo. Depois não esperar se o filho estiver dando algum problema

em casa, procurar dialogar sobre esse problema com o educador do filho, ver no educador

das crianças, educador escolar, um parceiro na educação do seu filho, e o principal é o

exemplo de vida. Um grande educador ucraniano, Anton Makarenko, falou o seguinte, que

o exemplo não é a melhor forma de um ser humano exercer uma influência construtiva e

duradoura sobre o outro ser humano, é a única forma, essa relação escola-comunidade

é uma relação que precisa ser reinventada.

“Existem dois padrões de geração das grandes redes escolares, o primeiro já foi

mencionado pelo Cláudio aqui na sua palavra inicial. Quando Martinho Lutero, antes de

fazer a reforma protestante, passou 17 anos na sua cela de monge agostiniano traduzindo

a Bíblia para o alemão, a tradução da Bíblia feita por Martinho Lutero é igual ao Lusíadas

para o português ou a Divina Comédia para o italiano, é o livro-mãe da língua alemã, e,

por uma felicidade da História, quando foi feita a reforma protestante Gutemberg estava

inventando a imprensa. Martinho Lutero recuperou a tradição do velho testamento de que

rezar era ler e ler era rezar, tanto que o povo judeu não tinha analfabetos, era um povo

alfabetizado porque a função do rabino na comunidade era ensinar a rezar e ensinar a

rezar era ensinar a ler, era ensinar a ler a escritura, a palavra de Deus, então todo mundo

sabia. Minha mulher é ex-freira, muito católica e fomos à festa de Santana e a imagem de

Santana é a imagem de Santana sentada com Nossa Senhora e o livro na mão, naquele

tempo não existia aquele tipo de livro, um livro dos tempos de hoje, um livro da galáxia de

Gutemberg, mas significava que ela ensinava a filha a rezar e que, ela ensinando a filha

a rezar, ensinava a filha a ler. Lutero e o protestantismo recuperaram essa tradição e

criaram as escolas dominicais. Nos domingos as pessoas adultas iam à igreja para

aprender a rezar, e se eram analfabetas tinham que aprender a ler para poder se habilitar

a rezar, a mesma tradição do povo judeu, tanto que no século 17, na Alemanha, o nível de

alfabetização já eram muito alto por conta da reforma protestante. Depois houve outro

sistema, o sistema cívico-revolucionário, que também foi referido aqui pelo Cláudio. O

sistema cívico-revolucionário tem início com Napoleão, que resolveu desasnar a França,

resolveu letra a população francesa, criou a escola normal, escola normal era a escola

que estava dentro da norma, era uma fábrica de professores, escola laica universal pública

e obrigatória, essa escola napoleônica deu origem aos sistemas de ensino

governamentais, porque na Alemanha, essa educação luterana que houve nos diversos

países protestantes tradicionais, a escola era mantida como a igreja, os adultos iam à

escola dominical e as crianças iam durante a semana, e eles se letravam, então as

escolas era mantidas pela comunidade, e isso gerou uma tradição no mundo germânico

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de a família ter uma grande ascendência sobre a escola, de a família ter um grande

sentido de que a escola lhe pertence. O Brasil, qual dos dois modelos adotou? Não

adotamos o modelo comunitário germano-protestante e adotamos mal o regime

napoleônico, porque só agora, no fim do século 20, o Brasil colocou 97% das crianças no

Ensino Fundamental, mas fizemos isso na virada do século 20 para o 21.

“Há uma coisa na educação que é o seguinte: se a gente quiser melhorar a oferta,

a gente tem que melhorar a demanda. Acho que os pais têm que ser educados para duas

tarefas, esse trabalho com os pais deve ter dois objetivos, o primeiro é fazer com que a

educação familiar seja compreendida e que o papel dos pais na educação dos filhos,

bem salientou o Cláudio aqui, seja reconhecido e isso seja divulgado, seja falado, e seja

ensinado e isso seja praticado. E o segundo é aprender a relacionar-se com a escola,

aproveitar as oportunidades da escola, aproveitar as oportunidades extraordinárias da

Lei 9.394 de 1996, Lei de Diretrizes de Base de educação, ela abre um campo fertilíssimo

para a melhoria da relação escola-família-comunidade, isso está também no Estatuto da

Criança e do Adolescente, onde está que os pais têm ciência dos processos pedagógicos

da escola, do projeto pedagógico da escola e da maneira como esse projeto é executado.

Hoje os pais não conhecem o regimento das escolas, muitas vezes nem os professores

conhecem o regimento escolar, o regimento é uma coisa que fica guardada dentro de

uma pasta e que não é usada, e fazer novos regimentos escolares baseado na Lei 9.394,

baseado na nova LDB, seria uma grande conquista para estabelecer direitos e deveres

dos educandos, educadores escolares e familiares na educação das crianças e dos

adolescentes”.

Maria Eulina Pessoa de Carvalho

“Na década de 90, essa chamada participação da família na escola se tornou política

pelo menos nas Américas. Na verdade, é uma chamada para o sucesso escolar, daí a

participação da família ser considerada essencial, e se coloca a família como responsável

realmente pelo sucesso escolar. É a idéia de produtividade, elevação da qualidade da

escola e melhoria do desempenho dos alunos, principalmente daqueles em situação de

desvantagem social. Essa participação se dá de duas formas, em dois momentos e

lugares. Há a participação na escola, festividades, reuniões de pais e mestres, conselhos

escolares. E há a participação no dia-a-dia em casa, por intermédio do dever de casa.

Esse é o tema que vem me apaixonando, o dever de casa. Sou mãe e tenho três crianças,

agora são adultos, que freqüentavam escolas privadas. Uma das primeiras escolas

privadas que freqüentaram era alternativa, que fazia a seguinte propaganda para as mães

profissionais como eu: ‘Aqui o seu filho aprende tudo o que precisa. Não mandamos

dever de casa’. Claro que eu e minhas colegas estávamos lá matriculando nossos filhos.

Era uma escola montessoriana, lá em João Pessoa. Aliás, já fechou. Em seguida meus

filhos foram para uma escola marista, mais tradicional, e tinha muito dever de casa. Eles

não tinham sido treinados para fazer dever de casa. Então, enlouqueci. Porque chegava

ao meio-dia do trabalho, não tinham feito nada. Dizia para a empregada ‘Não deixe ligar a

televisão. Vão fazer o dever e tal’. Tinha que, na pressa, botar para fazer o dever, dar o

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Seminário “ A Escola e a Família”

almoço, dirigir até a escola e ao meu trabalho. Chegava à escola com dor de estômago.

O que é que fiz? Podia, contratei uma professora particular, uma estudante universitária,

para ficar todo dia na minha casa de 9h ao meio-dia, resolvi o meu problema. Em seguida,

fui fazer doutorado nos Estados Unidos, sou divorciada, e fui com meus três filhos, que

tinham de 10 a 14 anos. Pensei: ‘Agora eles vão para escolas públicas de excelente

qualidade, professores no mínimo com mestrado, aquelas escolas assim

cinematográficas, superequipadas, acabou a minha pena, não vai ter mais dever de casa’.

Claro, como uma escola em tempo integral, eu pensava, vai ter dever de casa? Vão

aprender tudo lá. Só que, para minha surpresa, tinha dever de casa, tinha muito dever de

casa. A minha filha de 10 anos ficava até meia-noite fazendo dever de casa. Meia-noite

começava com meu dever de casa do doutorado, que ia até 3h ou 4h. O filho mais velho,

que já estava no nível médio, tinha o dever de casa para eu assinar e a minha assinatura

valia 5 pontos. Um dia ele se esqueceu de pedir para eu assinar, porque eu não fazia

esse papel, ‘cadê o dever e tal?’, de boa mãe, de mãe exemplar. Aperreada com tudo o

que tinha que fazer, cozinhar todo dia, uma comidinha legal, fazer o meu dever de casa,

que era pesadíssimo, do doutorado. Então, ele me liga da escola: ‘Mãe vem assinar aqui

o papel para eu ganhar 5 pontos’. Ah!, eu me revoltei. Fiquei com vontade de brigar com

a escola, mas não podia, porque iam dizer: ‘Que mulher maluca é essa? Essa brasileira

do terceiro mundo, achando ruim ter que assinar um papel para o filho ganhar 5 pontos’.

Enfim, tive que engolir e dizer para ele: ‘Sinto muito, não posso largar o meu trabalho e ir

aí agora para assinar esse papel’. Então, resolvi estudar o tema, essa relação escola e

família. E fiz a minha tese de doutorado sobre isso.

“Essa questão do dever de casa e tão naturalizada que ninguém discute. O dever

de casa não é um tema que ganhe realce nessa discussão da relação escola e família.

Mas, na verdade, ele é um dispositivo pedagógico que torna o lar uma extensão da sala

de aula. Serve também para avaliar a educação familiar e o desempenho parental. Porque

o dever de casa conta nota de uma forma ou de outra. Está aí a imprensa dizendo, o Inep

(Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) divulgando que o dever de

casa impacta os resultados do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica). Impacta

indiretamente ou diretamente no dia-a-dia, vale nota, vale pontos extras, nota de

participação, se a avaliação da escola é mais qualitativa. Também sou professora de

pedagogia, passei a vida inteira escutando as queixas das minhas alunas professoras,

com relação à falta de cooperação dos pais. As professoras, geralmente, têm dois

problemas, indisciplina e dificuldade de aprendizagem. Também pesquiso esse tema em

escolas de João Pessoa e Campina Grande, além de com minhas alunas. Elas

descrevem assim os alunos que não fazem o dever de casa: bagunceiros,

desinteressados, não gostam de estudar, com deficiência de aprendizagem, têm pais e

mães ausentes, analfabetos, não têm ajuda em casa.

“Uma elaboração teórica que faço a partir de Pierre Bourdieu, um sociólogo francês,

é que a escola tem contado com a educação familiar de duas maneiras: implícita e explícita.

Implicitamente, construindo a aprendizagem acadêmica com base no capital cultural, o

conjunto de práticas que valoriza a educação acadêmica. Esse capital cultural é herdado

pelo aluno, então a escola se vale dessa afinidade entre o currículo escolar e a cultura da

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família. No caso do dever de casa, ela explicitamente capitaliza o tempo e os recursos

materiais dos pais. No caso brasileiro, como nossa jornada escolar é geralmente de

meio expediente, é insuficiente, fica muito bem justificado que é preciso fazer mais

trabalhos escolares em casa para compensar.

“Fica claro que o sucesso escolar resulta em parte da contribuição direta ou da

ação compensatória da família visando a superar as insuficiências da escola ou mesmo

a deficiência de alguns alunos. Geralmente, por meio da dedicação da mãe como

professora auxiliar filhos ou da contratação de professores de reforço escolar ou

explicadoras, como chamam aqui no Estado do Rio. Evidencia-se assim a influência de

fatores como classe social, renda familiar e gênero. Essa disponibilidade materna na

configuração da contribuição familiar ao sucesso escolar.

“Essa problemática da relação escola e família é muito complexa. É difícil fazer um

recorte do que pensar, do que discutir, mas acho que a gente precisa pensar a evolução

da família, as mudanças nos ritmos de trabalho e na organização da vida cotidiana,

paralelamente às questões escolares e curriculares.

“Nesta exposição vou desenvolver dois argumentos polêmicos. O primeiro: o

incentivo à participação dos pais na escola, sobretudo via dever de casa, tende a aumentar

as desigualdades de resultados educacionais, porque as famílias têm condições materiais

e culturais diversas. E o dever de casa impacta direta ou indiretamente as notas dos

estudantes. Minha preocupação é com a eqüidade. Para promover a eqüidade

educacional, considerando as diferenças entre as famílias, em vez de contar com a

contribuição familiar, a escola deveria descontar a contribuição familiar. Maximizando a

aprendizagem que ocorre no tempo e no espaço da sala de aula e compensando as

desigualdades dos alunos e alunas quanto às condições para aprender por meio de

programa de reforço oferecido na escola. O segundo argumento: o dever de casa como

estratégia de envolvimento e contribuição da família na aprendizagem do currículo escolar

constitui violência simbólica, outro conceito de Pierre Bourdieu, em alguns casos, em

todos não. Porque impõe a cultura acadêmica ao lar, regulando a vida doméstica e privada,

prescrevendo papéis parentais segundo um modelo de família e valores das camadas

médias e dominantes. A política educacional que não se restringe à escola deveria respeitar

a autonomia da família e a liberdade dos pais quanto à escolha do currículo doméstico ou

de currículos alternativos ao currículo escolar. A escola, historicamente, não conseguiu

eliminar as desigualdades. Mesmo em países onde todos tiveram acesso à educação e

completaram no mínimo a educação básica, isso não se traduz necessariamente em

inclusão social ou em oportunidades iguais para todos no mercado de trabalho. E na vida

em geral. O fracasso escolar atinge aqueles que não adquiriram na socialização familiar

o capital cultural valorizado pela escola e passível de troca pelo capital escolar, que é

representado pelo diploma. Essa seria, em resumo, a teoria de Bourdieu. O capital cultural

é corporificado no hábito, isto é, um sistema de exposições psicossomáticas que propicia

assumir com facilidade o papel de estudante. Se a família não tem livros em casa, se não

é a mãe que recebe a criança perguntando ‘como que foi o seu dia na escola?’, são

realmente culturas distintas, a da família e a da escola. E isso vai dificultar que a criança

assuma o papel de estudante.

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Seminário “ A Escola e a Família”

“Minha preocupação é apontar os efeitos perversos de políticas públicas e práticas

escolares bem-intencionadas, que, ao desconsiderar diferenças de classes e gênero e

tentar enquadrar todos num padrão, consolida um benefício para uma suposta maioria,

subordina certas famílias, exclui das promessas da escola indivíduos e grupos em situação

de desvantagem ou de vulnerabilidade.

“Há argumentos que se contrapõem aos meus. É que o dever de casa também é

uma janela através da qual os pais podem acompanhar a aprendizagem dos seus filhos

e fiscalizar a qualidade da escola, do ensino e, portanto, do trabalho do professor.

“O sociólogo americano William Weller, na década de 30, definiu pais e professores

como inimigos naturais. Por quê? Os parentes estariam preocupados com as

necessidades e características individuais dos filhos. Mas os professores estão

comprometidos com o atendimento da turma, do coletivo, não podendo dar aquela

desejável atenção às diferenças individuais. E também estão comprometidos com o

interesse da instituição escolar. Essa perspectiva mostra como é delicada e

potencialmente conflituosa essa relação escola e família. Então, isso é um desafio.

“Para contar a história do modelo de delegação ao modelo de parceria, vou dividi-la

em três partes. Primeiro, quando a gente passa da educação familiar e comunitária para

a educação escolar, a gente tem que se lembrar que as relações de gênero estão aí

estruturando essas relações escola e família. Tanto que a escola reproduz a divisão

sexual e de gênero no trabalho. A gente tem na creche, na pré-escola e na primeira fase

do Ensino Fundamental mulheres lecionando, e nos níveis superiores a gente tem ainda

mais homens do que mulheres, inclusive no nível superior no Brasil. Depois, há a relação

entre classe social e essas relações escola e família.

“Acho que existem duas histórias da educação relacionadas à classe social e às

relações família e escola. Há uma história de continuidade cultural entre família e escola,

da família para a escola. Em que a escola é uma extensão da família. Esse é o caso das

escolas privadas. Quando a burguesia e as camadas médias em ascensão criam uma

escola fora de casa, porque a escola era doméstica, ou a mãe alfabetizava ou as famílias

aristocráticas contratavam um professor particular residente, isso na Europa e também

aqui no Brasil, na época da colonização. Até o século 19, nas fazendas de café,

importavam-se professoras da Europa que ficavam residindo em casa ensinando aos

filhos daquela família. Essa foi a solução que essas famílias encontraram para educar

seus filhos. As que não podiam arcar com esse sistema, a solução que encontraram foi

criar uma escola, contratavam os professores que iam atender aos filhos de várias famílias

ao mesmo tempo. Isso saía mais barato. Era uma escola em regime de internato, as

crianças iam morar na escola. Isso era uma solução. A escola surge assim e essa é uma

história das classes médias, em que as famílias investem na educação dos filhos. E isso

está hoje ainda no modelo das escolas privadas. As famílias escolhem a escola privada

que preferem. Se querem uma escola religiosa ou uma escola não-confessional, mais

progressista, mais conservadora. A outra história das relações escola e família é uma

história de descontinuidade cultural entre família e escola. E de aculturação que a escola

exerce sobre a família. Então, a família é uma extensão da escola. O pai e a mãe se

tornam educantes. Portanto, a família se torna um objeto de política educacional e vai

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Fundação Escola de Serviço Público FESP RJ

sofrer essa imposição do modo de educação escolar, porque essa família é considerada

carente. Então, essa é a história da educação das camadas mais pobres.

“Originalmente a família delegava a educação ao Estado. Então, esse é o modelo

da educação compulsória. Nesse contrato social, a família tinha que entregar à escola

uma criança pronta para aprender. A família cuidava das condições físicas e psíquicas

para as crianças chegarem à escola motivadas e prontas para aprender. E a escola

cuidava da parte acadêmica. Esse é o modelo de delegação. Na década de 90 a gente

estaria passando a partir daí para um modelo de parceria. Nesse modelo de parceria, na

oitava meta da educação nacional lá dos Estados Unidos, na época do presidente Bill

Clinton, no Ano Internacional da Família, está escrito assim: ‘A família é responsável pelo

desenvolvimento físico, psíquico e acadêmico de suas crianças’, esse é o tal do modelo

de parceria, as escolas devem estabelecer as parcerias, está lá na lei, bem formalizado.

Aqui não é tão formalizado assim, apesar do que consta na LDB. Só que para a gente

pensar essa parceria, essa mudança da delegação para a parceira, é preciso pensar

que a família vai ter responsabilidade maior. Ela é responsabilizada pelo sucesso ou

fracasso escolar. A gente tem que atentar para certas complexidades e dinâmicas sociais.

Primeiro, as relações de poder variáveis e de mão dupla, que são relações de classe,

étnicas, de gênero e idade, que, combinadas, estruturam essas interações entre escola

e família e seus agentes. Ora, os professores vão ter mais poder sobre pais analfabetos,

profissionais de escolas privadas vão ter mais poder sobre os professores, até ameaçando

os professores de demissão, porque vão se queixar aos diretores. Mas estou preocupada

é com a realidade da escola pública. Acho que a escola tem mais poder do que a família.

“A gente também tem que levar em conta a diversidade de arranjos familiares e as

vantagens ou desvantagens materiais e culturais de certos grupos sociais para participar

do projeto de construção de uma educação pública de qualidade. Já foi falado aqui que

as famílias mudaram. A gente tem muito mais famílias monoparentais chefiadas por

mulheres. Depois, a gente deve levar em conta as relações de gênero que estruturam as

relações e a divisão de trabalho em casa e na escola.

“Por que a gente tem que levar em conta as relações de gênero? Porque a escola

se dirige muito mais às mães do que aos pais. Embora use o termo genérico “pais”, vou

já dar um exemplo disso. Depois a gente tem que levar em conta as mudanças nas

condições de trabalho das professoras e na organização do trabalho pedagógico. As

professoras hoje são muito mais sobrecarregadas do que na época em que eu estudava.

A gente tinha caderninho de classe, caderninho de casa. Um expediente a professora

estava na escola, o outro expediente ela estava corrigindo os nossos caderninhos. Hoje

as professoras corrigem o dever de casa coletivamente na aula. Então, são condições

de trabalho bem diferentes daquela época. Finalmente, a gente tem que levar em conta

as mudanças curriculares e pedagógicas que fazem com que pais e mães estejam

sempre desatualizados em relação ao currículo escolar.

“Quero dar esses exemplos que são vozes de mães. Esses trechos são de uma

pesquisa feita em Campina Grande, com mães de escola pública de baixa renda, sobre

o dever de casa. No começo, elas disseram ‘Não, não tem nenhum problema com o

dever de casa, não’. Depois, no decorrer da entrevista, a gente perguntando ‘E como é a

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Seminário “ A Escola e a Família”

hora do dever de casa? Como é que você se sente? Como é que seu filho ou filha se

sente?’, apareceram essas coisas assim:

“Ele começa a chorar. Ele sempre se angustia com as tarefas. Quando ela não consegue, chora e

diz que não quer mais estudar. Eu reclamo com ele, ele só faz forçado. Ele só faz quando fico

cobrando mesmo. Às vezes ele esconde. Ela fica calada, não me fala nada não, não diz que trouxe

dever de casa. Sempre estou ameaçando ele: se você não fizer, vou saber da professora como é

que está indo. Ela é muito teimosa. Ele é uma criança muito desobediente. Vai ficar de castigo.

Quando ela não quer fazer é preciso uma punição mais severa para que ela faça. Com certeza, ela

não gosta de fazer o dever de casa. Ela faz obrigada e chora. Um dia ela rasgou até a folha para não

fazer. Tem vez que bato até nela porque ela chora. Porque não sabe fazer o dever de casa. A escola

só culpa a mãe, nem adianta se a criança só tiver pai. A reação da professora é colocar a culpa em

mim. E ela nem sabe por que não ensinei a tarefa para ela. A professora disse: ‘A sua mãe estava

fazendo o quê? Por que não lhe ajudou na tarefa?’ Se os professores não passassem tanto dever

de casa seria muito mais fácil. Às vezes penso sozinha: ‘Seria tão bom se as professoras não

mandassem tarefas de casa. Porque imagine toda hora de tarefa de casa é aquele barulho pra

poder a criança fazer o dever’. Às vezes acho que o dever de casa é sim um problema, porque os

professores deveriam achar uma nova maneira sem passar tanto dever de casa. Sei que tem mãe

que trabalha o dia todo, às vezes o pai chega e o filho vai saindo pra escola. Não vê nem o pai.

Nesse caso em que a família não tem condição de dar assistência, acho o dever de casa um

problema e a solução seria a escola acabar com o dever de casa. Ou então colocar professores à

disposição dos alunos nas horas vagas.

“Esses trechos agora já são de uma pesquisa feita em Belo Horizonte. Foram

ouvidos grupos de pais e mães, geralmente mãe, né? Raramente o pai. De duas escolas

privadas e de uma pública. Esta é de uma mãe de escola pública. Ela diz assim:

“Quando o meu filho era pequenininho, ele caiu e quebrou a cabeça em três lugares. Então, vivo de

psicólogo, psiquiatra, médico de cabeça, não tenho tempo de sentar e ensinar. As crianças que

estão aqui nem aprendeu a fazer o a-e-i-o-u, eles já estão mandando os deveres, que nem eu sei

explicar. Então, fiquei tão nervosa com esse dever de casa que estava vindo, que eu não tinha

tempo pra ensinar. E ele estava tomando nota baixa na escola. Porque dever de casa é normal, tem

em todo colégio. Só que naquele instante que chegou aquela folha pra mim, estava muito tumultuada

a minha vida. Eu achava que o dever de casa não era bom o professor mandar pra casa. O dever

de casa devia ser agilizado na escola.

“Esse é o meu ponto de partida. Essa mãe arranjou uma fundação em que o filho

podia ir no outro expediente para ter reforço escolar.

“Então, agora eu não tenho que reclamar do dever de casa, porque ele tem duas vezes na clínica

da fundação reforço, 3ª e 5ª, e tem a escola todos os dias aqui. Agora a dificuldade dele quando ele

tem aqui, ele aprende lá. Quando ele aprende lá, quando eles começam a ensinar aqui ele já está

sabendo. (Risos) Agora, graças a Deus, já não tenho aquele nervosismo no dever de casa, porque

o meu filho está com assistência em outro lugar. Que deveria ser aqui na própria escola. Porque eu

não tive essa assistência aqui.

“Aí vêm as sugestões dela:

“Poderia ter uma professora, uma só, de plantão na escola pra ajudar aqueles que têm muita

dificuldade, que a mãe não sabe ensinar em casa. Acho que o dever de casa devia ser mais

apropriado pra escola mesmo. Por exemplo, todo mundo entrou na sala, a professora perguntaria:

‘Cadê o seu dever de casa, fulano?’, todo mundo apresentava o seu. ‘Por que você não fez, meu

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filho?’, aí aquela criança ia falar: ‘Minha mãe é analfabeta. A minha mãe não sabe ensinar. E eu não

tenho quem me ensina’, qual era os passos? Ela pararia uns 10 minutinhos, ensinaria àquela

criança o dever de casa. Só depois ela iria pro quadro. Eu achava melhor assim.=

“Quer dizer, ela quer uma professora cuidando do filho dela, diretamente.

“Atribui-se às famílias a obrigação de propiciar o desenvolvimento emocional, social

e acadêmico das crianças ampliando as suas funções, omitindo-se diferenças de capital

econômico, social e cultural entre elas. Nega-se a espécie de educação escolar que se

dá e o status profissional e o saber especializado da professora, atribuindo-se aos

responsáveis o papel de acompanhar o dever de casa. Mantém-se o modelo assistencial

de escola, porque a escola assumiu aquelas funções que eram tradicionalmente da família.

E adota-se o modelo pedagógico de família, família aprendente, todos juntos ao redor da

mesa de jantar fazendo o dever de casa. Aí, uma aluna minha disse assim: ‘Aiii! Lá vem

dever de casa na hora da minha novela. Eu detesto isso’. Ela é professora. Ela quer

assistir à novela, ela trabalha duramente o dia inteiro. E a hora que sobra para ensinar o

dever de casa da filha é a hora da novela.

“Essa política vai incidir sobre a família. Ela vai formalizar a educação doméstica e

ainda mais vai confundir o papel parental com o papel docente. Impõe-se aos pais a

concepção de que o lar deve ser o local para o desenvolvimento explícito intencional do

currículo escolar. E a obrigação de converter as atividades familiares em extensões das

atividades de sala de aula, em detrimento do pluralismo cultural e educacional e das

opções de lazer e descanso da família.

“Impõe-se um modelo único de família espelhando a de classe média com esposa-

mãe em tempo integral, aquelas famílias de antigamente, agora em tempos de índices

crescentes de pobreza econômica, emprego materno, estresse familiar, divórcios,

mulheres chefes de famílias, desconhecendo-se as mudanças na forma de organização

familiar que vêm distanciando a família atual desse modelo patriarcal pai-provedor e mãe-

doméstica.

“Privilegia-se o modelo parental e um estilo particular do exercício da paternidade e

maternidade, a gente impõe um modelo de família ideal.

“E, finalmente, desvia-se o foco da melhoria educacional da sala de aula para o lar.

“Quero dar um exemplo da estrutura de reprodução das desigualdades de gênero

por meio dessa chamada que a escola faz para a família participar. É de uma cartilha de

João Pessoa, ‘Aprendendo com carinho’:

“Luiza, você viu a tarefa de casa do seu menino hoje? Não tive tempo não, Maria, trabalhei o dia

inteiro. Não parei um minuto. Eu também trabalhei, mas antes da janta eu encontro um tempinho

e me sento com ele para ver o dever de casa. Eu noto que ele fica muito satisfeito, comadre. Mas

eu não sei ler, comadre. Mesmo sem saber ler você pode chamar para fazer o dever. Perguntar

como é que estão as coisas na escola. Ajeitar as coisinhas dele. Isso já conta muito, sabia?

“Há um outro episódio em que a Maria dá a receita para menino danado na aula.

Depois que ela começou a dar mais atenção ao filho em casa e a participar mais da sua

vida escolar, ele melhorou muito, passou a aprender mais. Então, a mensagem aqui é

que as mães são responsáveis pela indisciplina escolar.

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“Há um outro episódio que mostra uma conversa da mãe com a professora. A que

horas essa mãe vai à escola no horário do expediente? Supõe-se que essa mãe não

trabalhe. Porque a escola não dá plantão para atender as famílias depois do seu horário

normal de funcionamento. Mas também a mensagem da fala da professora é que quanto

mais a criança se sentir amada pela mãe, mais se interessará pela escola. Então, enuncia-

se explicitamente uma relação entre o amor materno e sucesso escolar.

“Se na reunião de pais e mestres os pais, eles dizem que as mães estão na

retaguarda, elas que têm obrigação de acompanha o dever, nem voz elas têm na reunião

dos pais.

“Supõe-se que a reeducação dos pais para a participação na escola, controlando

currículo, orçamento escolar e o desempenho docente, além da participação no lar, é

pré-condição para educação das crianças.

“Quais seriam as implicações de uma participação mais numerosa, intensa, de

pais responsáveis para a organização escolar e para o trabalho docente? A escola teria

que multiplicar a quantidade de professores e o seu horário de funcionamento para

organizar essas estruturas e oportunidades de participação.

“Sucede que escolas, educadores e famílias têm igual poder de decisão acerca da

educação escolar, seduzindo pais com a possibilidade de participar da gestão escolar, o

que demanda tempo, conhecimento e organização coletiva.

“Oferece-se aos pais o papel de inspetores das escolas, de gestão do orçamento

escolar, do currículo e do ensino. Portanto, do desempenho dos professores. Minando a

confiança e incitando conflitos latentes, eventualmente colocando pais contra diretores e

professores.

“Designa-se às famílias a responsabilidade de estabelecer padrões educativos

comuns e de alta qualidade, omitindo-se possíveis conflitos sobre conteúdos e valores

no currículo entre grupos de pais diversos quanto a classe social, etnia, religião, que às

vezes têm reflexos na escola.

“Imagine-se um cenário em que a escola, gestores, especialistas, professores teriam

que gerenciar competição de grupos ou de indivíduos representantes das famílias sobre

as práticas escolares e, além do mais, ter que arbitrar conflitos entre pais. Em parte meu

referencial é a educação na América do Norte, que tem guerras culturais dentro da escola.

Mas já vi isso em João Pessoa, em Campina Grande, onde meus filhos estudaram.

Escolas privadas que racham porque os pais brigam por filosofia, por, enfim, influenciar

o currículo, o modelo pedagógico. A escola racha, criam-se duas escolas, aí resolve,

metade dos pais vai para uma, metade fica na outra.

“Como a gente tem muito mais prescrições para pais, para famílias, vou me ater a

sugestões com relação à escola. Primeiro, uma escola efetivamente aberta à família, à

comunidade, por meio da oferta de atividades de interesse das famílias, nos fins de

semanas, feriados, horários em que pais não trabalham, ampliando o seu funcionamento

para facilitar a participação. Imagino uma escola que fosse um clube, não é? Ela seria

mais atraente, inclusiva, porque se se acoplasse a um centro comunitário, a um pólo

digital, a um centro de atividades esportivas, então seria uma outra escola. Porque aí ela

poderia se tornar um local de lazer para as famílias e para a comunidade. Já que essa

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política de participação dos pais na escola desconstrói a distinção entre trabalho e lazer.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o discurso é: “É divertido fazer o dever de casa com

os filhos”. Então, a idéia é essa, de que é uma alegria, um prazer, uma diversão a família

se reunir em torno do dever de casa. E também como desconstrói a distinção entre

educação de adulto e educação infantil, porque toda a família se educa junta, não é?

Então, acharia interessante que isso também fosse desconstruído na escola. Porque a

escola está mandando o trabalho acadêmico para casa. Então, vamos propiciar na escola

lazer, diversão e oportunidades de aprender interessantes para toda a família aprender

junta.

“Segunda sugestão: diversas estruturas de oportunidades de participação com a

criação de mecanismos ágeis e simplificados de consulta aos parentes dos estudantes,

ampliando as formas de participação, que se encontram restritas a essa representação

nos conselhos, e indo além dessas reuniões de pais e mestres que têm o caráter bimestral.

Pelo menos na minha realidade não acontecem mais do que quatro vezes ao ano.

“A questão do conselho é o seguinte: há um representante dos pais, mas como é

que ele representa? Sem falar que deveria ter representante da comunidade, mas ainda

não vi conselho que envolvesse representante da comunidade. No máximo tem

representante dos pais. Só que para esse representante dos pais efetivamente representar

teria que estar em contínuo diálogo com os representados. Às vezes, é uma pessoa

assim mais chegada à diretora, mora mais perto da escola, enfim, que não tem contato

com o restante dos pais. As escolas particulares usam há muito tempo as agendas de

comunicação com as escolas. Lá em João Pessoa começaram a usar no sistema

municipal. Há escola que está implementando. Há escola em que a agenda da criança

está limpa. Não está realmente sendo usada. Esses dispositivos também têm limites,

porque é que nem o bilhete, aquele papel que o pai tinha só que assinar. As escolas

americanas fazem boletins de notícias, jornalzinho da escola para a comunidade. Supõe-

se também que eles leiam.

“Finalmente, com relação a essa prática tradicional do dever de casa, em se

mantendo essa prática, sugeriria que fosse planejado, realmente, de forma que a criança

pudesse fazer o dever de casa sozinha, sem ajuda. Porque uma das justificativas do

dever de casa é que ele ajuda a construir hábitos de estudo e a autonomia da criança.

Então, realmente, para conseguir essa autonomia a criança tem que aprender a estudar

de maneira que possa fazer o dever de casa sozinha. E isso requer planejamento

pedagógico. Porque o dever de casa é articulado ao trabalho de classe. Na minha realidade,

pelo menos, não encontrei escolas que planejassem o dever de casa. A professora faz

como quer, não é matéria de planejamento pedagógico no dia-a-dia da escola. E tampouco

é assunto da formação inicial, da formação continuada. Ninguém fala do dever de casa.

Por isso estou falando dele”.

Vitor Henrique Paro

“Tenho trabalhado em minhas pesquisas, com muita freqüência, o tema da

participação na escola, em especial a participação da família. O tema é polêmico, porque

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é muito mal tratado. Pior, ele não é tratado. Ele é menosprezado. Precisamos considerar

a concepção de que existe aquilo que é da escola e aquilo que é da família. Existe a

família e existe a escola, mas, se você tem um conceito de educação rigoroso, não pode

haver solução de continuidade entre essas duas coisas. Porque virou moda que a escola

é muito ruim. Vou falar da escola de um modo geral, sabendo que existem pouquíssimas,

mas existem escolas boas. Sistemas em que se faz uma educação mais crítica, muito

raros também. Mas não vou falar desses sistemas, vou falar da escola de vocês. Vou

falar da escola de um modo geral do Brasil. Professores, educadores e diretores costumam

reclamar: ‘Agora a escola tem que fazer tudo. Agora a escola, além de ensinar português,

matemática, física, tem também que ensinar valores, ensinar as pessoas a se comportar,

tem que ensinar isso e também aquilo’, isso antes era coisa da família. Primeiro, para

tentar demolir essa bobagem que existe na cabeça das pessoas, ensinar a ler e escrever

antes também era coisa da família. Tudo era da família antes, quando era possível a

família fazer. A escola só existe porque não é possível fazer tudo dentro da família. Assim

como existem fábricas de sapatos porque não fazemos mais em casa. É a divisão social

do trabalho quando você especializa, quando você determina instituições, pessoas

organizadas para fazer e fazer com muito mais economia, competência, e fazer em

grande escala. Por isso existe a escola. E não é de se estranhar que cada vez mais a

escola tenha que fazer mais coisas. Até porque, a gente vai ver daqui a pouco, se ela

tentar só passar conhecimento e informação, nunca vai conseguir. E talvez seja esse o

grande problema da escola, ela não tem conseguido. Por quê? Se acharmos que a família

tem que fazer umas tantas coisas, podemos cair num círculo vicioso. Porque a família

da qual estamos falando é a grande massa dos pais, mães e responsáveis que não

tiveram acesso a educação de qualidade. Pais, mães e responsáveis expulsos da escola.

Pais, mães e responsáveis aos quais não foram dados valores, condutas, apropriação

da cultura de um modo integral. E agora reclamamos que não passam para os filhos. E

deixamos de passar para os seus filhos, que depois também vão ser reclamados porque

não passam essa educação para os seus filhos também. Fica um círculo vicioso. O

primeiro mito que se tem que acabar é que existe, como uma parede, coisa que é da

escola. Há pessoas, até mesmo pessoas que trabalham com a educação, que militam

na educação, que dizem que uma coisa é a instrução, uma coisa é o ensino, outra coisa

é a educação. Educação se dá em casa, educação se dá no berço. Concordo com tudo

isso, que se dá no berço e em casa, mas também na escola. Ou então não precisa da

escola. Vamos ver daqui a pouco por quê.

“Esse é um primeiro aspecto. O segundo aspecto é a participação dos pais na

escola, parece até estranho que tenhamos que falar sobre isso. É um direito. Parece,

mas é um direito de participar na escola, não de ir lá como as associações de pais e

mestres ou como prevê a Lei de Diretrizes e Bases, muito sacana, porque você tira a

responsabilidade do Estado e joga na família. Para ver se a família provê a escola, pinta

a escola, ajuda a escola. Auxiliando naquilo de que o Estado se desincumbe. Não é essa

a participação dos pais. A participação dos pais é bem outra. E, com perdão das pessoas

que gostam do Darcy Ribeiro, ele foi um dos responsáveis por esse sentido da educação,

da responsabilidade do Estado. Dizer que a educação é responsabilidade da família, não

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precisa participar de leis, não precisa fazer parte da Constituição. É responsabilidade da

família, sim, mas se tentou colocar ali como se fosse ‘olha, não é só o Estado, e foi bem

a política dos FHC (ex-presidente Fernando Henrique Cardoso) da vida. Não é só o Estado

que é responsável pela educação. A família também tem que arcar com a educação. E

estamos vendo cada vez mais ela arcar com os custos da educação. Porque se ela tem

que arcar com a educação, temos que dar condições. E não temos dado condições para

ela arcar.

“Nesse sentido, é preciso ficar claro que a razão de ser da escola não são os

professores, não são os diretores, não são os funcionários. Eles precisam ganhar muito

bem, precisam ser muito bem treinados, muito bem formados, mas a razão de ser da

escola são os alunos e pais. A participação não é apenas para ajudar a escola. A

participação é, sim senhor, politicamente, a participação nas decisões da escola. Decisões

que foram minimizadas no tal artigo 14 da LDB, que, pifiamente, diz simplesmente que a

gestão democrática vai ser da escola pública. Tira a escola privada. Como se a escola

privada pudesse ser autoritária, por causa do lobby das escolas particulares. E não diz

mais nada. Não provê mecanismo de participação. Os mecanismos estão sendo previstos

no sistema ou foram previstos antes, mas ali não há nada disso. Não existe uma

obrigatoriedade de conselho de escola, de eleição de diretores. Para se colocar diretores,

simplesmente, apadrinhados politicamente. Ou diretores que passaram no concurso,

mas que não entendem nada de educação. Porque são verdadeiros administradorezinhos

que entendem muito de empresa privada, mas não entendem da empresa como

empreendimento humano que é a educação. Porque entendem muito pouco de educação.

A legislação foi omissa nisso. E é um movimento muito sério.

“Esse aspecto, de que os pais têm direito à participação, trabalho em todos os

meus livros, em todas as minhas pesquisas. Outro aspecto que temos que aprofundar é

que os pais não apenas têm direito de participar da escola, é o outro lado, a escola

precisa dessa participação. Não dá para se pensar numa escola de verdade se não

pensarmos nessa participação. Então, vamos tratar disso. Uma primeira observação

que devemos fazer é também quebrar um outro mito, muito presente nas nossas escolas,

de que os pais não gostam de participar ou não podem, por conta dos seus problemas

pessoais.

“Neste meu livrinho aqui (mostra), chama-se ‘Qualidade do ensino – A contribuição

dos pais’, procuro demonstrar a tese de que isso não é verdade. Os pais não participam

não porque não querem, porque são maus, porque não gostariam de participar ou porque

não têm tempo. Dizer que os pais não participam porque não têm tempo é uma desculpa

que inventamos. Têm tempo, sim, por exemplo, para ficar durante duas horas assistindo

a um jogo de futebol. Têm tempo de ficar jogando dominó na esquina, têm tempo de

tomar suas biritas, têm tempo para conversar com os compadres e com os amigos.

Têm tempo de fazer coisa agradável. Eles não vão à escola porque a escola se torna

uma coisa desagradável. É por isso que não vão à escola. A primeira maneira de atrair os

pais para a escola é parar de expulsá-los. E vamos ver como ela tem expulsado. Não

tem sido expulsão numa espécie de culpa, não, não se trata aqui de buscar culpados,

nem o governo, nem os professores, nem os administradores de um modo geral, nada.

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Se a gente soubesse quais são os culpados, seria muito fácil. Não existe culpado. Foi

muito bem dito aqui que há necessidade de uma outra concepção de educação, de uma

ideologia. E entendi que foi ideologia no sentido gramsciano (1 ) da palavra. Não ideologia

no sentido negativo. Mas no sentido de uma concepção de mundo, de homem e de

educação.

Por que essa escola tem sido desagradável para os pais? Vou dizer uma obviedade,

aliás, só vou dizer obviedades aqui, e não me constranjo. Nosso maior educador, Paulo

Freire, se dizia um peregrino da obviedade. E bebemos as obviedades que ele falava. A

primeira obviedade é a seguinte: a escola não é agradável porque não é educativa. Ela

transmite um conceito de educação ultrapassado. Retrógrado. Desumano. Tinha razão

de ser há 200 ou 300 anos, os jesuítas podiam usar o método de ensino que usamos

hoje. Que é o mesmo dos jesuítas... Um pouco avacalhado, mas é o mesmo. Porque os

jesuítas não tinham ciência, tecnologia, reflexão filosófica e todas as ciências que informam

a pedagogia para se ter algo mais elevado. Da mesma forma que há 200 ou 300 anos os

médicos tinham razão de receitar chá para curar câncer no estômago. Porque não haviam

descoberto mecanismos, a ciência não tinha informado como curar, como faz hoje. Mas

hoje eles não fazem mais isso. Na educação não, continuamos curando câncer no

estômago com chá. A ciência se desenvolveu especialmente no século 20, os grandes

educadores com o desenvolvimento da psicologia, da antropologia, da sociologia, da

economia, da filosofia, e todas as disciplinas que informam e formam a pedagogia. Já

temos condições hoje de ensinar com uma competência incrível. De ensinar tão bem e a

criança ter prazer de aprender como conseguimos transplante de coração. Que é muito

mais difícil. Mas fazemos. É que na escola não levamos a sério. Não aplicamos na escola

a ciência, o desenvolvimento humano que atingimos, que a academia atingiu, que os

grandes educadores atingiram. Por quê? Porque continuamos nos contentando com o

conceito chinfrim de educação. O nosso problema é não ter problema. Volto a isso já já.

Vamos antes falar qual é esse conceito chinfrim de educação. Educação de um modo

geral, conceito do senso comum que perpassa toda a sociedade, o senso comum não é

o do Zé Povinho, não. O senso comum está presente em todas as classes sociais, não

apenas na imprensa em geral, bastante ignorante a respeito das coisas da educação,

por isso é altamente alvissareiro um órgão de imprensa como o ‘Extra’ que se propõe a

fazer isso, é a primeira vez que vejo. Aliás, primeira vez não, em meados do século

passado o Estadão (o jornal ‘O Estado de S. Paulo’) se propôs a isso com grandes

educadores. Então, hoje é um monumento da ciência clássica o Manifesto dos Pioneiros,

por exemplo, com Fernando de Azevedo. Mas, de lá para cá, o mesmo repórter que

cobre o crime na favela é o que vai fazer a entrevista sobre a condição da sala de aula ou

se a escola deve ou não reprovar o aluno. E saem as patacoadas que sabemos por aí.

Para entrevistar um médico, não, mandamos alguém que entende de medicina, para

entrevistar economista também. Mas educação parece que não precisa dizer nada, porque

todo mundo entende. Por que todo mundo entende? Porque o conceito que se faz de

educação é esse conceito do senso comum. O que é a educação no senso comum que

parece que todo mundo sabe? Existe alguém que tem conhecimento, as informações, e

alguém que não tem conhecimentos e informações. Esse alguém que tem conhecimento

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e informações passa conhecimento e informações pra esse alguém que não tem. Pronto!

É isso que é educação.

“Você vê com a maior clareza do mundo ministro da Educação, secretário de

Educação, palestrantes, pessoas que falam sobre educação, educadores que escreverem

livros e falam sobre educação nessa visão estreita, diminuta, pequena. Quantas vezes

você ouve falar: ‘Precisamos melhorar a educação, porque precisamos que as pessoas

aprendam a ler e a escrever, que as pessoas tenham conhecimento’, ponto. Qual é o

método que se usa? O método mais comum e atrasado. Se é para passar conhecimentos

e informação, basta ter conhecimento e informação. Houve um ministro do FHC, um

economista que não entende nada de educação, mas se meteu a ser ministro, que disse

que o melhor professor de geografia é aquele que entende de geografia. Basta entender

de geografia para ser professor de geografia. E eu que pensava que um cara que entende

de geografia poderia ser um bom geógrafo. Então, essa concepção diz o seguinte: você

sabe um monte de coisas, você ensina para o outro. O método para ensinar é muito

simples, arruma esse conteúdo, porque eles só se preocupam com o conteúdo, com o

conteúdo não, corrijo: eles se preocupam com conhecimento e informação. Porque o

problema do conteudismo não é o conteúdo, é a falta de conteúdo. Porque reduz o conteúdo

a conhecimentos e informações. Então, organize bem esse conteúdo, se você quer ensinar

matemática superavançada você começa ensinando a contar, depois a somar, a subtrair

e assim por diante. Organize o conteúdo e passe. Não se leva em conta nem quem

ensina nem quem aprende. Eles não existem. Por isso que essa educação não serve.

Porque não precisa de escola para fazer isso. A imprensa faz muito melhor e de forma

muito mais interessante. A televisão, o rádio, passar conhecimento e informação qualquer

computador imbecil passa. Não precisa de um profissional, de um professor e nem de

uma escola educadora.

“Esse conceito de educação é tão estreito que iguala tudo. Ele não conhece o

educando e nem sabe como o educando pensa. E nem se preocupa em saber. Porque

educando para ele é tudo igual, criança, jovem, adulto. A escola, a partir dessa concepção

de educação, tem que fazer duas coisas: selecionar e fiscalizar. É o que fazia, por

exemplo, a chamada boa escola de antigamente, vamos acabar com essa bobagem,

que era melhor do que a escola pública de hoje. Não era não. Ela era tão ruinzinha quanto

essa. Só que podia dar-se ao luxo de ser ruim. Porque selecionava apenas os alunos

que aprendiam apesar da escola. Aos alunos era destinada a obrigação de ler, escrever,

estudar, se matar, fazer dever de casa, fazer tarefa. Tinha que se virar. E o professor

tinha que saber a matéria e vomitar aquela matéria. É chamada a educação bancária, tão

criticada pelo Paulo Freire.

“E o que fazem ainda hoje as chamadas boas, também entre aspas, escolas

privadas, as mais famosas? Simplesmente selecionam aqueles alunos que já vêm para

a escola com todo um background. Elas escolhem os alunos que aprendem apesar da

escola. O aluno que é filho de pai letrado, o aluno que já tem uma cultura, que tem o

professor de música, que tem o professor de inglês, que tem o professor de balé. O pai

que tem a revista, que tem o livro, que tem o teatro, que tem o conhecimento, que tem

uma conversa política, que tem uma ideologia. E essa criança chega à escola e aprende

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sozinha. E o mérito é da escola. Se não vai bem, fiscaliza por meio de provas. E bota a

culpa nela. Por isso a reprovação, essa estupidez da escola tradicional, quem fala ‘essa

estupidez’ é o Anísio Teixeira, um dos maiores educadores do Brasil. Para botar a culpa

no educando pelo fracasso que é da escola. A gente fala fracasso escolar, mas não

existe fracasso escolar nessa linguagem. Nessa linguagem existe o fracasso do aluno.

É uma hipocrisia, inclusive. Se é fracasso escolar, é fracasso da escola. Escola aí significa

não os professores, simplesmente, a escola aí significa todo o sistema escolar que não

propicia uma educação de sucesso. Falamos em fracasso escolar, mas estamos

constantemente punindo o educando e botando a culpa nele. Porque cometeu o crime de

precisar da escola. Porque cometeu o crime de precisar ser ensinado, e de não aprender

sozinho. Porque as escolas chamadas de boa qualidade, aquela escola pública de

antigamente, que se dizia tão boa, meu primeiro livro, de 1979, se não me engano, tem

uma pirâmide em que fiz o acompanhamento. Peguei as estatísticas e está lá para quem

quiser. Quem não quiser ficar pegando só essas coisinhas horrendas, chamadas Saeb,

Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), essas coisas. Durante aquela escola boa,

escola de qualidade, de cada 100 alunos que entravam, isso desde a década de 40, cada

aluno que entrava no 1º ano do ensino primário antigo, alunos já selecionados, de cada

100 apenas 45 passavam para o 2º ano. Isso botando escola privada e pública juntas.

Essa era a boa escola. E continuamos fazendo igual. Com a diferença que os professores

hoje são mais abnegados, são mais democráticos e menos arrogantes do que os

anteriores. Aí acho importante a concepção de mundo que está por trás disso, a ideologia

que está por trás disso. A educação está preocupada com algo mais amplo, maior. Se

fecharmos os olhos dá para imaginar o seguinte: a educação visa ao ser humano. Se

visa ao ser humano, temos que ter uma concepção de ser humano, de cidadão, que não

é essa concepção chinfrim aí. O ser humano e cidadão, o que ele tem de específico e

diferente, para falar em pouquíssimas palavras, o que o identifica, é que ele transcende o

natural. O ser humano não é um mero animal racional, não senhor. Ele é um animal. Mas

até aí não tem nada diferente dos outros. O fato de ele ter um cérebro é apenas mais

uma qualidade natural. Natureza aqui significa tudo que independe do humano. Tudo

aquilo que necessariamente existe. Solto um corpo, necessariamente ele cai. É uma lei

natural que rege isso. É o domínio da necessidade, e não da liberdade. O homem é

natureza. O homem é esse animal, não pedi para nascer assim. Nasci independentemente

da minha vontade, sou natureza pura. Mas o que me faz diferente de uma anta é o fato de

que diante do mundo me pronuncio: ‘Oh! É isso!’, ‘Isso é bom, isso não é’, quer dizer, crio

algo que não existe necessariamente. Crio um valor no sentindo mais extenso da palavra,

no sentido mais extenso da ética. Ética aqui não é moralidade, não são simplesmente

regrinhas para se cumprir. Ética aqui é no sentido do valor mais amplo. É aquilo que só o

ser humano é capaz de fazer. Diante do mundo, pronunciar-se: ‘Isso é bom. Isso quero

fazer’. É um ser dotado de vontade, essa é a característica fundamental do humano. O

ser humano é o sujeito. Hoje em dia a palavra sujeito é menosprezada: ‘Isso é mera

subjetividade’. Não é nesse sentido que estamos falando, sujeito aqui tem um sentido

muito próprio, muito nobre, muito elevado. Sujeito não é apenas aquele que age, não é

apenas ator e nem apenas agente. Sujeito é autor. Alguém que detém a vontade e que

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trabalha para alcançar um objetivo. Isso é o que caracteriza o homem. Inclusive, falando

em trabalho, é o que diferencia a atividade humana da mera atividade animal. O tatu

também transforma a natureza. Ele tem uma atividade que é animal, mas trabalho só o

homem. Porque o trabalho do homem é uma atividade adequada a um fim. Mas o fim só

existe se for bom, se for bom no seguinte sentido, se for do interesse de quem o percebe.

Valor aqui não é ser bom ou ruim, valor aqui é ser valorizado, é alguém querer aquilo. É

dessa forma que o homem se faz histórico. O nosso conceito de homem é o conceito

histórico. Do homem que se produz a si mesmo. Tudo que existe aqui e temos de diferente

é produzido pelo homem, dessa forma. Ele poderia, por exemplo, continuar

necessariamente andando sobre as pernas. Mas num determinado momento ele diz:

‘Não. É bom chegar depressa e sem fazer força’. Aí ele estabelece objetivos. Domesticar

o cavalo. Ele se impõe domesticar esse cavalo. Quando ele consegue fazer isso, uma

atividade adequada a um fim, constrói a sua liberdade. Ele não necessariamente anda a

pé. Ele agora pode optar entre andar a pé e andar a cavalo. Isso é o ser humano. A

educação visa ao ser humano. Se ela visa ao ser humano, ela não apenas visa ao ser

humano, mas à maneira pela qual o ser humano histórico se atualiza no seguinte sentido:

quando nascemos, nascemos natureza pura, zero, natureza só. Passamos a ser humano

histórico na medida em que nos apropriamos do quê? Daquilo que o homem produziu

historicamente. O que o homem produziu historicamente para existir como ser histórico?

Ele produziu conhecimentos e informações. Sem dúvida. Mas não só conhecimentos e

informações, produziu valores. Antes até dos conhecimentos e informações. Produziu

crenças, filosofias, ciências. O homem produziu tudo aquilo que se contrapõe ao

necessariamente dado. Ele produziu cultura no sentido mais amplo. A educação é

precisamente apropriação da cultura. Não apropriação apenas de conhecimento e

informação, são bons para alfabetizar pessoas e diante das estatísticas mundiais dizer

que estão alfabetizadas. Ou para ir ao mercado de trabalho. Ou para tomar o ônibus.

Mas não é tudo. O homem se faz por inteiro. Se a escola é o elemento da natureza, a

instituição, o momento da racionalização da divisão social do trabalho, para se prover

educação para as crianças, por que não fazer essa educação no sentido integral?

Conhecimentos, informações e valores, crenças, filosofias, ciência. Por que a gente vai

para a escola para aprender geografia, história, matemática etc? Que são importantes,

não tirem não, nem um milímetro. Mas por que não vai à escola para aprender a cantar,

dançar, ser cidadão, não jogar papel no chão? Saber da ecologia não por um discurso,

mas por fazer de uma forma integral, como um ser humano que se comporta e que age

diante do mundo. A gostar de arte, a saber saborear a arte. Não se nasce sabendo.

“Então, no nosso conceito de educação, e vou ficar com o conceito porque não vai

dar pelo para desenvolver as questões mais da relação família e comunidade. Depois, se

for o caso, posso debater mais. Mas a tese que quero defender aqui é a seguinte, para

que o pai vá à escola, a escola precisa ser educativa. Precisa pagar a pena. Com esse

tipo de educação que a gente tem hoje, não paga a pena. Para fazer o que está sendo

feito aí, não precisa escola melhor. Basta essa ruinzinha.

“Há algum tempo veio alguém da imprensa preocupado com Saeb, Prova Brasil,

essas coisas que se usam aí para continuar não fazendo absolutamente nada. Se diz

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que se avalia a educação. Não se avalia não. Porque essa educação tradicional não leva

em conta a condição de sujeito do educando. Se o educando é sujeito, existe uma coisa,

ele é um ser de vontade. Até porque não dá para se fazer um ser humano histórico, que

é o que tem como característica ser um ser de vontade, ser um sujeito. Os meios não

podem ser contrários aos fins. Se é assim, o educando tem que ser um senhor de vontade.

Se é assim, mandamento primeiro e último da didática: a criança só aprende se quiser.

Isso é a coisa mais óbvia do mundo, isso é 101% da didática: quem quer aprender aprende

em qualquer lugar de qualquer jeito.

“O papel da educação é, portanto, antes e acima de tudo, propiciar condições para

que o educando queira aprender. Propiciar condições para que ela queira aprender é

fazer um sujeito. E fazer um sujeito é fazer com que ele se aproprie dessa cultura

integralmente. Porque apropriar essa cultura apenas por conhecimento de informação é

uma coisa muito chata, ninguém quer saber. E ignora as condições da criança. Fazer a

criança sujeito é levar em conta como ela pensa. É ver a diferença entre criança e adulto.

“A ciência já descobriu há muito tempo que as crianças pensam, vivem, se apropriam

do mundo de uma forma diferente. À medida que se desenvolve nos chamados ciclos de

desenvolvimento biopsicossociais. Do momento que nasce até por volta de 11 ou 12

anos, existe todo um desenvolvimento da inteligência da criança. E que precisa ser

aproveitado, que precisa ser adequado ao ensino para que ela aprenda. Se você pega

uma criança, por exemplo, que ainda não tem noção de sólidos e de formas, mostra dois

copos do mesmo tamanho cheios de água e pergunta qual tem mais água, ela vai falar

que os dois são iguais. Mas aí você pega um dos copos e derrama em outro bem comprido,

‘e agora qual tem mais?’ ‘Aquele!’ E não adianta explicar, arrumar um conteúdo e explicar.

Ela não tem condições de perceber isso.

“O adulto se faz sujeito muito facilmente. Vocês estão sentados aí fazendo esse

sujeito, querendo me ouvir. É muito fácil, vocês têm personalidades formadas, já passaram

por tudo isso. Vocês são uma elite selecionada que quer me ouvir. Ou talvez alguns não

queiram...

“Seria um idiota se usasse a mesma forma de ensinar para crianças de 7 ou 8

anos. Crianças de 7, 8 anos, você dá uma bola para ela e não fica explicando que a bola

é gostosa. É intrinsecamente gostoso jogar bola. O ensino então tem que se fazer

intrinsecamente gostoso, e não por meio de discursos. O que fazemos? Exatamente o

contrário. Estudo com prêmios. Estuda que você vai ganhar um presente. Estudando na

última hora, para responder aquelas provinhas. Responder aquelas provinhas significa

que sabia? Não! Significa que era capaz de responder aquelas provinhas. Não aprendeu.

Quer um exemplo? Em sã mente, nós aqui, imagino que a imensa maioria com nível

superior. Quem aqui poderia dizer com consciência tranqüila que sabe? Oh, só

conhecimento, hem? Que sabe mais do que 50% dos programas de Ensino Fundamental.

Vocês ainda se lembram quais são os afluentes da margem esquerda do Rio Amazonas?

Como é que se extrai uma raiz quadrada e assim por diante?

“Então, não aprendemos! Foi um engano! O pretexto de ensinar só isso não ensinou

nem isso. Por quê? Porque isso sozinho não se aprende. Não tire a matemática, não tire

o português, não tire nada, mas dê isso com inteligência, consciência, com a pedagogia

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que leva em conta o humano inteiro. Para levar em conta o humano inteiro precisa levar

em conta as condições de se aprender. Quer ver um crime que fazemos? Pegamos as

crianças, isso pra não falar, por exemplo, que a Unesco recomenda de 20 a 25 alunos no

máximo nos primeiros anos do Ensino Fundamental. E nós damos 40 para o professor.

Ou mais. É como se pegássemos um motorista e déssemos dois automóveis para ele

dirigir ao mesmo tempo. Como ele consegue dirigir só um, como um professor só

consegue ensinar apenas para 20, ele é incompetente. Nem vamos falar nisso. E nem

vamos falar sobre essa bobagem de que temos 97% das crianças na escola. Porque

falar isso incorre num engano muito grande. Porque parece que temos escolas. Parece

que essas coisas que estão aí abarrotadas de crianças são de fato escolas, e não são.

Primeiro que é uma hipocrisia muito grande gabar-se de uma coisa que os países

civilizados fizeram na passagem do século 19 para o 20. Segundo, falar que falta 3%

como faz o governo, de modo geral, o anterior e este, ignora que 3% das crianças no

Brasil é perto de dois milhões. Então, o que fazemos? Pegamos essas crianças e

confinamos. Quem entende um pouquinho de pedagogia mesmo, porque às vezes se

aprende pedagogia nos cursos de pedagogia e formação de professores, mas o professor

quando entra na sala de aula, e isso demonstrei num outro livro, ‘Reprovação escolar:

renúncia à educação’, no momento em que ele entra na escola o que vale para ele não é

o que ele aprendeu, ou que hipoteticamente aprendeu, no curso superior, na formação de

professores, ele usa exatamente o mesmo método que usaram para ele. É a vingança

do professor. Infelizmente, ele ainda acredita que não fez medicina porque é limitado.

Isso é triste. Isso a escola conseguiu. Fazer com que todos nós reputássemos a nossa

inteligência, a nossa falta de esforço, à nossa falta de cultura. Isso é uma escola que não

se propõe a ser um centro cultural. Porque se fosse um centro cultural seria, sim, um

clube, como foi dito aqui. Seria mais do que um clube. Um centro cultural de educação

em que fosse prazeroso a gente ficar. Quem entende um pouco de educação, que se

aprofundou no conhecimento pedagógico, no desenvolvimento da ciência, especialmente

no século 20, com (Jean) Piaget, com (Lev Semionovitch) Vigotski, com (Henri) Wallon,

com (Alexei) Leontiev, com Paulo Freire, com (Anton) Makarenko, com (MouseiMikhaylovich) Pristak, com todos os grandes educadores, sabe perfeitamente que não

adianta, não se ensina a viver proibindo de viver. E a criança, a sua vida é, grande

porcentagem dela é, brincar. Na nossa escola é proibido brincar, gente! Como podemos

dar educação? A criança só aprende se quiser. E a forma de ela querer é brincando. Se

não sabemos ensinar brincando, não sabemos ensinar. Porque não existe outra forma.

“Escrevi um artigo recentemente chamado ‘Educação como exercício do poder’.

Não quero dizer que foi só ele, mas, só para ter uma idéia, em 1935 Piaget, no livro ‘O

juízo moral na criança’, diz o seguinte, ele fez muitas pesquisas em que examina crianças

desde os 5 ou 6 anos até por volta de 11 e 12. Ele diz taxativamente nesse período, mais

ou menos no período do Ensino Fundamental, a pior maneira de passar conhecimentos

e informações para o ser humano é por meio da explicação. É falando um professor e os

alunos ouvindo. Igualzinho fazemos na nossa escola. Confinamos crianças por 4 horas

sentadas, aqui temos condições de fazer isso, mas botar 4 horas as crianças sentadas

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e tem gente que quer fazer ficar 8... Poxa, sou a favor da educação integral, mas não

para multiplicar por dois o martírio.

“Por isso que digo, se for para quem é autor de crime hediondo, que foi julgado,

com todas as possibilidades de defesa, aí sim. É uma boa punição, fique lá sentado 8

horas. Mas para as crianças... Então, a nossa escola tem feito isso, ela não tem sido

interessante. É por isso que os pais fogem da escola.

“Recentemente, me perguntavam, hoje o que dá o tom de que a escola continua

assim é a avaliação no Brasil, fico muito louco da vida quando vem o Estado, quando

vem a imprensa, de um modo geral, dizer aquilo que é a coisa mais óbvia do mundo, que

a educação no Brasil está ruim. Mas está ruim por quê? Porque o menininho tirou não-

sei-quanto vírgula não-sei-quanto no Saeb, no Enem, na Prova Brasil. Dinheiro gasto

inutilmente. Será que o ministro da Educação passaria no Saeb? Será que eu seria

aprovado no Enem? A mesma coisa aquelas provinhas que respondemos, enganamos o

professor, e ele fingiu que não estava sendo enganado. Por quê? A pessoa me entrevistou:

‘Professor, o que o senhor diz dessas estatísticas que mostram que a educação no

Brasil tem não-sei-quantos milhões de pessoas que não sabem ler e escrever?’ Falei:

‘Olha! É muito sério. E mais sério ainda porque só agora que as pessoas estão se tocando

disso. Porque isso é criminoso. Mas você sabia por que acontece isso? Pelo seguinte,

por um outro problema muito maior, que é o seguinte: você sabia que, além desses

poucos milhões que não sabem ler e escrever, existem uns tantos milhões, muitos milhões

e muitos milhões, que aprenderam a ler e a escrever e que não lêem e não escrevem?’

Para que aprenderam a ler e a escrever se não vão ler nem escrever nunca? Se a escola

não ensinou ou não desenvolveu valores ligados à cultura, à necessidade de ler e escrever,

ao prazer de se deliciar diante da leitura de um Dostoievski, um Machado de Assis, e

assim por diante. Para que ensinar a ler e a escrever? A nossa população não precisa ler

e escrever. A concepção que o Estado tem é que não precisa mudar a escola, deixa do

jeito que está aí. Continuem fazendo os Enem, os Saeb etc, que já faz 10 ou 15 anos e

não mudou absolutamente nada.

“Se tivéssemos a ambição de formar cidadãos, de formar seres humanos, sujeitos,

pensaríamos na educação como um direito muito mais extenso.

“Quando a criança nasce debaixo da ponte ou na mansão do magnata, nasce com

direitos naturais inalienáveis. Nasce com direito não apenas de ler, escrever e mal assinar

o nome, como nos propomos a ensinar. Ela não nasce apenas com direito de ir numa

escola ruim como essa, ela nasce com o direito de admirar a Quinta Sinfonia de Beethoven,

ela nasce com o direito de se entusiasmar diante de um Portinari. Toda a cultura feita não

foi endereçada só para ricos.

“Quando pensarmos que esse é um problema sério, quando pensarmos que esse

é o problema e que é o problema de uma ideologia, de uma concepção de mundo, mais

inteira, vamos precisar de escolas que ensinem de verdade. E que não se proponham a

ensinar apenas geografia e matemática. Primeiro talvez vamos derrubar as salas de

aula, vamos pensar em outras formas mais adequadas de ensinar. A própria gestão vai

ter que ser mudada. Vamos ter, principalmente, que endereçar muitos recursos, olhar

com muito cuidado os pais, os professores, os alunos e toda a escola. Aí, sim, teremos

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um problema, problema difícil? Dificílimo. Impossível de resolver. Assim como era

impossível ir à Lua. Mas porque queríamos ir, fomos. Precisamos querer uma educação

de verdade. Aí, sim, vamos fazer educação de verdade, e não vai precisar fazer campanha.

Vamos necessariamente ter um modo de ensinar que incluirá a atração dos pais”.

Maria Cristina Leal

“A meu ver, ainda existe muita tensão e muito estranhamento entre família e escola.

Fiquei pensando no que iria falar e me lembrei de uma necessidade que tivermos quando

dei uma consultoria em Nova Iguaçu. A minha área é a sociologia da educação, trabalhei

na UFF (Universidade Federal Fluminense) como professora de sociologia da educação,

já me aposentei. Fui, depois de umas andanças, para a Uerj (Universidade do Estado doRio de Janeiro), para trabalhar no serviço social. E no serviço social existe muito essa

preocupação não só com a questão da criança e do adolescente hoje, mas com a

afirmação dos direitos, o atendimento aos direitos, a questão do reconhecimento da criança

e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. A necessidade cada vez mais de

se dar voz às crianças. Isso é um exercício que entendo pelo pouco que tenho visto e que

família e escola fazem muito pouco.

“Em Nova Iguaçu, por exemplo, uma experiência que foi feita o ano passado de

começar a trabalhar a gestão democrática com a participação das crianças, inclusive as

crianças tendo direito de dizer o que elas pensavam sobre eleições, sobre uma série de

coisas. A gente percebia claramente a dificuldade que era deixar eles se manifestarem,

se organizarem.

“Isso é uma dificuldade de uma sociedade que sempre teve uma estrutura muito

autoritária de educação e de formação. Devemos, então, trabalhar no sentido da

democratização da relação da escola com a família. Duas instituições que para mim se

estranham.

“Vou passar muito rapidamente por duas experiências que vivenciei. Primeiro, como

professora de supletivo do estado que fui durante 19 anos. Um dia, era professora de

história, comecei a falar da importância de os alunos levarem documentos sobre suas

origens familiares. E escreverem alguma coisa sobre isso. Primeiro houve uma rejeição

e uma resistência muito grandes. Era certidão de nascimento, um retrato, alguma coisa.

Quando entregaram o trabalho, uns entregaram com fotos que tiraram das revistas: ‘Esta

é a minha família’, porque a discussão era: ‘Quem sou eu? De onde venho? Quais são

as minhas origens?’ Fiquei muito chocada com aquilo. Gente, as pessoas estão com

dificuldades de identificar suas famílias, isso foi um aprendizado muito importante para

mim, porque comecei a conversar com as pessoas: ‘Não, professora, sou empregada

doméstica, passo parte da minha vida na casa da patroa, no fim de semana ou de 15 em

15 dias vou na casa da minha irmã. tenho lá uma sobrinha’. ‘Então, você tem que identificar

que laços afetivos você tem e onde está sua família. Porque você tem uma família’.

Aprendi isso também em outro momento, a matrícula de aluno: ‘Pai?’ ‘Não sei. Não tenho’.

‘Você tem pai’. ‘Não conheço’. A gente vai aprendendo também, há um processo de

aprendizado, aí. Nesses estranhamentos, nesses arranjos familiares, que não

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correspondem ao nosso ideal, ou com aquilo que a gente convive mais de perto e entende,

essa coisa que se chama família.

“Quando os programas sociais hoje falam tanto da importância da família, há de se

entender que famílias são essas. Quem são essas pessoas? Quais são as suas

referências afetivas? Os seus vínculos afetivos? A gente sabe por pesquisas feitas desde

1995 das crianças que ora estão na casa da tia, ora do avô, ou do pai, ou da mãe que se

separou e vai trabalhar, deixa com o padrasto. Então, que família temos para nos relacionar

quando a gente começa com uma política que acha que a família tem que estar na escola?

A comunidade tem que estar na escola. Uma coisa que me chocou numa pesquisa que

fiz no Jardim Catarina, em Nova Iguaçu, foi um dia saindo do bairro, chovendo, veio um

senhor, eu estava no ponto de ônibus: ‘A senhora veio daquela escola, não é?’ ‘Vim, por

quê?’ ‘A senhora é professora nova na escola?’ ‘Não. Vim aqui porque estou fazendo um

trabalho na escola’. ‘A senhora sabe que sou operário e construí aquela escola? Depois

nunca mais fui chamado para ir naquela escola’. Pensei: ‘Esse cara veio me dar um

recado’, e era um Ciep, não era uma escola qualquer. Eu tinha tido um depoimento dos

educadores culturais de que eles tinham feito um levantamento da realidade do entorno,

que havia todo um trabalho de aproximar a escola da comunidade. E aquele homem que

tinha construído a escola me dizia que não entrava mais na escola. Não era chamado

mais para a escola. Então, a gente vê essas dificuldades que existem. É claro que o dia-

a-dia de uma escola, a burocracia, aquela coisa toda de resolver isso, a gente esquece

de ter sensibilidade e compreensão e valorização de trabalhadores, de pessoas que são

da maior importância para a gente ver essa coisa dessa realidade de uma escola que é

pública, e que no entanto cria uma série de paredes, de dificuldades, para interagir com

esses estranhos ou com lugares e instituições estranhos, que são, por exemplo, a família

e a comunidade.

“Os desafios são muitos para a gente pensar. Trouxe para a gente contrapor um

pouco e para ajudar aqui na reflexão alguns resultados de pesquisas, peguei uma que

fala do que os pais pensam da escola, para contrapor e chamar a atenção para a

necessidade que se tem de se trabalhar com outros tipos de pesquisas, não só as

pesquisas macro. Desde os anos 70 e 80, todas as políticas se fizeram com base nas

grandes enquetes nacionais. Muitas vezes se tomam esses resultados ou essas

fotografias de momentos como se fossem verdades para se pensar políticas sem uma

sensibilidade de olhar as pessoas, os grupos, a realidade e a dinâmica dessa realidade,

que é muito mais forte do que resultados que podemos ver nesses retratos que são as

grandes enquetes ou as pesquisas.

“Trouxe aqui uma pesquisa apenas para a gente ter uma referência e para contrapor.

É a proposta que aparece no livro de Bernard Lahire ‘Sucesso escolar nos meios populares.

As razões do improvável’. Vou apresentar aqui a minha leitura, as coisas que me

chamaram atenção ou sensibilizaram na proposição do Lahire.

“A idéia é exatamente essa, trazer a visão de uma pesquisa nacional. Peguei essa,

por acaso, de 2005. Os resultados, coisas que a gente já sabe, a pesquisa nem precisava

dizer. A maior parte das pessoas ou dos alunos de escola pública é oriunda de famílias

classe D e E. Em geral, as pessoas valorizam a escola, fazem um tremendo esforço

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para manter os seus filhos na escola. Mas precisam que a criança ou o adolescente

ajude na renda familiar. É muito complicado até esses programas que temos de combate

ao trabalho infantil e outros, são muito complicados, porque muitas vezes o pai que pega

o seu filho numa carroça para ajudar numa plantação ou qualquer coisa, ele não entende

isso como trabalho infantil. Essa compreensão que a gente tem da exploração do trabalho

infantil muitas vezes ele não tem. A gente tem que olhar essas coisas com certo cuidado.

Eles precisam para melhorar a renda familiar que a criança ou o adolescente trabalhe.

Você tem hoje programas sociais que tentam de alguma maneira manter essa criança

na escola, mas as dificuldades são muitas. Às vezes, casos como o de uma aluna minha,

professora e diretora do Ciep, que no entorno do Ciep quando chovia era uma lama tal

que a criança para descer para ir à aula não tinha condição. Às vezes são problemas até

de condições climáticas que afetam o solo e que dificultam o dia-a-dia, quer dizer, essa

coisa de freqüentar todo dia a escola. A gente sabe, vocês professores e diretores sabem

muito bem dessa realidade aqui, não vou falar mais sobre isso.

“Você tem uma valorização da escola, mas há outra categoria, criada pelo grupo

francês do Bourdieu e do (Jean-Claude) Passeron, depois o Bourdieu elaborou mais a

idéia do capital cultural, ou seja, o consumo de bens como rádio, televisão, cinema,

teatro, museu etc é muito baixo. Até hoje a gente sabe que muitos professores também

não dispõem de recursos para fazer com freqüência o consumo a bens culturais. O que

dirá os usuários das escolas públicas.

“Mas de modo geral os pais valorizam muito a escola. E destaco na avaliação

algumas coisas que eles acham importante que a escola tenha. Quando a escola tem

recreio, porque hoje a gente sabe que escola para atender o número de crianças, a

demanda que existe, elas não têm sequer recreio. Permanece a criança na escola em

torno de 2 a 3 horas, não dá tempo nem para o recreio, nem para o lazer, nem para nada.

A criança não brinca mais, vai, entra, tem umas aulas, sai e vai para casa. Essa é outra

dificuldade que a gente percebe.

“Alguns acham que a escola atual é melhor em todos os aspectos. Uma coisa que

vi em outras pesquisas é que, em geral, as avós muitas são analfabetas, nunca

freqüentaram a escola. As mães freqüentaram até um certo ponto e depois tiveram que

sair. E os filhos elas querem que fiquem na escola mais tempo, com todas as dificuldades,

elas acham que houve um certo avanço, por pior que a gente ache que a escola está.

Houve um certo avanço e chegou o momento de se pensar na qualidade, em estratégias

para a gente deixar de se estranhar ou estranhar essa família que é diferente daquilo que

a gente concebe e que traz o seu filho para a escola e que quer que ele fique na escola.

“Essa pesquisa também apontou que os pais e responsáveis desejam intensificar

a relação família e escola. E essa intensificação poderá ser estratégica na elevação da

qualidade do aprendizado. Aí estão algumas considerações interessantes sobre esse

aspecto da intensificação da relação da família com a escola.

“Vou entrar no livro do Lahire em que ele diz o seguinte, isso aqui é para provocar

mesmo: ‘Se através desta obra um fato pode ser estabelecido é o seguinte: o tema da

omissão parental é um mito’, acho que essa pesquisa mostra isso. ‘Esse mito é produzido

pelos professores’ – e aí não vou entrar nesse mérito, se são os professores ou quem

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produz o mito – ‘que, ignorando as lógicas das configurações familiares, deduzem, a

partir dos comportamentos e dos desempenhos escolares dos alunos, que os pais não

se incomodam com os filhos, deixando fazer as coisas sem intervir’. Esse estudo do

Lahire mostra que efetivamente os pais se interessam pelo que seus filhos fazem na

escola, como os filhos aprendem etc.

“Lahire buscou conhecer a realidade das famílias. Ele selecionou 24 casos de

crianças que tinham bom ou mau desempenho no exame nacional, na França. Foi saber

como os professores viam a criança e foi às famílias das crianças para saber qual era a

realidade cultural dessa família. Então, a importância de se entender que existem culturas,

hábitos de classe que o Bourdieu trabalhou muito bem, que teve o mérito de conceber

esses conceitos e passar para a gente ter uma lente de discussão sobre a escola e a

sua realidade.

“Mas o que Lahire critica em Bourdieu um pouco é essa visão muito padronizada

que o levaria a entender toda a cultura de classe, a partir, por exemplo, de um recorte de

classe, como uma cultura que nos explica tudo sobre aquele segmento, aquela fração de

classe. Como se eles fossem muito homogêneos. Lahire chama a atenção: a formação

dessas pessoas, a socialização, os lugares e as instituições de socialização nas quais

elas convivem e circulam no seu processo de formação podem ter singularidades,

diferenças que precisam ser conhecidas do processo da interação de instituições que

trabalham com socialização, que é o caso da família e da escola. E aí ele fez um estudo

etnográfico mesmo, pegou casos dessas 24 famílias e foi levantando alguns aspectos

interessantes.

“Peguei alguns referenciais do próprio Lahire sobre como ele trabalha e peguei

uma pesquisa que é uma dissertação sobre disposições: a cultura informal nos segmentos

com baixa escolaridade. Foi um trabalho feito com alguns alunos que chegaram à USP

(Universidade de São Paulo), oriundos de setores populares. E aí a pesquisadora seguiu

a trajetória escolar desses alunos estudando um pouco as suas configurações familiares

em relação à escola e a outros espaços de socialização, como a própria mídia, que ela

reconhece como um espaço hoje importante. Não se pode negar que ele tem influência

no processo de formação ou socialização das pessoas.

“A pesquisadora adotou Lahire como um referencial importante. Chamando a

atenção que ele destaca, por exemplo, a importância de uma socialização baseada na

valorização da disciplina e da obediência. Tem um papel fundamental para se entender o

sucesso das crianças de classe popular. A importância da autoridade bem referenciada

na família. Quem é que tem o papel de orientar, uma autoridade legítima, ou seja, do pai

ou da mãe. Que papéis sociais, como é que as pessoas se relacionam na família no

cotidiano. O investimento familiar no pedagógico, na coisa de orientar, de ensinar, de

passar valores. A importância de condições de estabilidade econômica. Ela cita o caso

de uma das alunas que ela estudou, de uma estudante, porque esse nome aluna é uma

expressão negativa. Que os pais eram operários, mas operário mais de elite, trabalhavam

em boas empresas. E recebiam salário que dava condições de ter uma vida econômica

estável.

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“A importância do diálogo na família também, condições de disposição dialógica.

Ela chama a atenção para fatores que favoreceram e deram o garantido sucesso nessas

biografias desses estudantes.

‘O consumo deles de bens culturais era limitado. Mas, ao mesmo tempo, eles

tiveram essa influência da mídia e importância também na relação familiar não só dos

pais, mas a relação com o irmão mais velho, a orientação de um irmão mais velho, um

tio. Então, essa a importância dos papéis da família.

“Ela chama a atenção para o pequeno estímulo e reconhecimento que dão ao

professor. A influência do professor na trajetória. O professor tem um papel secundário

na vida dos alunos pesquisados. Embora eles tenham ajudado no sucesso escolar, não

são considerados fundamentais. Mas esses são alunos que já chegam a uma

universidade. A gente tem que de alguma maneira relativizar um pouco isso.

“A pesquisadora mostra que, além da escrita, que continua sendo importante, há

outras formas de linguagem provenientes da cultura de massa que contribuíram muito

para o sucesso escolar desses alunos. Isso é a novidade talvez desse estudo. A

importância do circular e o reconhecimento de outros espaços de socialização que não

apenas a escola e a família.

“Finalizo com alguns pressupostos que identifiquei na leitura de Lahire e que nos

ajudam a refletir um pouco sobre essa relação escola e família. No fim do livro ele traz

algumas conclusões, fiz uma síntese em cinco itens:

“1) O direito educativo de ingerência não é simétrico. Os pais são aconselhados

sobre a maneira de agir com seus filhos, mas os professores não gostam que digam o

que devem fazer, essa coisa que já foi dita aqui por outros expositores e que achei muito

interessante, porque é pertinente com essa conclusão que Lahire traz. E trago aqui

também o depoimento de Mário Sérgio Portella, quando ele substituiu Paulo Freire como

secretário de Educação da cidade de São Paulo. Em determinado momento ele fala na

implantação do conselho de escola. Que era composto de pais, alunos e hoje a gente

sabe que isso está mais assimilado. Não tanto, mas já está mais. E era paritário e

deliberativo, com eleição anual em abril. E aí foi montada uma equipe para acompanhar

esses conselheiros, a população está acostumada a ser chamada à escola para reclamar

ou para ser reprimida. Normalmente era isso e ainda é isso que acontece em muitos

lugares. Quando ela começa a participar, nós professores reagimos. ‘Você não entende

de educação’, fala-se assim para os pais. E aí o pai começa a reagir e diz: ‘Mas entendo

do meu filho’. Esse estranhamento se verbaliza em vários momentos em que essa

proximidade se torna mais íntima e maior entre a escola e a família. É essa coisa

assimétrica de que o professor se acha na condição de dizer como deve ser conduzida

a educação do filho e não aceita um diálogo, digamos assim. Tem uma certa resistência

ao diálogo.

“2) Contextos familiares podem produzir situações escolares muito diferentes, na

medida em que o rendimento escolar depende dessas configurações familiares. Nos

relatos, ele diz, por exemplo, que em algumas casas existe uma pessoa que cuida das

cartas, que cuida das contas. Em outras isso não é tão intenso assim. Então, a

familiaridade e a prática dos conhecimentos que a escola traz para o cotidiano são fatores

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de estímulo ou desestímulo para aprendizagem, apropriação de conhecimentos, de

informação ou o que seja.

“3) Mesmo nas situações mais formais de aprendizagem, o que o adulto julga

transmitir nunca é exatamente aquilo que é recebido pela criança. E aí a falta de diálogo

e dessa abertura para se ouvir a criança na escola, nesse cotidiano da própria escola,

ela um pouco nos faz crer que a gente ensinou aquilo que a gente efetivamente não

conseguiu ensinar. A gente pensa que ensinou, mas não passou.

“4) Entre os adultos docentes e as crianças há também diferenças de modo de

inscrição nas relações sociais. De forma de configurações sociais de referência. O fato

de você ter sido filho caçula, filho de operário, filho de professor, isso faz diferença nessa

coisa da configuração, da socialização, da formação e da forma como sou capaz de ver

os outros, de entender o outro, de ver as pessoas, os grupos. De entender relações que

são muito diferentes das minhas e das minhas origens. E daquelas relações com as

quais estou mais familiarizada.

“5) Nenhuma família é desprovida de objetos culturais. Álvaro Vieira Pinto já nos

dizia isso há muito tempo, naquele ‘Sete saberes’ ou ‘Sete missões sobre educação de

adultos’. Álvaro foi uma pessoa importante até para a formação do Paulo Freire. Foi um

dos primeiros a trabalhar essa questão da educação de adultos. Ele afirmava: dizer que

o analfabeto não tem cultura é um absurdo. Somos frutos de cultura. Não existe isso.

Então, nenhuma família é desprovida de objetos culturais, mas esses, principalmente os

impressos, podem, às vezes, permanecer em estado de letra morta, porque ninguém os

faz viver num ambiente familiar. Ou seja, eles não são usados no ambiente familiar. Se

trabalha mais com a cultura oral e menos com a escrita. Isso tem que ser conhecido por

essa instituição escola que quer trabalhar com uma outra instituição. E não sabe como

ver essa instituição.

“Por último: as famílias dotadas ou não de capital escolar podem, via diálogo,

reorganização de papéis domésticos, atribuir lugar simbólico à criança letrada no seio da

configuração familiar. Quer dizer, muitas famílias, quando vêem que aquela criança está

aprendendo, está trazendo contribuições para a família, dão lugar de destaque para esse

adolescente, para essa criança, para o que seja. Trabalhei um tempo, fiz uma pesquisa

na Uerj sobre a questão dos alunos cotistas, e nessa pesquisa a gente juntava os alunos

que queriam participar e eles selecionavam 10 temas e durante 10 semanas eles

conversavam sobre esses temas. Levávamos um texto pequeno sobre os temas que

eles escolheram sobre a trajetória escolar deles. E um dos temas que aparecia, apareceu

três ou quatro vezes, foram quatro experiências que fizemos, cada semestre, foi a relação

com a família. E muitos falaram das suas dificuldades porque a família dizia: ‘Você está

perdendo tempo. Você tem que trabalhar. Você não sei o quê’, e outros diziam que ao

mesmo tempo a gente começava a levar coisas e hábitos para a família, a gente começava

a levar coisas e hábitos de consumo de objetos de cultura para a família, que antes ela

não tinha. E o fato de sermos os primeiros a chegar ao ensino universitário tem um

impacto nessa família como um todo. Porque ela está rejeitando, porque ela está resistindo

ou porque ela está entendendo isso como uma coisa diferente que está acontecendo

dentro dela.

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“O que quero chamar a atenção, primeiro, é que você hoje usa tanto as

macropesquisas como referência para as políticas educacionais como complementa

isso com outras pesquisas que buscam ter uma sensibilidade, de escuta, de conhecimento

da realidade local, do entorno, buscam essa coisa mais íntima, mais intimista. É uma

coisa que o Florestan Fernandes chamava da relação do micro com o macro, que é

muito importante e rica. Então, muitas vezes a gente não deve achar que a verdade está

nesse retrato macro, porque são pesquisas mais caras, essas pesquisas que o Inep faz,

é só abrir o site do Inep e tem tudo lá, como que são feitas as pesquisas, a gente tem a

dimensão do custo disso. E para se pensar política como se o país fosse muito igual.

Como se você pegando e recortando o universo de São Gonçalo ou Nova Iguaçu, ali

também fosse uma coisa muito igual. E a gente sabe que há realidades diferentes às

vezes no mesmo bairro. Como tivemos oportunidade de conhecer em Miguel Couto, que

é um bairro central lá em Nova Iguaçu. Tem duas escolas, uma mais recente e uma mais

tradicional. O povo gosta da tradicional. Porque tem mais estrutura, porque os professores

são mais valorizados. A gente tem que chegar perto. Acho muito importante não ter medo

dessa intimidade. E acho que essas duas instituições, família e escola, entendo não só

porque tradicionalmente na sociologia da educação, nos processos de socialização

primária na família e secundária na escola, essa passagem desse ambiente privado

para o espaço público que é a escola, é uma passagem que precisa ser muito trabalhada,

que precisa ser muito bem articulada. Para garantir a sobrevivência desse ser que a

família entrega para a sociedade e esse é o ritual de passagem. Quando a criança vai no

primeiro dia para a escola formalmente, a família privada está entregando ao público

aquele ser para ele aprender e ampliar a sua convivência social. É por isso que acho que

são duas instituições que têm que aprender a ter intimidade. Que têm que deixar de se

estranhar e buscar se conhecer melhor. E para isso a gente tem que buscar os caminhos.

Às vezes, não é decretar ou botar um decreto, botar lá no arquivo da LDB que isso deve

ser feito. No dia-a-dia, no operacional, como é que a gente vai abrir esse caminho? E aí

tem que ter criatividade, sensibilidade, a boa vontade desses atores que fazem parte da

família e da escola. E no meio tempo tem essa criança circulando para lá e para cá.

Precisando de muito apoio dessas duas instituições.

Lucila Martínez

“Vocês vão me permitir falar de algumas das experiências que estamos fazendo no

Brasil. A partir de outras que, por mais de 35 anos, tenho tido a oportunidade de fazer em

muitos países. Trabalhei muitos anos com as Nações Unidas e sempre me declaro que

mais do que nada sou uma educadora, que adora o que faz e acho que o sucesso que

tenho tido na vida devo a ter sido bem formada como educadora.

“Estamos todos estes anos, no México foi a minha primeira experiência de lidar

com essa questão da relação família e escola, desenvolvimento local e regional,

sustentabilidade etc. Em certas circunstâncias, pelo tipo de trabalho que fiz, tive que não

só teorizar e escrever, mas fazer os projetos se tornarem realidade. E enfrentar de fato

os líderes de cada comunidade, os pais de família que umas vezes acreditam e outras

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não no seu papel, que ora estão com sua auto-estima lá embaixo ou lá em cima. Que

acham que o filho deve ser um instrumento a serviço da família. E outros que entendem

que o filho não é propriedade privada. Tivemos que conseguir que as soluções fossem

negociadas, articuladas e consensuadas em grupos reais, em grupos concretos.

“Inovação é o maior desafio que estou encontrando. Somos uma equipe, um grupo,

e lidero uma parte do grupo. Tem sido muito interessante descobrir que esse envolvimento

com a realidade dos países é um desafio fantástico para os educadores. Sou daquelas

que acreditam que todo educador tem o maior potencial para ser o grande líder da sua

comunidade, de seu país, um líder político. Não necessariamente partidário, mas também

partidário, mas tem que ser um grande político. Então, sempre quando me perguntam a

definição do que faço, sou eminentemente política. Eu me meto, ninguém me convida,

mas lá vou. E se sinto que posso ajudar, lá estarei insistindo, lá estarei sempre, criando

sempre um pouco de dificuldades para as pessoas que se sentem donos e proprietárias

do pedaço. Estou trabalhando agora, e vocês vão ver como é muito interessante, na

região metropolitana de Campinas.

“Esse assunto do desenvolvimento local e regional e da inovação no Brasil me

parece hoje que é um dos temas que nós educadores deveríamos pensar como estratégia

também. Para que o nosso trabalho tenha outro espaço. O trabalho que ultrapassa a

escola, as paredes, digamos assim, porque para mim a escola é todo, não

necessariamente o espaço físico. Se entramos e tentamos conhecer a fundo o que está

acontecendo no Brasil, qual é o Brasil que está sendo imaginado pelos líderes? E pela

cidadania que pensa? E pela universidade? Para daqui a 20, 30, 50 anos. Todas as

questões em que estamos envolvidos têm a ver com isso. As propostas que estão aí em

cada município, em cada região, para aquele Brasil lá na frente.

“Todos esses assuntos, daqui a 15, 20 anos, têm que nos fazer repensar como

educadores. Têm que nos fazer repensar aquela questão da proposta política pedagógica.

Têm que nos ensinar a trabalhar realmente com as famílias, com os líderes da comunidade,

com os ruins e com os bons. Mas têm que nos dar esse jogo de cintura para saber como

é que vamos lidar e atuar com líderes.

“Nesse desenvolvimento regional inovador, descobri que no Brasil está se

imaginando que daqui a 20 anos vamos ser quase como é a França hoje. Lá hoje o

desafio é criar pólos tecnológicos. Eles têm 26 pólos tecnológicos que simplesmente

estimulam a iniciativa e a criatividade da sociedade que pensa e que age. Então, se você

é um cara interessado, criativo, que trabalha duramente e que leva um projeto, tem apoio,

tem respaldo. Porque há 26 núcleos que estão olhando isso, quem é criativo, quem pode

inventar, quem pode criar uma patente, quem pode fazer uma coisa inovadora, quem

pode copiar e refazer. As propostas teóricas do Brasil falam mais ou menos o mesmo,

estão na lei de inovação de dezembro de 2004, que, aliás, é uma cópia da lei francesa.

Mas para se chegar a essas metas precisamos de pessoas. E qual é a formação dessas

pessoas? Qual é a oportunidade dessas pessoas? Qual é a orientação que estão tendo

para atingir aquelas metas? Aí, observo os currículos escolares e não vejo nada. Na

França, o currículo da educação infantil e do ensino fundamental tem tudo a ver com a

política de inovação para daqui a 15, 20, 30 anos.

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“O que estamos fazendo? Fomos convidados e estamos há quase três anos na

região metropolitana de Campinas, criando e desenvolvendo um programa que visa a

isso. São 19 municípios em torno de Campinas que têm 9% do PIB nacional. São mais

de 470 indústrias. Mas quando fizemos pesquisas, 80% das pessoas de bom nível e que

ganham os melhores salários dessas indústrias não são da região. O pessoal menos

qualificado, a mão-de-obra mais barata é da região. O pessoal mais bem pago é de fora,

é do Rio, de Curitiba, de São Paulo. Fomos avaliar e esse resultado é justamente pela

falta de consciência da importância da escola no processo de desenvolvimento. Há uma

distância enorme entre quem sai da escola, teoricamente com capacidade para enfrentar

o mercado de trabalho, e o que o mercado de trabalho demanda. Entre as manifestações

culturais, por exemplo, é impressionante que o melhor centro cultural de Campinas, uma

cidade de um milhão e 200 mil habitantes, é da CPFL (Companhia Paulista de Força eLuz). É maravilhoso o centro, mas a cidade toda carece de mais opções. Paulínia é uma

cidade riquíssima, tem em geral uma enorme quantidade de fórmulas criativíssimas de

corrupção, mas não tem desenvolvimento. Tem, nossa!, todas as facilidades para você

se dar bem a título pessoal, mas não para o desenvolvimento da sociedade. Paulínia

recebe por ano R$ 700 milhões entre royalties e impostos e tem 75 mil habitantes. Do

lado, a sete quilômetros, Cosmópolis tem 60 mil habitantes e uma arrecadação de R$ 50

milhões. Só que tem que dar esgoto, saneamento básico, água, saúde, educação, para

mais ou menos a mesma população. É irracional que não exista um diálogo entre os dois

municípios. As pessoas do município rico nem querem saber. Como estamos formando

essas crianças e esses jovens que assumem o poder quando há inconsciência sobre a

necessidade de desenvolvimento local e regional, sobre as metas do milênio, sobre as

questões macro?

“Cada município no Brasil certamente tem enormes condições de nos permitir um

trabalho sério, olhando qual a vocação daquele município, assim como a título individual,

cada um de nós sempre se pergunta: ‘Quem sou eu? Para onde vou? O que vou fazer na

vida? Como vou fazer? Com quem vou fazer?’ Criar a rede de parcerias, tudo isso é

muito discurso por todo lado. Por exemplo, hoje se você quer apresentar um projeto na

Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), uma das exigências é que você tem que

demonstrar que sabe trabalhar criando uma rede de co-gestores, de parcerias. Onde

tem iniciativa privada, tem que haver uma instituição.

“Na escola estamos conhecendo isso. Quando conversamos com pais de família,

começamos a identificar que havia falta de interesse do pai, pai homem, de procurar a

escola. Era desinteressante para ele porque o nível de questões com as quais estava

preocupado nunca era atendido. Então, começamos a levar os homens para a escola, a

chamá-los. Como trabalham muito com as indústrias, em canteiros, aprendi muito com

eles. São semi-analfabetos, mas me ensinam muito. Esses homens têm uma grande

sensibilidade duramente tratada pela vida. A vida maltrata os pais e eles não têm outra

forma de reagir senão maltratando os filhos ou a companheira. Mas quando você consegue

chegar aos canteiros, às casas, descobrimos que têm angústias grandes e sonhos.

Infelizmente, os sonhos se acabam no bar. Porque não há opção, Paulínia tem R$ 700

milhões, mas só uma praça. Não tem oferta cultural. Tem uma biblioteca virtual muito

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interessante, mas com 60 computadores, 75 mil pessoas com 60 computadores não é

nada. É para mostrar, para inglês ver, mas não responde aos interesses e necessidades.

Começamos a descobrir também que eles tinham angústias, de que tipo? ‘Será que na

minha família o que está acontecendo é abuso sexual?’ ‘Será que o meu filho está usando

drogas?’ ‘Ele quer sair de usar drogas, mas a sociedade o vai aceitar de volta?’ ‘Como

faço?’ Essas eram as questões que eles traziam.

“Começamos nove programas que têm a ver com responder a essas questões. O

que fazer quando o problema é droga. Ele como pai e ela como mãe. Como entender a

questão do abuso sexual. Como entender as questões dos maus-tratos etc.

“Nas pesquisas que fazemos constantemente pelo país, com apoio do Unicef (Fundodas Nações Unidas para a Infância), e durissimamente conseguindo recursos, sempre

tentamos avaliar competências nessas famílias. Vou chamar de competência porque

assim se chama a pesquisa. Quais as capacidades, as habilidades que cada família tem

para lidar com um monte de problemas. São 28 problemas. Onde levantamos esses

problemas? Na pesquisa com as famílias. Esses 28 são os mais freqüentemente

encontrados. Quem estiver interessado pode me pedir por e-mail, é um documentinho

simples. Vou entregar à coordenação. Quais as competências, habilidades ou dificuldades

que a família tem para manter laços de solidariedade entre eles? De confiança e de

carinho. Eles têm carinho, mas não são capazes de demonstrar.

“Os adolescentes diziam para a gente: ‘Por favor, fale dessas coisas com nossos

pais’. Uma vez, uma menina preparou o café-da-manhã porque era aniversário do pai.

Ele disse para mim: ‘Já vai querer me pedir dinheiro! Que é essa besteira de gastar em

tal coisa!’. Ela havia feito com muito carinho o café-da-manhã. Mas eles não conseguem

dialogar. Há um monte de itens que a gente pesquisa: ‘Onde está a dificuldade?’ ‘Onde

poderia estar a facilidade?’.

“Há um outro domínio que é o comportamento do grupo familiar, seja como esteja

formado. A sua interação com a criança. Será que brincam? Aqueles que decidem as

despesas, como são manejadas, e muitas outras coisas.

“E há um terceiro domínio, que é sobre o uso da rede social. E aí que é grave. As

pessoas em geral, as famílias, elas buscariam na escola a resposta a umas coisas

muito simples. Por exemplo, quase ninguém sabe o que pode esperar do município, do

estado ou do governo federal. É uma confusão danada, até porque, quando os políticos

estão em campanha, acompanho vereadores e me enfrento com eles, eles oferecem

coisas que não competem a eles. Sabe? Então, ele oferece: ‘Eu vou fazer isso!’ e o cara

acredita que ele vai fazer isso. E não competia a ele fazer. Então, é uma confusão enorme,

sobre o que compete como resposta ao município ou a um estado. As pessoas têm

dificuldade de saber eleger os líderes também.

“A auto-estima é tão baixa e isso se demonstra em família. E eles transmitem aos

filhos essa insegurança, essa revolta. E esperam que a escola os ajude, mas não sabem

expressar na escola essas questões.

“São nesses os pontos que gostaria de tocar. Essas são as etapas que seguimos

no programa, normalmente, de fortalecimento das competências familiares. Primeiro, as

pesquisas em cima dessas 28 competências. Para fazer a pesquisa contratamos a

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Universidade de Pelotas e usamos também parte do pessoal da Universidade de

Campinas. Depois fazemos um trabalho muito intenso de qualificação de líderes da

comunidade, que na maioria das vezes são educadores. Ou o pessoal dos postos de

saúde da família, da rede de posto de saúde da família. E aí vem o outro problema, a

dificuldade de conseguir que os educadores aceitem o trabalho da liderança do posto de

saúde. O educador acha que o outro não sabe nada e vice-versa.

“Mas acontece que uma das questões mais importantes para que o diálogo com as

famílias aconteça tem a ver com a saúde. Porque é a questão mais concreta que a

família entende desse envolvimento, é o bem-estar. E para ela o bem-estar tem a ver

com o corpo sadio, mas do que com o intelecto desenvolvido. Então, como conseguir

esse diálogo? É um grande trabalho e acho que está sendo feito no país. E nisso o Unicef

e a Unesco têm sido de uma colaboração extraordinária. Esta casa (o jornal ‘Extra’) que

está aqui querendo ajudar é uma demonstração disso.

“Os pais, como falava Maria Cristina agora, não gostam que lhes digam o que

fazer, como o educador não gosta. Mas, quando você consegue fazer uma pergunta

bem feita para a família, a família responde, a família reflete e a família aprende coisas

novas. E gosta de aprender. E gostaria que seu filho participasse.

“Criamos para isso uma coisa que chamamos, é meio feio o nome, mas é Escola

Para Pais. Na verdade, são encontros, são 35 encontros por ano, nos quais a gente

dialoga com os pais sobre os temas que identificamos para eles dialogarem com os

filhos. Quem nos ajuda? O juiz da infância e adolescência, os promotores públicos, são

amicíssimos os promotores públicos deste país, a grande maioria. Há outros que não

muito, mas a grande maioria que lida com meio ambiente, com criança e adolescente,

são grandes colaboradores de nossos programas, em todo sentido. E eles desmistificam

na comunidade e com a família essas relações oficiais e sociais. Então, essas escolas

para pais, entre aspas, têm nos ajudado enormemente a encontrar soluções as mais

diversas para propiciar essa aproximação com a escola. Por exemplo, em Cosmópolis

estamos iniciando um projeto gigantesco em que as famílias vão ser os monitores

trabalhando em torno da escola, na parte de inclusão social digital, que eles escolheram

como um dos temas para que Cosmópolis chegue a um nível um pouquinho superior.

Mas foi a sociedade que escolheu. E as famílias agora são mais aceitas pela escola.

“Já não se fala o que sempre se falava antes: ‘A senhora não sabe nada de educação’.

‘O senhor não sabe nada de educação’. E realmente eles ficavam acuados. Então, essa

qualificação e capacitação continuada têm a ver com todas essas pessoas da

comunidade.

“Depois o trabalho mais difícil é com as autoridades locais, municipais. Porque

falar para uma autoridade municipal que a criança deve ser prioridade de todas as ações

do município, isso é complicadíssimo. Que a criança tem direito a brincar, que a praça

tem que ser criada para ele ter segurança, prazer, lazer, espaço e bom cheiro. Por que

bom cheiro? Estamos numa área, na região de lá, de canaviais. Vocês não sabem o que

significa a queima da cana-de-açúcar neste momento, por exemplo, em plena safra. É

infernal! É infernal! Além do que são 473 indústrias. A qualidade do ar teria que passar a

ser um tema do currículo. A questão ambiental tem que passar a ser um tema do currículo.

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Seminário “ A Escola e a Família”

Tentamos mobilizar a população para exigir que a usina mude, essa usina que faz álcool

e açúcar, que a usina mude de tecnologia. No lugar de seguir queimando os canaviais,

elas usem outra tecnologia que já existe. E não se consegue mobilizar a comunidade

porque a comunidade não acha que ela pode. Que eles não podem se manifestar. Têm

medo de perder os empregos. Aí, a gente mostrou que são 900 empregos frente a 45 mil,

a 60 mil pessoas.

“Esses assuntos locais do desenvolvimento do município, se são tratados cada

vez mais na escola, sabem que resultado se obteve, por exemplo, em Cosmópolis, aquele

município mais pobre? O prefeito que está aí agora que é interessante, ele dedica o

orçamento especialmente à educação. Como a cidade não tinha teatro, não tinha nada

de oferta cultural, criou a melhor escola, Paulo Freire se chama, por acaso. Com um

auditório maravilhoso onde acontece todo o movimento cultural da cidade, para 350

pessoas. Então, esse senhor está apostando no desenvolvimento local desse município.

Eles são pobres. Ele falou que construiu a escola com R$ 8 milhões, o orçamento na

cidade vizinha para uma escola menor do que essa, sem auditório, está em R$ 45 milhões.

Vocês vejam, há sim necessidade de que a família se aproxime, de que a comunidade

conheça e de que a escola ensine esse tipo de coisa, que tem a ver com o

desenvolvimento.

“Um primeiro exercício que fazemos na escola é esse. Levamos um monte de

caixas com folhas de árvores da região e pedaços de coisas da região, da natureza. E o

aluno, de olhos fechados, tem que identificar. Quase nenhum deles nunca se tocou,

nunca cheirou a cidade, o que ela lhe oferece, especialmente a natureza. Ele se surpreende

que isso poderia ser importante.

“Essas escolas de pais tentamos trabalhar com elas como se cria um espaço

favorável à leitura em casa. A única coisa que todos fazem quando chegam do trabalho é

sentar em frente à televisão. Esse momento poderia ser usado para estimular a criança

a ser crítica, a comentar, para que converse em família. Qualquer momento é adequado

para formar hábito de leitura. Mas a gente tem que ensinar isso aos adultos. Tem que

conversar com eles prazerosamente.

“Esse é o tipo de material (mostra uma coleção de publicações) que usamos hoje

para quebrar as primeiras barreiras de conversar e dialogar com a família a partir da

escola, num trabalho conjunto entre professores e agentes de saúde da família no Brasil.

A meta é chegar a pelo menos 20 milhões de famílias, já chegamos a 8, quase 9 milhões

de famílias no Nordeste, com uma grande ênfase no Nordeste. Estávamos fazendo um

grande trabalho na região metropolitana de Campinas. Fiz já um pilotinho pequeno em

Petrópolis, aqui na Região Serrana, com 1.700 professores, e estamos tentando que

este material, que depois vocês podem olhar, podem entrar na internet, está disponível

no endereço que está aí depois. Aqui fizemos um exercício de dialogar com a família.

Sobre todas as questões do que chamamos de oito pilares. Essas coisas de ter que

formatar tudo. Mas tem que se formatar para fazer isso. Reunimos 30 e tantas instituições

lideradas pelo Unicef. E todos levamos a experiência de quais são as 150 perguntas

básicas a partir das 28 competências. E aqui estão as 150 perguntas. E deste lado está

a pergunta, aqui em baixo está como se faz valer o direito e o dever sobre aquela questão

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no Brasil. O que está previsto na Constituição, o que está previsto no Estatuto da Criança

e do Adolescente, está contemplado aqui. Aqui normalmente deste lado é a pergunta que

a família faz e que a gente trabalha com uma melhor resposta para ter certeza de que a

família tem o conceito claro. E aqui está a orientação para nós, os agentes, que

trabalhamos com a família. É muito usado... Vocês têm que ver as pessoas lá no campo,

lá no Nordeste. Não tem nada, não tem mesa muitas vezes. E eles vão conversando em

família desse jeito. Se apóia, simplesmente, para as crianças e as famílias, como se

fosse um brinquedo. Esse tipo de material é uma ajuda. Sem dúvida. Mas o interessante

é que ele é fruto da experiência de 30 instituições que trabalham no Brasil tentando

aproximar escola e família. De fato, em campo, lá nas comunidades. Estes são o que a

gente entrega nos postos de saúde, sabem que material temos aí? Material, por exemplo,

sobre abuso sexual, sobre maus- tratos, sobre educação infantil, sobre bibliotecas,

algumas histórias fantásticas. Porque, sabem que interessante, uma outra forma é

reconquistar aqueles homens e mulheres cansados de trabalhar às 6 da tarde que vão a

nossas escolas de pais até 11 da noite, eles voltam a contar histórias. Recuperaram o

prazer de contar histórias. É uma coisa extraordinária para os adultos. E tem sido uma

ferramenta muito interessante. Porque é divertidíssimo para eles voltar a contar. Mas

quais histórias? Alguns homens falam: mas nunca li nada. Não sei as histórias. Mas é a

história deles, de seu trabalho. A maioria dos filhos não sabe o que o pai e a mãe fazem

no trabalho. Porque eles não sabem contar como história o dia-a-dia deles. A escola de

pais tem que conseguir que o adulto volte a contar histórias. Que integre seu filho à sua

vida. Através de contar histórias. E todo esse discurso a gente está levando às empresas.

“Nas empresas, os empresários são duros, Nossa Senhora. Então nunca vou ao

diretor de marketing, porque são os piores. Vou ao presidente, porque ele tem netos e já

se sensibiliza mais. É a esses presidentes que a gente conta o projeto que quer

desenvolver, e aí faço um último convite. Uma das formas que a escola adquira uma

outra função maravilhosa, e tenha respostas da família, é dedicar um tempo a aprender

ou a ensinar a fazer projetos. Já trabalhei em 26 países, todos os dias dou graças a Deus

por tanta bondade comigo, e não conheço nenhum país com melhores possibilidades de

crescimento maravilhoso do que o Brasil. Não conheço nenhum país com mais

perspectivas extraordinárias na América Latina do que o Brasil. Sabe como vemos o

Brasil? Sou colombiana. E para mim o Brasil, e para todos os meus amigos, é aquele

irmão grande, bonitão, que deu certo na vida. Quando conto que moro no Brasil, nossa,

sorriso de orelha a orelha, todo mundo, certa inveja sadia. E brasileiro não se dá conta

disso.

“Sempre convidamos os professores a assumir uma atitude política mais para valer.

Temos que saber fazer projetos, temos que saber conquistar recursos para esses

projetos. Gente, vocês têm aqui 17 fundos setoriais e ninguém faz nada com esse dinheiro.

Só aqueles vivos que sabem pegar conseguem levar alguma coisa. Há muito dinheiro no

Brasil que poderia apoiar nossos projetos. Temos que aprender a fazer esses projetos.

Estamos ensinando as comunidades a se estruturar melhor, fazer cooperativas, fazer

unidades... Imaginem, sou professora, estou metida em uma dessas múltiplas coisas,

estou ajudando uma cooperativa a montar uma usina de biodiesel. O que tenho aprendido

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de biodiesel, vocês não imaginam. É apaixonante. Porque você ensina a valorizar a

agricultura familiar. Porque você ensina essas pessoas a fazer orçamento da sua vida, a

fazer plano de vida. Ensina não, ajuda, orienta, escuta, eles sabem muito. Mas eles acham

que não sabem. Muito. Então, valorizar essa cultura local, entender o desenvolvimento

regional inovador é uma outra estratégia, uma outra forma de que a escola com a família

possa ter um papel muito importante na sociedade. Então essa questão das empresas,

estou indo daqui para a Petrobras, porque não perco a chance de ir a eles pedir mais

apoio sempre. Não perco. E vocês perdem oportunidades imensas. E essa questão a

gente está ensinando às comunidades e aos professores. Temos que entender, não nos

deixemos enganar, muitas empresas acham que estão assumindo atitudes de

responsabilidade social porque desviam o pagamento de impostos. Então, em lugar de

pagar imposto aqui, paga imposto ali. Isso não. Está claro, vamos aproveitar. Mas não é

isso não. Temos que chegar com bons projetos nas empresas porque elas a cada dia

mais começam a entender que é um bom negócio. De verdade. Se envolver com o

desenvolvimento local, regional, humano e social. Dimensionar o desenvolvimento humano

é uma coisa muito importante. Há que investir muito dinheiro em espaços e facilidades

para que a criança se desenvolva feliz, se prepare para curtir a vida. E isso é o que mais

agradeço aos meus pais e à minha primeira professora. Nunca me esqueço dela. Por

acaso se chamava Lucila. Me lembro quando entrei na escola, ela me parecia gigantesca,

grande! A vi há pouco tempo, não era tanto não. E ela tinha uma voz forte, brava,

aparentemente, entendia como brava. Mas tinha uma coisa muito interessante. Como

tinha esse porte grande, bravo, todos entrávamos de cabeça abaixada. Ela levantava o

queixo de todos nós e duramente, mas com muito carinho, nos dizia: ‘Nunca abaixe seu

olhos frente a nada. Você vai transformar o mundo. Você tem condição de ser a melhor

no que quiser ser1. E aprendi isso.

“Acho que o educador, de mãos dadas, entendendo a família, consegue levantar a

auto-estima, dialogar, conversar, estar disposto a escutar. Criar condições, criar

momentos, criar espaços, gosto muito da escola que abre sábado e domingo. Em todos

os lugares em que a gente trabalhou conseguimos que o trabalho de sábado e domingo

seja extraordinário para criar às vezes geração de renda, para criar respostas para abuso

sexual, para criar respostas sobre doenças sexualmente transmissíveis. Não importa o

que eles estão precisando. Mas eles fazem a gestão de sábado e domingo. Eles assumem

a co-responsabilidade social que cada pai também tem com o grupo social, não só com

o seu filho.

“Para finalizar, sempre me perguntam o que é criatividade, que tentamos discutir

tanto, e sempre digo, ser criativo tem milhões de coisas por dentro. Temos uma muito

importante. Tem que estar sempre fazendo, é uma pessoa que pode se entregar realmente

com amor, tentar descobrir a melhor forma de ser bem humorado, e essa é uma questão

muito importante. Fico preocupada com que o mau humor comece a se espalhar

demasiadamente por aí. A gente vai à escola, ou vai a um lugar público, e é atendido

assim como se estivessem fazendo um favor.

“Se queremos ter informação, temos que buscar a maneira de propiciar um encontro,

e essa é uma palavra que a gente trabalha constantemente. Propiciamos o encontro dos

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pais com os filhos, dos pais com os educadores. Faço muita coisa nas câmaras

municipais. Não porque apóie um grupo político, mas para fazer questão de levar as

pessoas à Câmara. Eles não vão às câmaras municipais. O vereador faz umas coisas

horrorosas, eles não estão sabendo. A gente leva eles à Câmara e convida os vereadores.

E assim, simpaticíssimos, fazemos com que expliquem o que fazem, às vezes não

sabem explicar. Não tem nada que explicar, não fazem nada. Mas outras vezes fazem

muito e ninguém sabe.

“Acho que é muito essa questão amorosa. E a gente consegue. Consegue

transformar o mundo mesmo, como dizia a minha professora”.

Mesa-redonda

O presidente da Fesp, Cláudio Mendonça, faz um comentário antes do início do

debate:

“Queria aproveitar enquanto estão arrumando a mesa para apresentar Amelia

Gonzalez, que edita o caderno ‘Razão Social’, da Infoglobo, uma ação que todos

reconhecemos, uma das questões mais importantes que as empresas podem

desenvolver. Ela é uma das pessoas que tornaram este seminário viável. Quando vi este

material aqui (exibido por Lucila Martinez na sua palestra), que acabei de ganhar de

presente, sugeri à Amélia, aqui assim entre nós, por que o ‘Extra’, que faz tanto, distribui

carrinho, jogo de War, será que a população não juntaria alguns selos para receber uma

instrução para organizar uma família melhor? Nem é para a própria pessoa. Acho que

muita gente vai juntar selo para entregar para uma jovem mãe, uma orientadora

educacional que queira ter um material melhor e às vezes não tem acesso a esse material.

Talvez a gente possa, por meio do jornal e do selo, fazer uma corrente em defesa disso.

Meu objetivo era lhe colocar nessa situação mesmo, Amélia (risos), fica aí a nossa

sugestão.

“Queria convidar primeiro o Eduardo Auler. Ele vai selecionar as perguntas. E nossos

palestrantes, Antônio Carlos Gomes da Costa, Maria Eulina Pessoa de Carvalho, Vitor

Henrique Paro, Maria Cristina Leal e Lucila Martinez. Queria aproveitar para fazer uma

provocação, enquanto não chegam as perguntas. A Unesco, há alguns anos, lançou um

programa no Brasil inteiro chamado Escola Aberta. Não, Abrindo Espaços. Era um

programa da abertura das escolas nos fins de semana. Aconteceu aqui no Rio de Janeiro,

em Pernambuco, em São Paulo, onde se chamou Escola da Família, enfim. Houve várias

iniciativas. Em cada estado teve uma configuração diferente. Alguns usavam voluntários,

outros pagavam as pessoas que trabalhavam, enfim. E havia essa questão da abertura

das escolas nos fins de semana com o objetivo não de levar a escola para o fim de

semana, mas de levar o fim de semana para a escola. Esse projeto, não sei continua

acontecendo em mais algum lugar, acho que em alguns lugares continua, em outros,

aqui no Rio de Janeiro, já parou há bastante tempo. E...”

(Platéia) “Não!”

“Algumas escolas têm, outras não têm, é isso? Algumas escolas fazem, outras

não. Queria ouvir os comentários com relação a esse programa, não especificamente

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se a escola deve ser aberta no fim de semana, ou não, porque acho que isso é uma

obviedade. É um equipamento urbano muito caro para ficar fechado no fim de semana, a

população tem poucas oportunidades de lazer, enfim. Muito se discutia nos debates da

Unesco se isso de alguma forma poderia afetar o desenvolvimento de valores, de atitudes

e de conhecimento. Se isso poderia melhorar o processo cognitivo. Na medida em que

os professores não freqüentavam a escola no fim de semana, normalmente têm vários

empregos, têm 40 tempos por semana. Então só o professor de educação física ia. Na

verdade, se trabalhava muito a questão de valores humanos, gênero etc. O esporte, o

lazer, a cultura. Mas dificilmente se conseguia trabalhar, por exemplo, a iniciação científica.

Era muito difícil a escola que conseguia trabalhar, fazer um projeto de leitura, por exemplo.

Acho tudo isso importante.

“Mas gostaria de provocar aqui os nossos parceiros, e gostaria em especial de

começar com o Vitor, porque ele fez uma excelente exposição sobre educação em geral,

que foi muito boa para todos nós, muito provocativa, mas ficou nos devendo a abordagem

mais específica no tema da família. Queria falar um pouquinho sobre o projeto, que foi de

certa forma colocado por vários dos nossos palestrantes. Uma das estratégias seria a

questão da abertura das escolas nos fins de semana, uma das estratégias seria levar de

uma forma mais prazerosa aquisição do conhecimento. O que é uma coisa extremamente

difícil, mas necessária e desejável. Mas é o grande desafio. Para finalizar esta fala, acho

que, por mais sacrificados que sejam os trabalhadores do nosso país, por menos tempo

que os nossos trabalhadores e pais tenham para si mesmo, acredito que é possível, sim,

a gente tentar resgatar esse diálogo entre pais e filhos. Não acredito que jantar com a

televisão ligada e todo mundo comendo e olhando para aquele negócio seja mais

interessante do que jantar com a televisão desligada e as pessoas ouvirem uns aos

outros e talvez se conhecerem um pouco mais. Conheço muitos pais, muitos casais,

que conheceram seus filhos quando se separaram deles. Porque aí passaram a ter um

tempo em que eles efetivamente se dedicavam a dar total atenção àquelas crianças.

Quando conviviam com as crianças, como já estavam convivendo, passavam mais tempo

pensando em outras coisas, vivendo outras coisas, e só se referiam às crianças quando

elas estavam incomodando. O coronel Jorge da Silva, que foi coordenador de segurança

do estado, uma vez me falou um negócio, que não é muito politicamente correto, mas

que achei muito interessante: ‘Polícia é que nem criança, quando está longe faz falta,

quando está perto incomoda’. (Risos) Acho que temos que romper esse paradigma.

Entender que temos que conviver com as nossas crianças no sentido de tentar aprender

com elas, tentar transmitir o que elas querem saber da gente. Acho que, com essa troca,

eles vão desenvolver competências e habilidades, vão desenvolver capacidades afetivas,

vão desenvolver a linguagem, a criatividade, a capacidade de raciocínio, enfim. Tantos

outros aspectos que vão ser importantes na escola. Então queria começar com o Vitor”.

Vitor Henrique Paro

“Pegando uma carona no que o Cláudio acabou de falar. A televisão é uma questão

interessante. Somos um país em que as pessoas não precisam ler. O Álvaro Vieira Pinto,

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que foi citado aqui, tem uma frase belíssima: ‘Analfabeto não é aquele que não sabe ler,

é aquele que não tem necessidade de ler’. Infelizmente, enquanto tivermos essa

mentalidade de que educação é simplesmente passar uns tantos currículos, uns tantos

programas, e não tivermos como problema sério a questão da cultura, em que ler é

proibido... Para que ler? As pessoas que lêem neste país são perseguidas. Eu, por exemplo,

que sou um leitor contumaz, não posso ler num consultório médico. Não posso ler no

aeroporto. Há sempre uma televisão me proibindo de ler. E as pessoas não se preocupam

com isso, o problema é esse. São pouquíssimas as pessoas que reclamam. E depois

dizem que as pessoas não gostam de ler. Não tem mais a revista no consultório, tem

uma desgraçada de uma televisão lhe proibindo de ler. Porque a sociedade, cada vez

mais, quer vender, vender, e não tem essa filosofia de refletir, de pensar. O problema é

que as pessoas não se ligam, não ficam indignadas diante disso. Se não houver uma

indignação com esse tipo de escola que prende uma criança por quatro horas e usa o

mesmo método de ensinar adultos de pós-graduação. Na 1ª série, no 1ª ano, no doutorado,

o método é o mesmo. Toda a contribuição da pedagogia foi para o espaço. Enquanto não

houver essa indignação não vamos ter solução. Mas podemos pensar em algumas

medidas. Parece que a melhor medida é uma conduta pedagógica. Precisamos libertar

a educação da salinha de aula. Onde ela parece que tem que estar sempre, e nem tem

estado. A relação pedagógica. Essa relação pedagógica ela tem que estar vigente na

comunicação entre professores, entre professores e diretores, entre a escola e os pais.

Na comunicação entre os alunos. O que é completamente diferente do que vejo. Em São

Paulo, por exemplo, uma secretária muito sapiente, nos governos (Mário) Covas passados,

abriu a escola no fim de semana. E teve o desplante de escrever um artigo, não sei se ela

escreveu, ela é meio analfabeta, mandou alguém escrever, em que confessava, dizia

com a maior cara-de-pau que estava abrindo a escola no fim de semana porque pesquisas

tinham demonstrado que nos lugares onde a escola era aberta, em que a família tomava

conta da escola, diminuía a violência. Ficou claro que ela não fazia isso como um direito

que as pessoas têm de consumir um equipamento público porque é delas, porque elas é

que o sustentam com impostos, porque elas são seres humanos, porque elas precisam

de diversão, de entretenimento, de cultura. Não. Ela fazia porque era uma coisa muito

esperta, ter menos quebradeira nas escolas, ter menos depredação, e assim por diante.

Não é essa a solução. A população tem o direito de consumir a educação no mais alto

nível, de consumir cultura a mais sofisticada possível. Neste livrinho, ‘Qualidade do ensino

e a contribuição dos pais’, examinei uma experiência que faz exatamente isso. Uma

escola que estava diante de uma favela, que servia todo o pessoal da favela, extremamente

pobre, mas com bastante violência na escola, drogas etc. A direção resolveu transformar

a escola. Ninguém ia à escola. Os pais não tinham tempo etc. Mas quando a escola

mudou inteira, aboliu-se completamente qualquer tentativa de reprovação escolar, isso

mudou. A escola não existe para reprovar nem aprovar. Passar de ano a gente passa no

último dia do ano porque a terra acaba de girar em torno do Sol. E não porque quer fazer

uma passagem de ano. Passagem de ano é uma festa, e todo mundo tem que passar, e

não ser reprovado. A escola existe para ensinar. A avaliação não é passar ou não passar,

a avaliação é constante, aquela que se dá a cada minuto, a cada segundo. Alias, acontece

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em todos os empreendimentos bem resolvidos e bem feitos, na sociedade inteira. A

avaliação é constante. Na fábrica de copos, de microfones, todos. Ninguém fica esperando

o fim de ano para reprovar. Avalia no momento em que está produzindo. A escola de

verdade avalia a cada segundo, e não deixa para reprovar de um segundo para o outro.

Então, quando chegamos para fazer a pesquisa na escola, você via pais, alunos,

professores entrando na sala de aula como se fossem amigos. Mas o professor não

perdia a autoridade, porque existia educação de verdade. Existia legitimidade. As classes

eram todas barulhentas. Barulhentas não, digamos sonoras. Porque as crianças

conversavam, falavam, discutiam. Estavam todas envolvidas. Os alunos eram

considerados seres humanos. Eu poderia trazer isso como uma solução. Façam grupos

de formação de pais que funciona. Não funciona, não! Lá o que funcionou foi a escola

inteira. E como decorrência, como necessidade de aproximação com os pais, ela fez

uma coisa que foi concebida durante a gestão do Paulo Freire na Secretaria de Educação

da cidade de São Paulo, que aliás precisava ser mais conhecida. Por preconceito contra

o PT, contra a (prefeita Luiza) Erundina, na época nem se falou o que foi feito em educação

em São Paulo. Depois muita coisa surgiu, ciclos etc, pelo Brasil afora, como se fosse

invenção. Como se não tivesse sido testado ali na Secretaria de Educação. Pois bem,

ela instituiu o grupo de formação de pais. Como ela recebia os pais? Como se fosse uma

festa. Tinha uma mesa enorme, era tudo gente pobre. Imagino que alguns até iam lá

porque estavam com fome. Mas não era isso que os prendia. Era o fato de que eram

tratados como seres humanos, como pessoas importantes, como donos da escola, como

aqueles para os quais a escola foi feita. E os pais iam. E tomavam o seu refrigerante, seu

suco, seu sanduíche, e participavam. Outra coisa de que não se abriu mão, conselho de

escola com participação representativa. Tomando decisão. Pais, alunos, professores

etc. É uma instituição política de gestão. Mas não basta isso. Não basta o pai ter um

representante lá. O pai precisa estar vivo, estar dentro, estar sentindo aquilo ali como

coisa dele. Não se trata de abrir escola no fim de semana. Sugiro que abram a escola

durante a semana. Porque ela vive fechada. Esses pais iam lá para fazer o quê? Para

discutir sexo, educação social, violência, Aids, um monte de aspectos que tinham

selecionado. Tive a felicidade nessa pesquisa de ir no primeiro encontro com os pais. Os

professores chamaram todos os pais, não havia muito não, a escola tinha 600 alunos,

foram 29 pais. Percentagem pequeniníssima. Mas são 29 pessoas! Você não vai conseguir

apenas com esses 29. Esses 29 vão falar para outros. No fim ela abriu outros grupos.

Mas o importante é que esses 29 mostram a cara da escola para outros pais, que também

passam a colaborar. O que ela fez? Muitos pais eram analfabetos. Ela não podia falar:

escrevam o que acham importante discutir. Peguem tesoura, peguem cola, recortem

revista para a gente discutir. E começou assim. Um processo. Funcionou, por uma série

de outros aspectos, depois podemos falar. Mas foi uma medida de fazer os pais

participarem, não uma escola de pais, que você catequeticamente vai ensinar a família,

não. Você vai chamar a família e dar oportunidade para eles falarem. Na primeira reunião,

um pai foi lá, quando terminou, a escola não tinha feito nada, só tinha ouvido. Os pais

tinham falado o tempo todo. Ele saiu falando: nossa, mas que ótimo essa reunião. Nunca

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tinha aprendido tanta coisa assim na escola. A escola não tinha falado nada. Ele tinha se

sentido sujeito. Acho que é por aí”.

Cláudio Mendonça

“Não tínhamos ainda todas as cadeiras. Então queria convidar para fazer parte da

mesa a secretária de Educação de São Gonçalo, Marina Esteves. E também a

coordenadora regional da Baixada Litorânea II, sediada em Araruama, representando então

a rede estadual, Dione Fernandes dos Santos”.

Perguntas da platéia

O chefe de reportagem do “Extra”, Eduardo Auler, ficou encarregado de selecionar

e unificar as perguntas.

“Vou sintetizar duas perguntas bem interessantes que podem ajudar nesse debate.

Acho que traduzem um pouco o sentimento de alguns professores, pelo menos os com

os quais lido durante o trabalho. “É possível construir qualquer ação educativa ignorando

a desvalorização em que se encontra o professor, o agente dessa transformação? Afinal,

educação é sacerdócio ou profissionalismo?”

Antônio Carlos – “Acho que hoje em dia a questão se alimenta e se retroalimenta. Acho

que a valorização social do professor passa pela mudança do desempenho da escola.

Só isso”.

Maria Eulina – “Acho que na história da construção da escola ela substitui a família

como educadora. Inclusive há sociólogos que reconhecem a obsolescência da família e

declaram a importância da escola como lugar de educação pública. E aí nesse processo

os professores se profissionalizam. Então eles se tornam profissionais com uma função

especializada, que é diferente da função da família. A família teria ficado com a educação

doméstica e a educação intelectual acadêmica passa a ser tarefa da escola. Bom, nessa

história toda na contabilização pelo fracasso escolar, ora o pêndulo vai para o lado os

professores e da escola, professores fracos, descomprometidos, sei lá o quê, ora vai

para família carente, negligente etc. Acho que quando o pêndulo vai para o lado da família

a gente está ameaçando o profissionalismo do professorado, do corpo docente da escola.

Acho que a valorização do professor e da professora, do profissional escolar, precisa ser

fortalecida. Voltando para o meu tema, que é o dever de casa, passar o trabalho acadêmico

para a família significa exatamente desvalorizar essa função da professora, do professor.

O essa denominação sugere? Sugere que é uma obrigação de casa. Claro, aí que vem

a lógica, se a escola fosse em tempo integral, e ela tivesse programas compensatórios

para as crianças que aprendem mais devagar, enfim, para crianças com mais dificuldade,

elas poderiam ter o seu direito de aprender assegurado pela escola. E não assegurado

pela família, que a minha defesa é essa, a família que, se você for pensar na rotina de

pais e mães que trabalham, muitas vezes longe de casa, eles acordam às 4 horas da

manhã e chegam em casa às 8 horas da noite. Não têm empregada. Por que a escola

não sugere que meninos e meninas ajudem a mãe e dividam as tarefas com os pais?

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Não, a escola pensa que tem empregada doméstica em toda casa”.

Eduardo – “Como você vê o modelo de ensino a distância influenciando na relação

escola-família?”

Maria Eulina – “Sempre vou à Inglaterra porque tenho um intercâmbio com uma

universidade lá, mas soube isso por alguém, não por experiência direta, que Tony Blair

(ex-primeiro-ministro) tinha cogitado dessa dissolução das fronteiras da educação escolar

e da educação familiar e doméstica justamente porque cada aluno tendo o seu computador

em casa, tendo acesso a tudo, pode visitar museus, pode ler o que está em todas as

bibliotecas, então esses alunos poderiam aprender em casa. Não precisariam mais

freqüentar escola. Ora, historicamente a escola aparece como uma instituição para guarda

das crianças. Não é só um lugar para as crianças obterem acesso ao conhecimento

letrado e melhores oportunidades de vida. Quando pais e mães saem para trabalhar,

quando se separa trabalho, família e educação, para onde vão as crianças? Elas ficam

na rua? Não. Então, a campanha Toda Criança na Escola a que a gente assistiu no Brasil

no fim do século 20 estava, por exemplo, acontecendo nos Estados Unidos no fim do

século 19. Toda Criança na Escola significa lugar de criança é na escola, porque elas

não têm onde ficar. Que pai e mãe estão trabalhando. Se as pessoas não precisam mais

ir para a escola e ficam aprendendo em casa através da internet, o que está acontecendo

agora? A gente está caminhando também para essa era da avaliação de massa, dos

testes. Então, a obrigatoriedade escolar poderia deixar de acontecer, porque cada criança

poderia fazer os testes padronizados que se fazem, ou todo ano, ou na 4ª série ou na 8ª

série, conseguindo seus certificados, e aprender em casa. Já tem nos Estados Unidos

um movimento assim antigo, inclusive eles já descobriram nos testes que essas crianças

se saem melhor do que as que freqüentam a escola, que é a Home Schooling. São

famílias geralmente fundamentalistas, cristãs ou libertárias. Elas se encontram nos dois

espectros políticos extremos nesse movimento de não querer que os filhos vão para a

escola, essa instituição repressora. Ou como o Vitor estava dizendo aqui, que não ensina

nada, é uma droga, uma porcaria. Então fica em casa estudando com o pai, com a mãe,

fazem clubes para não dizerem que as crianças estão isoladas e tal. E aí as crianças

fazem os testes, a obrigatoriedade escolar deixa de existir e o computador e a internet

podem contribuir para isso”.

Lucila – “Para mim a educação não tem nada a ver com cumprir regras e provas e tudo

isso. Essa formação de que falei de indivíduo que pode enfrentar o mundo com mil

possibilidade e perspectivas, sabe usar ferramentas, sabe se comunicar, sabe usar um

computador, uma televisão de forma criteriosa. Mas mais do que nada ele é um cara que

se realiza na vida. Não sei se esse significado em português deve ser igual que espanhol,

se realiza plenamente na vida. Não consigo ver alguém se realizando plenamente com

educação a distância. Mas me parece muito interessante que, por exemplo, acompanho

um grupo de fazendeiros aqui na divisa dos estados de Minas Gerais, Goiás e Bahia. Lá

no fim do mundo. Neozelandeses. Os caras decidiram que o Brasil é o paraíso do mundo

e chegaram aqui para investir, só que têm cinco crianças pequenininhas. E eles têm um

conceito de educação maravilhoso. A família e o mediador, como eles chamam o professor,

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é que vão criar as condições para essas cinco crianças. Tem pequenininha e tem 10

anos. De um aninho e 10 anos. São fascinantes as saídas e as soluções que eles

encontraram das ferramentas a distância, mas o papel fundamental continua sendo

daquela mãe, daquele grupo familiar. O grupo em torno de objetivos comuns como uma

família. O grupo que está aí no dia-a-dia que tem que construir e resolver questões, e a

decisão entre o grupo de adultos sobre para onde vão conduzir essa forma de vida, essa

forma é o processo político pedagógico deles. É fascinante ver o lugar de brincar da

criança. Eles construíram espaços onde você vê as paredes todas cheias de Shakespeare,

Beethoven, a música todo dia, de Chico Buarque, Ari Barroso, Ernesto Nazaré. São

neozelandeses, gente. Pixinguinha. Há que ter muito cuidado como equilibrar isso, mas

segue sendo um papel fundamental do pai e as pessoas que se tocam, se olham, se

gostam e se odeiam”.

Antônio Carlos – “Queria fazer só um pequeno questionamento sobre a expressão

educação a distância. Porque acho que com as novas tecnologias da comunicação e da

informação, a educação é uma relação presencial. A educação é sempre uma relação,

um vínculo educador educando. Paulo Freire sempre colocava um hífen na relação

educador-educando, e esse hífen significava a relação educador-educando e a dimensão

de educador que tem no educando, e a dimensão de educando que tem no educador.

Então, a relação verdadeiramente educativa, que se estabelece, ela é sempre presencial.

Pode ser presença física ou presença virtual. A palavra educação a distância perdeu o

sentido. Aquela educação tipo Instituto Universal Brasileiro, o material didático tinha que

viajar de ônibus, de trem. Você respondia lá, voltava para cá. Agora não. Agora possibilita

a interação. E na vida, quantas vezes sentimos a ausência de quem está perto e a

presença de quem está longe? Muitas vezes educador dentro de sala de aula está ausente.

E muitas vezes o educador a milhares de quilômetros está presente”.

Vitor Henrique – “O problema é o seguinte. Um monte de gente que não entende nada

de educação, mas entende de internet, entende de economia, de estatística, de

publicidade, então se mete a dizer que está fazendo educação. Não é educação no sentido

que tentamos trabalhar aqui. No sentido do Paulo Freire, que o Antônio Carlos acabou de

falar. Comunicação é uma coisa. Só que é muito antes da internet. Desde que o Gutenberg

inventou a imprensa já é possível fazer isso. Então não precisava escola. Há muito tempo.

Se a escola existe, é que se supõe, e se pensa em escola de massa, se supõe que ela

tenha alguma coisa diferente disso. Porque se não fecha a escola, porque se não vamos

sacramentar essa mediocridade que existe de uma escola que é presencial, mas que é

a distância, porque não faz nada no presencial. Temos que saber o que é pedagógico. Do

pedagógico como relação política. O ser humano é histórico, ao mesmo tempo social,

mas não é só social. Social uma abelha também é. As formigas também são. O ser

humano é político, só que tem um sentido muito mais amplo e abrangente de política.

Política não é apenas relação de um com o outro. Política vem do seguinte fato: o ser

humano, no sentido de produção da sua existência, ele nunca o faz sozinho. Não

produzimos nossa vida diretamente. O que fazemos diretamente hoje? Botamos a comida

na boca. O resto é tudo dependendo de outras pessoas que fizeram para a gente existir.

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De quantas pessoas? Bilhões. Que existiram hoje e que existiram há séculos. Não devo

este microfone a quem inventou o microfone. Este microfone começou a ser inventado

no momento em que o primeiro ser humano na face da terra ficou em pé, e começou a

fazer história, porque depende de tudo isso. Então, não dependo do meu semelhante, do

meu próximo. Dependo radicalmente do meu distante. No tempo e no espaço. Por isso,

tenho que conviver com o meu semelhante. O que me caracteriza como humano é o fato

de ter valores, de querer, de ter vontade, de ser sujeito. O outro também. Se só existo no

plural, tenho que conviver com outro. Ele eventualmente tem, e sempre tem, interesses,

vontades, valores que podem conflitar com os meus. Então, a produção dessa

convivência, e não apenas relação, é que é o político. O político pode ser feito de duas

formas. Posso conviver com outro subjugando, impondo a minha subjetividade sobre a

sua pela dominação. Porque chego na tua cara e falo: faça isso! Você não tem saída.

Você tem que fazer. Mas existe uma outra forma de política que, numa sociedade autoritária

como a nossa, nós esquecemos. Que é aquela dita pelo Paulo Freire. O diálogo com o

outro. Posso conviver com o outro reforçando e permitindo reforçamento da sua

subjetividade e da minha subjetividade. Isso tem um nome importantíssimo, chama-se

democracia. Também no sentido muito mais elevado do que governo do povo, eleição

etc. Que abrange tudo isso, mas é muito mais elevado. Democracia como convivência

com o outro para fortalecer subjetividades, condições de sujeito. Isso é democracia. Pois

bem, para você exercitar política no sentido democrático, você vai produzir a convivência

pela concordância do outro. Então você não pode impor, você tem que persuadir. Mas aí

é que está o problema. Persuasão é uma coisa extremamente perigosa, é muito débil,

muito fraca. Porque para convencer o outro preciso correr o risco de não convencê-lo.

Por isso que ela é fragilíssima. E corro o risco de que outro me convença do contrário.

Mas só assim pode ser um convencimento, uma persuasão, uma relação democrática.

Porque se não, não é. Se tenho certeza de que o outro vai se convencer é porque estou

impondo. Vamos nos aproximar dessas duas relações políticas e compreendê-las melhor.

A relação de dominação é imediata e efetiva. Mas é efêmera. Ela só permanece enquanto

o elemento co-ator estiver presente. Se eu cochilar você vira a arma contra mim. E você

saindo daqui vai conspirar contra mim. Por isso não existe poder, no sentido mais amplo

da palavra, que se sustente apenas pela força. Precisaria um guarda ao lado de cada

cidadão. E depois um guarda ao lado de cada guarda, porque o cidadão poderia também

convencer o guarda do contrário. A persuasão ela vai tirar o seu vigor, o seu

empoderamento, precisamente da sua fragilidade. Quando corro o risco de não convencê-

lo, lhe faço cúmplice. Quando você se convence você é duradouro. Você se convenceu.

Você se fez sujeito. Aquilo que era para eu fazer, eu estou contando com você! Tenho que

ter essa cumplicidade do outro. Aí sim a coisa fica forte. Ganho um aliado. Qualquer

semelhança dessa relação democrática com a relação pedagógica não é mera

coincidência. A relação pedagógica é precisamente isso. A relação pedagógica precisa

desse jogo de sujeito. Porque ela visa à formação de sujeitos humanos. Quando passo

para você algum elemento cultural, quando você se apropria de algum elemento cultural,

seja um conhecimento, seja um valor, seja uma crença, uma habilidade, uma arte etc,

você se apropria desse elemento cultural no duplo sentido. Ele passa a ser seu sem

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deixar de ser meu. É diferente da mercadoria que você passa para o outro e não é mais

sua. Ele se reproduz. E, segundo, ele passa a ser seu próprio como no sentido de que

ele passa a ser parte própria de você. Ele compõe a sua personalidade. É assim que se

faz educação gente, compondo personalidade. Transformando seres humanos. Quanto

mais você transforma menos ele é natural, menos ele é animal simplesmente, mais ele

é cultura, mas ele é ser humano histórico. Na medida em que você se apropria de

conhecimentos, de valores, você se transforma em sua personalidade de vida. Isso é

educação, isso tem que se fazer, seja próximo, seja longe, na resposta, na conversa,

tem que ter diálogo. Não basta ter internet, ter um monte de mecanismo. Nada contra. Se

você tem uma boa formação cultural, no primeiro momento em que você chega diante

dessas engenhocas todas você aprende sozinho. Então educação é algo um pouco

mais consistente. Só para fechar, educação é a síntese de tudo isso que falei. Acho

importante, conversando com educadores, até para levantar a sua moral e até para

responder à questão do sacerdócio, educador não é sacerdote não. A desvalorização

não é do educador. Ou, por outra, ela é do educador, mas por via da desvalorização da

educação. Se se valorizar a educação, não vai ser possível desvalorizar o educador.

Sabe a característica do educador? É aquele ser humano que é mediação para produção

da própria história, do próprio outro como detentor de uma personalidade do humano

histórico. Então essa é a diferença que queria pautar. Em qualquer profissão. Veja se

isso é possível fazer no tal ensino a distância de que se fala. Às vezes no ensino superior

até pode, porque a personalidade está formada. Mas não para formar personalidade, no

sentido educativo que estamos aplicando aqui. Qualquer profissão você pode dizer: curo

fulano, por exemplo, o médico. Mesmo que ele não queira. É objeto da minha ação. Meto-

lhe uma anestesia, arranco-lhe a vesícula. Em educação isso não existe. Dizer ‘fulano

educa sicrano’ é mera figura poética. É apenas um modo de dizer que propicio condições

para que o outro se eduque. Quem se educa, quem é o sujeito, quem é o produtor da

coisa é o outro, é o educando. E isso é extremamente belo na educação, no papel do

professor que vamos sentir a importância do professor, não como simples sacerdócio,

mas como um profissional, como alguém que conhece, alguém que se intera, que é

político ao mesmo tempo em que é democrático, no mais restrito sentido da palavra,

quando ele é um educador. Vamos sentir a sua força precisamente no momento em que

não é mais necessário. Quando propicio condições para o outro aprender, quando faço

com que o outro queira aprender, daí para a frente ele é que faz. Mas é nesse momento

que se pode perceber o quanto nada existia se não fosse o educador produzindo isso.

Porque ninguém nasce querendo, ninguém nasce com condições de se apropriar da

cultura. Nascemos zero. Quem dá essa condição, e faz essa condição de sujeito, é a

educação”.

Maria Eulina – “É só para dizer que essa relação pedagógica não se dá só na escola.

Quem se lembra aqui da sociedade sem escolas de Ivan Yllich? Acho que a escola é um

arranjo social que começou um dia desses e pode desaparecer e surgirem outros arranjos.

As professoras adoram falar mal da televisão, lá nos Estados Unidos e aqui no Brasil. O

dever de casa contra a televisão. Melhor fazer o dever de casa do que assistir televisão.

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Ora, tem muito livro ruim. E tem muito programa de televisão bom. Uma sociedade cada

vez mais educada vai poder escolher produtos cada vez mais interessantes”.

Eduardo – “Muitos professores aqui demonstraram uma preocupação sobre como lidar

com essa transformação na relação da escola e da família. Eles estão há muitos anos

nessa fórmula em que a família é excluída. Como fazer essa transformação se eles

mesmos não são capacitados para isso? Eles podem fazer sem uma capacitação, ou é

necessário que eles primeiro sejam capacitados? Alguns se sentem impotentes para

lidar com essa questão. O conceito eles entendem, mas eles não sabem como pôr em

prática”.

Lucila – “Também sempre me preocupei escutando os professores. Eles me perguntam

sempre assim: ‘Como vamos fazer esse trabalho se a gente nunca se preparou para

isso?’ Não... Há muitas saídas. Se o professor quer entrar nesse novo paradigma, deve

buscar as formas e os caminhos de se capacitar, de se preparar. De compartilhar com

outros profissionais também, como os outros fazem. Vou dar um exemplo. Naquela

realidade que mencionei hoje de Campinas, fomos descobrindo que as pessoas que

menos valorizavam, entre aspas, a função da escola e do professor eram os empreiteiros,

as empreiteiras contratadas para um monte de obras lá na região. Contratadas pela

Petrobras, nesse caso. E as empreiteiras eram quem tinha o dinheiro. Então a gente

chegava com uma proposta de um projeto para colaborar com as escolas da região, de

acordo como os professores entendiam que deveria ser feito o trabalho, eles perguntavam,

‘quem fez o projeto?’, os professores, ‘mas professores sabem fazer projeto?’ Então, a

primeira coisa que começamos a fazer foi propiciar o encontro dos empreiteiros com os

professores. Sentar, dialogar e conversar. Nos falta às vezes, me atrevo a dizer aos

professores, participar de outras instâncias de decisão coletiva nas nossas comunidades.

Porque nos sentimos excluídos. Então, por exemplo, hoje no Brasil 23 municípios, e

acho que vocês pertencem a parte desses municípios, estão envolvidos num grande

programa de modernização de tudo que tem a ver com energia neste país. Petróleo, gás,

energia. Vinte e três espaços em que três refinarias estão sendo modernizadas, quatro

construídas e uma delas, a maior do país, será aqui em Itaboraí. E São Gonçalo. Mas

seis municípios vão ter impacto direto. Niterói, Cachoeiras de Macacu e outros. É um

momento maravilhoso que todos os educadores vamos ter, para demonstrar quanto esse

profissional pode contribuir para que tudo isso que vai acontecer, que vai transformar

aqueles municípios, podem ter certeza, seja feito como critério também de cidades

educadoras, de transformação do ser humano. É o momento. É agora. Até estamos

trabalhando aqui com o Claudio, de repente uma intervenção urgente da Fesp e da

Secretaria de Educação. Então, com um projeto fantástico que apóie professores e

diretores para eles estarem preparados para discutir essas questões de planejamento

estratégico, que já não tem a ver com o aluno. Que tem a ver com o desenvolvimento da

região. Talvez neste momento, pelas circunstâncias de desenvolvimento econômico do

Brasil, o educador precisa, sim, entrar em um processo de conhecimento melhor de

como participar desses processos, para que aqueles processos em que o grande

investimento vai chegar, são bilhões de reais, não excluam a educação. Presenciei lá

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onde estamos, não havia um projeto de educação para um bilhão e meio de dólares de

investimento. E a gente conseguiu mudar a situação mobilizando os professores,

discutindo com todos, e cada um estabelecendo estratégias”.

Claudio – “O Eduardo tem uma pergunta para a Maria Cristina Leal, que ainda não se

pronunciou nesta parte da mesa-redonda. Então, a partir da Maria Cristina, abriríamos

para as considerações finais de cada um, e aí poderíamos ouvir a Dione e a Marina

Esteves, são duas pessoas que vivem o dia-a-dia da escola”.

Eduardo – “Então vamos à última pergunta. Pede que Maria Cristina fale um pouco mais

sobre essa experiência de ouvir as crianças. Nesse processo de relação com a família.

E também a opinião dela sobre a política de cotas”.

Maria Cristina – “Sobre a experiência de ouvir as crianças tenho dois relatos interessantes.

Primeiro, acho que professor tem que parar de vestir um pouco essa carapuça de que

ele é incompetente para tudo. São muitas demandas hoje em cima dele, ao mesmo

tempo ele se acha “tem que ter um curso para isso, uma capacitação”. A história do

magistério neste país e da prática, vejo às vezes, visitando escolas, tantos professores

com prática é tão ricas experiências que podem ser repassadas e coisas novas, novidades

acontecendo para resolver problema de alfabetização, de leitura etc. Então acho que

uma coisa é a gente não vestir essa carapuça da desvalorização social e da necessidade

de para tudo a gente ter curso, ter capacitação etc. É claro que há momentos em que

você lida com o novo e precisa de uma reflexão e uma orientação sobre isso. Agora, na

questão da escuta da criança, existem algumas vertentes interessantes. Uma é a questão

da escuta da criança em situações em que ela sofre violência, violência sexual, algum

tipo de violência. Então, para isso, para essa escuta, para dar até credibilidade diante das

autoridades, dos tribunais, ao que essa criança está dizendo, essa escuta tem que ser

mediada por profissionais extremamente especializados. Como são psicólogos, como

são assistentes sociais. Há pessoas que já estão preparadas para isso. Nessa experiência

que vi em Nova Iguaçu, as crianças elegiam determinados líderes, esses líderes

repassavam, mediavam para elas, o que elas estavam querendo na escola, como elas

estavam pensando a questão da direção, da eleição da direção, e certas coisas que elas

não compreendiam, elas pediam explicações sobre aquilo para depois discutir e tomar

uma atitude. Então, há uma orientação nessa escuta na escola. Havia isso na experiência

que vi em Nova Iguaçu. Agora, é claro que quem é mão, avó, quem está em sala de aula

com criança pequena sabe lidar com essa escuta e tem uma riqueza talvez de relato

interessante para se entender como se faz essa escuta da criança. Muitas vezes ela não

se faz necessariamente pela verbalização. Ela se faz por expressão, por desenhos, por

teatralização, enfim. A criança se manifesta de diversas formas. Mas as suas inquietações

ela expressa na escola. E há um relato, por exemplo, de uma história de uma criança que

chegava à escola sempre com problemas de ferimento no corpo. A professora percebeu

que aquilo não era normal. Foi-se investigar e realmente a criança sofria do padrasto

uma série de... diria até que eram torturas. Então, hoje em dia, com o ECA (Estatuto daCriança e do Adolescente), um dos agentes que existem, além da saúde, a área de

educação também tem esse, tem que ter essa abertura e sensibilização para perceber o

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que está acontecendo com aquela criança na escola. Agora, há várias formas de você

ouvir e apreender a mensagem que a criança está querendo passar. Sobre a questão

das cotas, particularmente, pelo que vi na experiência da Uerj, acho que as cotas são

necessárias para um determinado período, por um determinado momento, já que nos

estudos que existem sobre a questão se observa que os alunos negros, os alunos que

não são considerados brancos, sofrem discriminação, sim. Ao longo de sua trajetória

escolar. Isso é um fato, várias pesquisas demonstram isso, a forma de interação do

professor, o aluno branco e não branco, é diferente. Fui professora de escola pública, de

universidade pública, sou francamente favorável à escola, mas a gente tem que ver

também as dificuldades que a escola tem. Os dados demonstram isso. Estou dizendo

não é em cima de suposições minhas. Os dados demonstram isso. O que a gente observa

na Uerj é que essas pessoas dizem claramente que só tiveram a oportunidade de chegar

lá pelo sistema de cotas. Enfim, a gente tem que parar para pensar”.

Marina – “Vou me reportar a uma série de questões que são, na minha vivência, de

ordem absolutamente prática, porque gerencio um sistema educacional público, que tem

88 escolas, 58 mil alunos, num município que tem um milhão e 200 mil pessoas, que foi

amplamente atropelado pelo desenvolvimento. Na primeira vez, pelo corte da ponte Rio-

Niterói e depois pela BR-101 (trecho Niterói-Manilha). Isso tirou de São Gonçalo o ar

bucólico de primeira cidade proletária. Tanto que a primeira vila proletária está lá. A gente

está tentando até manter esse tesouro histórico. E levou um volume enorme de pessoas

para aquela comunidade. O município é grande, a afluência de pessoas foi imensa. Temos

seis mil ruas no município, das quais apenas mil e poucas com pavimentação. Então,

qualquer coisa que você faça no município acaba sendo efetivamente uma gota d’água.

O volume de crianças que está na rede pública municipal me assustou muito. Me parece

muito pequeno em relação à população. Com certeza é. O estado tem lá, se não me

engano, 102 escolas, com uma população também bastante razoável de alunos. Mas na

verdade temos um atendimento à criança que está na fase inicial da educação muito

feito por escolas de fundo de quintal. Escolas que não são reconhecidas, escolas que

não deveriam poder funcionar, obviamente. Não têm legalidade. Mas a verdade é que a

gente também não tem mão para cuidar. Segundo o Sindicato dos Estabelecimentos

Particulares de Ensino de São Gonçalo, existem 300 escolas particulares legalizadas e

600 ilegais. Essas 600 cuidam exatamente da criança pequeninha. Daquela que a mãe

não tem creche, não tem com quem deixar, vai deixar onde? Na escola. E aí é o sentido

da proteção. Mas, ao mesmo tempo, não se sabe qual educador está lidando com aquela

criança. Isso é uma visão. Só pano de fundo. A segunda questão é que, ao mesmo

tempo, o sistema público de ensino, até por uma questão de a gente não ter, de a nossa

escola não ter muita disposição para o diálogo, acho que isso é um pouco verdade, ficou

muito claro aqui entre todos os palestrantes. Ela se afastou muito, e muito fortemente,

dessa sociedade que tem esse contorno. Um município grande, pobre, com uma população

muito carente, com uma fragilidade econômica muito grande. Há até pesquisas da doutora

Simone Assis, da Fiocruz (Fundação Instituto Oswaldo Cruz) e do Claves (Centro LatinoAmericano de Estudos de Violência e Saúde), que faz pesquisa nas escolas de São

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Gonçalo desde 2002. Elas mostram que as crianças lá são muito agredidas, porque os

pais ainda acreditam que bater é uma forma de educar. Então a gente está lidando com

o mundo real, a gente precisa chamar pais, professores, diretores, técnicos

administrativos, e tentar com eles fazer um grande esforço para fazer frente a esse novo

atropelamento que vai acontecer no nosso município, que é o Comperj, o complexo

petroquímico da Petrobras no Estado do Rio de Janeiro, sem dúvida nenhuma é

desenvolvimento, é riqueza. Mas naqueles 11 municípios que compõem o Leste

Fluminense ele é de um impacto absoluto. Foi criado um consórcio de desenvolvimento

regional exatamente para poder lidar com esse impacto do complexo. E fizemos, dentre

várias câmaras técnicas que existem, há a câmara de educação, nas qual os 11 secretários

municipais de Educação tentam fazer uma política de desenvolvimento regional de

educação. Isso é dificílimo. Porque é claro que entro na discussão com um milhão e 200

mil pessoas nas minhas costas. Não estou desmerecendo de forma alguma, mas há

municípios que entram com uma população diminuta. E quando a gente fala do impacto

que o Comperj vai ter, estamos falando do impacto em cima de uma população de pelo

menos dois milhões e meio de habitantes. É uma coisa que tenho meio que brigado com

a Petrobras: vocês se portam naquela posição de ‘vou avaliar o projeto que vocês me

enviam’, vocês sociedade ou vocês sistema educacional público, mas quem discute

isso comigo? Não consegui achar a pessoa que na Petrobras diz não. Quem é essa

pessoa? Ela tem cara? E todos estamos sentindo isso. A gente vai para cima da Petrobras,

e na verdade ela acaba tendo um papel duro, mas que a gente tem que cobrar, porque ela

está entrando, sim, na nossa casa. A casa também é dela, claro. É empresa nacional. A

gente quer esse desenvolvimento. Mas é preciso que a gente sente para discutir”.

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Antônio Carlos Gomes da Costa

“Essa colocação final, queria fazer a partir de uma prática. Há três anos a gente

está desenvolvendo na Escola Rodrigues Alves, e agora na escola do Jardim Ângela,

outra de São Bernardo, em São Paulo, um programa de relação escola-família-

comunidade. Sistematizei esse programa, escrevi um livro, que já está sendo editado. O

que senti na relação escola-família-comunidade é que a escola precisa assumir a sua

essencial incompletude. Na hora em que ela assume a sua incompletude, em vez de se

enfraquecer ou de se sentir enfraquecida, se fortalece. Para assumir essa incompletude,

para reinventar a relação escola-família-comunidade, é preciso mudanças, de conteúdo,

de método, de gestão. Porque a relação escola-família-comunidade faz parte de um

estilo de gestão da escola. Finalmente, coloquei nesse livro, como epígrafe, uma frase

de um líder africano chamado Kuame Nkrumah, porque acho que essas mudanças escola-

família-comunidade não podem ser feitas com um de costas para o outro, têm que ser

feitas com diálogo, de uma forma dialógica. Nkrumah é um líder africano dos anos 60.

Ele tem uma frase que para mim sintetiza a atitude que a escola deve ter: ‘Vá ao encontro

do seu povo, ame-o, aprenda com ele, comece com aquilo que ele sabe, construa sobre

aquilo que ele tem’.”

Lucila Martinez

“Gostaria de fazer uma proposta à Fesp, um desafio, e me prontifico a ajudar. Estou

sentindo que valeria a pena bolar uma estratégia de comunicação e mobilização de longo

prazo, não campanhas pequenas, mas estratégia de comunicação e mobilização sobre

os dois conceitos básicos sobre a criança como prioridade das políticas públicas e da

educação. Adorei a atitude do Vitor no sentido sempre de defender a criança no conceito

da educação. Temos que levar isso à sociedade. Há recursos neste país, podemos ir

atrás deles, mas cabe a uma instituição tipo Fesp apresentar esse trabalho”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Fundação Escola de Serviço Público FESP RJ

Cláudio Mendonça

“Nem ia falar nesta parte final, mas, por causa da provocação da Lucila, queria

dizer o seguinte: acho que existem pequenas coisas que podem ser feitas no âmbito das

famílias que não custam absolutamente nada e que podem melhorar um pouco não o

desempenho escolar, mas a capacidade das crianças de enfrentar os desafios do dia-a-

dia. Acho que você, quando está com seu filho e vai comprar um remédio, em vez de dar

o dinheiro para o caixa, deve dar à criança e pedir para ela pagar e conferir o troco. É uma

atitude que não custa nada, custa dois ou três minutos, e a criança com certeza vai

sentir a responsabilidade, a pressão que a vida exerce sobre as pessoas, ela estará

resolvendo uma equação matemática que não está no papel, mas na vida. Acho que

você conversar com seu filho e pedir para ele contar o que está acontecendo na escola

e ele relatar os problemas afetivos que está enfrentando na escola, os problemas com

os professores, o professor de que ele gosta ou não gosta, a matéria de que ele gosta ou

não gosta. Isso é algo extremamente importante para a criança, e desenvolve a criança,

isso é extremamente importante para os pais. Acho que você contar a história da sua

vida para o seu filho é algo extremamente importante para ele lhe conhecer melhor e para

ele um dia, quando você não estiver mais aqui, e o seu neto virar para o pai e perguntar:

mas o seu pai era assim? Ele tem que ter o que dizer sobre isso. Adotei com meus

próprios filhos, estou me dando esse direito de falar, já que a Maria Eulina falou um pouco

sobre a vida dela, não ganho mais presente de Natal, nem de Dia dos Pais nem de mais

nada, só quero carta. Quero que meus filhos escrevam uma carta sobre o tema que eles

quiserem e me dêem no Natal. Coloco na árvore. Isso é muito mais valioso do que as

meias que ganhava, do que as gravatas não tão bonitas. Essas cartas eu guardo, de vez

em quando abro e leio a carta que ele escreveu há um ano, leio a carta que ele escreveu

recentemente, vejo quanto ele se desenvolveu e muitas vezes vejo coisas que estão

escritas ali que eles não me diziam. Essa carta é muito mais valiosa do que qualquer

presente, e essa carta não custa nada. Mesmo as pessoas mais pobres do mundo vão

receber um presente muito mais valioso do que aquela economia que pode ser feita

naquela casa para dar aquele presentinho para aquela mãe ou para aquele pai. Acredito

que há muitas coisas que podem ser feitas no dia-a-dia das famílias, que podem ser

sugeridas para o dia-a-dia das famílias e que efetivamente podem melhorar a forma com

que essas crianças vão enfrentar seu dia-a-dia, e não deixar o professor completamente

sozinho dentro desse processo. Agora, para mudar a escola, temos que fazer realmente

isso que a Lucila disse, um grande movimento nacional envolvendo os meios de

comunicação, a sociedade, mas não é uma campanha, é alguma coisa que envolva,

como o Vitor falou, uma ideologia no sentido pleno da palavra, as pessoas que estão

dispostas a perceber que a maior parte dos impostos brasileiros vai para a educação,

mas estamos gastando uma fortuna e não estamos recebendo nada de volta. O brasileiro

tem uma enorme carga tributária, como o francês também tem, só que o brasileiro, se

não tiver plano de saúde morre no hospital, manda o filho para a escola e ele não aprende,

não tem segurança, não tem nada. Esse imposto é um negócio que a gente dá para o

governo e não recebe absolutamente nada em troca. Por que a gente não começa

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Seminário “ A Escola e a Família”

reclamando por isso? Pelo simples fato de que sustentamos esse processo. Acredito

que seria uma forma de tentar fazer com que a educação tenha um valor superior ao do

asfalto, porque hoje não existe vereador, não existe prefeito, será que não existe ninguém

neste país que ache que a educação vale um pouco mais do que o asfalto? Porque a

educação traz o asfalto, mas o asfalto não traz a educação. Em todas as eleições a

gente percebe o discurso da educação, mas na hora é o asfalto que decide o voto. Acho

que nosso papel aqui, das pessoas que estão aqui, é tentar fazer com que haja pelo

menos um equilíbrio entre o asfalto e a escola”.

Maria Cristina Leal

“Houve recentemente um movimento dos professores por causa de uma das últimas

decisões da Prefeitura do Rio. Apareceu na internet imediatamente uma rede de resistência

à decisão. Então, os professores souberam muito bem se mobilizar e se organizar para

isso. Efetivamente hoje vai recair sobre o professor uma série de demandas e

responsabilidades e muitas vezes ele se acha sozinho e com obrigação de dar conta de

tudo. Uma experiência interessante que vi num site de Portugal, por exemplo, é que eles

levantaram, quando se fala em proteção integral à criança e ao adolescente, é preciso ter

uma rede de equipamentos sociais que as pessoas possam acionar na medida em que

vêem que ‘disso aqui não dou conta, então tenho que ir a um setor de serviço social para

levar isso, tenho que ir para a área de saúde, tenho que chamar um psicólogo’. O que a

gente não tem aqui é essa rede de equipamentos efetivamente na mão do professor,

‘posso recorrer aqui nessa minha área a esse setor’, pode ser uma publicação, pode ser

pela internet, uma rede efetivamente articulada para que o professor também tenha um

canal para dizer ‘aqui estou com um problema tal e preciso de uma ajuda’, porque ele

não tem que dar conta de tudo com capacitações, ele tem que estar articulado a uma

rede com imediata condição de acionar os equipamentos sociais necessários para que

possa resolver o problema, a demanda que chegou às mãos dele, um dos caminhos

pode ser esse”.

Vitor Henrique Paro

“Quero agradecer esta oportunidade ímpar. Espero que as pessoas saiam daqui

um pouco incomodadas, porque estou saindo incomodado, especialmente porque isso é

gostoso, a gente quer fazer muito mais, não quer parar nunca. Quando a gente toca em

temas polêmicos, a gente corre o risco não de ser mal interpretado, mas de falar muito

rapidamente as coisas ou de falar sobre coisas que normalmente se falam dando um

sentido. Mesmo você querendo dar sentido acaba provocando uma interpretação. Na

questão da televisão: não quero falar mal da televisão, ninguém está falando mal da

televisão, não se trata disso, a televisão é importantíssima, ela não tem culpa. Se a

televisão é imbecil, às vezes queremos coisas imbecis para assistir, é gostoso chegar

em casa e assistir a umas porcarias, não sou daqueles que culpam a televisão com um

discurso extremamente irracional. Em vez de ver suas deficiências, jogam em cima da

televisão. O problema da escola não é a televisão, o problema é que a escola não faz o

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seu papel, e esse a televisão faz, que é ser um mecanismo ágil, rápido. Agora, quando se

fala em educação a distância, aí tenho que dizer que esse não é um meio adequado. Mas

estou discutindo a educação, preocupado com a educação, não é culpa da televisão. Se

uns tantos imbecis colocam televisão em tudo que é lugar, restaurantes, consultório

médico ou aeroporto, não é culpa da bendita da televisão, ela está fazendo a dela, isso

significa sucesso, está fazendo bem o seu trabalho e está se difundindo, culpa dos

imbecis. Agora, não posso deixar de ficar indignado com a falta de indignação das pessoas

diante disso. As pessoas são proibidas de pensar, são proibidas de conversar num

restaurante, quando entro num restaurante e tem uma televisão, falo que não é comigo,

tchau. Ou desliga ou vou embora, porque não se pode conversar, não se podem trocar

idéias, é proibido pensar neste país.

“Outro ponto, a questão da escola. Claro que a educação não se dá apenas na

escola. Acontece que o nosso tema aqui é escola e família e estou tentando aprofundar a

reflexão sobre como a escola deve ser para ter razão de ser. Educação se faz em todo

lugar, porque acho que a escola de verdade tem que ser educativa, tem que aprofundar o

conceito de educação. Claro que de uma hora para outra podemos escolarizar a escola,

como propõe a elite, mas aí acho que existe um equívoco muito grande, não é porque a

escola está ruim que vou fechar a escola. É como se você estivesse jogando a criança

fora com a água do banho, em vez de jogar só a água jogo a criança junto, não é isso.

Claro que a escola pode deixar de existir, quero dizer o seguinte: isso seria lamentável,

isso seria extremamente nocivo, isso seria extremamente antipúblico, anticidadania, é

como que se destruíssemos um hospital, por exemplo, que foi feito para servir ao ser

humano publicamente. Desescolarizar a escola, abrir mão desse mecanismo, acho que

é um absurdo, ninguém está dizendo que as pessoas estão defendo isso aqui, mas

quero dizer que discutir um papel educativo para a escola é ser favorável à transformação

da escola.

“Uma outra coisa que é normal que façamos, crítica à escola atual, essa é a última

coisa a que queria me referir, é o fato de que, quando falamos na escola, porque o

professor é sempre o bode expiatório, porque todo mundo fala mal da escola, acha bonito

falar que o professor é o culpado, que o professor é mal informado. Você pode pegar

qualquer ministro, ‘Precisamos melhorar a educação, precisamos melhorar a qualidade

da formação dos professores’. O Anísio Teixeira, desculpem o sacrilégio. O próprio Darcy

Ribeiro pensava assim. Não estou dizendo que eles são ruins, mas é um equívoco muito

grande. Achar que a escola está ruim porque os professores são incompetentes, quando

tem tanta coisa para fazer na escola que não é feita, que nem precisa ter grande

competência técnica, basta simplesmente ter vontade política e vontade no sentido ético

de educação.

“Quero encerrar dando exemplo disso na relação da família com a escola. Vou me

basear numa experiência que tenho de pesquisa constante, os pais da escola pública,

que é escola de periferia, o pessoal fala periferia, mas periferia é 90% da população. Os

pais de escola púbica, em grande maioria, são semi-analfabetos ou expulsos da escola,

eles introjetaram, pelo tipo de escola que tiveram, que são os culpados da sua burrice,

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porque a escola sempre dizia que eles não iam para a frente porque eram incompetentes,

que eram lentos, que eram bagunceiros. Pergunte para um pai hoje, isso que o tipo de

escola aí faz, pergunte para qualquer pai das camadas populares por que não terminou o

Ensino Fundamental. Ele vai virar o dedão para ele mesmo, ‘fui culpado, também era

muito bagunceiro’. A escola conseguiu fazer com que nos sentíssemos culpados. Então,

esse pai, quando tem um filho, aí é importante, no sentido que o Antônio Carlos falou,

para mim pai não é apenas no sentido biológico, pai é aquele que decide ser educador.

Ter um filho, seja nascido dos seus genes, seja adotado, ser pai é uma das coisas mais

sérias que existem na sociedade, quem é sabe, pai e mãe. Se você tem dois filhos e

alguém elogia só um, está falando mal do outro, é uma coisa. Infelizmente, só aqueles

que passaram por isso podem saber, é diferente. Passar pela experiência da paternidade

e da maternidade é ser um ser diferente, é muito sério, é muito bom, é transformador.

Esse pai que se acha analfabeto por culpa própria tem no filho a sua segunda chance,

ele fala tudo para esse filho, que a escola é boa, que não teve condição de ser alguém,

mas que o filho terá, ele não sabe racionalizar isso, ‘você terá’ significa ‘vou mostrar ao

mundo que não sou burro, porque se fosse teria um filho burro, tenho um filho que é

inteligente, que vai ter sucesso na escola’. Essa criança vai ao primeiro dia de aula com

tudo isso, com todo o carinho dos pais, carinho às vezes de mau jeito, até com castigos

e tudo o mais, mas vai acreditando que a escola é boa. No primeiro dia de aula essa

criança deveria apenas ser abraçada, beijada e ter o seu nome falado em voz alta, mas

isso não acontece, porque o professor não tem condição, a escola não tem condição,

por uma série de razões. Ele é o que mais precisa e o que menos terá por conta de uma

perversidade, porque o professor vai dirigir um carro só, e não dois, vai privilegiar

exatamente aqueles que sabe que vão ter sucesso, aquele aluno vai ficar do lado, vai

continuar do lado e vai ser outro bagunceiro, outro lento da vida. No dia da reunião de

pais, primeira reunião de pais, os pais vão na primeira, quase sempre só na primeira.

Esse professor, que já não deu um abraço naquela criança, veja neste livro que acabei

de dar para o Eduardo, ‘Reprovação escolar: renúncia à educação’, tivemos o capricho

de ir ao primeiro dia de aula do 1° ano do Ensino Fundamental para ver como os

professores recebiam os alunos. Transcrevo no livro uma das aulas, a professora fez

uns 400 ‘psius’ só na primeira aula, mas verificamos três ou quatro aulas, o que houve de

comum em todas, todos os professores, a primeira coisa que falavam: ‘Crianças, silêncio,

aqui não é mais brincadeira, aqui é sério’, é proibido brincar na escola. Pois bem, o dia da

reunião de pais, assisto muito a reuniões de pais, faço pesquisas empíricas e vou como

privilegiado, não vou como professor que dá aula, vou como alguém que vai ver o professor

dar aula. Na reunião de pais, a primeira coisa que o pai ouve dos professores, ‘ih, tá com

tinta vermelha, vai ser reprovado, também é muito lento, o senhor precisa fazer alguma

coisa com seu filho, ele é bagunceiro, é só levar ele a um psicólogo’. Gente, isso é

criminoso, porque aquele pai desmorona, a segunda chance dele foi para o espaço, ele

pensa, ‘é hereditário mesmo’. Aquele pai, provavelmente ali fora, enquanto esperava a

maldita da reunião, que nunca começa na hora, tinha acabado de elogiar o filho para o

amigo, para o colega, outro pai, outra mãe. E o professor, na frente desse outro pai,

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dessa outra mãe, diz que o filho dele é incompetente, é bagunceiro. Pergunto: para aqueles

que reclamam, que jogam a culpa nas más condições de trabalho, no mau pagamento

dos professores, isso é verdade, os professores têm que ganhar muito mais, mas não

resolve. O professor que usa isso como desculpa para não fazer a coisa certa, aí é muito

sério, o professor que diz ‘faço pouco porque ganho pouco’ não merece o que ganha.

Mas não estou culpando o professor. Aquela menina que fez 400 ‘psius’, que reprovou

um aluno no primeiro dia de aula, ele foi reprovado mesmo, acompanhei o processo até

o fim do ano, ela conseguiu reprovar o aluno antes de ele entrar, aquela menina não fez

isso por mal, os professores não fazem isso porque são maus, não existem culpados,

as condições levam a isso, precisamos ter consciência de que isso está errado. Aquela

menina, que fui conhecer depois mais a fundo, era uma pessoa meiga, carinhosa com

crianças fora da escola, é que a escola tem esse carma desgraçado de perpetuar

autoritarismo, falta de cidadania e de subjetividade, precisamos quebrar isso, mas como?

Por onde começar? No ovo ou na galinha? Aqui (aponta para si), no próprio educador,

política pública nenhuma vai fazer nada se o professor não quiser. A criança só aprende

se quiser, o professor só ensina se quiser, então é preciso dar condições para ele querer.

Só para analisar esse problema, imagine se aquela criança tivesse recebido aquele abraço

no primeiro dia e chegado em casa e falado que gostava da professora. Imagine se em

vez de dar aquele pito a professora tivesse abraçado a criança, é tão gostoso abraçar as

pessoas, mas a escola não ensina isso, está preocupada em ensinar geografia, como

se geografia fosse mais importante do que um abraço, do que um afeto. Se ela abraçasse

a mãe, elogiasse o filho, falasse de alguma coisa importante dele, depois sim, ‘olha fulana,

fulaninho é legal, mas precisa ter um pouco mais de acompanhamento em casa, vamos

fazer o seguinte...’ Aí começa a educação dos pais, não custa nada mais, você não vai

ganhar um centavo a mais por isso, mas também não vai perder nenhum centavo, um

abraço não custa um centavo, você não perde nada, basta abraçar. Pergunto: o problema

da educação brasileira é que os professores são mal formados? Os professores do

Brasil não sabem dar um abraço numa criança? Será que não sabem? É preciso ter

uma técnica de abraçar? Ou será que não fazem isso porque não têm essa consciência,

não perpassa na escola essa ideologia de uma educação de verdade?

“Vou deixar para vocês uma frase de um grande carioca, sou fã dele, me educou

desde quando eu era criança lá no interior de São Paulo, chegava a revista ‘O Cruzeiro’,

com o ‘Pif-Paf’, era revista velha, porque eu era pobre, mas lia Millôr Fernandes, um dos

maiores pensadores deste país. Ele tem uma frase que tem tudo a ver com o que estamos

falando, que é sobre a ternura, essa ternura que não é baboseira dos “quem ama educa”,

ternura de fazer o outro sujeito, aquilo de fazer o outro cúmplice. Vejam a frase do Millôr

Fernandes, que faz parte da peça ‘É’. Não é exatamente desse jeito, mas é mais ou

menos assim: ‘A ternura, mesmo quando simulada, tende a produzir ternura verdadeira

no outro, e a fazer verdadeira a ternura que se simulou’. Pensem nisso como relação

escolar, como relação de paz, não se vai gastar um centavo, mas se pode mudar a vida

e a própria educação”.

Eduardo Auler – “Queria agradecer a presença de todos. Acredito que a gente tenha

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dado um grande passo hoje no sentido de transformar essas discussões sobre a educação

num fórum de que o ‘Extra’ possa participar. Acho isso extremamente importante, isso foi

uma idéia que, quando o Claudio nos ofereceu, cheguei a duvidar que pudesse ser

realizada. Vocês não sabem a luta que foi e a importância desse projeto dentro do ‘Extra’,

um jornal que espera que a educação seja tratada como prioridade, é uma das nossas

bandeiras. E o que vocês fizeram hoje nos assistindo, nos acompanhando, passando o

dia conosco, foi realmente um grande passo e me deixa realmente muito satisfeito, me

faz acreditar que a gente possa nos encontrar novamente, discutindo outros aspectos da

educação. É por isso que termino aqui sugerindo uma salva de palmas para vocês, que

passaram o dia aqui com a gente”.

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1. A família como base de tudo“A família enquanto núcleo básico da sociedade e ambiente natural para o

crescimento e o bem-estar de todos os seus membros, em particular das crianças e dos

jovens, deve ser ajudada e protegida a fim que possa assumir plenamente as suas

responsabilidades dentro da comunidade”. (Resolução 2.542 da Assembléia Geral da

ONU).

A partir dos anos 70, o mundo assistiu a uma verdadeira irrupção da pessoa humana

no Direito Internacional. Esse fenômeno, em muitos paises, refletiu–se positivamente

sobre a legislação, as políticas públicas e as maneiras de entender e agir em relação ao

atendimento às necessidades e respeito aos direitos de importantes segmentos da

população.

O mecanismo propulsor dessa tendência foi a celebração, pela Organização das

Nações Unidas, de uma série de anos internacionais, cada um deles contemplando a

reflexão, o debate, a mobilização e as intervenções efetivas na situação de um determinado

grupo social.

Assim, a criação do Ano Internacional da Mulher, da Criança, do Deficiente e da

Juventude continua expandindo sua influência positiva, tanto no plano da normativa

internacional como em grande número de legislações, políticas e programas nacionais.

Em 1994, foi celebrado o Ano internacional da Família. Um dos eventos preparativos para

sua realização aconteceu em Curitiba – II Conferência Mundial e I Encontro Nacional

Preparatório ao Ano Internacional da Família, de 21 a 26 de novembro de 1992 – promovido

pela UIOF (União Internacional de Organizações Familiares). Essa iniciativa propiciou

que órgãos de governo, entidades não-governamentais e pessoas com interesses e

atuação nesse campo, vindas de todo o país, pudessem se encontrar, discutir e assumir

uma posição conjunta em relação à situação da política familiar no Brasil.

Pode-se afirmar que a celebração de um ano internacional dedicado a este tema

configurou-se, para todos os que se preocupam com a questão da família, na tão ansiada

Trabalhos dos Palestrantes

O PAPEL DA ESCOLA E DA FAMÍLIA NO PROCESSO DEEDUCAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO

Anatônio carlos Gomes da Costa

“A educação é direito de todos e dever do Estado e será dada no lar e na escola”Anísio Teixeira”

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

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oportunidade histórica de colocar este tema na ordem do dia da política social brasileira.

A problematização em escala mundial da realidade familiar parece ser a síntese de

toda a dinâmica evolutiva do “processo de irrupção da pessoa humana no Direito

Internacional”, referido no início deste estudo.

Isso ocorre porque situações como as da mulher, da criança, do jovem, do deficiente

e do idoso encontram seu estuário natural na família.

Em termos de mobilização, o evento abriu uma grande oportunidade para pessoas,

grupos e organizações que atuam nos mais diversos campos do trabalho social e

educativo se articularem para um debate maduro sobre a trajetória, a estrutura, o

funcionamento, os desafios e as perspectivas da política social brasileira neste início do

século 21.

Encarada do ponto de vista da política de atendimento, promoção e defesa dos

direitos da criança e do adolescente no município, a questão da família assume uma

dimensão de atualidade e urgência que não se pode deixar de levar em conta, sob pena

de não se criarem as condições de implementar as medidas de proteção previstas no

Estatuto da Criança e do Adolescente.

A Constituição federal, as constituições estaduais a grande maioria das leis

orgânicas municipais e também o citado Estatuto estabelecem que o atendimento, com

absoluta prioridade, aos direitos da criança e do adolescente constitui um dever da família,

da sociedade e do Estado.

O artigo 227 da Constituição federal, aliás, antes de elencar os direitos da população

infanto-juvenil, declara que eles fazem parte dos deveres das gerações adultas.

Outro ponto importante da legislação brasileira é reconhecer à criança e ao

adolescente o “direito à convivência familiar e comunitária”, considerando que o respeito

pela sua integridade passa pela manutenção dos seus vínculos com o continente afetivo

da família e com os elos socioculturais com a sua comunidade de origem.

Um amplo conjunto de dispositivos, visando a garantir a prevalência da família como

a forma mais básica e natural de atenção à infância e à adolescência perpassa toda a

nossa legislação, assumindo maior densidade, coerência e sistematização no Estatuto.

Um de seus principais avanços é representado pela separação dos casos sociais –

encaminhados aos Conselheiros Tutelares – daqueles que envolvem conflito de natureza

jurídica, estes, sim, matéria de decisão judicial.

De fato, uma das grandes falhas do antigo Código de Menores foi agrupar sob o

mesmo rótulo de “menores em situação irregular” crianças e adolescentes (I) desprovidos

de meios para satisfação de suas necessidades básicas (carentes); (II) privados de

qualquer tipo de assistência familiar (abandonados); e (III) em conflito com a lei em razão

do cometimento de delito (infratores). A conseqüência prática desse amalgamento dos

casos puramente sociais com aqueles que envolvem conflito de natureza jurídica foi

transformar os juizados de menores no desaguadouro dos problemas sociais do

município, forçando-os a assumir, além da sua natural função judicante, o papel de

simulacro de órgão de assistência social.

Assim, a Justiça de Menores tornou-se o tribunal em que se julgava e se decidia a

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situação das crianças e adolescentes que se achavam em situação irregular por “manifesta

incapacidade dos pais para mantê-los”, ou seja, por pobreza pura e simples.

Tal mecanismo colaborou de maneira decisiva no surgimento e na consolidação,

entre nós, da mentalidade de que as crianças e adolescentes em situação de risco pessoal

e social, mais do que um problema das políticas sociais do município, são “um problema

do juiz” e dos órgãos estaduais criados para servir-lhes de retaguarda, ou seja, as Febems

(Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor).

Esse argumento permitiu que, durante quase todo o século passado, os dirigentes

municipais pudessem abster-se de assumir maiores compromissos ou responsabilidades

em relação ao chamado “problema do menor”.

É curioso observar que, no Brasil, um simples olhar sobre a rede dos programas e

ações em favor da criança e do adolescente em situação de risco e/ou em estado de

necessidade evidencia a pouca importância que tanto o governo como as entidades não-

governamentais têm dado à questão da família, como alicerce de qualquer ação realmente

preventiva. Tudo se passa, entre nós, como se a primeira linha de defesa da criança e do

adolescente em circunstâncias difíceis fosse a ação dos programas socioeducativos

ligados a esses grupos.

Chega a ser impressionante o fato de que grandes articulações da sociedade, como

o amplo movimento social em favor das crianças e dos adolescentes que fazem das

ruas seu espaço de luta pela vida e até mesmo de moradia, passam ao largo da questão

da família. É como se a possibilidade de abordar o problema por esse ângulo constituísse,

na verdade, um retrocesso em relação à estratégia político-social para esses grupos.

Este constitui um problema cujo enfrentamento extrapola os objetivos do presente

trabalho. É seu propósito, no entanto, debruçar-se sobre a matéria em outro momento,

com o intuito de elucidar as motivações mais profundas dessa elisão da família nas

ações de atenção direta e de mobilização social a favor das crianças e jovens em situação

de risco pessoal e social, não só no Brasil como também em outros países do Terceiro

Mundo.

A omissão e falta de experiência nesse domínio são tão grandes que, até hoje, não

se definiu, em termos mínimos, o que é ou o que deve ser um programa de orientação e

apoio sociofamiliar. Pouco se sabe sobre qual a estrutura e o funcionamento dos

programas de atendimento organizados para operar esse tipo de regime de atenção à

família, que é a primeira das grandes linhas de defesa do Estatuto, quando se trata da

proteção dos direitos da criança e do adolescente.

O documento “Informe sobre a Situação Social no Mundo”, do Departamento de

Assuntos Econômicos e Sociais Internacionais da ONU, dedica seu primeiro capítulo à

questão da família, enfatizando o impacto causado sobre a estrutura familiar pelas grandes

mutações que o mundo conheceu no fim do século 20:

“Em muitas regiões do mundo, a família, como unidade fundamental da sociedade e como ponto

de apoio, socialização e atenção para seus membros, sofreu uma notável transformação estrutural

na última geração. Criou-se, assim, uma grande inquietude quanto à capacidade da família de

cumprir suas finalidades em relação a seus membros e à sociedade em geral. Em conseqüência,

reconheceu-se que as organizações governamentais e outras instituições sociais devem ajustar

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suas políticas e serviços para adequá-los a essa situação.”

É no marco dessa percepção que se pretende inserir o processo de implantação

do Estatuto, de maneira geral e, com uma especial ênfase e prioridade, os serviços de

orientação e apoio sociofamiliar como um novo tipo de resposta jurídica e social às grandes

mudanças econômicas, políticas e culturais, no seu impacto sobre a criança, o adolescente

e a família.

Depois de procurar conhecer o que existe, no Brasil, em termos de programas de

apoio à família; de ouvir pessoas e organizações com experiência conhecida e reconhecida

nesse campo; de tomar contato com as tendências da comunidade internacional a respeito

dessa importante questão, foi possível perceber que uma estratégia de atenção à família

no município deve apoiar-se em quatro tipos básicos de ação: (I) promoção; (II) formação;

(III) orientação; (IV) proteção.

Esses são os caminhos pelos quais se pode fortalecer a estrutura familiar e, por

meio desse fortalecimento, garantir às crianças e adolescentes o direito a um continente

afetivo e à segurança material tão necessários ao seu normal desenvolvimento como

seres humanos e como cidadãos.

Muito se pode fazer para promover a família no município, a partir do conhecimento

e do reconhecimento de sua importância e da magnitude e profundidade das mudanças

pelas quais o Brasil e o mundo vêm passando nestes tempos de tantos riscos e

oportunidades. As ações nesse campo devem partir do reconhecimento de que:

As novas tendências em política social reconhecem que a família e a comunidade

exercem papel fundamental na melhoria das condições de bem-estar e de dignidade da

população como um todo e, particularmente, de seus segmentos mais vulneráveis;

O surgimento de novas formas de família, como resultante da integração de uma

multiplicidade de fatores sobre a vida quotidiana da população, deve gerar, por parte da

sociedade e do Estado, novos esforços no sentido de compreender e ajudar, evitando-se

a criação de barreiras, tanto no plano da convivência social como no do acesso a bens e

serviços;

A institucionalização de crianças, de adolescentes, de pessoas idosas e deficientes

é um mal a ser evitado e, para isso, é necessário fortalecer as famílias, não só por meio

de mecanismos socioeconômicos de apoio, mas por meio de ajuda humana para o

enfrentamento de dificuldades e desafios;

Valores como a manutenção da solidariedade familiar entre as gerações devem

ser incentivados e fortalecidos, por intermédio do concurso de todos os membros da

família, em face de fenômenos como a urbanização, a industrialização e a grande

mobilidade da população ativa;

A importância do papel da mulher, assim como da luta contra qualquer forma de

discriminação no interior ou no exterior da vida familiar, tanto no que se refere à mulher

como mãe, como trabalhadora, como mulher ou como cidadã. Devem-se levar

especialmente em conta, nesse processo, as crianças e adolescentes do sexo feminino,

freqüentemente desconsideradas em seus direitos e necessidades, principalmente nas

periferias urbanas e áreas rurais pauperizadas.

Culminando esse pequeno elenco de pontos fundamentais a serem considerados,

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apresenta-se como fator de suma importância a manutenção do vínculo familiar, garantindo

que nenhuma criança seja separada de seus pais por motivo de pobreza (artigo 23 do

ECA) e que a adoção e a institucionalização sejam usadas apenas como recursos

extremos, quando já não couber, realmente, nenhuma opção.

Com base nesses pontos, pode e deve o município desenvolver uma política de

promoção da família, envolvendo os diversos segmentos das políticas sociais públicas e

os movimentos e entidades da sociedade: entidades de atendimento e defesa de direitos;

clubes de serviço; sociedades de pediatria; igrejas; sindicatos e organizações

empresariais; seções locais da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil); meios de

comunicação social e, com especial ênfase, os professores, técnicos e diretores de

escola.

Esses grupos devem atuar conjuntamente, podendo estabelecer uma pauta comum

de ação, em que cada segmento assume uma parte das responsabilidades e das tarefas,

com vistas a desenvolver um amplo trabalho de valorização da vida familiar, de reflexão

sobre os problemas da família, de divulgação da legislação e das ações das políticas e

programas existentes no país sobre essa matéria. A criação, no município, de um processo

de mobilização social nesse sentido permite aumentar o nível de informação a respeito

desse tema e, principalmente, despertar valores e suscitar atitudes novas em relação a

essa dimensão fundamental da vida humana.

Encontros, seminários, publicações de artigos, entrevistas impressas ou

transmitidas pelo radio e televisão são meios e modos de se colocar a questão da família

na ordem do dia na vida dos municípios e na agenda de suas iniciativas em favor da

melhoria da conveniência humana e da qualidade de vida de seus cidadãos.

2. A formação para a vida familiar

Há muitas coisas que os pais de família precisam saber, que os jovens – que amanhã

serão pais – necessitam conhecer, e que não são suficientes ou adequadamente

transmitidas nem pelas escolas, nem pelos meios de comunicação social. Em termos

de formação para a vida familiar, há uma verdadeira pedagogia social a ser construída a

partir do município.

Para isso, é importante que o Conselho Municipal de Direitos crie uma comissão

especial apenas para cuidar das questões que dizem respeito à estruturação da política

de orientação e apoio sociofamiliar em âmbito local.

Essa comissão deve manter o seu caráter partidário e envolver pessoas e

organizações que possam ajudar nesse processo de educação não-formal, visando a

elevar o nível de conhecimento e difundir novos valores, hábitos, atitudes e habilidades

em relação a problemas que os novos tempos introduziram na pauta de educação familiar.

Questões como o diálogo e a qualidade de convivência entre as gerações; a

educação sexual; os direitos das crianças e dos adolescentes; a preparação dos jovens

para o mundo do trabalho; a gravidez precoce; o uso de drogas; a violência familiar; as

relações da família com a escola; o impacto dos meios de comunicação social sobre a

família e tantos outros temas precisa e deve ser assimilado no âmbito da educação

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familiar.

É importante, porém, que esses temas não sejam tratados de modo estreito,

envolvendo apenas certos grupos, e não o conjunto da sociedade; as famílias da periferia

urbana e os empobrecidos das áreas rurais devem ser os destinatários privilegiados

desse tipo de esforço, que não deve, naturalmente, limitar-se apenas a eles.

A produção de cartilhas, folhetos e pequenos manuais pode ajudar muito nesse

tipo de trabalho. Vídeos, filmes e slides que, depois de exibidos, possam ser objetos de

reflexão e debate são outro tipo de instrumento com que se pode contar nesse tipo de

esforço coletivo.

Os recursos humanos para essas tarefas sempre existem no próprio município ou

em outros municípios da vizinhança. São médicos, professores, advogados e pessoas

que, mesmo sem ter formação acadêmica superior, por sua experiência de vida, sua

trajetória, seus trabalhos e suas lutas adquiriram conhecimentos que devem e merecem

ser socializados mais amplamente na vida da comunidade. É muito importante que as

pessoas mais simples participem desse processo como agentes, como sujeitos

conscientes, e não como massa de manobra, meros objetos ou “pacientes” da ação dos

grupos com mais estudo e melhor condição econômica.

As organizações comunitárias, as associações de pais e mestres, as igrejas, os

clubes de serviços, os sindicatos e outras organizações existentes no município podem

servir de espaço de realização, de difusores e mesmo de agentes dessa capacitação.

Por meio da educação não-formal, é possível elevar o nível de conhecimento e a capacidade

das famílias no sentido de enfrentar e resolver, de forma mais satisfatória, os graves

problemas com que hoje se defrontam.

3. Orientação e proteção às famílias

Diferentemente das atividades de promoção e formação, que não requerem uma

estrutura especializada, ou seja, um mecanismo institucional diferenciado, para serem

postas em prática, a orientação e proteção sociofamiliar já requer, para ser implementada,

a estruturação de um serviço próprio:

a) O desenvolvimento de atitudes favoráveis ao normal desenvolvimento pessoal e

social das crianças e adolescentes;

b) A melhoria do desempenho da família em suas relações com a comunidade da

qual faz parte e com o contexto institucional relacionado com suas necessidades e

direitos;

c) O desenvolvimento da capacidade de tomar e implementar decisões em questões

que dizem respeito à situação presente e futura do grupo familiar;

Como se vê, trata-se, basicamente, de um trabalho socioeducativo no sentido de

prevenir ou enfrentar as tensões e conflitos que afetam a vida familiar, nos planos das

relações interpessoais, no seu seio e também no âmbito das relações da família com o

contexto comunitário e socioinstitucional mais amplo.

• Por intermédio desse tipo de serviço, é possível trabalhar problemas como:

• A violência (abuso, negligência e maltrato) contra a criança, o adolescente e a

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mulher na família;

• Os cuidados com os deficientes físicos e mentais;

• A prevenção e o manejo da gravidez precoce;

• Adolescentes em conflito com a lei;

Crianças e adolescentes envolvidos em uso e tráfico de drogas, assim como na

prostituição;

Enfim, todas as situações capazes de colocar em risco a integridade física,

psicológica ou moral das crianças e adolescentes.

Como se pode ver, os serviços de Orientação e Apoio Sociofamiliar deverão prestar

assistência de natureza bastante ampla, tendo como finalidade geral o fortalecimento

das famílias em dificuldade, de modo a evitar a sua desagregação, especialmente nos

municípios de grande e médio porte. Nesses locais, os mecanismos informais de ajuda

têm sua eficiência reduzida pela tendência à massificação e ao anonimato no que se

refere às relações das políticas públicas com os seus destinatários.

É sempre importante observar que, em seus desdobramentos, os problemas

característicos da área assistida pelos serviços de orientação e apoio sociofamiliar

implicam, para os profissionais que neles atuam, uma relação muito estreita com os

setores de saúde, educação, desenvolvimento comunitário e assistência jurídica no

município.

O desenvolvimento dessa linha de serviços pode ter, para as crianças e adolescentes

em situação de risco pessoal e social, alguns impactos da maior relevância:

a) A redução da venda e do tráfico de crianças, assim como das adoções (nacionais

e internacionais), como resultado da melhoria das condições de manutenção do

vínculo familiar;

b) A diminuição da institucionalização compulsória, seja de crianças abandonadas

e deficientes, seja de adolescentes em conflito com a lei;

c) A melhoria das condições de permanência no lar daquelas crianças e

adolescentes que se vêem forçados a sair de casa, em razão da violência dos pais

ou responsáveis entre si e/ou contra seus filhos e dependentes;

d) O aumento da capacidade da família no sentido de buscar ajuda social e jurídica

e fazer valer os seus direitos, quando estes se vêem ameaçados ou transgredidos.

Para tanto, serão usados os mecanismos existentes na Constituição, nas leis e

nas organizações governamentais e não-governamentais de atendimento, promoção

e defesa da criança, do adolescente e da família.

Outra possibilidade é que o Serviço de Orientação e Apoio Sociofamiliar venha a

assumir um importante papel educativo em questões relacionadas com a planificação

familiar e com a melhoria da situação da mulher, desde que seus membros sejam

capacitados, técnica e politicamente, para o exercício desse tipo de atividade em relação

às famílias em situação de especial dificuldade.

Conforme já vimos, os anos Internacionais da Mulher e da Criança foram muito

celebrados e tiveram muita repercussão no Brasil, nos campos do movimento social, do

debate e elaboração legislativa e das políticas públicas. O mesmo, porém, não ocorreu

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com o Ano Internacional da Família, cuja passagem foi marcada por poucos eventos e

quase que nenhum resultado prático em termos de mudanças no panorama legal ou de

ações concretas por parte do governo e da sociedade.

A razão principal desse desinteresse – tanto do movimento social, como dos órgãos

governamentais – por um tema de tanta importância parece bastante óbvia: o Brasil não

tem uma política de família. Alguém poderia dizer que não é bem assim e elencar, tiradas

daqui e dali, um amontoado disforme de referências legais e de programas e ações de

governo relativos ao tema. Contudo, o exame mais detido desse material nos levaria,

rapidamente, à conclusão de que o que não existe, na verdade, é uma visão estratégica

dessa questão, nem no governo nem na sociedade.

De fato, a nossa tradição político-social é abordar de per si cada uma das faces do

poliedro familiar, como se uma não tivesse nada a ver com a outra. Assim, questões

como a da criança, do adolescente, do jovem, da mulher, do deficiente e do idoso são

abordadas de modo fragmentado, como se fosse possível enfrentá-las e resolvê-las em

si mesmas, desvinculadas de um todo mais amplo.

Basta analisar a estrutura e o funcionamento do ramo social do Estado brasileiro –

em nível nacional, estadual e municipal – para constatar a justeza dessa afirmação. A

adoção de tal atitude se deu no sentido de que, com enorme freqüência, a intervenção do

Estado no atendimento aos segmentos econômica e socialmente mais vulneráveis da

população costuma ter como preço a destruição do vínculo familiar, seja pelas adoções

imotivadas, seja pela institucionalização desnecessária de crianças, adolescentes, jovens

em dificuldade, deficientes e idosos.

Por que persistimos, ao longo de tantas décadas, na manutenção de uma política

tão claramente equivocada? Por que optamos e, em muitos casos ainda continuamos a

optar por políticas tão caras, ineficientes, ineficazes, desumanas e degradantes?

Isso ocorre, ao que parece, porque as famílias mais pobres, e especialmente

aquelas que a essa condição somam uma constituição diversa do modelo convencional

instituído, sempre foram encaradas como parte do problema, jamais como parte da

solução. Fosse qual fosse a questão abordada, a solução tendia sempre a passar pela

ruptura do vínculo familiar, por transferência do pátrio poder, no caso das crianças, e por

formas diversificadas de institucionalização, nos demais casos.

A cega e brutal rejeição ao Estatuto da Criança e do Adolescente, as resistências

do Congresso Nacional a aprovar um projeto de lei antimanicomial, as dificuldades na

aprovação da renda mínima revelam um traço perverso de nossa cultura político-social:

a resistência velada, mas firme e persistente, de dotar de recursos e de poder de escolha

as famílias dos pobres mais pobres.

Tal atitude explica, por exemplo, a nossa preferência nacional por cestas básicas e

tíquetes do leite, em vez de renda mínima. Nossas elites não conseguem abrir mão de

uma de suas taras históricas, que é a necessidade compulsiva de que os pobres venham,

periodicamente, num rito de degradação e submissão, comer na mão do Estado.

Não me sai da memória o tom jocoso e, por trás dele, a constatação autogratificante

com que certas pessoas das classes média e alta comentavam as notícias de que alguns

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pobres estavam usando o tíquete do leite para comprar cigarro ou cachaça, ou, em outra

situação, usando os tíquetes para pagar uma ida ao motel.

Essas manifestações, mais do que uma evidência de distorção de caráter, devem

ser vistas e entendidas sob outra ótica: a ótica da tutela como traço emblemático das

relações Estado-sociedade no Brasil. Esse é um traço que vem de longe, que germina

no fundo mais fundo da formação social do nosso povo.

Ao contrário do que aconteceu na América do Norte, aqui não foi a sociedade que

gerou a esfera pública. Ao contrário, foi a esfera pública que gerou a sociedade. O governo

chega, implanta-se e, depois, ao redor das instituições públicas, vai surgindo uma

freguesia, uma vila, uma cidade, ou seja, a sociedade. Uma sociedade que, desde a sua

mais remota origem, aprendeu a depender e a colocar-se sob a tutela do Estado.

A tutela é, portanto, uma boa categoria para se compreender a evolução histórica

das relações Estado-sociedade no Brasil. Não é exagero nenhum afirmar que, ao longo

dos quase 500 anos da instauração do processo histórico que resultou no que somos

hoje, essa relação desenvolveu-se, basicamente, sob o signo da tutela.

Essa não é uma categoria, como podem pensar alguns desavisados, restrita às

questões relativas à população infanto-juvenil. Muito pelo contrário: além das crianças e

adolescentes, ela abrange ou abrangeu, historicamente, o nosso padrão de relacionamento

com as mulheres, os índios, os negros, os trabalhadores, por meio do peleguismo, e,

para surpresa de muitos, nosso próprio empresariado, que, por muito tempo, expandiu-

se à base de anabolizantes estatais como incentivos, financiamentos, cartórios e reservas

de mercado. Tudo isso, hoje, se afigura como uma espécie de “cesta básica” dos ricos,

que, à sua maneira, também aprenderam a “comer na mão do Estado”.

O grande jurista argentino Raul Eugênio Safaroni, em elucidativa palestra proferida

recentemente em Mendoza, mostrou-nos, claramente, que a relação tutelar, longe de ser

um fenômeno limitado a certas situações, é um conceito abrangente, capaz de dar conta

da explicação de traços fundamentais da cultura política e social latino-americana.

Há sinais, contudo, de que esse padrão começa a sofrer alterações significativas.

As relações Estado-sociedade, desde o fim do populismo dos anos 60 e das duas décadas

de regime autoritário, vêm assumindo uma outra configuração. A nossa pobreza política

histórica começa a ser superada em várias áreas, criando-se condições subjetivas inéditas

para a ruptura com velhas maneiras de entender e agir no espaço da vida pública.

A legislação social decorrente das conquistas introduzidas na Constituição de 1988,

apesar de equívocos como o regime jurídico único do funcionalismo público, que,

literalmente, engessou o ramo social do Estado, apresenta avanços importantes em

conteúdo, método e gestão.

Em conteúdo, pela ampliação do espectro de conquistas, acertando o passo do

Brasil com a comunidade internacional em termos de direitos individuais (civis e políticos)

e direitos coletivos (econômicos, sociais e culturais).

Em termos de método, as inovações consistiram na superação, pelo menos em

nível da legislação, dos modelos assistencialistas e controlistas de intervenção, em favor

do tratamento dos destinatários das políticas públicas como cidadãos, detentores de

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Fundação Escola de Serviço Público FESP RJ

direitos exigíveis com base na lei, e não mais meros portadores de necessidades.

Em termos de gestão, introduziu-se, por intermédio da descentralização, uma nova

divisão de trabalho social entre a União, os estados e os municípios. E, por meio da

participação, um novo padrão de relacionamento entre o estado e a sociedade na

formulação e no controle das políticas públicas.

É no interior desse novo contexto que a questão da família começa a se revestir de

um novo significado. Não é difícil, hoje, constatar a sua emergência no debate político-

social. Em saúde, fala-se em médico da família. Na educação, fala-se da participação

efetiva dos pais na vida das escolas. Em assistência, fala-se da renda familiar mínima.

Tudo isso nos mostra, de maneira muito clara, que a família deverá tender, nos próximos

anos, a ocupar um lugar de destaque na agenda social brasileira.

Uma linha de programas inovadores começa a se esboçar nessa área. Porém,

ainda falta muito para que tenhamos, no Brasil, um conjunto articulado de ações

governamentais e não-governamentais, nos níveis da União, dos estados e dos

municípios, que possa, sem vacilações e nem meios-termos, ser chamado de uma política

de família.

Para que isso ocorra, é preciso articular num desenho coerente:

a) Ações de promoção da família, melhorando sua posição na agenda das diversas

políticas públicas setoriais;

b) Ações de educação das novas gerações para a vida familiar, por meio de

programas de educação formal e não-formal;

c) Ações de orientação e apoio sociofamiliar, provendo ajuda material e não-material

(humana) às famílias em situação de dificuldade;

d) Proteção dos membros mais vulneráveis da família em termos de negligência,

abuso e violência no seio das relações familiares, por meio de programas de

proteção especial voltados para a criança, o adolescente, a mulher, o deficiente e o

idoso.

É possível crer que, na reta final do século 20, o Brasil começou a descobrir o

óbvio, ou seja, que não se pode fazer política social com P maiúsculo olhando a família

pelo espelho retrovisor e pensando assim: “A família fracassou, agora é a nossa vez”.

Teremos que aprender a trabalhar vendo a família, mesmo as mais frágeis, como parte

potencial da solução, e não somente como parte do problema.

Certa vez, visitando uma fundação brasileira e tomando contato com o excelente

trabalho que ali se desenvolve em favor do adolescente, a consultora americana Marilyn

Ferguson foi convidada a fazer uma apreciação crítica acerca do trabalho que tinha diante

dos olhos.

A consultora não vacilou e, após tecer muitos elogios a tudo que ali se fazia,

mencionou sua perplexidade e estranheza diante do fato de a fundação não realizar um

trabalho sólido na área da família.

Mas interessante, mesmo, foi a sua justificativa para tal atitude. Ela argumentou da

seguinte forma: “Quando estamos no avião, a comissária sempre diz assim: ‘Em caso

de despressurização da cabine, máscaras de oxigênio cairão à sua frente. Se você estiver

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Seminário “ A Escola e a Família”

acompanhado de criança, coloque primeiro a máscara em si e, depois, na criança’. Ou

seja, a ajuda deve ser dada primeiro ao adulto, para que ele possa, em seguida, ajudar a

criança.”

É triste ter de constatar que, em razão dos descaminhos já mencionados, nossa

política social, desde a criação, na década de 30, da Casa do Pequeno Jornaleiro, vem

fazendo exatamente o contrário, ou seja, procurando – por meio dos chamados programas

de geração de renda – ajudar as crianças para as crianças ajudarem a família.

Há, contudo, muitos sinais que nos autorizam a olhar sem medo para o futuro.

Tudo indica que estamos começando a entrar no caminho certo, embora muito ainda

precise ser feito.

4. A escola

“O que você vai ser quando crescer?” Segundo Agnes Heller, só é possível fazer

esta pergunta a todas as crianças e adolescentes no interior de uma nação se seus

governantes foram capazes de cumprir o mandato que, desde o século 18, com o advento

do Iluminismo e das revoluções liberais, tornou-se o compromisso básico de qualquer

sociedade que pretenda estender a todos os seus habitantes a condição de cidadãos:

educação pública, universal, laica, gratuita e obrigatória de toda a população infanto-

juvenil.

De fato, em todas as etapas anteriores do processo civilizatório, a mobilidade social

foi um fenômeno individual e raro. A regra sempre foi um indivíduo nascer, crescer, gerar

seus descendentes e ir-se deste mundo, exercendo a mesma atividade de seus pais ao

longo da vida, e, no tempo certo, passando-a para seus filhos. Filho de camponês era

camponês, filho de artesão era artesão, filho de criado doméstico era criado doméstico e

filho de nobre era nobre. O destino das pessoas estava pronto e selado desde o

nascimento.

Indagar de uma criança ou adolescente o que ela pretende fazer de sua vida quando

crescer, quanto tornar-se adulta, tornou-se uma pergunta factível e inteligível para todos

os pais e todos os filhos somente naqueles países que, ao longo dos séculos 19 e 20,

foram capazes de assegurar à sua população infanto-juvenil o acesso universal a uma

educação de qualidade.

Infelizmente, ultrapassados mais de 500 anos de evolução histórica, o Brasil ainda

não foi capaz de assegurar a todas as suas crianças o direito de ser criança (brincar,

estudar, conviver com a sua família e com a sua comunidade) e a todos os seus

adolescentes o direito de olhar o futuro sem medo, por saber que está sendo preparado

para ele.

Em Jomtien, Tailândia, teve lugar o mais importante evento sobre educação do fim

de século e de milênio: a Conferência Mundial Sobre Educação Para Todos. Foram mais

de 1.500 delegados, representando 155 países, que, durante uma semana, debateram

sobre a satisfação das necessidades básicas de aprendizagem num mundo em acelerado

processo de mudanças econômicas, tecnológicas, sociais, políticas e culturais.

O produto desse esforço coletivo, convocado pelo Pnud, o Banco Mundial, a Unesco

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e o Unicef, foram: (I) a Declaração Mundial Sobre Educação Para Todos; e (II) o Plano de

Ação Para Satisfazer as Necessidades Básicas de Aprendizagem. O primeiro, uma

convocação aos governos, aos organismos internacionais, às organizações sociais e

aos indivíduos, no sentido de assumir um novo e mais efetivo compromisso ético e político

com a meta de assegurar uma educação básica de qualidade para todas as crianças,

adolescentes, jovens e adultos. O segundo traça os caminhos e define as estratégias

para a consecução dessa ambiciosa meta.

A grande novidade, que pode ser entendida como a principal lição de Jomtien, foi a

constatação de que, se quisermos educação de qualidade para todos, teremos de ter

todos pela qualidade da educação. As conseqüências práticas da opção por esse caminho

são claras e definitivas. A educação já não pode continuar a ser tratada do modo setorial

e corporativo como foi até aqui. Falando mais claro, a educação, como serviço, é um

assunto de especialistas; a educação como direito deve ser preocupação e

responsabilidade da sociedade como um todo.

De fato, já não é possível deixar essa questão apenas nas mãos das três

comunidades, que, tradicionalmente, se ocuparam do tema e o monopolizaram: (I) a

comunidade que opera o sistema de ensino (professores, funcionários, técnicos e

diretores); (II) a comunidade que decide o cotidiano e os rumos da política educacional

(secretários municipais e estaduais, dirigentes da rede, reitores, o ministro e demais

dirigentes nacionais); e (III) a comunidade que estuda a educação nas universidades e

centros de pesquisa.

Como, no entanto, acabar com mais esse monopólio? O caminho parece bastante

simples. A solução está em um esforço sistemático para (I) gerar um novo debate

educacional, envolvendo empresários, sindicalistas, pais, alunos, formadores de opinião,

jornalistas, publicitários, artistas e outros líderes públicos, privados, religiosos e

comunitários; (II) propiciar a emergência de uma nova liderança, ou seja, pessoas

conhecidas e reconhecidas pela sua capacidade de influir construtivamente nos rumos

da política educacional; e (III) suscitar novas formas de cooperação entre os diversos

segmentos da sociedade e do Estado, no sentido de contribuir para a ampliação e melhoria

das oportunidades educacionais postas à disposição do nosso povo.

Para a consecução desses objetivos, é necessário atuar em três níveis: (I) nível

macropolítico, representado pelas grandes decisões acerca da reformatação do sistema

de ensino em sua inteireza e complexidade; (II) o nível micropolítico, abrangendo as

relações da escola com seu entorno familiar e comunitário e com o poder público em

nível local; e (III) o nível molecular, ou seja, a sala de aula em sua interação dinâmica com

o contexto escolar mais amplo. Se as mudanças não atingem esse terceiro patamar,

todo esforço despendido em outras instâncias resultará desprovido de utilidade e de

sentido.

As radicais mudanças de paradigma desse fim de século já não nos permitem

seguir encarando a educação somente como direito social de cidadania e dever do Estado,

ou apenas como investimento produtivo em capital humano. A educação, hoje, transcende

os marcos da política social e da política econômica, incluindo e ultrapassando seus

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Seminário “ A Escola e a Família”

limites, para afirmar-se como uma política estratégica para a consecução dos grandes

objetivos nacionais em termos de desenvolvimento econômico, social e político.

De fato, se o Brasil quiser perseguir a médio prazo, de modo sério, articulado e

conseqüente, os objetivos de (I) inserir-se competitivamente numa economia internacional

em acelerado processo de globalização; (II) erradicar as desigualdades sociais intoleráveis;

e (III) elevar os níveis de respeito aos direitos humanos e de participação democrática da

população, teremos de começar pela escola. O primeiro passo é garantir uma educação

básica de qualidade para o conjunto de nossa população infanto-juvenil. Não há outro

caminho para a superação do atraso, da privação, da ignorância e da violência no cotidiano

social. Os tigres asiáticos são o exemplo vivo do quanto a educação pode fazer nos

campos da transformação produtiva e da eqüidade social.

A aceleração do processo de construção de uma escola fundamental e de um

ensino médio de qualidade passa, sem dúvida alguma, pela mobilização dos diversos

segmentos da sociedade em torno dessa meta. Vamos, pois, construir todos juntos a

escola necessária, entendida como (I) a escola que o Brasil necessita para desenvolver-

se econômica, social e politicamente; (II) a escola que, para as famílias e as comunidades,

seja realmente alguma coisa pela qual valha a pena trabalhar e lutar; e, acima de tudo,

(III) a escola que seja, para cada uma de nossas crianças, uma base para o sucesso na

sala de aula e na vida.

O caminho para a consecução deste objetivo é a ética da co-responsabilidade

entre as políticas públicas, o mundo empresarial e o terceiro setor. Só através de alianças

sociais estratégicas entre esses três atores o Brasil poderá enfrentar e vencer seus

imensos desafios no campo educacional.

Dados recentemente divulgados pelo Inep/MEC demonstram que a repetência no

Ensino Fundamental está, ainda, muito elevada; o mesmo ocorre com a evasão.

Avançamos no plano quantitativo, elevando dramaticamente o número de matrículas. No

plano da qualidade do ensino, porém, ainda estamos em débito com as nossas crianças,

adolescentes e jovens. Os compromissos assumidos pelo Brasil em Jomtien (1990) e

reiterados em Dacar (2000) estão ainda muito longe de ser cumpridos.

O compromisso da Aliança é atuar junto à rede escolar de forma alternativa,

buscando envolvê-la, comprometê-la e melhorá-la como parte fundamental e indispensável

de qualquer esforço no campo da educação para o desenvolvimento. Nesse contexto,

trabalhar em paralelo ou de costas para a escola, além de um equívoco técnico, é um

grave erro ético e político.

5. Relação família-escola

Os programas que desenvolvem ações complementares à escola visam a

assegurar o ingresso, o regresso, a permanência e o sucesso da criança e do adolescente

na escola. Sem a realização desse objetivo – através de reforço e de atividades lúdicas,

recreativas, esportivas e culturais – o seu objetivo principal não estaria sendo atingido.

Na realidade, porém, o que ocorre no Brasil é que grande parte dos programas que

desenvolvem atividades com crianças e adolescentes pobres no horário oposto ao da

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escola, atuam, freqüentemente, de costas para a escola e olhando a família pelo espelho

retrovisor.

Atuar de costas para a escola é desenvolver suas atividades de forma paralela, ou

mesmo de forma concorrente com a escola, ou seja, considerando que a escola já

fracassou em relação a essas crianças ou adolescentes e que, agora, é a sua vez de

atuar.

Por outro lado, ver a família pelo retrovisor é considerar, igualmente, que a família já

fracassou ou está fracassando, e que a obrigação do programa social é ajudar cada

criança de per si, procurando neutralizar ou contrabalançar a influência maléfica de seu

entorno familiar.

A regra quase geral é que esses programas, em vez de ajudar a família para a

família ajudar a criança, procuram ajudar a criança para a criança ter condições de ajudar

a família. Esse caminho quase sempre leva ao envolvimento precoce da criança em

atividades informais de geração de renda, ou seja, ao trabalho precoce.

O mais lamentável é que tudo isso ocorre em nome das alternativas comunitárias

de atendimento a esse segmento da população infanto-juvenil. Freqüentemente,

financiadores nacionais e internacionais incentivam essa via, em nome de um

pragmatismo no combate à miséria, desprovido de qualquer horizonte social ou

pedagógico.

Por trás dessas práticas, não podemos deixar de visualizar as duas lógicas

tradicionais que sempre justificaram, no Brasil, o trabalho social e educativo dirigido às

crianças e adolescentes em situação de exclusão econômica e social:

a) A lógica do assistencialismo equivocado: ajudar a criança para a criança ajudar

a família, à qual já nos referimos;

b) A lógica da prevenção do delito juvenil, ou seja, “cabeça de pobre ocioso é oficina

do capeta”. E tome trabalho, geração de renda e responsabilidades precoces na

manutenção da família.

No interior dessa mentalidade tremendamente arraigada em nossa cultura, o trabalho

infantil deixa de ser visto como problema e passa a ser visto como solução. Assim, a

escola e a família são deslocadas para a periferia do cenário do atendimento a essas

crianças e adolescentes.

A participação dos pais nos mecanismos de co-gestão da escola é um aspecto

que merece toda atenção. Trata-se de um processo de maturação lento e difícil. Afinal,

não se muda uma cultura organizacional, sedimentada ao longo de séculos, de um dia

para outro. Entretanto, João Batista Araújo e Oliveira afirma que: “Os pais de alunos

atribuem aos professores uma importância que eles nem supõem. Por isso, é fundamental

abrir a escola à sociedade. Os pais têm de obrigar a escola a ensinar.”

A elaboração desse nível de participação depende, fundamentalmente, do grau de

consciência e de engajamento dos pais na busca de ampliação da participação dos

cidadãos na formulação e controle das ações do poder público diretamente dirigidas a

suas famílias.

Para esclarecer melhor esse quadro, vamos apresentar um esquema compreensivo

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da tipologia das relações escola-família-comunidade, que nos poderá ser útil.

Inicialmente, é preciso admitir que não existem absolutos nessa relação, ou seja,

não existe nenhuma escola totalmente integrada com a família e a comunidade, como

não existe também nenhuma escola totalmente (des)integrada da família e da comunidade.

Em termos de escola pública, são situações que podem ser concebidas apenas

mentalmente. Não fazem parte do mundo real.

Na realidade, não existem os extremos da integração e da (des)integração totais.

Existe um conjunto de situações intermediárias que podem assumir as mais diversas

configurações, em termos de natureza e de grau. Sem pretender, nem de longe, esgotar

essas possibilidades, vamos elencar algumas delas:

Tipo 1: Relação Burocrático-FormalOs pais matriculam seus filhos, pedem transferência, são chamados para receber

reclamações ou convocados para alguma atividade regimental. As autoridades locais,

vez por outra, são convidadas a participar de alguma cerimônia, em ocasiões especiais.

Tipo 2: Relação de Natureza TutelarOs pais são vistos pela escola como uma extensão dos seus filhos, isto é, também

como educandos. São alvo, por parte da escola, de um trabalho constante de informação,

esclarecimento, motivação, orientação, de modo a se tornarem mais cooperativos no

processo de educação escolar de seus filhos.

Tipo 3: Relação Pragmático-UtilitáriaA escola vê na comunidade e nas famílias fontes de bens e serviços destinados a

suprir suas deficiências e necessidades. Pais e líderes comunitários são envolvidos em

mutirões, campanhas e promoções de todo tipo, visando a melhorar as condições de

funcionamento da escola.

Tipo 4: Relação Plenamente ParticipativaOs pais são chamados a compartilhar decisões e responsabilidades com os

educadores da equipe escolar, atuando de maneira cooperativa no encaminhamento de

soluções para os problemas levantados.

O Programa Aliança luta por uma relação família-escola e comunidade

verdadeiramente democrática e participativa, que tenha com base os artigos 12, 13 e 14

da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional:

Art. 12. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do

seu sistema de ensino, terão a incumbência de:

I - elaborar e executar sua proposta pedagógica;

II - administrar seu pessoal e seus recursos materiais e financeiros;

III - assegurar o cumprimento dos dias letivos e horas-aula estabelecidas;

IV - velar pelo cumprimento do plano de trabalho de cada docente;

V - prover meios para a recuperação dos alunos de menor rendimento;

VI - articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração

da sociedade com a escola;

VII - informar os pais e responsáveis sobre a freqüência e o rendimento dos alunos,

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bem como sobre a execução de sua proposta pedagógica.

VIII - notificar ao Conselho Tutelar do Município, ao juiz competente da Comarca e

ao respectivo representante do Ministério Público a relação dos alunos que apresentem

quantidade de faltas acima de 50% do percentual permitido em lei (Inciso incluído pela Lei

nº 10.287, de 20/9/2001)

Art. 13. Os docentes incumbir-se-ão de:

I - participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino;

II - elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do

estabelecimento de ensino;

III - zelar pela aprendizagem dos alunos;

IV - estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento;

V - ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar,

integralmente, dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento

profissional;

VI - colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a

comunidade.

Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do

ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme

os seguintes princípios:

I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico

da escola;

II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou

equivalentes.

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1. Questões iniciais: problematizando as políticas de integração família-escola

Em que contexto e em que medida o sucesso escolar depende ou deveria depender

da contribuição da família? Que formas de contribuição ou investimento familiar são

desejáveis e viáveis? Quem define essas formas de contribuição: escola, família, ou

ambas, caso a caso, a partir do diálogo? Que formas de contribuição familiar/parental

costumam ser prescritas pela escola? Que formas de investimento na educação dos

filhos são praticadas pelas famílias, considerando-se seus diversos arranjos, condições

socioeconômicas e culturais? Quais os limites específicos da escola e da família como

instituições educativas? Quais os desafios da escola para implementar eficazmente a

parceria escola-família? Quais as dificuldades da família para exercer essa parceria a

contento?

Desde a década de 1990, nas Américas, a parceria escola-família deixou de ser

uma questão tácita, uma prática informal de certas famílias/pais e escolas/gestores/

professores (particularmente escolas privadas), para se tornar objeto de política pública,

mais precisamente, da política educacional em prol do sucesso escolar (CARVALHO,

1998; PROJETO NORDESTE, 1997; NATIONAL EDUCATION GOALS PANEL, 1995).

Lê-se na apresentação deste seminário: “A família [usuária das escolas públicas] encontra-

se esquecida, precisando seu papel ser valorizado devido à importância estratégica que

tem na educação infanto-juvenil”.

Com efeito, a participação dos pais na escola vem sendo enfocada como solução

para a produtividade e elevação da qualidade escolar, e para a melhoria do desempenho

acadêmico dos estudantes (PARO, 2000), particularmente dos grupos em desvantagem

social. Tal participação se dá em dois lugares e momentos: na escola, nas reuniões de

pais e mestres, nas festividades e, especialmente, nos conselhos escolares, através de

representantes, na tomada de decisão e gestão compartilhadas e na avaliação escolar,

inclusive na avaliação docente; e em casa, no cotidiano doméstico, através do

acompanhamento escolar, que inclui o apoio cotidiano à aprendizagem das crianças via

Trabalhos dos Palestrantes

POLÍTICAS DE PARCERIA ESCOLA-FAMÍLIA:IMPLICAÇÕES E DESAFIOS

Maria Eulina Pessoa de Carvalho

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

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Fundação Escola de Serviço Público FESP RJ

dever de casa (CARVALHO, 2001). Nessa direção, o Ministério da Educação o Dia Nacional

da Família na Escola e publicou a cartilha “Educar é uma tarefa de todos nós: um guia

para a família participar, no dia-a-dia, da educação de nossas crianças” (BRASIL, 2002).

O movimento da política educacional em direção à família como lugar de educação

e sustentação da escola encontra simpatia de todos os lados, tanto de grupos

conservadores quanto de educadores mais à esquerda, que propõem a capacitação dos

pais como uma estratégia de reforma educacional a partir das bases e de empoderamento

das famílias em situação de desvantagem social. Todavia, é importante distinguir entre o

envolvimento dos pais na escola como prática individual desejável e a estratégia política

ou incentivo formal visando a promover essa prática onde ela se encontra ausente, a fim

de melhorar os resultados escolares de modo indireto.

De tão naturalizado, o aspecto menos discutido dessa política é o dever de casa,

de fato, o principal meio de interação escola-família. Esse dispositivo pedagógico torna o

lar uma extensão da sala de aula, servindo para avaliar também a educação familiar e o

desempenho parental, ao compor a avaliação do aluno. Ora, a participação na gestão

escolar é obviamente inviável para todos os pais e a promoção de oportunidades

diversificadas de participação indireta (por meio de consultas, por exemplo) necessitaria

de grande investimento dos profissionais da escola. Já o acompanhamento escolar em

casa é requerido de todos os pais ou responsáveis, na suposição de que todos desejam

e podem efetivá-lo, embora tampouco seja viável para todos.

Na minha prática de formadora e pesquisadora, tenho ouvido durante décadas as

queixas das professoras das escolas públicas sobre a “falta de cooperação dos pais”,

quando se referem aos problemas corriqueiros de indisciplina e dificuldades de

aprendizagem. É como se a educação familiar determinasse o comportamento dos alunos

na escola e sua capacidade de aprender. Por sua vez, os alunos que não fazem o dever

de casa são descritos como bagunceiros; desinteressados; não gostam de estudar;

com deficiências de aprendizagem; têm pais ausentes, analfabetos; não têm ajuda em

casa (CARVALHO & BURITY, 2006).

Tradicionalmente, a escola tem contado com a educação familiar de duas maneiras:

implicitamente construindo a aprendizagem acadêmica com base no capital cultural

herdado pelo aluno (BOURDIEU, 1977, 1986; BOURDIEU & PASSERON, 1975), ou seja,

na afinidade entre o currículo escolar e a cultura familiar; e enviando dever de casa,

portanto, capitalizando explicitamente o tempo e os recursos materiais dos pais ou

responsáveis (CARVALHO, 2001) – no caso brasileiro, compensando a jornada escolar

de curta duração, portanto, insuficiente.

Por conseguinte, o sucesso escolar resulta, em parte, da contribuição direta ou da

ação compensatória da família, visando a superar insuficiências escolares ou deficiências

dos estudantes, geralmente por meio da dedicação da mãe, que assume o papel de

professora-auxiliar dos filhos, ou da contratação de professoras de reforço escolar ou

explicadoras. Evidencia-se, assim, a influência de fatores como classe (renda familiar) e

gênero (disponibilidade materna) na configuração da contribuição familiar ao sucesso

escolar.

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Seminário “ A Escola e a Família”

A problemática das relações escola-família é complexa. Para pensar suas

configurações atuais e possibilidades é preciso considerar a evolução da família e a

mudança nos ritmos do trabalho e da organização da vida cotidiana, paralelamente às

questões escolares e curriculares.

Assim, este seminário é muito oportuno ao abordar a integração escola–família,

objetivando delinear concretamente: (1) ações, procedimentos, rotinas e atitudes escolares

e familiares que promovam o sucesso escolar das crianças e jovens; (2) programas e

estratégias governamentais e da sociedade que mobilizem as famílias pelo sucesso

escolar de seus filhos e promovam maior integração com a escola. Antes, porém, de

propor programas, ações e estratégias de integração família-escola, é pertinente apontar

algumas complicações e implicações da proposta de parceria escola-família e refletir

sobre seus desafios, a partir de uma compreensão da história da evolução dessas

instituições, o que farei a seguir.

Nesta exposição, vou desenvolver dois argumentos polêmicos:

1. O incentivo à participação dos pais na escola, sobretudo via dever de casa,tende a aumentar as desigualdades de resultados educacionais, porque asfamílias têm condições materiais e culturais desiguais, e o dever de casaimpacta direta ou indiretamente a aferição do aproveitamento escolar, isto é,as notas dos estudantes. Para promover a eqüidade educacional (a igualdadeem meio às diferenças), em vez de contar com a contribuição familiar, a escoladeveria descontar a contribuição familiar, maximizando a aprendizagem queocorre no tempo e espaço da sala de aula, e compensando as desigualdadesdos alunos, quanto às condições para aprender, por meio de programas dereforço oferecidos na escola.

2. O dever de casa, como estratégia de envolvimento e contribuição da famíliana aprendizagem do currículo escolar, constitui violência simbólica, em algunscasos, porque impõe a cultura acadêmica ao lar, regulando a vida doméstico-privada, prescrevendo papéis parentais, segundo um modelo de família evalores das camadas médias e dominantes. A política educacional (que não serestringe à escola) deveria respeitar a autonomia da família e a liberdade dospais quanto à escolha do currículo doméstico ou de currículos alternativos aocurrículo escolar.

Esses argumentos se baseiam nos conceitos de capital cultural e violênciasimbólica e na teoria da reprodução social através da reprodução cultural de Pierre

Bourdieu, e apontam a preocupação com a eqüidade e a diversidade cultural.

Resumidamente, segundo essa teoria, o fracasso escolar atinge aqueles estudantes

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que não adquiriram, na socialização familiar, o capital cultural valorizado pela escola e

passível de troca pelo capital escolar (representado pelo diploma). O capital cultural é

corporificado no habitus, ou sistema de disposições psicossomáticas (BOURDIEU &

PASSERON, 1975; BOURDIEU, 1986, 1977) que propiciam assumir com facilidade o

ofício de estudante (PERRENOUD, 1995).

Minha preocupação é apontar os efeitos perversos de políticas públicas e práticas

escolares bem-intencionadas que, ao desconsiderar diferenças de classe e gênero e

tentar enquadrar todos no padrão dominante ou num padrão que se quer promover,

consolidam benefícios para uma suposta maioria, subordinando certas famílias e excluindo

indivíduos e grupos em situação de desvantagem ou vulnerabilidade das promessas da

escola.

Pode-se lembrar que o dever de casa é também uma janela através da qual ospais podem acompanhar a aprendizagem de seus filhos e filhas e tambémfiscalizar a qualidade do ensino e o desempenho docente (CARVALHO, 1997,2001). Há muito o sociólogo Willard Waller (1965) definiu pais e professorescomo “inimigos naturais”, os primeiros preocupados/as com as necessidadese características individuais de seus filhos, os segundos comprometidos com oatendimento da turma e os interesses da instituição escolar. Essa perspectivamostra quão delicada e potencialmente conflituosa é a relação escola-família.

2. O percurso histórico: do modelo de delegação ao modelo de parceria

2.1. Modos de educação e relações de gênero

Historicamente, educar não é atribuição exclusiva das mães e pais biológicos, da

família, ou da escola. Os modos de educação das novas gerações, isto é, o cuidado dos

pequenos, a transmissão da cultura do seu grupo social e a preparação para os papéis

adultos têm sido assumidos por vários indivíduos, grupos e instituições: pais, idosos,

professores, famílias extensas, clãs, tribo, vizinhança, comunidade, corporações de

ofícios, igrejas, escolas, mediante uma variedade de arranjos, informais e formais, e

conforme a fase da vida do aprendiz.

Antigamente, educar significava criar crianças, restringindo-se aos cuidados físicos,

um trabalho engendrado conforme a divisão sexual do trabalho na sociedade patriarcal

(trabalho reprodutivo das mulheres e trabalho produtivo e intelectual dos homens). Antes

do surgimento da escola, como um lugar separado e uma instituição especializada de

instrução, as crianças e jovens se educavam pela convivência e participação na família,

no trabalho e na comunidade; a educação era uma tarefa comunitária, informal e imersa

na vida prática. A educação formal, letrada, reservada às elites, dava-se inicialmente em

casa, com mestres residentes, e posteriormente em colégios internos.

Portanto, as maneiras de transmitir valores, sentimentos, disposições,

conhecimentos e habilidades socialmente valorizados (o currículo) têm variado em relação

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a organização e práticas (onde, quando, como, por quanto tempo), conteúdos (quais os

saberes que devem se tornar hábitos, habilidades, matérias escolares), agências e

agentes encarregados (quem é responsável pela organização e ensino) e sujeitos-alvo

(de acordo com categorias de idade, sexo, classe e etnia). Pessoas pobres, do sexo

feminino, negras e indígenas foram, por muito tempo, excluídas da escola ou tiveram

acesso a escolas e currículos diferenciados (e desvalorizados).

A escolarização tornou-se o modo de educação predominante nas sociedades

modernas, democráticas, a partir da escolarização compulsória em fins do século XIX,

com uma organização específica: currículo seriado, sistema de avaliação, níveis, diplomas,

professores e outros profissionais especializados. Todavia, o sistema escolar moderno

ainda reproduz a divisão de sexo e gênero no trabalho educacional, com a feminização

do magistério infantil e das séries iniciais do Ensino Fundamental.

2.2. Relações família-escola e classe social

Nas sociedades urbano-industriais-capitalistas, a educação, a família e o trabalho

se diferenciaram e especializaram. A transformação do modo de produção econômica,

com a transferência da produção e controle econômico do domicílio para as fábricas e

os mercados, acarretou drásticas mudanças na vida familiar e no modo de educação,

com a organização do sistema escolar, com seu corpo de profissionais. A família extensa,

incluindo parentes e agregados, transformou-se em família nuclear, restrita a pai, mãe,

filhos/as, perdendo parte de suas funções reprodutivas, econômicas e educacionais.

Conforme a tendência secular moderna de diferenciação social-funcional e burocratização,

instituições especializadas de trabalho e educação surgiram fora da família, que perdeu

controle sobre a produção econômica e sobre a educação, passando a se relacionar

com organizações especializadas que lhe forneciam bens e serviços que ela não mais

produzia (ABERCROMBIE et al., 1994; BIDWELL, 1991). Com o advento da escola, a

educação, que antes significava cuidado físico, atenção, nutrição, se expandiu de modo

a incluir hábitos intelectuais.

Nesse contexto, a constituição da escola moderna está relacionada à emergência

da burguesia e das classes médias, que passaram a buscar a educação formal como

sinal de distinção, identificando-se com a aristocracia ou elites e distanciando-se das

classes baixas. As famílias burguesas não podiam sustentar professores particulares

residentes e criaram as escolas-internatos, que proviam educação coletiva aos filhos de

várias famílias num local público, tal como se deu nos séculos XVI e XVII na Inglaterra

(BIDWELL, 1991), onde até hoje public school se refere ao que chamamos escola privada,

e não a escola do Estado (state school). Nos Estados Unidos da América, a escola

nasce com a denominação common school, isto é, escola comum, compartilhada, de

uso geral, em contraste com a escola particular, de uso restrito.

Assim, com a separação da vida pública e privada, a educação pública distingue-

se da educação doméstica, encarregando-se da reprodução da cultura letrada

(dominante), dos valores sociopolíticos e da qualificação para o trabalho. Gradualmente,

à medida que as famílias se nuclearizaram e se isolaram, e pais e mães passaram a

trabalhar fora de casa, num movimento que reduzia suas funções reprodutivas

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socioculturais, a escolarização cresceu como um modo sistemático e especializado de

educação e tornou-se o contexto central do desenvolvimento individual e coletivo das

crianças e jovens, assumindo também funções psicossociais (assistenciais) adicionais.

A instituição de um sistema estatal de escolaridade compulsória, de massa, a partir

do fim do século XIX no mundo ocidental, representou o triunfo da influência formativa

das instâncias públicas sobre as privadas na vida social e no desenvolvimento individual,

o reconhecimento da obsolescência da família como educadora, de sua inadequação

para cuidar e treinar as crianças na sociedade moderna (TYACK, 1976). Na sociologia,

Durkheim também apontou a superioridade da escola sobre a família na função de

socialização para a vida moderna (BIDWELL, 1991). E, de fato, tanto de uma perspectiva

macro quanto micro, o advento da escola de massas representou uma solução para a

reprodução social e educação individual na nova ordem urbano-industrial, substituindo a

família e a comunidade. Concretamente, a provisão escolar atendeu às necessidades de

guarda, cuidado, instrução e liberação das crianças, constituindo tanto uma solução para

o lazer dos privilegiados quanto para a exploração dos numerosos pobres, à medida que

o trabalho infantil era erradicado, o ingresso dos jovens no mercado de trabalho era

crescentemente adiado e o trabalho das mães afastava-as de casa.

A bandeira da educação para todos — em fins do século XIX nos países ricos, em

fins do século XX nos países pobres — convida os excluídos a participar do projeto

democrático pelo acesso ao conhecimento como condição para participação política,

produtividade, empregabilidade e usufruto pessoal. A contrapartida da escolarização

compulsória era a ideologia da educação como panacéia social, combinando progresso

socioeconômico e mobilidade social ascendente, prometendo acesso ao mercado de

trabalho e à cidadania, correspondendo às aspirações das classes baixas, trabalhadoras,

urbanas, a uma vida digna. Assim, a escola pública (compulsória) materializava um novo

contrato social, oferecendo um terreno (supostamente neutro) para a aquisição de um

conhecimento comum, secular, não-familiar, que apagaria as distinções culturais e sociais

de origem (família, classe social, etnia, religião), consolidando a nova ordem democrática.

A universalização da escola básica, onde ela aconteceu, significou democratização

(limitada) da cultura formal, mas também uniformização cultural; democratização no nível

inferior da escolaridade e seletividade (baseada em sexo, etnia e classe) no nível superior;

meritocracia como justificativa para a seleção e mobilidade social ascendente limitada a

códigos culturais específicos. Depois de um século de escola para todos, mesmo nos

países ricos, o sucesso escolar não acontece para todos e a escolarização bem-sucedida

não eliminou a desigualdade social.

Portanto, grosso modo, há duas histórias da educação relacionadas à classe social

e às relações família-escola (CARVALHO, 1997, 2001). Uma história é a da criação do

valor da escola como distinção cultural: a escola como extensão da família da burguesia

e das classes médias, materializada entre nós, sobretudo, no modelo da escola privada.

É, portanto uma história de continuidade cultural família?escola, de investimentos

familiares na preparação dos jovens para competir por diplomas e bons empregos,

eventualmente de escolha e pagamento pelo serviço educacional (privado) — sem

desconhecer que a escola também funcionou historicamente para segmentos da classe

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trabalhadora, que dela se beneficiaram, e que por meio dela lograram mobilidade social

ascendente.

A outra história (sobretudo da escola pública) é de aculturação escola?família via

imposição do modo de educação escolar a uma classe ou a certos grupos sociais

“carentes”, em situação de desvantagem social, gerando fracasso escolar e,

posteriormente, políticas compensatórias (a exemplo do Bolsa-Família). Diante da

descontinuidade cultural entre família e escola, a família torna-se extensão da escola,

portanto, objeto de política educacional, de programas especiais (inclusive de educação

de pais), sendo ora responsabilizada pelo fracasso escolar, ora incentivada a investir no

sucesso escolar dos filhos e filhas (CARVALHO, 2004b).

2.3. Relações família–escola: delegação ou parceria?

Lembremos que a escola surge como um modo de educação não-familiar. No início

da escolarização compulsória, as relações escola-família fundavam-se no modelo de

delegação: os pais delegavam a tarefa de educar ao Estado/escola/professor. Cabia à

família garantir a freqüência do filho em boas condições físicas e psíquicas para aprender.

Cabia à escola a tarefa específica de ensinar o currículo acadêmico, num contexto em

que muitos pais e mães tinham pouca ou nenhuma escolaridade. Nesse modelo, as

tarefas educativas da família e da escola são bem separadas e distintas.

Lembremos, também, que a história da construção da escola pública é de luta pelo

acesso e sucesso escolar. Nesse contexto, o pêndulo da responsabilização ou

culpabilização pelo fracasso escolar tem se movido entre família e escola. As políticas e

práticas educacionais que investem na efetividade escolar ou no incentivo à colaboração

dos pais expressam esse duplo movimento.

Efetivamente, as relações escola-família são de divisão do trabalho de educação

de crianças e jovens, desde que baseadas em concepções de educação e valores

compartilhados, ou seja, numa certa continuidade cultural e identidade de propósitos,

condição para a parceria. Esta depende, portanto, de adesão dos pais ao projeto político-

pedagógico da escola, em cada caso concreto, bem como de relações de poder horizontais

entre as partes.

É importante considerar que as relações escola-família variam entre escolas

públicas e privadas e diferentes comunidades escolares. Família, pais, escola, professores

não são categorias homogêneas e suas relações podem envolver tensões e conflitos

sobre concepções e práticas educativas. Algumas famílias e pais cooperam mais com a

escola do que outras/os, conforme sua disponibilidade de tempo e condições materiais e

culturais. Por sua vez, os professores encontram-se numa posição ambígua: desejam a

ajuda dos pais e se ressentem quando interferem no seu trabalho e na sua autoridade

profissional. Além disso, há a delicada questão da avaliação do desempenho docente

pelos pais, num contexto em que estes dependem do bom trabalho do professor, que

ensina e avalia seu filho.

Como o modelo de parceria, atualmente posto pela política educacional dirigida ao

sistema escolar público, poderia englobar a diversidade cultural das famílias, que inclui

famílias biparentais, famílias monoparentais e chefiadas por mulheres? Ele ecoa a tradição

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cultural da classe média que escolhia/escolhe a escola de seus filhos (confessional ou

secular, mais ou menos conservadora ou progressista) no contexto da oferta de ensino

privado, em que a relação entre pais-consumidores e diretores-proprietários-produtores

é direta e a dependência mútua é clara. Ecoa também um modelo de família biparental e

abastada, em que os adultos responsáveis têm tempo livre para participar das atividades

escolares em casa e na escola.

tais complexidades, a realização da parceria escola-família requer a consideração

de algumas dinâmicas sociais:

• as relações de poder variáveis e de mão dupla, relações de classe, etnia,gênero e idade, que, combinadas, estruturam as interações entre escola efamília e seus agentes.

Parceria supõe igualdade, mas as relações escola-família são relações de poder

em que os profissionais da educação (pesquisadores, gestores, especialistas,

professores) exercem poder sobre os leigos (pais), maior ou menor, dependendo do seu

nível de escolaridade. São relações também mediadas por outras relações de poder (de

classe, etnia, sexo, idade) que ora podem favorecer os professores, ora os pais/

responsáveis. No modo de educação atual, a escola tem mais poder do que a maioria

das famílias (usuárias da escola pública) e, ademais, o poder dos pais é sempre limitado

pelo poder do professor sobre seu filho na sala de aula, expresso em avaliações negativas,

ostensivas ou sutis.

• A diversidade de arranjos familiares e as vantagens ou desvantagens materiaise culturais de certos grupos sociais para participar do projeto de construção deuma educação pública de qualidade.

Participar da educação dos filhos requer certas condições: basicamente, capital

econômico e cultural (BOURDIEU, 1986), disponibilidade de tempo, vontade e gosto.

Capital econômico se traduz em tempo livre (após a jornada diária de trabalho remunerado

fora de casa; após as tarefas domésticas e o atendimento às próprias necessidades de

descanso e lazer) e boa qualidade de vida para que o pai ou mãe, ou ambos, se dedique(m)

ao acompanhamento dos filhos ou, ainda, na falta de tempo/dinheiro para pagar uma

professora particular em casa ou aulas de reforço. Capital cultural significa cultura

acadêmico-científica, portanto, valorização da escola e familiaridade com as matérias

escolares, além de habilidades pedagógicas para ensinar o dever de casa.

Essas condições favoráveis à participação dos pais na educação escolar

correspondem a um modelo de família particular, que conta com um adulto, geralmente

a mãe, com tempo livre, conhecimento e uma disposição especial para educar. Ora,

tradicionalmente, a escola tem mantido uma parceria implícita com um único modelo de

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família, cujos filhos obtêm sucesso escolar. Trata-se do modelo familiar tradicional de

classe média — pai provedor/mãe do lar, que historicamente não correspondia às

condições de vida da maioria das famílias pobres, trabalhadoras, e que está

desaparecendo na própria classe média, com o ingresso das mulheres em ocupações

remuneradas.

Contrapõe-se ao modelo ideal de família, que permeia o imaginário docente, a

propalada “crise da família”: separações, divórcios, pais e mães estressados, mães

trabalhadoras, mães chefes de família sobrecarregadas, falta de tempo (em quantidade

e qualidade) para a convivência com os filhos. Por um lado, a “crise da família” reduziu

seu papel no cuidado físico e emocional, requerendo das escolas a extensão de seu

tradicional papel de instrução acadêmica e cívica para englobar vários aspectos de

assistência biopsicossocial. Por outro lado, o envolvimento dos pais na educação escolar

ainda se limita à obrigação materna, no contexto de uma divisão sexual do trabalho que

persiste e é tomada como natural pela própria escola e por suas profissionais do sexo

feminino.

• as relações de gênero que estruturam as relações e a divisão de trabalhoem casa e na escola.

O uso do termo genérico pais esconde a condição de sexo-gênero da participação

familiar (CARVALHO, 2004a). As professoras de escolas públicas e privadas reportam a

presença predominante, quando não exclusiva, das mães nas reuniões de “pais e

mestres”. Também são as mães que, em geral, comparecem quando o responsável

pela criança é chamado à escola, e acompanham os deveres de casa no dia a dia,

empenhando-se em motivar ou estressando-se para obrigar seus filhos e filhas a fazerem-

no (CARVALHO & BURITY, 2006).

as mudanças nas condições de trabalho dos professores e na organização dotrabalho pedagógico.

Também as mudanças nas condições de trabalho dos professores e na organização

do trabalho pedagógico afetam as relações escola-família. Muitos professores trabalham

(e às vezes também estudam) três turnos, não encontrando tempo para comunicação e

atendimento aos parentes de seus alunos. Tampouco têm tempo de planejar e avaliar o

dever de casa como antigamente; pressionados pelas exigências escolar-curriculares,

passam exercícios disponíveis no livro didático (na falta deste, distribuem folhinhas com

tarefas mimeografadas ou copiam as tarefas no quadro) e se limitam a controlar a

apresentação das tarefas feitas em aula, quando fazem a correção coletiva.

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as mudanças curriculares e pedagógicas.

Também as mudanças curriculares, nas matérias e métodos pedagógicos, tornam

os adultos sempre defasados em relação ao que estudam as crianças. Às vezes, é a

própria família que exige tarefas de casa, conforme depoimentos de professores e pais.

Por outro lado, o dever de casa invade o cotidiano doméstico das famílias, aumentando o

trabalho doméstico dos pais ou responsáveis (CARVALHO, 2001). Embora haja um

consenso sobre sua importância na vida escolar da criança entre pais de escolas privadas

e públicas (RESENDE, 2006), alguns pais têm criticado essa prática, particularmente a

quantidade de tarefas transferidas para casa e o desgaste emocional para mães e filhos.

Têm sugerido, por exemplo, que a professora aproveite melhor o tempo em sala de aula

ou que a escola ofereça atendimento no turno oposto (CARVALHO & BURITY, 2006;

RESENDE, 2006).

Segundo pesquisa feita por CARVALHO e BURITY (2006) em Campina Grande, Paraíba,

com famílias de baixa renda usuárias de escolas públicas, as crianças são forçadas a

fazer o dever de casa; resistem e choram porque não querem ou não sabem fazer as

tarefas:

“Ele começa a chorar. Sempre se angustia com as tarefas”.

“Quando ela não consegue, pense! Chora e diz que não quer mais /

estudar”.

“Eu reclamo com ele. Só faz forçado”.

“Ele só faz quando eu fico cobrando mesmo”.

“Às vezes ele esconde”.

“Ela fica calada, num me fala nada não”.

“Sempre estou ameaçando ele. Se você não fizer, eu vou saber da professora como éque tá indo”.

“Ela é muito teimosa”.

“Ele é uma criança muito desobediente”.

“Vai ficar de castigo. Quando ela não quer fazer, é preciso uma punição mais severapara que ela faça”.

“Com certeza ela não gosta de fazer o dever de casa. Ela faz obrigada e chora. Um diaela rasgou até a folha para não fazer”.

“Tem vez que bato até nela, porque ela chora, porque não sabe fazer o dever de casa”.

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A escola responsabiliza e culpabiliza a mãe:

“A escola só culpa a mãe, nem adianta se a criança tiver pai”.

“A reação da professora é colocar a culpa em mim, e ela nem sabe por que eu nãoensinei a tarefa para ela”.

“A professora disse: Sua mãe estava fazendo o quê? Por que não o

ajudou na tarefa?”

Essas mães prefeririam que a escola não enviasse dever de casa:

“Se os professores não passassem tanto dever de casa seria muito mais fácil”.

“Às vezes penso sozinha, seria tão bom se as professoras não mandassem tarefas decasa, porque imagine toda hora de tarefa de casa ser aquele barulho para poder acriança fazer o dever”.

“Às vezes acho que o dever de casa é sim um problema, porque os professoresdeveriam achar uma nova maneira sem passar tanto dever de casa”.

“Eu sei que tem mãe que trabalha o dia todo, às vezes o pai chega e o filho vai saindopra escola, não vê nem o pai; nesse caso em que a família não tem condições de darassistência acho o dever de casa um problema, e a solução seria a escola acabarcom o dever de casa ou então colocar professores à disposição dos alunos nas horasvagas”.

Concebido como política/prática curricular e pedagógica visando a estender o tempo

de aprendizagem e ajudar os estudantes a superar suas dificuldades acadêmicas, é nas

camadas mais pobres da população, atendidas pela escola pública, que se evidenciam

os efeitos perversos do dever de casa. As professoras reclamam da falta de cooperação

das mães quando a criança não traz o dever de casa feito. As mães se frustram quando

seu filho não sabe fazer o dever e elas não têm tempo ou conhecimento para ajudar:

pensam que a criança não aprendeu porque não prestou atenção à aula ou que a

professora não ensinou direito. Muitas mães pobres pagam reforço escolar, cuja oferta

atende a todos os bolsos — R$ 5, 10, 15 por mês! (CARVALHO, 2006). As crianças

apelam para a ajuda de tias, vizinhas, irmãs ou irmãos mais velhos. Temem ficar de

castigo no recreio, fazendo as tarefas de casa, e, sobretudo, ficar sem lanche!

(CARVALHO & BURITY, 2006).

Ora, a suposta eficácia do dever de casa depende não apenas da ajuda da família,

mas, sobretudo, do planejamento pedagógico empreendido pela professora. O dever de

casa tanto pode ser concebido como uma atividade que requer supervisão dos pais

quanto como uma tarefa que deve ser feita com autonomia. REBELO e CORREIA (1999)

apontam a relatividade da eficácia do apoio familiar no desempenho escolar dos alunos e

os efeitos negativos do dever de casa na motivação do aluno, na relação aluno-escola,

na relação aluno-família e na relação família-escola. PERRENOUD (1995) também

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apresenta uma visão crítica das concepções e práticas tradicionais do dever de casa e

de suas repercussões no clima das famílias, ao atribuírem aos pais o papel de

explicadores, culpabilizá-los e colocá-los “em situação de incompetência ou impotência”

(p.152).

3. Implicações das políticas de integração família-escola

A visão romântica da participação dos pais na escola ora projeta a família unida em

torno do dever de casa, adultos e crianças aprendendo juntos o currículo prescrito pela

escola, ora projeta os representantes de diversas famílias harmoniosamente deliberando

sobre gestão escolar, currículo e qualidade do ensino. Além da promessa da “família

aprendente” e da participação democrática dos pais na definição das políticas/práticas

educacionais, o alcance da política educacional sobre a família contém implicações que

merecem cuidadoso exame:

(a) Nega-se a especificidade da educação escolar e o status profissional e o saber

especializado do professor quando se atribui aos responsáveis o papel de

acompanhar o dever de casa; mantém-se o modelo assistencial de escola e adota-

se um modelo pedagógico de família, formalizando-se a educação doméstica,

confundindo-se papel parental com papel docente.

(b) Atribui-se às famílias a obrigação de propiciar o desenvolvimento emocional,

social e também acadêmico das crianças, ampliando-se suas funções, omitindo-

se diferenças de capital econômico, social e cultural entre elas (BOURDIEU, 1986),

que se traduzem em vantagem ou desvantagem escolar (LAREAU, 1993).

(c) Impõe-se aos pais a concepção de que o lar deve ser um local para o

desenvolvimento explícito e intencional do currículo escolar, e a obrigação de

converter as atividades familiares em extensões das atividades de sala de aula, em

detrimento do pluralismo cultural e educacional e das opções de lazer e descanso

da família.

(d) Impõe-se um modelo único de família, espelhando a família de classe média,

com uma esposa e mãe em tempo integral, em tempos de índices crescentes de

pobreza econômica, emprego materno, estresse familiar, divórcio e mulheres chefes

de família, desconhecendo-se as mudanças nas formas de organização familiar,

que vêm se distanciando do modelo patriarcal pai-provedor/mãe-doméstica

(CARVALHO, 2000).

(e) Privilegia-se um modelo parental e um estilo particular de exercício da paternidade

e maternidade, sem se problematizarem as desigualdades de gênero (CARVALHO,

2004a).

(f) Supõe-se que a reeducação dos pais (para a participação na escola, controlando

o currículo, o orçamento escolar e o desempenho docente; e para a participação

no lar, monitorando o dever de casa) é pré-condição para a educação das crianças,

ampliando-se o escopo de obrigações da escola. De fato, quais seriam as

implicações de uma participação mais numerosa e intensa de pais/responsáveis

para a organização escolar e para o trabalho docente?

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(g) Sugere-se que escolas/educadores profissionais e famílias/pais têm igual poder

de decisão acerca da educação escolar, seduzindo-se pais com a possibilidade de

participar da gestão escolar, o que demanda tempo, conhecimento e organização

coletiva.

(h) Assinala-se aos pais o papel de inspetores das escolas, da gestão, do orçamento

escolar, do currículo e dos professores, minando a confiança, incitando conflitos

latentes e, eventualmente, colocando pais contra diretores e professores.

(i) Designa-se às diversas famílias a responsabilidade de estabelecer padrões

educativos comuns e de boa qualidade, omitindo-se possíveis conflitos sobre

conteúdos e valores no currículo entre grupos de pais diversos quanto a classe

social, etnia, religião e organização familiar, e com poder diferenciado para influenciar

as práticas escolares (BLIKEN, 1995; CASANOVA, 1996; HENRY, 1996; SMREKAR,

1996).

(j) Desvia-se o foco da melhoria educacional da sala de aula para o lar.

A política de integração família-escola expressa ambigüidades: presume que a escola

pode mudar a família e ao mesmo tempo depende da família para melhorar; considera

certas famílias deficientes e ao mesmo tempo responsáveis pela eficiência escolar. Depois

de as escolas terem expandido sua função psicossocial assumindo a maternagem

(ELKIND, 1995), passam agora a cobrar das famílias apoio acadêmico, sugerindo uma

troca de funções; ademais, a intrusão no campo das práticas educativas da família, via

prescrição de tarefas de casa, tende a uniformizar a educação doméstica (os vários

currículos familiares), num momento em que a diversidade cultural é celebrada no currículo

escolar.

Efeitos perversos de tal política que cumpre evitar são: o reforço da divisão social e

sexual do trabalho de cuidado e educação das crianças, que, tanto na escola quanto na

família, relega essa responsabilidade exclusivamente às mulheres, ampliando os deveres

domésticos das mães (CARVALHO, 2004a); o reforço da discriminação de classe, etnia

e gênero, por meio da criação de estruturas de participação escolar hierarquizadas e

diferenciadas, com mães de baixa renda e minorias étnicas ajudando a servir a merenda

escolar, por exemplo, enquanto mães e pais de classe média atuam como voluntários na

sala de aula e membros dos conselhos escolares (CARVALHO, 1997, 2001); a

culpabilização das famílias pelo fracasso escolar de seus/suas filhos/as.

4. Desafios: programas, ações e estratégias de integração família–escola

Para concluir, após esse percurso crítico, ofereço sugestões de políticas

governamentais e ações escolares que promovam acolhimento, diálogo e apoio às famílias

— particularmente aquelas em situação de desvantagem social — em prol do sucesso

escolar das crianças e jovens, considerando que já há muitas prescrições de rotinas e

atitudes familiares.

Basicamente são três as sugestões:

1) Uma escola efetivamente aberta à família e à comunidade, por meio da oferta de

atividades de interesse das famílias, nos fins de semana, feriados e horários em

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que pais não trabalham. Sei que é difícil a escola ampliar seu funcionamento e

dispor de mais pessoal para trabalhar em dias e horários extra-expediente. Mas os

educadores escolares e formuladores de políticas educacionais devem levar em

conta que é provavelmente mais difícil para pais/responsáveis familiares participar

nas atuais condições restritas de funcionamento escolar.

2) Diversas estruturas e oportunidades de participação, com a criação de

mecanismos ágeis e simplificados de consulta aos parentes dos estudantes,

ampliando-se as formas de participação que se encontram restritas à representação

nos conselhos e a reuniões de pais e mestres bimestrais. É preciso criatividade

para superar obstáculos como a falta de tempo e de prática de diálogo para se

garantir o exercício da representatividade dos pais no Conselho Escolar (supondo-

se que o representante dos pais no conselho deveria dialogar continuamente com

seus representados). Por outro lado, reuniões bimestrais são insuficientes para o

diálogo entre professores e responsáveis familiares. Agendas escolares de

comunicação casa-escola, boletins de notícias da escola são dispositivos usados

com certo proveito, mas que também encontram limites.

3) Planejamento do dever de casa de modo que o estudante possa fazê-lo sem

precisar de ajuda dos parentes. De fato o dever de casa é uma prática negligenciada

na formação docente, inicial e continuada, e no planejamento pedagógico escolar.

Para que cumpra a propalada função de auxiliar no desenvolvimento de hábitos de

estudo e na construção da autonomia do estudante, deve ser objeto de planejamento

sério por parte das educadoras profissionais.

O dever de casa integra um modelo pedagógico, uma concepção particular de

organização do ensino-aprendizagem e de trabalho docente: faz diferença planejar e

desenvolver o currículo e as atividades pedagógicas, bem como o tempo e a dinâmica da

sala de aula, com ou sem o dever de casa. Considere-se o exemplo de uma aula que se

resume a revisar e corrigir o dever de casa de ontem e passar o dever de casa de

amanhã. Portanto, dependente da realização bem-sucedida do dever de casa e do apoio

familiar. Assim, a produtividade de classe pode depender mais ou menos da produtividade

do dever de casa, conforme o modelo pedagógico adotado; e a efetividade escolar poderia

até mesmo dispensar o dever de casa, caso fosse adotado outro modelo pedagógico

(CARVALHO, 2001, 1997).

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A questão da participação da população usuária na gestão da escola básica tem a

ver, em grande medida, com as iniciativas necessárias para a superação da atual situação

de precariedade do ensino público no país, em particular do Ensino Fundamental. Diante

da insuficiência da ação do Estado no provimento de um ensino público em quantidade e

qualidade compatíveis com as necessidades da população, propugna-se pela iniciativa

desta no sentido de exigir os serviços a que tem direito. É a população usuária que

mantém o Estado com seus impostos e é precisamente a ela que a escola estatal deve

servir, procurando agir de acordo com seus interesses.

Por outro lado, cada vez mais se toma consciência de que o caminho para uma

sociedade democrática não pode restringir-se ao voto nas eleições periódicas para

ocupantes de cargos parlamentares e executivos do Estado. Uma efetiva democracia

social (BOBBIO, 1989) exige o permanente controle democrático do Estado, de modo a

levá-lo a agir sempre em benefício dos interesses dos cidadãos. Esse controle precisa

exercer-se em todas as instâncias, em especial naquelas mais próximas à população,

onde se concretizam os serviços que o Estado tem o dever de prestar, como é o caso da

escola pública. Daí a importância de que esta preveja, em sua estrutura, a instalação de

mecanismos institucionais que estimulem a participação em sua gestão não só de

educadores e funcionários, mas também dos usuários, a quem ela deve servir.

Ao lado dessa questão, um importante elemento tem sobressaído que, embora

tenha a ver com o conceito de participação enquanto instrumento de controle democrático

do Estado, extrapola-o, em certo sentido: trata-se da percepção de que, para funcionar a

contento, a escola necessita da adesão de seus usuários (não só de alunos, mas também

Trabalhos dos Palestrantes

ADMINISTRAÇÃO ESCOLAR E QUALIDADE DO ENSINO:O QUE OS PAIS OU RESPONSÁVEIS TÊM A VER COM ISSO?*

Vitor Henrique Paro

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

1 Antônio Gramsci, político e pensador italiano.

* Trabalho apresentado no 18º Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educação, realizado em Porto Alegre,de 24 a 28/11/1997, e publicado em SIMPÓSIO BRASILEIRO DE POLÍTICA E ADMINISTRAÇÃO DA EDUCAÇÃO, 18, 1997,Porto Alegre. Anais: sistemas e instituições: repensando a teoria na prática. ANPAE, 1997. v. 1. p. 303-314. Tambémpublicado em: BASTOS, João Baptista (Org.). Gestão democrática. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. p. 57-72.

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de seus pais ou responsáveis) aos propósitos educativos a que ela deve visar, e que

essa adesão precisa redundar em ações efetivas que contribuam para o bom desempenho

do estudante.

A seguir apresento discussão teórica sobre o assunto, seguida de breves referências

à maneira como uma escola pública fundamental de periferia urbana da cidade de São

Paulo, onde fiz pesquisa sobre o tema2, começa a enfrentar a questão.

A noção de qualidade do ensino

Quando se discute o ensino público no Brasil, hoje, o senso comum costuma

identificar duas características como configuradoras de sua má qualidade: a má

preparação para o mercado de trabalho e a ineficiência em levar o aluno à universidade.

Infelizmente, também entre políticos e administradores da educação, e mesmo em círculos

acadêmicos onde se discutem políticas educacionais, o assunto não costuma elevar-se

muito acima do senso comum, em direção a um tratamento mais rigoroso da questão.

Entretanto, por mais importante que seja a preparação para o mercado de trabalho

e para o ingresso no ensino superior, cumpre indagar se não existiriam outros valores a

informar os fins que se devem buscar com a escola pública fundamental. Será que,

tendo em vista apenas o setor produtivo, como querem os empresários e como apregoam

os apologistas do mercado, estaremos contribuindo para uma sociedade mais

democrática, mais livre e produtora de relações civilizadas entre pessoas e grupos?

Será que, quando nos preocupamos apenas com a preparação para o ensino superior

como fazia a escola pública “de qualidade” de algumas décadas atrás3 ou a escola

particular de hoje que atende as camadas privilegiadas4, estaremos promovendo a

melhoria no nível de bem-estar geral da sociedade?

Embora não se deva minimizar a importância desses dois elementos, parece-me

que as discussões que restringem a eles os objetivos da escola pública têm omitido o

essencial. A escola, como locus da educação sistematizada, não pode passar ao largo

do próprio conceito de educação em sua inteireza, enquanto apropriação da cultura.

Esta tem a ver com a própria concepção de homem que constrói sua especificidade e se

constrói enquanto ser histórico à medida que transcende o mundo natural pelo trabalho.

Ao transcender a mera natureza (tudo aquilo que não depende de sua vontade e de sua

2 A pesquisa contou com financiamento do CNPq e está relatada em PARO, 1998.

3 É certo que a escola pública existente até três ou quatro décadas atrás não tinha a homogeneidade que se pretendequando se fala de suas virtudes. Mas, na representação da maioria dos saudosistas da escola pública de antigamente,o que aparece é uma escola de alta qualidade que tinha êxito em passar um conteúdo preparatório para a universidade.Esta era precisamente a escola que servia a uma ínfima minoria de alunos procedentes prioritariamente das camadasprivilegiadas da população e que, embora considerada paradigmaticamente, por muitos, como “de qualidade”, usavamétodos tão ou mais retrógrados que os da escola pública de hoje. De qualquer modo, toda vez que mencionar a escolapública de antigamente é a este estereótipo de escola que estarei me referindo.

4 Também a escola particular não possui a homogeneidade que se pretende quando se lhe atribui uma qualidadesuperior à da escola pública atual. Mas o estereótipo é sempre a escola que abriga os filhos das camadas mais ricas.Embora uma visão crítica consiga identificar a grande semelhança entre a didática usada aí e a que vige na escolapública atual, para o senso comum ela é considerada de ótima qualidade. É a este estereótipo que estarei me referindoquando falar da atual escola particular.

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ação), o homem ultrapassa o nível da necessidade e transita no âmbito da liberdade. A

liberdade é, pois, o oposto do espontaneísmo, da necessidade natural; é algo construído

pelo homem à medida que constrói sua própria humanidade. (PARO, 1997, p. 107-114)

Na produção material de sua existência, na construção social de sua história, o

homem produz conhecimentos, técnicas, valores, comportamentos, atitudes, tudo enfim

que configura o saber historicamente produzido. Para que isso não se perca, para que a

humanidade não tenha que reinventar tudo a cada nova geração, fato que a condenaria a

permanecer na mais primitiva situação, é preciso que o saber esteja permanentemente

sendo passado para as gerações subseqüentes. Essa mediação é feita pela educação,

entendida como a apropriação do saber produzido historicamente. Disso decorre a

centralidade da educação enquanto condição imprescindível da própria realização histórica

do homem. É, pois, pela educação, que o homem tem a possibilidade de construir-se

historicamente, diferenciando-se da mera natureza. (PARO, 1997, p. 107-114.)

A escola, então, ao prover educação, precisa tomá-la em todo seu significado

humano, não em apenas algumas de suas dimensões. Por isso, pode-se dizer que a

escola pública tem baixa qualidade sim, mas não pelas razões que normalmente são

levantadas para isso (porque não consegue fazer o que faz a escola particular ou o que

fazia a “boa” escola de antigamente). A escola pública tem baixa qualidade, antes de tudo

e principalmente, porque não fornece o mínimo necessário para a criança e o adolescente

construírem-se enquanto seres humanos, diferenciados do simples animal. Quando se

fala em educação para a formação do cidadão é esse pressuposto que deve estar por

trás: o de que, como condição para elevar-se a um nível humano de liberdade,

diferenciando-se da mera necessidade natural, o indivíduo precisa “atualizar-se”

historicamente pela apropriação de um mínimo do saber alcançado pela sociedade da

qual ele faz parte.

Essas reflexões não se fazem presentes, em geral, na prática cotidiana de nossas

escolas públicas fundamentais, nas quais os professores, ainda influenciados pela

ideologia liberal burguesa (segundo a qual é possível, igualmente a todos, subir na escala

social por meio do esforço pessoal, via educação escolar), continuam buscando, para

as atuais camadas sociais usuárias da escola pública, a mesma meta de ingressar na

universidade, que era objetivo da escola pública de três ou quatro décadas atrás. Mas a

população escolar mudou e as crianças e adolescentes que freqüentam hoje a escola

pública já não trazem o background dos estudantes da antiga escola pública ou da atual

escola privada. Junte-se a isso a consideração das precárias condições de funcionamento

das escolas mantidas pelo Estado e se terá o quadro de ineficácia das mesmas diante

de suas obrigações sociais. (PARO, 1997, p. 83-105)

O educador escolar, em especial o professor, pouco tem conseguido fazer diante

da falta de material pedagógico, das classes abarrotadas (que desafiam qualquer bom

senso pedagógico), da falta de assistência pedagógica, enfim, das inadequadas condições

de trabalho em geral. Entre estas, seu ínfimo salário, que o obriga a mais de uma jornada

de trabalho, é um dos elementos mais marcantes, condicionante inclusive de sua baixa

competência profissional.

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Nessas condições, a escola pública brasileira tem produzido altos índices de

reprovação e de evasão e baixo nível de conhecimento mesmo dos que conseguem ser

aprovados. A culpa, na grande maioria das vezes, cai sobre o “produtor final”, o professor,

acusado de incompetência e de pouco empenho profissional. Este reclama do salário,

mas, no íntimo, massacrado pela evidência dos fracos resultados de seus serviços, se

considera mesmo um profissional pouco qualificado, responsável pela má qualidade do

ensino. Quando sua baixa consciência política não lhe permite perceber as condições de

que é refém, prefere, em defesa de sua auto-estima, pôr a culpa no aluno, acusando-o

de não querer aprender.

Mas a alegação da falta de interesse do aluno como justificativa para o mau

desempenho escolar precisa ser combatida de forma radical, porque implica a própria

renúncia da escola a uma de suas funções mais essenciais. Os equívocos a esse respeito

geralmente advêm da atitude errônea de considerar a “aula” como o produto do trabalho

escolar. Nessa concepção, desde que o professor deu uma boa aula, a escola cumpriu

sua obrigação, apresentou o seu produto, tudo o mais sendo responsabilidade do aluno.

Mas, se consideramos o conceito de trabalho humano enquanto “atividade adequada a

um fim” (MARX, s.d., p. 202), a aula ou a “situação de ensino” constitui o próprio trabalho,

não seu produto. Se a escola tem que responder por produtos, estes só podem ser o

resultado da apropriação do saber pelos alunos. Se estes não aprenderam, a escola não

foi produtiva. Dizer que a escola é produtiva porque deu boa aula, mas o aluno não

aprendeu, é o mesmo que dizer que a cirurgia foi um sucesso, mas o paciente morreu.

Querer aprender como questão didática

Mas a consideração do processo pedagógico escolar enquanto processo de trabalho

nos ajuda também a compreender melhor a situação especial do próprio objeto envolvido

nesse processo. Não há dúvida de que o aluno é verdadeiramente o objeto de trabalho,

pois é ele que é objeto da ação educativa. Como em qualquer outro processo de trabalho,

o educando é quem “sofre” as ações com que se pretende alcançar o objetivo e é ele,

transformado (em sua personalidade viva, pela apreensão do saber5, que se constituirá

no produto desse trabalho, ou seja, o “aluno educado” (ou o aluno com a “porção” de

educação que se pretendeu oferecer). Todavia, há aqui um elemento que diferencia

radicalmente o objeto de trabalho pedagógico do objeto de trabalho na produção material.

Nesta, o objeto reage a sua transformação apenas enquanto objeto, opondo resistências

meramente passivas. Na produção pedagógica, entretanto, temos um objeto que é

também sujeito, posto que se trate de um ser humano, dotado de vontade. E eis aí uma

das peculiaridades mais importantes desse processo de trabalho: ele não pode dar-se à

revelia do objeto. Seu objeto-sujeito precisa querer para que a produção se realize. Se o

aluno não quiser, o aprendizado não se dará6.

5 Observe-se que, como me referi anteriormente, estou tomando o conceito de saber de modo bastante amplo, referindo-se, tanto a conhecimentos e técnicas, quanto a comportamentos, valores, atitudes, enfim, tudo o que configura a culturahumana, passível de ser apropriada na educação.

6 “O movimento no sentido de querer aprender é (...) condição sine qua non para que a aprendizagem ocorra.”(MOYSÉS, 1994, p. 23-24)

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Ora, o “querer aprender” é também um valor cultivado historicamente pelo homem

e, pois, um conteúdo cultural que precisa ser apropriado pelas novas gerações, por meio

do processo educativo. Não cabe, pois, à escola, enquanto agência encarregada da

educação sistematizada, renunciar a essa tarefa. Por isso é que não tem sentido a

alegação de que, se o aluno não quer aprender, não cabe à escola a responsabilidade

por seu fracasso. Cabe sim, e esta é uma de suas mais importantes tarefas. Levar o

educando a “querer aprender” é o desafio primeiro da didática, do qual dependem todas

as demais iniciativas. (PARO, 1995)

Parece que essa predisposição para aprender que existia no aluno da escola pública

de décadas atrás (v. nota 2) e que está presente em grande medida no aluno da escola

privada de hoje (v. nota 3) é a chave para se explicar, pelo menos em parte, a aparência

de maior competência dessas duas escolas comparadas à atual escola pública. Um

aluno que já quer aprender depende muito pouco da competência da escola. Por isso, a

instituição escolar que pode selecionar seus alunos entre aqueles que já têm os pré-

requisitos culturais adequados para o ensino (Cf. BARRETO, 1992) pode prescindir de

grande competência, bastando ocupar-se em despejar “conteúdos”, contando com o

esforço dos alunos que, em grande medida, aprendem não por causa da escola, mas

apesar dela. Mas a escola pública, que não pode selecionar seus estudantes — o que

seria um absurdo — não pode dar-se ao luxo de falhar nessa tarefa, porque seus alunos

não estão “preparados” para aprender apesar dela; assim, diferentemente da antiga escola

pública (v. nota 2) e da atual escola privada (v. nota 3), sua incompetência aparece.

Mas, se a escola pública precisa ser competente, ela deve também levar em conta

a necessidade de que seus alunos sejam seduzidos pelo desejo de aprender. Não há

dúvida de que a escola pouco ou nada tem feito para tornar o ensino prazeroso, condição

mais do que necessária para despertar o interesse do educando. Mas é verdade também

que há muito a fazer que não depende exclusivamente da escola. E aqui é preciso voltar

à complexidade do objeto de trabalho com o qual ela lida. Enquanto sujeito humano, o

aluno não vive apenas na escola e não forma apenas aí seus valores. A escola tem

falhado não só por estar mal aparelhada, com métodos inadequados e professores mal

formados, embora não se possa menosprezar o enorme peso desses fatores. A escola

tem falhado também porque não tem dado a devida importância ao que acontece fora e

antes dela com seus educandos. Uma atitude positiva com relação ao aprender e ao

estudar não acontece de uma hora para outra nem de uma vez por todas: é um valor

cultural que precisa ser permanentemente cultivado. Começa a formar-se desde os

primeiros anos de vida, precisa de ambiente favorável para desenvolver-se e carece de

estímulos permanentes durante a infância e a adolescência. Como a escola só tem acesso

direto ao educando durante as poucas horas em que este freqüenta suas atividades, ela

precisa começar a voltar sua atenção para os períodos em que ele está fora de seu

abrigo.

Assim, a escola que toma como objeto de preocupação levar o aluno a querer

aprender precisa ter presente a continuidade entre a educação familiar e a escolar,

buscando formas de conseguir a adesão da família para sua tarefa de desenvolver nos

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educandos atitudes positivas e duradouras com relação ao aprender e ao estudar. Grande

parte do trabalho do professor é facilitada quando o estudante já vem para a escola

predisposto para o estudo e quando, em casa, ele dispõe da companhia de quem,

convencido da importância da escolaridade, o estimule a esforçar-se ao máximo para

aprender.

É aqui que entra a questão da participação da população na escola, pois dificilmente

será conseguida alguma mudança se não se partir de uma atitude positiva da instituição

com relação aos usuários, em especial com os pais e responsáveis pelos estudantes,

oferecendo ocasiões de diálogo, de convivência verdadeiramente humana, em suma, de

participação na vida da escola. Levar o aluno a querer aprender implica um acordo tanto

com educandos, fazendo-os sujeitos, quando com seus pais, trazendo-os para o convívio

da escola, mostrando-lhes quão importante é sua participação e fazendo uma escola

pública de acordo com seus interesses de cidadãos. (PARO, 1995)

É isso que justifica investigar, no âmbito da escola pública fundamental, as

dimensões de uma possível participação da família na promoção, junto a seus filhos

estudantes, de valores favoráveis ao estudo e à aquisição do saber, bem como na adoção

de posturas e comportamentos diante deles que contribuam para a melhoria da qualidade

de seu aprendizado. Em termos de política educacional, a relevância de estudo dessa

natureza está em que, ao pesquisar a colaboração que os pais podem dar, em casa,

para o processo pedagógico, pode-se fornecer importantes subsídios para tomadas de

decisões que ensejem a inclusão de elementos facilitadores da melhoria da educação

escolar, até hoje desconsiderados no planejamento do ensino público. Qual o sentido de

encaminhar políticas restritas ao sistema de ensino, e em particular à escola, se parte

essencial da solução pode estar nas famílias ou em instituições outras, fora do sistema

regular de ensino? Esse tipo de questão leva à necessidade de dimensionar as

potencialidades de contribuição das famílias dos alunos, procurando conhecer, em

especial, o que pensam eles a respeito do ensino e quais suas predisposições de colaborar

com a escola no desenvolvimento de valores favoráveis à aquisição do saber.

É mister ter bem claro, todavia, que uma tal iniciativa não pode cair no equívoco de

delegar aos pais e à comunidade aquilo que compete ao Estado, por meio da escola,

fazer. A crítica que se ouve com freqüência é a de que medidas visando à participação

dos pais na escola acabam redundando em mais um ônus às famílias desprivilegiadas

usuárias do ensino público, já tão sobrecarregadas de trabalho e de necessidades. Mesmo

entre alguns pais se ouve a alegação de que a obrigação de ensinar é da escola e que

eles, pais e mães, não têm tempo nem conhecimento para isso. Um corolário dessa

objeção é a afirmação de que chamar os pais a “ajudarem” o professor e a escola seria

uma forma a mais de explorá-los, eles que já pagam o ensino com seus impostos e que

já são tão explorados em seu trabalho.

Entretanto, não se trata nem de os pais prestarem uma ajuda unilateral à escola

nem de a escola repassar parte de seu trabalho para os pais. O que se pretende é uma

extensão da função educativa (mas não doutrinária) da escola para os pais e adultos

responsáveis pelos estudantes. É claro que a realização desse trabalho deverá implicar

a ida dos pais à escola e seu envolvimento em atividades com as quais ele não está

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costumeiramente comprometido. Mas, em contrapartida, além de ter melhores condições

de influir nas tomadas de decisão a respeito das ações e objetivos da escola, eles estarão

investindo na melhoria da qualidade da educação de seus filhos bem como na melhoria

de sua própria qualidade de vida, na medida em que esses adultos estarão mais capazes,

intelectualmente, de usufruir melhor de bens culturais a que têm direito e que antes não

estavam a seu alcance. Com isso, a escola não estará, na verdade, passando parte de

suas tarefas aos pais, mas aumentando seu próprio trabalho e responsabilidades, na

expectativa, é bem verdade, de facilitar seu trabalho educativo com os estudantes. Mas

isto apenas denota uma preocupação com a qualidade de seus serviços que, em última

análise, reverter-se-á em benefício dos próprios usuários.

No que concerne à administração das unidades escolares, as implicações de

medidas visando à adequação desse problema dizem respeito tanto às questões

propriamente organizacionais quanto aos assuntos relativos à gestão do pessoal escolar.

Com relação ao primeiro ponto, e tendo em vista o fim específico de promover a adesão

(e a colaboração) dos pais aos propósitos educativos da instituição escolar, trata-se de

refletir acerca de como se configurará a participação dos pais na escola e qual o papel

reservado a eles em colegiados como o conselho de escola e os conselhos de classe e

de série. Quanto à gestão do pessoal escolar, supõe-se que novos elementos precisarão

ser incluídos na definição do papel desses servidores frente às famílias usuárias da escola,

a partir da exigência de um contato qualitativamente novo e provavelmente muito mais

freqüente do que o atual. Especialmente com relação aos professores, supõe-se que

isso poderá exigir mecanismos permanentes de assessoria, orientação e treinamento

com o propósito de mantê-los capacitados a desenvolver um trabalho com novas

atribuições.

Alguns elementos do trabalho de campo

A unidade escolar em que fiz a pesquisa antes referida apresenta aspectos bastante

interessantes para o estudo desse tema. Embora as dimensões deste trabalho não

permitam um tratamento mais extensivo do assunto, é possível mencionar, ainda que de

passagem, alguns pontos que ressaltam do exame da questão no interior da escola. O

primeiro deles refere-se à crença unânime entre professores, coordenadores pedagógicos,

funcionários e direção na importância da ajuda dos pais para o bom desempenho dos

alunos na escola. É bastante recorrente, especialmente no discurso do corpo docente, a

afirmação da dependência do professor em relação ao que é feito, antes, na família.

Quanto à natureza dessa ajuda, embora muitos reclamem a própria assessoria dos

mais velhos no estudo e na realização de lições de casa, o que todos consideram mais

importante é a atenção e o estímulo que devem ser propiciados aos estudantes.

Isto tem a ver, já, com o segundo aspecto relevante a se observar: embora considere

difícil que os pais, em sua maioria, pela própria condição de semiletrados, sejam capazes

de ensinar os conteúdos escolares ou de auxiliar eficazmente na solução dos problemas

de aprendizagem apresentados pelos alunos, a maioria dos professores enfatiza que

todos os pais podem muito bem estimular seus filhos, interessando-se por seus estudos,

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verificando seus cadernos, reforçando sua auto-estima, enfim, levando-os a perceber a

importância do aprender e a sentir-se bem estudando. Uma professora de 3° ano dá o

exemplo de sua mãe, que mesmo sendo analfabeta sabia estimulá-la a estudar quando

criança.

“Minha mãe era analfabeta, mas ela olhava meu caderninho. Eu nem percebia que ela não sabia

nada. Até os dez anos, pra mim, ela sabia tudo. Ela olhava, discutia se tava bonito [ou] se não tava

bonito. (...) Então, a ajuda dos pais é nesse sentido: ‘Ô, meu filho, que cê tá fazendo, deixa eu ver

o que que é que tem’, né.”

Apesar de muitos professores acharem que os pais não cumprem essa função

porque não têm tempo diante da vida de trabalho duro que levam, a maioria concorda que

o que falta é um bom esclarecimento a eles a respeito da forma de desempenhar seu

papel e da importância de fazê-lo. Concordam que esse esclarecimento deve caber à

escola, mas consideram que a maior dificuldade é trazer os pais para participar. Não

acreditam que essa orientação possa ser proporcionada aos pais, contando apenas com

as vias institucionais existentes: reuniões de pais, conselho de escola e associação de

pais e mestres. E aqui aparece outro elemento praticamente consensual na concepção

do pessoal da escola entrevistado: sempre que são instados a apresentar uma solução

para a situação, os professores indicam como opção a instituição de algo como uma

“escola de pais” em que se procuraria ensinar aos pais a melhor forma de lidar com seus

filhos para que estes tenham um melhor desempenho escolar.

Entre as inúmeras implicações de uma tal iniciativa, pode-se destacar, por um

lado, o perigo de se adotar uma posição “catequética” com relação aos pais, que se

suporiam passíveis de serem educados pelos professores; por outro, a dúvida a respeito

da possibilidade de os mesmos educadores conseguirem, com os pais, aquilo que

reclamam não conseguir com os filhos, ou seja, o interesse e empenho no estudo por

parte destes últimos.

Em que pesem estas e outras questões, a escola em exame na pesquisa de campo

apresenta-se como local privilegiado para o estudo do assunto pelo especial motivo de

estar começando a implementar uma experiência a respeito. Trata-se de um projeto de

formação para pais autorizado pela delegacia de ensino e com previsão de recursos

para sua execução. Mas o mais auspicioso para a experiência é que ela foi concebida e

terá a liderança de uma direção escolar vivamente interessada na participação de pais e

mães na escola, no duplo aspecto de direito dos usuários e de necessidade da escola

para o bom desempenho de suas funções.

Não se trata de esquecer o enorme caminho a ser percorrido no interior da própria

escola, em termos da adequação de seus objetivos e de seu aparelhamento material,

humano e metodológico. Não se pode, em absoluto, estar alheio a isso. Mas, trata-se,

também, de reconhecer algo a que a teoria educacional tem prestado pouca atenção.

Por pequena que seja, em comparação com tudo o que há por fazer na escola, a

contribuição que os pais podem dar para o processo pedagógico escolar precisa ser

levada em conta para evitar o risco de se ignorar algo que é imprescindível para o bom

desempenho dos alunos.

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Referências Bibliográficas

BARRETO, Elba Siqueira de Sá. O novo diálogo com a privatização na área da educação.

Em Aberto, v. 10 n. 50/51, p. 81-88, abr./set., 1992.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 4.ed. Rio

de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civil. Brasileira, s.d., v. 1.

MOYSÉS, Lúcia. O desafio de saber ensinar. Campinas: Papirus, 1994.

PARO, Vitor Henrique. Gestão democrática da escola pública. São Paulo: Ática, 1997.

PARO, Vitor Henrique. Gestão democrática: participação da comunidade na escola. NossoFazer, Curitiba, ano 1, n. 9, ago. 1995, p. 1

PARO, Vitor Henrique. Participação escolar e qualidade do ensino públicofundamental: o papel da família no desempenho escolar. São Paulo: Feusp, 1998.

Relatório de Pesquisa. Esse relatório foi publicado em livro sob o título Qualidade doensino: a contribuição dos pais. São Paulo: Xamã, 2000.

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1. Como abordamos o tema família e escola

Concentramos esforços na pesquisa sobre as habilidades e competências que

existem nas famílias para cuidar e educar seus filhos desde a concepção e especialmente

até os seis anos, dando atenção também à adolescência.

Temos feito trabalhos desde 1992 no México, no Peru e em outros paises da América

Latina e do Caribe. Desde 2003 colaboramos com o Unicef (Fundo das Nações Unidas

para a Infância) no Programa Família Brasileira Fortalecida.

Entendemos que as mães e os pais são os primeiros educadores de suas crianças.

As pesquisas de base que fizemos visam a conhecer a qualidade dos cuidados que as

crianças recebem no lar, que tem forte influência na sua sobrevivência, crescimento,

desenvolvimento, proteção e participação, e que criam as condições para aprender a

aprender, aprender a fazer, aprender a conviver – lidando com conflitos e oportunidades

– e aprender a ser cidadãos solidários, éticos, competentes e bem realizados.

Como apoio e resposta ao trabalho de pesquisa, desenvolvemos programas e

projetos voltados para os adultos responsáveis pelas crianças (professores, mães e

pais de família, agentes de saúde da família etc); também criamos e produzimos material

impresso e audiovisual adequado às exigências e necessidades educativo-culturais das

crianças. Devo salientar que isso tem sido possível devido à parceria de quase 26 anos

com o autor e ilustrador Gian Calvi, grande companheiro e grande artista voltado para o

desenvolvimento da criatividade e a valorização das culturas latino-americanas (vide o

site ). Anteriormente a essa parceria, meu trabalho de pesquisa esteve focado na formação

de hábitos de leitura na família e na escola; assim surgiu a minha paixão e dedicação à

criação de bibliotecas públicas e escolares na Colômbia e outros países da América

Latina e do Caribe, desde a Secretaria Executiva de um centro da Unesco para América

Latina e Caribe, o Cerlalc. Com grande orgulho, vejo hoje resultados extraordinários sobre

a contribuição que esses centros de Cultura, Lazer Criativo e Informação oferecem para

a recuperação de “uma cultura da paz” em vários desses lugares.

Trabalhos dos Palestrantes

ESCOLA E FAMÍLIA

Lucila Martinez

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

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Com o acúmulo de anos de aprendizado e experiências referentes ao universo

infantil, procuramos a compreensão de seus problemas e características particulares e

a identificação de idéias criativas que estimulam nas crianças o lazer construtivo e o

desenvolvimento de potencialidades através de livros, desenhos animados, vídeos,

fantoches inteligentes e de boa qualidade, que têm o objetivo de propiciar a formação de

uma estrutura de pensamento lógico, crítico e criativo.

O acesso às multimídias ajuda a valorizar o prazer e a utilidade da criação, da

invenção e do hábito da leitura, vista no seu conceito mais amplo de apreensão, pelos

diversos sentidos, das variadas experiências multissensoriais e multiculturais da vida,

onde a importância de criar e procurar informação ganha também um lugar especial.

Porém, a criança precisa do acompanhamento dos pais esclarecidos, dedicados, para

ensinar a faz uso adequado de todas essas mídias.

2. Os recursos multimídia e o aprendizado dos estudantes

O nosso mundo é tão maravilhoso, tão fantástico, e os seres inteligentes que vivem

nele são tão criativos, tão cheios de sonhos, que se as histórias não existissem, não

poderiam viver felizes. Fábulas, contos-de-fada, romances, poesias, a história da família,

a nossa própria história, os fatos do cotidiano… Desde que o ser humano aprendeu a se

comunicar ele expressa seus sonhos, seus anseios, seus desejos, suas fantasias e sua

cultura por meio das histórias.

Antigamente essas histórias só podiam ser contadas pela boca de quem tivesse

talento para isso. Não que só poucas pessoas tenham imaginação fértil para criar uma

história, mas são poucas as que sabem realmente como transmiti-las, conduzindo a

imaginação e as emoções de quem as ouve.

Mas o tempo foi passando e os meios de contar uma história foram se expandindo.

Nos tempos modernos, filmes, desenhos animados, CD-ROM, TV, rádio e várias outras

maneiras.

Nós, educadores, sabemos que a criança entende e interage com o mundo por

meio das linguagens. Cada leitura nos oferece diversas oportunidades de ampliar o

conhecimento de nosso entorno, do passado, do presente e do futuro.

Na literatura infanto-juvenil, as histórias, os animais, as situações mágicas

colaboram para o desenvolvimento das linguagens e favorecem o uso das diferentes

formas de expressão vinculadas ao afeto, sentimento de solidariedade, pertencimento e

prazer pelo aspecto lúdico presente nos materiais. Isso acontece quando criamos um

ambiente favorável à leitura por meio da multimídia (livros, revistas, gibis, jornais, rádio,

TV etc), necessidade cada vez maior para o desenvolvimento das competências sociais

da leitura e escrita.

O hábito e o prazer da leitura começam cedo, quando os pais já conversam com

seu filho na barriga, com o exemplo dos adultos que rodeiam a criança, que é definitivo,

com o ambiente em casa, na creche, na escola, na comunidade.

Nossa experiência como autores, ilustradores, pais de família, professores, editores

nos permite insistir em que o livro deve ser um ponto de referência constante no lar, na

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escola, na comunidade. Como educadores e profissionais que trabalham em prol do

desenvolvimento humano, temos apostado, investido, acreditado nesse caminho no Brasil,

com atividades e produção de material desde 1989, Os livros e os desenhos animados

CRIANÇASCRIATIVAS® ajudam o educador a aprofundar cada história, para conhecer

cada autor, estimulando a capacidade de aprender e discutir na família, na sala de aula;

ajudam também aos pais, professores e alunos a percorrer novos e criativos horizontes

sempre contextualizados nos pilares da educação “Aprender a conhecer e a aprender”,

“Aprender a fazer”, “Aprender a viver juntos, a conviver” e “Aprender a ser” pessoas com

valores e princípios que valorizam a sua identidade e a cultura do trabalho e do bem-estar

numa sociedade justa. Também pretendemos com esse material ajudar na reflexão e no

encontro de caminhos para participar do sistema de garantia de direitos e para fazer

valer direitos e deveres da família, da criança e do adolescente.

2.1 Criando histórias

Individualmente ou em grupo, suas crianças podem criar uma história original.

Qualquer pessoa que tenha tentado sabe que isso não é tão fácil quanto parece. As

crianças naturalmente criam histórias curtas e às vezes começam pelo fim.

A maioria das boas histórias não “explode” inteiramente concebida do coração de

seus autores. Pelo contrário, costumam evoluir da pequena semente de uma idéia, ou

são passadas de um contador de histórias a outro, através de muitas gerações, com os

adereços estilísticos pessoais de cada um, adicionados ao contexto inicial.

Muitas crianças sentem-se intimidadas pela idéia de produzir uma história completa

como a que acabaram de ouvir. Você pode desenvolver essa atividade privilegiando a

linguagem oral e integrando a outras.

2.2 Desenhando histórias

A cultura artística das crianças deve ser priorizada nas nossas escolas. Para criar

imagens e ilustrações criativas não é preciso ter jeito para o desenho. Usar diferentes

recursos: pincel, água e cola, tinta, os dedinhos, enfim, a presença de materiais além do

lápis de cor; plantas e flores podem ser usadas.

Você já imaginou fazer uma fantasia com pedaços da história registrada em papel

ou pano? Diferente, não é?

2.3 Montando uma peça

Por que não montar uma história? Nesta peça, as crianças podem escolher seus

papéis preferidos (não se esqueça dos objetos inanimados!) e podem, em um projeto

grupal, recriar toda a história. Faça com que as crianças cantem. Deixe que ajudem a

compor os personagens e os cenários.

Permita que cada uma interprete de modo pessoal seu papel na peça, deixando

que perceba sozinha traços mais sutis de seu personagem. Permita que dance e invente

novas maneiras de se comunicar. Não devemos nos preocupar com a repetição exata

das palavras se as crianças forem muito pequenas. Cuide para que o sentido e o repertório

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lingüístico apresentado seja devidamente incluído. Use e abuse do teatro de sombras,

dedinhos, bonecos grandes e fantoches.

2.4 Lendo histórias

Ler as histórias com o apoio dos livros contribui para a criança compreender a

função da escrita e da leitura. Sabemos que a criança aprende imitando, brincando e

convivendo. A situação de leitura de um livro é mágica.

Nesse período do desenvolvimento, a criança vai descobrir a relação entre o que

falamos e a palavra escrita presente no livro. Perguntas como:

• Como reconhecemos se este livro é de histórias?

• O que é um ilustrador de histórias?

• Como identificamos a mensagem de um livro?

• Como posso saber qual livro estou procurando: notícias, piadinhas, dobraduras?

• O que indica o índice de um livro?

Uma atividade para o exercício sobre os elementos internos do livro é a organização

de uma minifeira, na qual as crianças devem apresentar livros selecionados para outros

colegas. A proposta é não contar a história, mas falar do livro estimulando outras pessoas

ao hábito da leitura. Imagine uma feira de ciências, mas agora de Livros Vivos!!!!

A criança aprende sobre a nossa cultura de ler da esquerda para a direita e a virar

as páginas. Como observa atentamente, imita os movimentos que a professora faz quando

segura um livro, como cuida dele e o guarda.

Por isso é importante criar um espaço organizado para expor livros. Esse espaço

deve permitir o acesso da criança para escolha dos livros e também estar próximo a um

local acolhedor para esse momento. Uma cadeirinha de balanço, algumas almofadas,

até mesmo uma tenda pequena. Às vezes, as crianças gostam de ficar sozinhas enquanto

lêem.

Contar histórias pode também se tornar inspiração para a leitura em voz alta. Deixe

as crianças praticarem lendo umas para as outras e para o grupo como um todo. Estimule-

as a interpretar o que estão lendo com entonações de voz, gestos e atitudes.

O uso da multimídia amplia o universo cultural das crianças e garante o lúdico na

rotina da sala de aula e das relações familiares que abrem espaço para o diálogo em

família e a participação cidadã desde a escola. Por exemplo, nosso trabalho com o material

de CRIANÇAS CRIATIVAS ajuda a:

• Criar um ambiente favorável à leitura e analisar: o objeto do livro, a relação texto/imagem, a

narração, as vozes, as inflexões, o ritmo, a música, as diferentes linguagens presentes nos

materiais;

• Estimular o prazer pela música, a composição, os instrumentos, a relação música-emoção-

comunicação e ambiente, os efeitos sonoros, relação com o movimento, a linguagem sonora,

propiciando o desenvolvimento do gosto pela música;

• Identificar as técnicas audiovisuais e de animação, a relação com as imagens do livro; as

ilustrações, imagens planas e animadas ou tridimensionais;

• Recontar e recriar as histórias novas e decorrentes, promover a leitura coletiva, propondo outras

formas de se contar e ler a mesma história, seja através do teatro, da música e dos desenhos;

promovendo assim a expressão oral e corporal;

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• Decodificar e pesquisar os elementos e situações; aproveitar, por exemplo, os diversos animais

e regiões geográficas do mundo que aparecem nos livros e nos filmes para pesquisar as suas

características, espécies e origens. Quais são domésticos e quais não. Quais são úteis para a

economia doméstica e a sobrevivência do homem e quais são essenciais para o equilíbrio da vida

e da ecologia.

• Transformar em objetos concretos o resultado do debate sobre a história, através de máscaras,

roupas, desenhos, maquetes etc. Essa idéia integra outras linguagens e materiais como sucata

e argila, entre outros;

• Promover o prazer da fantasia para reinterpretar a história, estimulando a capacidade de imaginar

e criar personalidades, situações e cenários;

• Incentivar a valorização da criação e da comunicação escrita nas crianças, começando por imaginar

um outro fim para cada história. Além da imaginação estaremos contribuindo para o exercício do

pensamento lógico, matemático e lingüístico.

• Planejar e executar um projeto com as crianças, tendo como cenário os temas dos livros e as

referências da sua família e da vida em comunidade, entre outras atividades que ampliam os

horizontes de magia e encanto dessas histórias, levando as crianças para um passeio pelo

mundo da imaginação e da fantasia, mas sempre com um pé na realidade, no contexto em que

estão envolvidas. De que forma? Por meio do uso paralelo dos livros, da fita de vídeo ou CD-ROM,

da TV e dos fantoches com os personagens das histórias: a cada momento abre-se espaço para

debates, pesquisas e brincadeiras que destaquem os mais variados assuntos culturais, familiares,

comunitários, éticos etc.

O hábito da leitura é uma ferramenta fundamental para o ser humano desenvolver-

se e integrar-se socialmente. É preciso que nós, educadores, lancemos mão de mão de

diversos recursos que despertem o desejo pelo ato de ler. O computador e a internet

podem se transformar em aliados importantes, desde que acesso a eles esteja

acompanhado e orientado pelos adultos responsáveis pela criança, como qualquer outra

ferramenta.

3. Como deve ser o contato dos pais com a escola

Como os pais podem interagir com a vida escolar de seus filhos? Da mesma forma

que mães e pais têm grande dificuldade de criar ambiente de diálogo nas famílias, essa

dificuldade de comunicação e de encontro aumenta na relação com os professores e

demais pessoas da escola que acolhe seus filhos. É necessário dedicar um tempo de

qualidade para chegar à escola, conversar, entender e participar na formulação das

propostas político-pedagógicas da escola.

Conhecer é participar na escola: colaborar toda semana para aprimorar o ambiente

geral em que seus filhos passam boa parte do tempo; em que são ensinados hábitos de

consumo, alimentares e de saúde preventiva; em que é desenvolvido o espírito de

solidariedade; em que fortalecem seus conhecimentos da língua portuguesa e da lógica

matemática, das ciências, do ambiente, da ética, criando sonhos e asas para voar à

procura deles. Como mães e pais, estamos acompanhando esse processo do presente

que vai construindo o futuro de cada filho?

O desenvolvimento da criança precisa da estreita relação entre escola e grupo

familiar que a rodeia. Os adultos devem aprender a garantir qualidade ao tempo em

família e para a família, bem como ao tempo dedicado ao encontro com a escola, com os

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educadores, com as propostas político-pedagógicas, com os projetos que fortaleceriam

o diálogo com os filhos. Podem as crianças conversar em família sobre as muitas idéias,

sonhos, conflitos, projetos que leva para casa?

Vejo, com muito carinho, a idéia de que todos nós, pais e mães, dediquemos um

pouco de nosso tempo a “aprender a aprender a sermos melhores pais e mães”. Sem

filhos ainda, com filhos muito novos, com filhos adolescentes e adultos, sempre

precisaremos aprender muito para aprimorar as nossas competências e habilidades

familiares, propiciando para o futuro próximo uma melhoria do desempenho na educação

e cultura. Por todo o país, começam a aparecer programas de encontros periódicos

Escola para Pais e Mães.

No sistema escolar, os educadores precisam receber capacitação sobre as

estratégias de mobilização social para conquistar uma participação mais efetiva por parte

das famílias, no processo de educação formal dos seus filhos.

Atenção especial deve ser dada aos responsáveis por educação infantil e aos

educadores de Ensino Médio, que trabalham com adolescentes e jovens em idades de

maternidade e paternidade precoce.

Nas comunidades, sempre estimular a criação de Escolas para Pais e Mães.

4. Família brasileira fortalecida

A partir de consultas e avaliações entre parceiros, durante 2002 e 2003, o Unicef

concluiu sobre a necessidade de se fortalecerem as competências familiares na atenção

às crianças até seis anos, como sendo uma das estratégias indispensáveis, visando a

apoiar e a fortalecer a capacidade das famílias de oferecer melhores condições de

desenvolvimento humano.

Para alcançar sucesso nessa tarefa, o Unicef criou as bases gerais para um

Programa de Qualificação de Agentes de Transformação em todo o país, com material

de apoio especialmente orientado para as famílias com crianças pequenas e com filhos

adolescentes. O Programa Adultos e Crianças Criativas tem sido um dos parceiros

permanentes do Unicef e seus diretores fazem parte da equipe de pesquisadores e

coordenadores de projetos do ILTC (Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência),

entidade proponente desse programa.

O fortalecimento das competências familiares deve estar sempre de mãos dadas

com medidas e parcerias concretas nos municípios, entendendo a real importância da

atenção integral à criança.

A capacidade municipal para melhorar a qualidade dos serviços para a criança, o

adolescente e suas famílias deve ser fortalecida dentro dos diferentes setores.

Os atores municipais (juízes, promotores, conselheiros, prefeitos, secretários

municipais de saúde, de educação e de assistência, técnicos setoriais, mídia) deverão

estar sensibilizados e qualificados para a atenção às crianças, aos adolescentes e às

famílias.

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5. Em que medida as crianças reagem a essa relação?

Laços sólidos de confiança e afeto, alta auto-estima, diálogo e crescimento.

A ação promotora e preventiva que resulta do diálogo e da participação permanente

família-escola, tem como resultados:

· Diminuição do comportamento violento (pessoal/familiar);

· Redução do abuso de álcool/consumo de drogas;

· Redução do isolamento social/afetivo;

· Melhoria dos sentimentos de auto-estima;

· Aumento do interesse e da facilidade da criança pela aprendizagem;

· Aumento da aptidão intelectual;

· Diminuição dos índices de repetência e de evasão escolar;

· Aprendizado sobre como lidar melhor com os conflitos do dia-a-dia;

· Diminuição do estresse e do desapontamento;

· Melhoria do uso do tempo livre;

· Capacidade para planejar, sonhar, inovar;

· Diminuição da institucionalização da criança acolhida nos abrigos.

Formando cidadãos comprometidos com seu próprio desenvolvimento, com a

sociedade, com seus colegas e com os adultos e idosos, teremos crianças e adolescentes

criativos, alegres, bem-humorados, com enorme senso de responsabilidade social e

ambiental, respeitosos da cultura do trabalho, produtivos, fazedores e inovadores,

Temos acompanhado muitos casos de adolescentes com gravidez precoce. Em

99,9% dos casos, independentemente da classe social, trata-se de adolescentes com

mães e pais ausentes, na maioria dos casos irresponsáveis sobre seu papel de amigos,

orientadores, amorosos guias que deveriam ser. Conversamos com eles e existe sempre

uma desculpa sobre a prioridade do seu tempo “para trabalhar e ganhar o pão”. É um

desafio criar os laços de família sólidos e aprender a incluir nossos filhos para que

entendam em que consiste nosso trabalho, conversar sobre ele, participar conosco

solidariamente de todos os afazeres da casa